Título: Capital,
Estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento
Autor: Áquilas Mendes e
Leonardo Carnut
Este material foi
adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, não podendo ser
reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado por: Bruno
Trindade
Adaptado em: Maio de
2025.
Padrão vigente a partir
de março de 2022.
Observações gerais:
Texto original apresenta alguns caracteres não identificados.
Referência: MENDES,
Aquilas; CARNUT, Leonardo. Capital, estado, crise e a saúde pública brasileira:
golpe e desfinanciamento. SER Social: Estado, Democracia e Saúde, Brasília, v. 22, n. 46, p. 9–32, jan./jun.2020.
P. 9
SER
Social
ESTADO,
DEMOCRACIA E SAÚDE
Brasília,
v. 22, n. 46, janeiro a junho de 2020
Capital,
Estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento
Capital,
State, crisis and brazilian public health: coup and de-financing / Capital,
Estado, crisis y la salud pública brasileña: golpe y desfinanciamiento
Áquilas Mendes [nota 1]
Leonardo Carnut [nota 2]
Resumo:
O
objetivo deste artigo é decifrar os sentidos da crise da saúde pública brasileira,
por meio do seu insuficiente financiamento, explicitando a relação orgânica
entre o Estado e o Capital, imbricando crises econômicas,
P.10
políticas e sociais. Ele está organizado em
três partes. A primeira evidencia a crise capitalista contemporânea,
apresentando as suas três tendências explicativas, com destaque para a
tendência da queda da taxa de lucro, a centralidade do capital fictício nas
relações econômicas e sociais e o papel do Estado, com ajustes austeros
permanentes, à medida que é parte integrante das relações capitalistas de
produção. A segunda, debate os movimentos da lógica do Estado capitalista na
América Latina, com especial enfoque ao Estado brasileiro, apresentando o
desdobramento do golpe recente de 2016. A terceira, aborda a trajetória do
subfinanciamento do SUS como decorrente dos rebatimentos da crise do
capitalismo, passando a se constituir em um processo de desfinanciamento.
Palavras-chave:
capitalismo; Estado; financiamento da saúde; política; crítica.
Abstract: The article
aims to decipher the meanings of the Brazilian public health crisis, through
its inadequate financing, conceiving the organic relationship between the State
and Capital, intertwining economic, political and social crises. It is
organized in three parts. The first shows the contemporary capitalist crisis,
presenting its three explanatory tendencies, highlighting the tendency of the
fall in the rate of profit, the centrality of fictious capital in economic and
social relations and the role of the State, with permanent austerity settings,
as it is an integral part of capitalist relations. The second part discusses
the movements of the logic of the capitalist state in Latin America, with a
special focus on the State in Brazil, presenting the unfolding of the recent
coup of 2016. The third part discusses the trajectory of SUS underfunding as a
result of the rebuffs of the capitalism crisis, becoming a process of lack of
investment.
Keywords:
capitalism; State; health financing; politics; comment.
Resumen: El
objetivo de este artículo es descifrar los sentidos de la crisis de la salud
pública brasilena, a través de su insuficiente financiamiento explicitando la
relación orgánica entre el Estado y el Capital, imbricando sus diferentes
crisis. La primera parte evidencia la crisis capitalista contemporánea,
presentando sus tres tendencias explicativas, con destaque a la tendencia de la
caída de la tasa de ganancia, con la centralidad del capital ficticio en las
relaciones económicas y sociales y el papel del Estado, con ajustes austeros
permanentes, a medida que es parte integrante de estas relaciones. La segunda
discute los movimientos de la lógica del Estado capitalista en América Latina,
con especial atención al Estado brasileno, presentando el desdoblamiento del
golpe reciente de 2016. La tercera aborda la trayectoria del subfinanciamiento
del SUS como consecuencia de los rebatimentos de la crisis del capitalismo,
pasando a constituirse en un proceso de desfinanciamiento.
P.11
Palabras
clave: capitalismo; Estado; financiamiento de la salud; política;
crítica.
Introdução
Parece não ser surpresa, no
capitalismo contemporâneo, ocorrer permanentes ataques às políticas de direitos
sociais, em particular à saúde pública universal no Brasil, intensificando a
fragilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de três décadas de
existência desse sistema com recorrentes embates e sinais claros de redução de
sua sustentabilidade financeira.
Recentemente, os brasileiros e
as brasileiras foram comunicados sobre a perda de R$ 9,7 bilhões no
financiamento do SUS, acumulado nos últimos dois anos de 2018 e 2019(SANTOS;
FUNCIA, 2019), em plena vigência da Emenda Constitucional n° 95/2016 que
congelou o gasto público por 20 anos. Entende-se, assim, que o já conhecido sistema
de saúde subfinanciado, há três décadas (MENDES; CARNUT, 2018), desloca-se para
uma nova trajetória, a de um “desfinanciamento”.
A pergunta que não deixa de
ser importante fazer é: por que existe esse movimento de constante piora na
garantia dos direitos sociais e do acesso universal à saúde, ao longo de tantos
anos? Nosso raciocínio deve ir além de simples constatações conjunturais.
Não se trata apenas de uma
crise restrita ao trágico desdobramento do golpe institucional de 2016,
acompanhado de uma blindagem da democracia aos interesses dos setores populares
(DEMIER, 2017). Não se trata de uma crise limitada à ofensiva conservadora do
governo Bolsonaro contra os direitos sociais e democráticos (ARCARY, 2019).
Trata-se de reconhecer a dimensão da crise na saúde pública como parte
integrante da crise do capitalismo em suas formas sociais determinantes: a
crise da forma mercadoria, no que diz respeito à acumulação e à valorização do
valor; a crise da forma política estatal, sobre as crescentes “modalidades privatizantes
de gestão das políticas sociais” e dos ajustes fiscais permanentes; e da crise
da forma jurídica consoante com a forma política estatal, evidenciando
P.12
a crise da forma direito (PACHUKANIS, 2017;
MASCARO, 2018), em particular, do direito à saúde.
É com este entendimento que o
presente artigo tem como objetivo decifrar os sentidos da crise da saúde
pública brasileira, por meio de seu frágil e poroso financiamento, ancorados na
crise do capitalismo contemporâneo, em que se torna explícita a relação
orgânica entre o Estado e o capital, imbricando crises econômicas, políticas e
sociais.
O artigo está organizado em
três partes. A primeira evidencia a crise capitalista contemporânea,
apresentando as suas três tendências explicativas, com destaque para a
tendência da queda da taxa de lucro, a centralidade do capital fictício nas
relações econômicas e sociais e o papel do Estado capitalista, à medida que é
parte integrante das relações capitalistas de produção. A segunda parte debate
os movimentos da lógica do Estado capitalista na América Latina, com enfoque ao
Estado no Brasil, apresentando o desdobramento do golpe recente de 2016 e as
crises decorrentes. A terceira parte aborda a trajetória do subfinanciamento do
SUS como decorrente da crise do capitalismo e da atuação do Estado capitalista,
passando a se constituir num processo de desfinanciamento.
Capital e Estado na crise
contemporânea
Já se passou mais de uma
década em que as economias capitalistas vêm experimentando um período de “longa
depressão” (ROBERTS, 2016) desde o crash de 2007/2008. Numa escala global, a
recessão resultante do colapso do banco Lehman Brothers, em 2008, foi superada
por um longo período que combina baixo investimento e reduzido crescimento da
produtividade, em virtude de uma menor lucratividade dos setores produtivos e
uma aceleração no campo da especulação financeira. A taxa de lucro nos Estados
Unidos, particularmente no setor corporativo das empresas industriais e
financeiras, reduziu-se de um pouco mais de 20%, em 1950, para menos de 7%, em
1982, passando a oscilar nessa posição, desde então, até os anos 2000. (KLIMAN,
2012).
A crise capitalista também
ecoa no Brasil e não se percebe uma recuperação em relação ao período pré-crise
(2014). Entre 2015-2016,
P.13
o Brasil apresentou uma contração de 7,5% em
seu PIB real. Em 2017, o crescimento do PIB foi de apenas 1% e, em 2018,
repetiu-se quase o mesmo comportamento de 1,5%. Dessa forma, o nível atual da
economia, em média, é 5% inferior ao período anterior à crise (LACERDA, 2019).
É importante acrescentar que a crise capitalista no Brasil também provocou um
declínio da taxa de lucro entre 2003-2014, passando de 28% a 23%. (MARQUETI;
HOFF; MIEBACH, 2017).
Ao se comentar a crise
contemporânea do capitalismo, especialmente a partir dos anos 1970-1980,
pode-se dizer que ela se ancora na articulação de duas principais tendências: a
de queda da taxa de lucro nas economias capitalistas, com destaque para o
período posterior da II Grande Guerra; e, como resposta a essa tendência, o
sistema capitalista reforça a valorização financeira, com o capital fictício
passando a ocupar a liderança na dinâmica do capitalismo, nesse período,
apropriando-se dos fundos públicos. (CHESNAIS, 2016).
Ainda que, a partir de 1980,
tenha sido possível observar uma leve recuperação da taxa de lucro, p. ex., na
economia norte-americana, ela foi insuficiente para restaurar o patamar
verificado nos primeiros anos do pós-II Guerra (KLIMAN, 2012). A existência da
pequena recuperação da taxa de lucro, após a década de 1980, se deveu às
políticas econômicas neoliberais, provocando redução dos salários dos
trabalhadores e impondo condições de trabalho ainda bem mais precárias.
O entendimento da tendência da
queda da taxa de lucro nas economias capitalistas exige que se recorra à
explicação da contradição fundamental do modo de produção capitalista,
denominada por Marx de “Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro” (LQTTL)
(MARX, 2017). A acumulação prolongada de capital, com introdução de progresso
técnico, remete ao aumento relativo de parte do capital investida em meios de
produção como máquinas e equipamentos e matéria-prima, isto é, “capital
constante” ou mesmo “trabalho morto” para Marx (representado por c); e à
diminuição da parte do capital investida em força de trabalho, “capital
variável”, ou seja, trabalho vivo (representado por v), elevando a composição
orgânica do capital. Como os lucros são provenientes do valor adicionado pela
P.14
força de trabalho, mantendo assim a taxa de
exploração constante, a taxa de lucro (mensurada pela relação entre a
mais-valia e o montante do capital total investido, c + v) tende a sofrer
queda. No momento em que tal queda ocorre, constata-se uma crise de
sobreacumulação e superprodução que é explicada, não pela insuficiência da
demanda efetiva, mas pelo declínio do lucro. (ROBERTS, 2018).
Para Marx, a solução que o
próprio sistema capitalista fornece a essa problemática decorre da própria
crise, principalmente por meio de poderosas contratendências à LQTTL e, que, em
certa medida, tem no Estado o seu agente catalisador (ALCANTARA FILHO, 2018).
Destacam-se, dentre elas, a “elevação do grau de exploração do trabalho”, bem
como o “aumento do capital acionário”, compensando a queda na taxa de lucro com
juros oferecidos pelo mercado financeiro, por empresas ou por títulos do
Estado. Esta contratendência está relacionada ao aumento da esfera financeira e
se expressa como um fator crucial na discussão da crise contemporânea do
capitalismo.
Marx, ao se referir à crise
capitalista, nos orienta que a dinâmica do capitalismo sempre se desenvolve
acumulando contradições e que periodicamente levam a crises (MARX, 2013). Ao
seguir Marx, Callinicos (2014) insiste na ideia de que podemos encontrar nos
três volumes de O capital não apenas uma articulada e completa teoria da crise,
mas uma concepção multidimensional das crises econômicas, que podem ser
agrupadas em três categorias. A primeira refere-se a fatores que possibilitam a
erupção de crises, resultantes da troca de mercadorias, do moderno sistema de
crédito de capitais e das condições de troca [reprodução ampliada] entre os
dois principais departamentos de produção [bens de produção e bens de consumo].
A segunda categoria reúne fatores que “condicionam” o surgimento de
desequilíbrios, decorrentes das interações entre flutuações nas taxas de
salários e no tamanho do exército industrial de reserva, em conjunto com a
rotação do capital fixo. A terceira categoria relaciona-se à “causalidade” das
crises. Daí o tratamento de Marx em relação à lei que expressa o conflito entre
as forças, as relações de produção e à forma mais fetichizada do capital, sendo
a lei da tendência de queda da taxa de lucro e o ciclo de bolhas o pânico do
mercado financeiro.
P.15
Para efeito de nossa análise,
priorizamos a terceira categoria de Callinicos, a “causal”. Nessa perspectiva,
torna-se fundamental acrescentarmos a segunda tendência da acumulação
capitalista nos últimos 40 anos: o agigantamento da esfera financeira por meio
do vertiginoso crescimento do capital fictício, tanto na forma de títulos
públicos, de ações negociadas no mercado secundário ou como de derivativos de
todos os tipos. Para se ter uma ideia, entre 19802014, os ativos financeiros
globais aumentaram significativamente, passando de quase 12 trilhões de dólares
a 294 trilhões, respectivamente. (CHESNAIS, 2016).
O fraco ritmo do crescimento
do PIB mundial contrasta tanto com a intensidade da exploração do trabalho nas
fábricas dos países industrializados e não industrializados, como com o
montante do que é considerado dinheiro, movendo-se incessantemente pelo sistema
financeiro mundial (CHESNAIS, 2016). O resultado disso é que a lógica de
valorização fictícia, assegurada em última instância pelos estados, via emissão
de títulos da dívida pública, vem se expandindo com crescimento substantivo do
pagamento do serviço desta dívida.
Cabe reiterarmos que a
interação destas duas tendências causais que explicam a crise contemporânea se
articula com a forma política, ou o Estado, à medida que ela mesma é parte
integrante das relações capitalistas de produção, de maneira a assegurar a
forma valor do capital.
A crise e a forma política
estatal, a forma jurídica e a forma direito
A análise do papel que o
Estado desempenha no movimento do capital exige que se reconheça que a sua
natureza é capitalista. O Estado é o garantidor da manutenção da relação de
produção. Contudo, a troca mercantil e a extensão da forma mercadoria à força
de trabalho levam a que essa relação de produção não apareça como tal. Desse
modo, entende-se que o Estado está presente, assegurando que as regras da
troca, aparentemente igualitárias, não sejam violadas. (PACHUKANIS, 2017).
P.16
Ao voltar a atenção para o
Livro I de O capital, Marx (MARX, 2013) argumenta que dado o capital ser uma relação
social, ela é atravessada por profundas contradições. Torna-se evidente a
necessidade de uma instância reguladora - o Estado -, reparadora dos danos
provocados por essas contradições. Trata-se “de uma instância que garanta a
unidade da totalidade que é necessariamente cindida”. (ARAÚJO, 2018, p. 14).
Especificamente, na Seção I
(Mercadoria e dinheiro), Marx deixa claro que o Estado está pressuposto (MARX,
2013). O entendimento aqui é que na circulação mercantil simples (M - D - M) os
produtores individuais trocam mercadorias entre si, emergindo a categoria de
propriedade e esta, por sua vez, não pode prescindir do Estado. Além disso, a
elucidação da “pseudo” relação de igualdade entre o comprador e o vendedor
mostra a natureza da relação de produção, evidenciando que o dinheiro, ao
comprar força de trabalho, assume o caráter de capital. A sucessão das
categorias “mercadoria / valor / dinheiro” não pode se encerrar na categoria
“capital”. Isto porque se limitada à categoria “capital”, essa dedução lógica
não permite apreender em sua totalidade as causas do movimento real da
sociabilidade capitalista. O capital não pode ser concebido se se omite a
categoria “Estado”. O Estado é deduzido, isto é, derivado da lógica do capital.
(PACHUKANIS, 2017).
Iluminado por Marx, Pachukanis
(2017) demonstra que o Estado desempenha seu papel de coerção para assegurar a
sociabilidade capitalista. Tal coerção é “proveniente de alguma pessoa abstrata
geral, como coerção realizada não no interesse do indivíduo do qual ela provém
- pois cada homem na sociedade mercantil é um homem egoísta -, mas no interesse
de todos os participantes do intercâmbio jurídico”. (PACHUKANIS, 2017, p. 175).
Mascaro (2013, p. 18)
contribui dizendo: “[...] o Estado se revela como um aparato necessário à
reprodução capitalista, assegurando a troca das mercadorias [...]”, na sua
forma valor “[...] e a própria exploração da força de trabalho sob a forma
assalariada”. Admite-se que “o Estado não é burguês por vontade de seus
agentes, mas pela natureza material de sua forma social” (MASCARO, 2018, p.
26). Contudo, é
P.17
importante marcar que entre a forma valor e a
forma política estatal não há um desdobramento lógico necessário, nem de total
ligação funcional. Mascaro (2013) ainda argumenta que o político e o jurídico
se estabelecem na totalidade das relações de produção, sendo entrelaçados de
forma dialética.
Estas reflexões se referem à
contribuição do debate da derivação dos anos 1970 que deduz (deriva) a “forma
política” ou “forma estatal” das contradições da dinâmica do capital, em que a
natureza desta relação atribui ao Estado sua natureza capitalista, assegurando
a troca das mercadorias, na sua forma valor e a própria exploração da força de
trabalho (BONNET; PIVA, 2017). Esse debate da derivação explicita como o Estado
não constitui mero resultado da vontade da classe dominante, mas sim de um
determinado modo de produção e das relações sociais que lhe são inerentes.
A compreensão da crise
capitalista deve ser baseada nas duas formas determinantes da sociabilidade
capitalista já analisadas até aqui, isto é, a forma mercadoria/forma valor e a
forma política estatal, acrescentando, ainda, uma terceira: a forma jurídica
(ou forma contratual) em sua conformação com a necessidade de assegurar as
relações de produção. Esta última também entra em crise, colocando em cheque os
direitos sociais - o direito à saúde -, isto é, reduzindo-os. Daí é que se pode
referir aqui à crise da forma direito.
Antes de se abordar,
particularmente, esta crise da forma direito no contexto contemporâneo,
torna-se importante compreender, o que nos mostra Pachukanis (2017) a respeito
do sentido da totalidade do desenvolvimento do direito na sociabilidade
capitalista. Este autor argumenta que o direito privado e o direito público estão
imbrica-dos: “na área do direito público, os esforços dos juristas são em geral
brutalmente frustrados pela ‘realidade’, pois, dentro da sua atividade, o
‘poder’ não tolera qualquer interferência e não reconhece a onipotência da
lógica jurídica” (p. 23). Pachukanis se refere à ‘realidade’ associada às
relações sociais de produção capitalista e ao ‘poder’, como o poder do capital.
Deste modo, pode-se
compreender as tensões da afirmação do direito à saúde no Brasil por meio do
processo de políticas públicas
P.18
no contexto contemporâneo - reduções desse
direito e sua mercantilização -, fazendo com que este direito se adeque à
realidade do capitalismo em crise. A manutenção do direito à saúde nesse quadro
torna-se um campo para infinitas controvérsias e intensas confusões, como as
que viemos assistindo no período mais recente no Brasil, privilegiando a
operação do direito privado à saúde. (MENDES; CARNUT, 2018).
O Estado capitalista no
Brasil: crise e golpe institucional de 2016
Após ter sido feita uma caracterização
mais geral do Estado capitalista, podemos refletir de forma mais direta sobre o
Estado no Brasil. Antes de tudo, sugere-se que a análise do nosso país se
circunscreva à natureza do Estado nos países latino-americanos
subdesenvolvidos. Neste sentido, não é possível apenas deduzir o Estado nesses
países à sucessão das categorias (mercadoria/valor/dinheiro/capital) (MATHIAS;
SALAMA, 1983). Considera-se fundamental entender esses países na totalidade da
lógica da acumulação capitalista, isto é, seu papel na divisão internacional do
trabalho em relação ao próprio processo de reprodução do capital e na base das
suas formações sociais. Mathias e Salama (1983) avançam na análise para além
das categorias constitutivas da sociabilidade capitalista, introduzindo a
inserção dos países subdesenvolvidos na “economia mundial constituída”,
aprimorando ainda mais a perspectiva derivacionista do Estado.
Um dos principais objetivos
destes autores é analisar as causas da amplitude da intervenção do Estado nos
países subdesenvolvidos e, por sua vez, estudar as razões da multiplicação de
regimes de legitimidade restrita (ditaduras civis e militares) nestes países.
Mathias e Salama (1983) separam assim a necessidade da intervenção estatal que
necessita do capital para garantir sua reprodução e a materialização da
intervenção pública particular a partir dos governos. Em síntese, em que pese
nos países desenvolvidos a intervenção estatal ser deduzida da categoria
“capital”, nos países subdesenvolvidos, a intervenção relaciona-se com a sua
inserção dos países na economia mundial.
P.19
Para estes autores, a
manifestação concreta do Estado ocorre sob forma de “regime político”. Tal
argumento nos conduz a dizer que a necessidade de regimes mais autoritários
está intimamente e diretamente determinada pelas condições de reprodução do
capital em nível global. Trata-se de dizer que o regime político não é o
Estado, mas sim sua forma de existência na sociedade concreta.
Nota-se no processo histórico
dos países subdesenvolvidos um Estado muito mais interventor e que atua,
principalmente, por meio de um regime de legitimidade restrita. De acordo com
Mathias e Salama (1983), as contradições internas às relações sociais
capitalistas se manifestam de forma diferente nestes países. Não houve neles o
desenvolvimento destas relações sociais, à medida que não passaram por um
processo histórico que consolidou uma estrutura social específica. A estrutura
social é condizente com sua condição histórica de colônia, o que, no caso do
Brasil, deixa marcas profundas de atraso na sua formação social, entre elas: o
sentido do comércio exterior, o peso da escravatura, o desenvolvimento desigual
e combinado e o caráter autocrático da dominação burguesa. (IANNI, 2004;
MATTOS, 2017).
Mathias e Salama (1983)
argumentam que a maior intensidade da luta de classes nestes países, diante de
uma relação imperialista entre nações, necessita de regimes políticos de
“legitimidade restrita” para que se garanta a manutenção da condição
subordinada dentro da divisão internacional do trabalho e, consequentemente,
uma relação de dependência.
Partindo-se desses
pressupostos é que podemos esboçar uma primeira aproximação sobre o sentido
geral da chamada onda progressista latino-americana, o lugar que o Estado
ocupou na desmobilização da classe trabalhadora e um balanço do sentido geral
do movimento histórico recente e seu legado político (PRADO, 2017),
especialmente quando se aponta para o golpe institucional de 2016 e que, em
nossa análise, ainda está em curso. Para nossa reflexão, a situação vivenciada
no bloco latino-americano, de processos políticos golpistas sucedâneos
(Honduras, Paraguai, Brasil, e porque não citar aquele que está se avizinhando,
Venezuela) se trata de um bem
P.20
arquitetado plano, em longo prazo, de um padrão
de restituição do poder das oligarquias, em nível mundial.
Ora, é certo que a burguesia
internacional nunca esteve fora, ou sequer sem o poder político-econômico nas
mãos, mas é fato que o padrão de acumulação do capitalismo central com sua
financeirização levou sua expansão para setores considerados anteriormente como
não produtivos (saúde, educação, segurança etc.), promovendo a necessidade de
readequação da estratégia ofensiva. A democracia, especialmente aquelas mais
frágeis, com regimes políticos ainda em consolidação, é um importante espaço
para expandir negócios e aprofundar a dependência. Neste sentido, em linha com
os golpes em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), o drama brasileiro é por
muitos pensado como outro exemplo de uma renovada estratégia do imperialismo na
América Latina (RIBEIRO, 2016). Por pouco a Argentina não padecia do mesmo
problema, já que a eleição em 2015 do sociodireitista ianque Mauricio Macri
(KATZ, 2019), parece ser outra indicação de que o giro à esquerda no Continente
(se é que ele de fato ocorreu) está acabando.
Do ponto de vista analítico,
há algum consenso de que Golpe de Estado, em termos conceituais, pode ser
compreendido como a tomada inesperada do poder governamental pela força e sem a
participação do povo, resultando de uma manobra política de ajustar a forma
jurídica burguesa ao processo/padrão de acumulação necessário para manutenção
do poder das classes dominantes e sua recuperação em função da queda da taxa de
lucro. (CARDOSO, 2014).
Seja via processo eleitoral ou
pelos “neogolpes” - aqueles que não necessariamente resultam da força física
(aparato militar) ou da destituição da ordem burguesa legal (intervenção e
fechamento de algum dos três poderes) e nem dependem necessariamente de apoio
externo (LLANO; NOLTE; WEBER, 2012), o poder político precisava se reinventar
para garantir a reprodução ampliada do capital. No Brasil, o afastamento
presidencial é por nós considerado um golpe institucional (também de golpe
brando, de outro tipo, ou de outro gênero). Já por sua posição de destaque, na
América Latina, o Brasil tornou-se o alvo da rapinagem burguesa internacional.
Para o alcance
P.21
de seus objetivos, manter o “manto de
neutralidade” sobre a responsabilidade do Estado em relação à crise econômica e
a sua forma jurídica, assim como tornar o devido processo legal “intocável” na
argumentação sobre a validade do juízo político que se assolava os casos
latino-americanos supracitados, tem sido a tônica vigente da tática de
dominação dos terrenos férteis de expropriação de mais-valor.
O processo progressista
vivenciado na América Latina e, especialmente no Brasil, está em consonância
com o projeto de avanço burguês na região. Ora, se bem lembrarmos a “Carta ao
Povo Brasileiro de 2002”, na eleição de Lula e no prosseguimento de seus
governos de política econômica neoliberal, com breves nuances de
socialdemocracia, entendemos que nunca houve um rompimento com os interesses
burgueses, já que no processo de acumulação permanecia em curso uma espécie de
“neodesenvolvimentismo” (SAMPAIO JR., 2012). Para Sampaio Jr. (2012), este
neodesenvolvimentismo tem por finalidade última desenvolver o capital e não os
direitos sociais, por mais que estes últimos sejam invocados como argumentos
para manter a classe trabalhadora produtiva. Pode-se associar à ideia de um
“desenvolvimentismo às avessas”, à medida que há uma ausência de transformações
estruturais que caracterizariam o projeto desenvolvimentista das décadas de
1950 e 1960.
Por isso, reforçamos que esta
perspectiva crítica marxista, como de Sampaio Jr., é a mais adequada para
elucidar a crise em questão. Ela não parte dos indivíduos nem das querelas
opinativas, mas sim das classes sociais e suas frações, seus múltiplos
interesses e conflitos intra e interclasses pela riqueza social. O epicentro da
crise política, e logo do golpe foi o conflito distributivo entre classes. O
pesado ajuste fiscal para assegurar o capital rentista, o pagamento do serviço
da dívida pública, a abertura e privatização da economia brasileira para atender
ao capital internacional, além dos cortes aos direitos trabalhistas e sociais
são os principais objetivos do golpe em curso. (BOITO JR., 2016).
Assim, tentando confirmar a
tese de que o golpe vivenciado no Brasil é mais uma contratendência para destravar
a acumulação capitalista e que conta com o Estado para remodelar a forma
jurídica a
P.22
seu favor, é que se tem na democracia o seu
principal alvo. Como reformatar sem desconfigurá-la? Como justificar uma
‘saturação’ do processo democrático sem eliminá-la? Uma transição democrática
para outro regime político parece ser a tendência a se desenhar. Para isso, a
história nos ajuda mais uma vez fornecendo-nos a evidencia necessária. Demier
(2017) relata que, de longa data se apresentam os interesses da burguesia
internacional na democracia dos países latino -americanos. Enquanto prescreviam
uma reformatação da democracia liberal para a Europa e os Estados Unidos que
permitisse reduzir drasticamente os gastos públicos e abrir outros espaços de
investimentos ao capital via privatizações/mercantilizações dos serviços
sociais, teóricos e cientistas sociais neoconservadores, vinculados à Comissão
Trilateral, como Samuel Huntington, propuseram também que, na América Latina,
começasse a se efetivar, “pelo alto”, mutações nos sistemas políticos
nacionais, visando à constituição de sistemas democráticos do tipo “restrito”.
Assim, os regimes
democrático-liberais pós-ditaduras deveriam apresentar um baixíssimo grau de
mobilização popular, privando os espaços políticos decisórios de qualquer tipo
de interferência de massas. A rigor, os teóricos neoconservadores indicavam
para a América Latina a edificação de um regime democrático de tipo
“procedimental” - estruturado em excessivas regras e procedimentos. (SAFATLE,
2017).
Remodeladas pelo
neoliberalismo das duas últimas décadas, as democracias liberais dos países de
capitalismo central substituíram uma política social reformista que as
caracterizavam, por outra de corte nitidamente contrarreformista (BEHRING,
2018). No Brasil, especialmente no período petista, isso se conduziu sob uma
aparente situação de ampliação dos espaços de participação popular e
“transparência governamental”. Porém, contraditoriamente, a decisão política
dos espaços participativos ia ficando cada vez mais alijada da classe
trabalhadora e de suas reais representações. As consultas públicas tornaram-se
meros rituais administrativos que consideravam, principalmente, as proposições
que não ameaçassem nada que fosse importante. Neste sentido, concordamos com
Demier (2017, p. 87) quando aponta que “essas configurações políticas altamente
P.23
restritivas se constituem na
forma “ótima” da gestão burguesa da luta de classes”. E assim, estamos.
O sentido da saúde pública no
capitalismo em crise: do subfinanciamento ao desfinanciamento
A discussão acerca do
financiamento do SUS tem sido um processo difícil e tenso no contexto da
barbárie do tempo histórico do capitalismo contemporâneo em crise. Nos últimos
30 anos, que coincidem com a existência do SUS, observa-se que o Estado
brasileiro não deixou de conceder incentivo à iniciativa privada, impondo
riscos à saúde universal. Para se ter uma ideia, nas três últimas décadas, o
gasto privado cresceu de forma mais intensa que o gasto público, quando
comparados em relação ao PIB. Enquanto o gasto público total (União, estados e
municípios) foi de 2,8% do PIB, em 1993, o privado foi de 1,4%. Posteriormente,
a situação se inverteu, sendo o gasto privado superior ao público. Em 2015, o
gasto privado foi de 5,2% do PIB e o gasto público foi de 3,9% do PIB. (MENDES,
2017).
Por sua vez, o período de
existência do SUS tem sido acompanhado por uma trajetória de persistência de
reduzidos montantes de recursos, evidenciando um subfinanciamento estrutural
deste sistema (MENDES; FUNCIA, 2016). Para uma ideia geral desse
subfinancia-mento, se o art. 55 das Disposições Constitucionais Transitórias da
Constituição Federal fosse aplicado, 30% dos recursos da Seguridade Social
deveriam ser destinados à saúde, mas isso nunca foi feito. Em 2018, o Orçamento
da Seguridade Social foi de R$ 723,6 bilhões, sendo que se destinados 30% à
saúde, considerando os gastos do governo federal, corresponderiam a R$ 217,1
bilhões, mas a dotação foi quase a metade disso. (FUNCIA; SANTOS, 2019).
As décadas de subfinanciamento
do SUS podem ser melhor compreendidas a partir do tempo histórico da crise
capitalista contemporânea, que tem o Estado capitalista atuando no sentido de
restringir o orçamento público, em decorrência de ajustes fiscais adotados pelos
governos. Tais ajustes respondem às exigências do capital portador de juros
(financeiro), e de sua forma mais perversa, do capital fictício, que buscam se
apropriar do fundo público para a
P.24
sua expansão rentista. Desta forma, revela-se a
sintonia entre a crise da forma mercadoria, a crise da forma política estatal e
a crise da forma direito, obstaculizando a possibilidade de se assegurar a
efetivação do direito à saúde, à medida que se mantém a expropriação dos
recursos do Orçamento da Seguridade Social, ao longo desse tempo de 30 anos de
Constituição “Cidadã”.
Trata-se de reconhecer a
histórica fragilidade financeira do SUS, de forma mais ampla, por meio de
insuficiência de recursos e do baixo volume de gastos com recursos públicos; de
indefinição de fontes próprias para a saúde; de ausência de maior
comprometimento do Estado brasileiro com alocação de recursos e com melhor
distribuição de recursos no interior do Orçamento da Seguridade Social (saúde,
previdência e assistência social); das elevadas transferências de recursos ao
setor privado via recursos direcionados às modalidades privatizantes de gestão
(OSs, Oscips, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e Fundações
Estatais Públicas de Direito Público/Privado com contratos celetistas). Todas
incentivadas pela implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal (em vigor há
19 anos) que limita o aumento do gasto com pessoal, favorecendo o incremento
das despesas com serviços de terceiros.
Além disso, é importante
reconhecer que o contexto do capitalismo em crise vem contribuindo para os
embates na história do financiamento do SUS, desde sua criação, passando pela
vinculação de recursos federais para aplicação da saúde por meio da Emenda
Constitucional (EC) 29/2000, com o frágil esquema baseado no montante aplicado
no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB, até a Lei n° 141/2012
(regulamentação da EC 29) que não modificou essa base de cálculo (MENDES,
FUNCIA, 2016). Sob essa perspectiva, nota-se que, entre 1995 a 2018, o gasto do
Ministério da Saúde não foi alterado, mantendo-se 1,7% do PIB, enquanto que o
gasto com juros da dívida representou, em média, 6,6% (FUNCIA; SANTOS, 2019).
Percebe-se com esses dados, que a apropriação do fundo público na saúde pelo
capital fictício manteve-se intensa, expropriando o direito à saúde, de forma a
evidenciar sua crise.
P.25
Ainda cabe mencionar dois
aspectos que vêm contribuindo para prejudicar o financiamento do SUS, ao longo
da sua existência: a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e as renúncias
fiscais, no setor saúde.
A introdução da DRU, criada
desde 1994, renovada a cada quatro anos e, ainda, em pleno funcionamento, é
bastante conhecida por estudiosos do orçamento público. Originariamente,
instituiu-se que 20% das receitas do Orçamento da Seguridade Social (OSS)
fossem retiradas e destinadas ao pagamento de juros da dívida, em respeito à já
histórica política do governo federal de manutenção do superávit primário, sob
as exigências do capital fictício dominante na fase contemporânea do
capitalismo. A partir da EC 93/2016, houve alteração na alíquota desse
mecanismo, passando para 30%, em vigor até 2023. Com a elevação do percentual
de desvinculação, a subtração de recursos da Seguridade passou de uma média de
R$ 63,4 bilhões, entre 2013 e 2015, para R$ 99,4 bilhões, em 2016, e R$ 113
bilhões, em 2017 (ANFIP, 2018). Em síntese, o significado da DRU ao longo de
sua existência, correspondeu a uma perda de recursos para a Seguridade Social,
entre 1995 e 2017, de R$ 980,0 bilhões.
As renúncias fiscais, na área
da saúde vêm aumentando significativamente no período recente prejudicando que
o SUS possa contar com recursos públicos mais elevados. Tais renúncias são
referentes ao Imposto de Renda (pessoa física-IRPF e jurídica-IRPJ) que apresenta
despesas com serviços de saúde privados e também às concessões fiscais às
entidades privadas sem fins lucrativos (hospitais filantrópicos), além das
relativas à indústria farmacêutica. O total das renúncias fiscais concedidas à
saúde privada vem crescendo de forma considerável, passando de R$ 8,6 bilhões,
em 2003; para R$ 32,3 bilhões, em 2015. Particularmente, no tocante ao montante
da renúncia do IRPF e do IRPJ, no mesmo período, passaram de R$ 3,7 bilhões
para R$ 11,7, bilhões e de R$ 1,2 bilhões para R$ 4,5 bilhões, respectivamente.
(OCKÉ-REIS, 2018).
Após o embate de inúmeras
propostas de alteração do financiamento federal do SUS, ao longo dos anos 2000
- posteriores as determinações da Lei n° 141/2012 (variação nominal do PIB) -,
defendidas
P.26
pelas entidades do Movimento da Reforma
Sanitária, juntamente com o Conselho Nacional de Saúde, não foi conseguido um
resultado sustentavelmente satisfatório para o sistema. Ao contrário, o
subfinanciamento do SUS foi intensificado com a aprovação da EC 86/2015. Ocorre
a alteração da base de cálculo de aplicação do governo federal para 13,2% da
Receita Corrente Líquida (RCL), em 2016 - menor que o percentual alcançado em
2015 -, elevando-se, de forma escalonada, até alcançar 15% da RCL, em 2020.
Assim, registrou-se uma perda de R$ 9,2 bilhões para o orçamento do MS já neste
ano. (MENDES; FUNCIA, 2016).
Vale registrar que o histórico
desfinanciamento do SUS tem relação com as medidas implantadas no país, por
meio do tripé macroeconômico ortodoxo - metas de inflação, superávit primário e
câmbio flutuante -, adotadas pelo governo federal desde o de Fernando Henrique
Cardoso (FHC) até o de Dilma Roussef (MENDES; CARNUT, 2018). Assiste-se à
utilização de ajustes fiscais permanentes, levando à redução de recursos direcionados
ao nosso sistema de proteção social.
Com o golpe institucional de
2016, que levou ao impeachment de Dilma, agudizou-se o processo de destruição
dos direitos sociais e, na área da saúde, o esmagamento do financiamento do SUS
parece ganhar um ritmo mais frequente. Intensificou-se no governo Temer a
lógica da política econômica restritiva a uma potência, jamais perseguida nos
últimos 30 anos. O Documento do MDB - partido que conduziu o processo do golpe
de Estado -, intitulado “Uma Ponte para o Futuro”, de outubro de 2015,
constitui peça-chave que vem orientando a avalanche de “perda de direitos
sociais”. (FNCPS, 2017).
Nessa perspectiva, o
subfinanciamento do SUS passou a ser transformado num processo de
desfinanciamento, configurando um quadro de aniquilamento, “a conta-gotas” das
tentativas de construção de nosso sistema universal. Trata-se, especificamente,
da introdução da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, seguindo orientação do
Documento “Ponte para o Futuro”.
A EC 95 foi promulgada pelo
governo Temer com o objetivo de limitar a expansão dos gastos públicos
(despesas primárias) pelos próximos 20 anos, mas não o fez para as despesas
financei-
P.27
ras, mantendo o alto patamar de pagamento dos
juros da dívida por parte do governo brasileiro. Para a saúde, essa mudança da
regra do piso federal significou congelar o parâmetro de aplicação mínima no
valor monetário correspondente a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) de 2017,
atualizado anualmente tão somente pela variação do IPCA/IBGE, até 2036.
Alguns estudos apresentam o
declínio do financiamento do SUS. Constata-se que a EC 95 levará a perdas
acumuladas de 2017 a 2036 de R$ 162 bilhões a R$ 400 bilhões (conforme projeção
anual do PIB de 1,0% e 2,0%, respectivamente) (VIEIRA; BENEVIDES, 2019). Num
cenário retrospectivo, Funcia e Ocké-Reis (2018) estimam que se as regras da EC
95 estivessem em vigor no período de 2001 a 2015, em comparação aos valores
efetivamente empenhados nesse período, as perdas acumuladas seriam superiores a
R$ 100 bilhões, a preços de 2015. Em síntese, os recursos federais para o SUS
seriam reduzidos de 1,7% do PIB até atingir apenas 1,1% deste, em 2015.
Na vigência da EC 95, a
deterioração do gasto público com saúde é inegável. O subfinanciamento do SUS,
que já vinha determinando um patamar insuficiente, passa a um processo de
desfinanciamento descendo gradativamente seu valor em relação à arrecadação.
Os pisos federais de 2018 e
2019, calculados em acordo à regra dessa Emenda, representam, na realidade, uma
redução de recursos para a saúde pública no Brasil. Isto porque, a base fixa é
de 2017, sendo 15,0% da RCL (R$ 727,3 bilhões) desse ano, o que corresponde a
uma aplicação de ações e serviços públicos de saúde de R$ 109,1 bilhões. A
variação para os anos posteriores ocorre apenas por meio do IPCA/IBGE. Então,
observa-se uma queda dos percentuais utilizados, sendo 13,95% em 2018 (R$ 112,3
bilhões), reduzindo em R$ 4,2 bilhões seu valor real em relação aos 15% da RCL
(R$ 116,6 bilhões). Se somarmos a perda de 2018 com a de 2019 - (estimada), com
base nos parâmetros apresentados na Lei Orçamentária de 2019 -, apura-se 13,85%
da RCL (R$ 117,2 bilhões), atingindo o patamar de R$ 9,7 bilhões que são
retirados da saúde em dois anos, já que nesse ano a relação aos 15% da RCL deveria
corresponder a R$ 127,0 bilhões. (FUNCIA; SANTOS, 2019).
P.28
Assim, o SUS passa a
enfrentar, ao lado de seu subfinanciamento de 30 anos, um processo crescente e
contínuo de desfinanciamento, a partir de 2017, em decorrência de um ajuste
fiscal que asfixia direitos fundamentais à saúde, evidenciando a intervenção da
forma jurídica (regime político) do Estado, sob uma intervenção pública que
busca cumprir o papel exigido pelo capital em crise. Para se ter uma ideia, o
gasto público em ações e serviços públicos de saúde, em termos consolidados
(União, estados, Distrito Federal e municípios), de aproximadamente R$ 3,60 por
habitante/dia em 2017, equivalente a 4,0% do PIB, é metade da média de
aplicação dos países com sistemas de saúde universal (Alemanha, Canadá,
Espanha, França, Reino Unido e Suécia, principalmente), 8,0%.(MENDES; FUNCIA,
2016).
Esta austera EC 95 parece ser
a forte expressão do Estado capitalista brasileiro em consonância com a lógica
do capitalismo contemporâneo sob a dominância do capital financeiro,
especialmente porque não estabeleceu limites para os juros e outras despesas
financeiras. Sem dúvida, a escolha por essa política de austeridade tem grande
efeito sobre o direito à saúde, evidenciando ainda mais sua crise.
Conclusão
Nestes tempos turbulentos,
somos, a cada momento, surpreendidos no Brasil com as seguintes palavras: “a
situação está cada vez pior”. Entretanto, a compreensão sobre esse quadro não
pode se restringir a uma problemática recente de aniquilamento dos direitos democráticos
e, na saúde, um processo de desfinanciamento do nosso sistema por meio da EC
95. Vivemos, há pouco mais de 30 anos, sob uma crise do capitalismo marcada
pelas tendências de queda da lucratividade e a expansão do poder do capital
fictício. Nestes difíceis tempos, o Estado capitalista tem desempenhado o
papel-chave para assegurar contratendências à queda da lucratividade do setor
produtivo, resultando em ajustes fiscais permanentes, materializando um
processo de avalanche de perda de direitos sociais, inclusive o direito à
saúde.
O golpe institucional de 2016
marca um ponto de inflexão na crise capitalista em nosso país. O Estado revela
claramente sua forma
P.29
de manifestar-se na relação com o capital, por
meio de uma blindagem democrática que aponta para um vindouro regime de
legitimidade restrita. Tal quadro político e econômico não nos permite
simplesmente aceitar o cenário no qual a EC 95, seja, de fato, o fim do mundo.
A transição para uma nova era pode ser possível, efetivamente, de um tempo de
vários fins, com maior violência, expropriação de direitos e conservantismo.
Uma rota de contraposição a isto somente encontrará sentido se reconhecermos a
importância da luta pela superação do Estado capitalista e por ideias-força
contrárias ao mundo capitalista, em que se possa edificar uma saúde emancipada.
Artigo submetido em
21/06/2019
Aceito para publicação
em 17/10/2019
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Página notas de rodapé
Nota 1, página 9: Doutor
em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
(FSP-USP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
E-mail: aquilasmendes@gmail.com
Nota 2, página 9: Cientista
Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-doutor em Saúde
Pública (Ciências Sociais e Humanas em Saúde) pela Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Professor Adjunto da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp). Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da
Saúde. Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (Cedess). E-mail: leonardo.carnut@gmail.com.