Título:
Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos
Autor: Cristina
Broglia Feitosa de Lacerda.
Este
material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998,
não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado
por: Andréia Karoliny.
Revisado
por: Rafaela Macena.
Adaptado
em: abril de 2025.
Padrão
vigente a partir de março de 2022.
Observações
gerais: No texto contém nota asterisco não localizada no material original
disponibilizado pelo professor.
Referência:
LACERDA, Cristina Broglia
Feitosa de. Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos
surdos. Cadernos Cedes, São Paulo,
v. 19, n. 46, p. 68-80, set. 1998.
P.
1
Um
pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos
Cristina B.F. de Lacerda*
Resumo: A educação dos surdos é um problema
inquietante por suas dificuldades e limitações. Ao longo da história, esse
assunto tem sido polêmico, gerando desdobramentos em várias vertentes com
diferentes conseqüências. O objetivo deste artigo é
dar a conhecer um pouco de sua história, focalizando principalmente o oralismo, a comunicação total e o bilingüismo
como propostas educacionais e suas implicações.
Palavras-chave:
educação de surdos, crianças deficientes auditivas: educação, educação especial
A educação de surdos é um assunto inquietante,
principalmente pelas dificuldades que impõe e por suas limitações. As propostas
educacionais direcionadas para o sujeito surdo têm como objetivo proporcionar o
desenvolvimento pleno de suas capacidades; contudo, não é isso que se observa
na prática. Diferentes práticas pedagógicas envolvendo os sujeitos surdos
apresentam uma série de limitações, e esses sujeitos, ao final da escolarização
básica, não são capazes de ler e escrever satisfatoriamente ou ter um domínio
adequado dos conteúdos acadêmicos. Esses problemas têm sido abordados por uma
série de autores que, preocupados com a realidade escolar do surdo no Brasil,
procuram identificar tais problemas (Fernandes 1989, Trenche
1995 e Mélo 1995) e apontar caminhos possíveis para a
prática pedagógica (Góes 1996 e Lacerda 1996). Nesse sentido, parece oportuno
refletir sobre alguns aspectos da educação de surdos ao longo da história,
procurando compreender seus desdobramentos e influências sobre a educação na atualidade.
Durante a Antiguidade e por quase toda a Idade
Média pensava-se que os surdos não fossem educáveis, ou que fossem imbecis. Os
poucos textos encontrados referem-se prioritariamente a relatos de curas
milagrosas ou inexplicáveis (Moores 1978).
É no início do século XVI que se começa a
admitir que os surdos podem aprender através de procedimentos pedagógicos sem
que haja interferências sobrenaturais. Surgem relatos de diversos pedagogos que
se dispuseram a trabalhar com surdos, apresentando diferentes resultados
obtidos com essa prática pedagógica. O propósito da educação dos surdos, então,
era que estes pudessem desenvolver seu pensamento, adquirir conhecimentos e se
comunicar com o mundo ouvinte. Para tal, procurava-se ensiná-los a falar e a
compreender a língua falada, mas a fala era considerada uma estratégia, em meio
a outras, de se alcançar tais objetivos.
Entretanto, era freqüente
na época manter em segredo o modo como se conduzia a educação dos surdos. Cada
pedagogo trabalhava autonomamente e não era comum a troca de experiências. Heinicke, importante pedagogo alemão, professor de surdos,
escreveu que
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seu
método de educação não era conhecido por ninguém, exceto por seu filho. Alegava
ter passado por tantas dificuldades que não pretendia dividir suas conquistas
com ninguém (Sánchez 1990). Assim, torna-se difícil saber o que era feito
naquela época; em conseqüência, muitos dos trabalhos
desenvolvidos se perderam.
A figura do preceptor era muito freqüente em tal contexto educacional. Famílias nobres e
influentes que tinham um filho surdo contratavam os serviços de
professores/preceptores para que ele não ficasse privado da fala e conseqüentemente dos direitos legais, que eram subtraídos
daqueles que não falavam. O espanhol Pedro Ponce de Leon é, em geral,
reconhecido nos trabalhos de caráter histórico como o primeiro professor de
surdos.
Nas tentativas iniciais de educar o surdo, além
da atenção dada à fala, a língua escrita também desempenhava papel fundamental.
Os alfabetos digitais eram amplamente utilizados. Eles eram inventados pelos
próprios professores, porque se argumentava que se o surdo não podia ouvir a
língua falada, então ele podia lê-la com os olhos. Falava-se da capacidade do
surdo em correlacionar as palavras escritas com os conceitos diretamente, sem
necessitar da fala. Muitos professores de surdos iniciavam o ensinamento de
seus alunos através da leitura-escrita e, partindo daí, instrumentalizavam-se
diferentes técnicas para desenvolver outras habilidades, tais como leitura
labial e articulação das palavras.
Os surdos que podiam se beneficiar do trabalho
desses professores eram muito poucos, somente aqueles pertencentes às famílias
abastadas. É justo pensar que houvesse um grande número de surdos sem qualquer
atenção especial e que, provavelmente, se vivessem agrupados, poderiam ter
desenvolvido algum tipo de linguagem de sinais através da qual interagissem.
A partir desse período podem ser distinguidas,
nas propostas educacionais vigentes, iniciativas antecedentes do que hoje
chamamos de "oralismo" e outras
antecedentes do que chamamos de '"gestualismo'".
Em seu início, no campo da pedagogia do surdo,
existia um acordo unânime sobre a conveniência de que esse sujeito aprendesse a
língua que falavam os ouvintes da sociedade na qual viviam; porém, no bojo
dessa unanimidade, já no começo do século XVIII, foi aberta uma brecha que se
alargaria com o passar do tempo e que separaria irreconciliavelmente oralistas de gestualistas. Os
primeiros exigiam que os surdos se reabilitassem, que superassem sua surdez,
que falassem e, de certo modo, que se comportassem como se não fossem surdos.
Os proponentes menos tolerantes pretendiam reprimir tudo o que fizesse recordar
que os surdos não poderiam falar como os ouvintes. Impuseram a oralização para que os surdos fossem aceitos socialmente e,
nesse processo, deixava-se a imensa maioria dos surdos de fora de toda a
possibilidade educativa, de toda a possibilidade de desenvolvimento pessoal e
de integração na sociedade, obrigando-os a se organizar de forma quase
clandestina. Os segundos, gestualistas, eram mais
tolerantes diante das dificuldades do surdo com a língua falada e foram capazes
de ver que os surdos desenvolviam uma linguagem que, ainda que diferente da
oral, era eficaz para a comunicação e lhes abria as portas para o conhecimento
da cultura, incluindo aquele dirigido para a língua oral. Com base nessas
posições, já abertamente encontradas no final do século XVIII, configuram-se
duas orientações divergentes na educação de surdos, que se mantiveram em
oposição até a atualidade, apesar das mudanças havidas no desdobramento de
propostas educacionais.
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Como representante mais importante do que se
conhece como abordagem gestualista está o
"método francês" de educação de surdos. O abade Charles M. De L'Epée foi o primeiro a estudar uma língua de sinais usada
por surdos, com atenção para suas características lingüísticas.
O abade, a partir da observação de grupos de surdos, verifica que estes
desenvolviam um tipo de comunicação apoiada no canal viso-gestual, que era
muito satisfatória. Partindo dessa linguagem gestual, ele desenvolveu um método
educacional, apoiado na linguagem de sinais da comunidade de surdos,
acrescentando a esta sinais que tornavam sua estrutura
mais próxima à do francês e denominou esse sistema de "sinais
metódicos". A proposta educativa defendia que os educadores deveriam
aprender tais sinais para se comunicar com os surdos; eles aprendiam com os
surdos e, através dessa forma de comunicação, ensinavam a língua falada e
escrita do grupo socialmente majoritário.
Diferentemente de seus contemporâneos, De L'Epée não teve problemas para romper com a tradição das
práticas secretas e não se limitou a trabalhar individualmente com poucos
surdos. Em 1775, fundou uma escola, a primeira em seu gênero, com aulas
coletivas, onde professores e alunos usavam os chamados sinais metódicos.
Divulgava seus trabalhos em reuniões periódicas e propunha-se a discutir seus
resultados. Em 1776, publicou um livro no qual divulgava suas técnicas. Seus
alunos manejavam bem a escrita, e muitos deles ocuparam mais tarde o lugar de
professores de outros surdos. Nesse período, alguns surdos puderam destacar-se
e ocupar posições importantes na sociedade de seu tempo. O abade mostrava-se
orgulhoso de que seus discípulos não só liam e escreviam em francês, mas que
podiam refletir e discutir sobre os conceitos que expressavam, embora houvesse
avaliações contrárias que indicavam haver profundas restrições nesse suposto
êxito. Existem vários livros datados dessa época, escritos por surdos, que
abordam suas dificuldades de expressão e os problemas ocasionados pela surdez
(Lane e Fischer 1993).
Para De L'Epée, a linguagem de sinais é concebida como a língua
natural dos surdos e como veículo adequado para desenvolver o pensamento e sua
comunicação. Para ele, o domínio de uma língua, oral ou gestual, é concebido
como um instrumento para o sucesso de seus objetivos e não como um fim em si
mesmo. Ele tinha claras a diferença entre linguagem e fala e a necessidade de
um desenvolvimento pleno de linguagem para o desenvolvimento normal dos
sujeitos.
Contemporaneamente a De L'Epée
havia renomados pedagogos oralistas que o criticavam
e que desenvolviam outro modo de trabalhar com os surdos, como, por exemplo,
Pereira, em Portugal, e Heinicke, na Alemanha. Heinicke é considerado o fundador do oralismo
e de uma metodologia que ficou conhecida como o "método alemão". Para
ele, o pensamento só é possível através da língua oral, e depende dela. A
língua escrita teria uma importância secundária, devendo seguir a língua oral e
não precedê-la. O ensinamento através da linguagem de
sinais significava ir em contrário ao avanço dos alunos (Moores
1978). Os pressupostos de Heinicke têm até hoje
adeptos e defensores.
Em conseqüência do
avanço e da divulgação das práticas pedagógicas com surdos, foi realizado, em
1878, em Paris, o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos, no
qual se fizeram acalorados debates a respeito das experiências e impressões
sobre o trabalho realizado até então. Naquele congresso alguns grupos defendiam
a idéia de que falar era melhor que usar sinais, mas
que estes eram muito importantes para a criança poder se comunicar. Alí, os surdos tiveram algumas conquistas importantes, como
o direito
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a
assinar documentos, tirando-os da "marginalidade" social, mas ainda
estava distante a possibilidade de uma verdadeira integração social.
Em 1880, foi realizado o II Congresso
Internacional, em Milão, que trouxe uma completa mudança nos rumos da educação
de surdos e, justamente por isso, ele é considerado um marco histórico. O
congresso foi preparado por uma maioria oralista com
o firme propósito de dar força de lei às suas proposições no que dizia respeito
à surdez e à educação de surdos. O método alemão vinha ganhando cada vez mais
adeptos e estendendo-se progressivamente para a maioria dos países europeus,
acompanhando o destaque político da Alemanha no quadro internacional da época.
As discussões do congresso foram feitas em
debates acaloradíssimos. Apresentaram-se muitos surdos que falavam bem, para
mostrar a eficiência do método oral. Com exceção da delegação americana (cinco
membros) e de um professor britânico, todos os participantes, em sua maioria
europeus e ouvintes, votaram por aclamação a aprovação do uso exclusivo e
absoluto da metodologia oralista e a proscrição da
linguagem de sinais. Acreditava-se que o uso de gestos e sinais desviasse o
surdo da aprendizagem da língua oral, que era a mais importante do ponto de
vista social. As resoluções do congresso (que era uma instância de prestígio e
merecia ser seguida) foram determinantes no mundo todo, especialmente na Europa
e na América Latina.
As decisões tomadas no Congresso de Milão
levaram a que a linguagem gestual fosse praticamente banida como forma de
comunicação a ser utilizada por pessoas surdas no trabalho educacional. A única
oposição clara feita ao oralismo foi apresentada por Gallaudet que, desenvolvendo nos Estados Unidos um trabalho
baseado nos sinais metódicos do abade De L'Epée, discordava dos argumentos apresentados,
reportando-se aos sucessos obtidos por seus alunos (Sachs 1990, Lane 1989).
Com o Congresso de Milão termina uma época de
convivência tolerada na educação dos surdos entre a linguagem falada e a
gestual e, em particular, desaparece a figura do professor surdo que, até
então, era freqüente. Era o professor surdo que, na
escola, intervinha na educação, de modo a ensinar/transmitir um certo tipo de
cultura e de informação através do canal visogestual
e que, após o congresso, foi excluído das escolas.
Assim, no mundo todo, a partir do Congresso de
Milão, o oralismo foi o referencial assumido e as
práticas educacionais vinculadas a ele foram amplamente desenvolvidas e
divulgadas. Essa abordagem não foi, praticamente, questionada por quase um
século. Os resultados de muitas décadas de trabalho nessa linha, no entanto,
não mostraram grandes sucessos. A maior parte dos surdos profundos não
desenvolveu uma fala socialmente satisfatória e, em geral, esse desenvolvimento
era parcial e tardio em relação à aquisição de fala apresentada pelos ouvintes,
implicando um atraso de desenvolvimento global significativo. Somadas a isso
estavam as dificuldades ligadas à aprendizagem da leitura e da escrita: sempre
tardia, cheia de problemas, mostrava sujeitos, muitas vezes, apenas
parcialmente alfabetizados após anos de escolarização. Muitos estudos apontam
para tais problemas, desenvolvidos em diferentes realidades e que acabam
revelando sempre o mesmo cenário: sujeitos pouco preparados para o convívio
social, com sérias dificuldades de comunicação, seja oral ou escrita, tornando
claro o insucesso pedagógico dessa abordagem (Johnson et al. 1991, Fernandes
1989).
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Nada de realmente importante aconteceu em
relação ao oralismo até o início dos anos 50, com as
novas descobertas técnicas e a possibilidade de se "protetizar"
crianças surdas muito pequenas. Era um novo impulso para a educação voltada
para a vocalização. Foram desenvolvidas novas técnicas para que a escola
pudesse trabalhar sobre aspectos da percepção auditiva e de leitura labial da
linguagem falada, surgindo assim um grande número de métodos, dando ensejo a
momentos de nova esperança de que, com o uso de próteses, se pudessem educar
crianças com surdez grave e profunda a ouvir e, conseqüentemente,
a falar.
Para os oralistas, a
linguagem falada é prioritária como forma de comunicação dos surdos e a
aprendizagem da linguagem oral é preconizada como indispensável para o
desenvolvimento integral das crianças. De forma geral, sinais e alfabeto
digitais são proibidos, embora alguns aceitem o uso de gestos naturais, e
recomenda-se que a recepção da linguagem seja feita pela via auditiva
(devidamente treinada) e pela leitura orofacial (Trenche
1995).
Os métodos orais sofrem uma série de críticas
pelos limites que apresentam, mesmo com o incremento do uso de próteses. As
críticas vêm, principalmente, dos Estados Unidos. Alguns métodos prevêem, por exemplo, que se ensinem palavras para crianças
surdas de um ano. Entretanto, elas terão de entrar em contato com essas
palavras de modo descontextualizado de interlocuções efetivas, tornando a
linguagem algo difícil e artificial. Outro aspecto a ser desenvolvido é a
leitura labial, que para a idade de um ano é, em termos cognitivos, uma tarefa
bastante complexa, para não dizer impossível. É muito difícil para uma criança
surda profunda, ainda que "protetizada",
reconhecer, tão precocemente, uma palavra através da leitura labial. Limitar-se
ao canal vocal significa limitar enormemente a comunicação e a possibilidade de
uso dessa palavra em contextos apropriados. O que ocorre praticamente não pode
ser chamado de desenvolvimento de linguagem, mas sim de treinamento de fala
organizado de maneira formal, artificial, com o uso da palavra limitado a
momentos em que a criança está sentada diante de desenhos, fora de contextos
dialógicos propriamente ditos, que de fato permitiriam o desenvolvimento do
significado das palavras. Esse aprendizado de linguagem é desvinculado de
situações naturais de comunicação, e restringe as possibilidades do
desenvolvimento global da criança.
Na década de 1960, começaram a surgir estudos
sobre as línguas de sinais utilizadas pelas comunidades surdas. Apesar da
proibição dos oralistas no uso de gestos e sinais,
raramente se encontrava uma escola ou instituição para surdos que não tivesse
desenvolvido, às margens do sistema, um modo próprio de comunicação através dos
sinais.
A primeira caracterização de uma língua de
sinais usada entre pessoas surdas se encontra nos escritos do abade De L'Epée. Muito tempo se
passou até que o interesse pelo estudo das línguas de sinais de um ponto de
vista lingüístico fosse despertado novamente, o que
ocorreu nos anos 60 com os estudos de Willian Stokoe
(1978).
Ao estudar a Língua de Sinais Americana (ASL), Stokoe encontra uma estrutura que, de muitos modos, se
assemelha àquela das línguas orais. Argumenta que, assim como da combinação de
um número restrito de sons (fonemas) cria-se um número vastíssimo de unidades
dotadas de significado (palavras), com a combinação de um número restrito de
unidades mínimas na dimensão gestual (queremas)
pode-se produzir um grande número de unidades com significados (sinais). Propôs
também em sua análise que um sinal pode ser
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decomposto em
três parâmetros básicos: O lugar no espaço onde as mãos se movem, a
configuração da(s) mão(s) ao realizar o sinal e o movimento da(s) mão(s) ao
realizar o sinal, sendo estes então os "traços distintivos" dos
sinais.
Esses estudos iniciais e outros que vieram após
o pioneiro trabalho de Stokoe revelaram que as
línguas de sinais eram verdadeiras línguas, preenchendo em grande parte os
requisitos que a lingüística de então colocava para
as línguas orais.
O descontentamento com o oralismo
e as pesquisas sobre línguas de sinais deram origem a novas propostas
pedagógico-educacionais em relação à educação da pessoa surda, e a tendência
que ganhou impulso nos anos 70 foi a chamada comunicação total. "A
Comunicação Total é a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e
alfabeto digital para fornecer inputs lingüísticos
para estudantes surdos, ao passo que eles podem expressar-se nas modalidades
preferidas" (Stewart 1993, p. 118). O objetivo é fornecer à criança a
possibilidade de desenvolver uma comunicação real com seus familiares,
professores e coetâneos, para que possa construir seu mundo interno. A oralização não é o objetivo em si da comunicação total, mas
uma das áreas trabalhadas para possibilitar a integração social do indivíduo
surdo. A comunicação total pode utilizar tanto sinais retirados da língua de
sinais usada pela comunidade surda quanto sinais gramaticais modificados e
marcadores para elementos presentes na língua falada, mas não na língua de
sinais. Dessa forma, tudo o que é falado pode ser acompanhado por elementos
visuais que o representam, o que facilitaria a aquisição da língua oral e
posteriormente da leitura e da escrita (Moura 1993).
Entretanto, a forma de implementar a
comunicação total mostra-se muito diferente nas diversas experiências
relatadas; nota-se que muitas foram as maneiras de realizar essa prática
envolvendo sinais, fala e outros recursos.
Práticas reunidas sob o nome de comunicação
total, em suas várias acepções, foram amplamente desenvolvidas nos Estados
Unidos e em outros países nas décadas de 1970 e 1980 e muitos estudos foram
realizados para verificar sua eficácia. O que esses estudos têm apontado é que,
em relação ao oralismo, alguns aspectos do trabalho
educativo foram melhorados e que os surdos, no final do processo escolar,
conseguem compreender e se comunicar um pouco melhor. Entretanto, segundo essas
análises avaliativas, eles apresentam ainda sérias dificuldades em expressar
sentimentos e idéias e comunicar-se em contextos extra-escolares. Em relação à escrita, os problemas
apresentados continuam a ser muito importantes, sendo que poucos sujeitos
alcançam autonomia nesse modo de produção de linguagem. Observam-se alguns
poucos casos bem-sucedidos, mas a grande maioria não consegue atingir níveis
acadêmicos satisfatórios para sua faixa etária. Em relação aos sinais, estes
ocupam um lugar meramente acessório de auxiliar da fala, não havendo um espaço
para seu desenvolvimento. Assim, muitas vezes, os surdos atendidos segundo essa
orientação comunicam-se precariamente apesar do acesso aos sinais. É que esse
acesso é ilusório no âmbito de tais práticas, pois os alunos não aprendem a
compreender os sinais como uma verdadeira língua, e desse uso não decorre um
efetivo desenvolvimento lingüístico. Os sinais
constituem um apoio para a língua oral e continuam, de certa forma, "quase
interditados" aos surdos.
O que a comunicação total favoreceu de maneira
efetiva foi o contato com sinais, que era proibido pelo oralismo,
e esse contato propiciou que os surdos se dispusessem à aprendizagem das
línguas de sinais, externamente ao trabalho escolar. Essas línguas são
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freqüentemente
usadas entre os alunos, enquanto na relação com o professor é usado um misto de
língua oral com sinais.
Paralelamente ao desenvolvimento das propostas
de comunicação total, estudos sobre línguas de sinais foram se tornando cada
vez mais estruturados e com eles foram surgindo também alternativas educacionais
orientadas para uma educação bilíngüe. Essa proposta
defende a idéia de que a língua de sinais é a língua
natural dos surdos, que, mesmo sem ouvir, podem desenvolver plenamente uma
língua visogestual. Certos estudos (Bouvet 1990) mostram que as línguas de sinais são
adquiridas pelos surdos com naturalidade e rapidez, possibilitando o acesso a
uma linguagem que permite uma comunicação eficiente e completa como aquela
desenvolvida por sujeitos ouvintes. Isso também permitiria ao surdo um
desenvolvimento cognitivo, social etc. muito mais adequado, compatível com sua
faixa etária.
O modelo de educação bilíngüe
contrapõe-se ao modelo oralista porque considera o
canal visogestual de fundamental importância para a
aquisição de linguagem da pessoa surda. E contrapõe-se à comunicação total
porque defende um espaço efetivo para a língua de sinais no trabalho
educacional; por isso advoga que cada uma das línguas apresentadas ao surdo
mantenha suas características próprias e que não se "'misture" uma
com a outra. Nesse modelo, o que se propõe é que sejam ensinadas duas línguas,
a língua de sinais e, secundariamente, a língua do grupo ouvinte majoritário. A
língua de sinais é considerada a mais adaptada à pessoa surda, por contar com a
integridade do canal visogestual. Porque as
interações podem fluir, a criança surda é exposta, então, o mais cedo possível,
à língua de sinais, aprendendo a sinalizar tão rapidamente quanto as crianças
ouvintes aprendem a falar. Ao sinalizar, a criança desenvolve sua capacidade e
sua competência lingüística, numa língua que lhe
servirá depois para aprender a língua falada, do grupo majoritário, como
segunda língua, tornando-se bilíngüe, numa modalidade
de bilingüismo sucessivo. Essa situação de bilingüismo não é como aquela de crianças que têm pais que
falam duas línguas diferentes, porque nesse caso elas aprendem as duas línguas
usando o canal auditivo-vocal num bilingüismo
contemporâneo, enquanto no caso das crianças surdas, trata-se da aprendizagem
de duas línguas que envolvem canais de comunicação diversos.
Pesquisas sobre esse tema (Taeschner
1985) apontam para a conveniência de não haver sobreposição das duas línguas
envolvidas. A aprendizagem da língua de sinais deve se dar em família, quando
possível, ou num outro contexto, com um membro da comunidade surda, por
exemplo, e a língua falada deve ser ensinada por uma outra pessoa
caracterizando um outro contexto comunicativo. Tais contextos não devem se
sobrepor; as pessoas que produzem cada uma das línguas com a criança, no início,
devem ser pessoas diferentes e o ideal parece ser que a família participe
sinalizando. Num outro contexto, a criança aprenderá a desenvolver sua
capacidade articulatória e fará sua adaptação de prótese e sua educação
acústica. A língua de sinais estará sempre um pouco mais desenvolvida e adiante
da língua falada, de modo que a competência lingüística
na língua de sinais servirá de base para a competência na aquisição da língua
falada. Será a aprendizagem de uma língua através da competência em outra língua,
como fazem os ouvintes quando aprendem uma segunda língua sempre tendo por base
sua língua materna.
O objetivo da educação bilíngüe
é que a criança surda possa ter um desenvolvimento cognitivo-lingüístico equivalente ao verificado na criança ouvinte, e
que possa desenvolver uma relação harmoniosa também com ouvintes, tendo acesso
às duas línguas: a língua de sinais e a língua majoritária.
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A filosofia bilíngüe
possibilita também que, dada a relação entre o adulto surdo e a criança, esta
possa construir uma auto-imagem positiva como sujeito
surdo, sem perder a possibilidade de se integrar numa comunidade de ouvintes. A
língua de sinais poderia ser introjetada pela criança
surda como uma língua valorizada, coisa que até hoje tem sido bastante difícil
apesar de esta ocupar um lugar central na configuração das comunidades surdas.
O fato é que tais línguas foram sistematicamente rejeitadas e só recentemente
têm sido valorizadas pelos meios acadêmicos e pelos próprios surdos (Moura
1993).
As experiências com educação bilíngüe ainda são recentes; poucos países têm esse sistema
implantado há pelo menos dez anos. A aplicação prática do modelo de educação bilíngüe não é simples e exige cuidados especiais, formação
de profissionais habilitados, diferentes instituições envolvidas com tais
questões etc. Os projetos já realizados em diversas partes do mundo (como
Suécia, Estados Unidos, Venezuela e Uruguai) têm princípios filosóficos
semelhantes, mas se diferenciam em alguns aspectos metodológicos. Para alguns,
é necessária a participação de professores surdos, o que nem sempre é possível
conseguir. Quando se recorre a professores ouvintes, nem sempre sua competência
em língua de sinais é suficiente, comprometendo significativamente o processo
de aprendizagem. Algumas propostas indicam uma passagem da língua de sinais
diretamente para a língua escrita entendendo que a língua oral é muito difícil
para o surdo, além de ser "antinatural". Existem países que têm
assegurado, por lei, o direito das pessoas surdas à língua de sinais; outros
realizam projetos envolvendo a educação bilíngüe
quase à revelia das propostas estatais.
Em cada um desses países o aprofundamento dos
estudos sobre suas línguas de sinais é diferente e, apenas em alguns casos,
esses estudos estão bastante desenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a
Língua Americana de Sinais é bastante conhecida, talvez a língua de sinais mais
bem estudada até hoje. Entretanto, as práticas de comunicação total são
prevalentes lá, indicando que o desenvolvimento do conhecimento acadêmico sobre
as línguas de sinais não é suficiente para sua efetiva inserção no atendimento
educacional. Em outros países tais estudos são ainda iniciais, auxiliando pouco
aqueles que desenvolvem práticas de educação bilíngüe.
Tais práticas remetem a um universo amplo de questões ainda pouco explorado,
que parece apresentar vários problemas ao mesmo tempo em que aponta para formas
de atendimento mais adequadas às pessoas surdas.
Em diversos países, como no nosso, as
experiências com educação bilíngüe ainda estão
restritas a alguns poucos centros, dadas as dificuldades apontadas acima, e
também pela resistência de muitos em considerar a língua de sinais como uma
língua verdadeira ou aceitar sua adequação ao trabalho com as pessoas surdas. Assim
sendo, a maioria das práticas de educação para surdos ainda hoje é oralista ou se enquadra dentro da comunicação total. Apesar
de não haver dados oficiais do Brasil, pode-se afirmar, por observações
assistemáticas, que a comunicação total encontra-se em
desenvolvimento enquanto as práticas oralistas tendem
a diminuir. Com o surgimento da comunicação total, a grande mudança pedagógica
foi a entrada dos sinais em sala de aula. O uso dos sinais pode ser muito
variado, dependendo da opção feita no trabalho de comunicação total. Pode-se
encontrar a língua de sinais sendo usada separadamente da fala, uso do
português sinalizado acompanhando a fala numa prática bimodal, fala acompanhada
de sinais retirados da língua de sinais, tentativas de representar todos os
aspectos do português falado em sinais etc.
P. 9
Diante desse panorama é possível constatar que,
de alguma maneira, as três principais abordagens de educação de surdos (oralista, comunicação total e bilingüismo)
coexistem, com adeptos de todas elas nos diferentes países. Cada qual com seus
prós e contras, essas abordagens abrem espaço para reflexões na busca de um
caminho educacional que de fato favoreça o desenvolvimento pleno dos sujeitos
surdos, contribuindo para que sejam cidadãos em nossa sociedade.
A
short history of different approaches to the education of
the deaf
ABSTRACT: The education
of the deaf
is a complex problem characterised by difficulties and limitations. Throughout history, this subject has
been polemic bringing different consequences to that education. This article aims
at presenting the history of
the education of the deaf
focusing on oralism, total communication, bilinguism
and its consequences.
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