P. Dados do Material
Título: Semiótica da canção: melodia e letra
Autor: Luiz Tatit
Este material foi adaptado pelo Setor de Musicografia Braille e Apoio a
Inclusão da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, Capítulo IV, Artigo
46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com
deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com
fins comerciais.
Adaptado por: ANNY ADRYELE MARQUES FERREIRA
Descrições de imagem por: CAMILO SOARES
Revisado por: CAMILO SOARES
Data: Dezembro de 2023
P. Capa
Semiótica da canção: melodia e letra
Luiz Tatit
p. Orelha de capa
A semiótica propõe modelos para a análise da construção do sentido
nas diversas modalidades de expressão. Essas modalidades são chamadas
genericamente de textos: texto literário, texto musical, texto cinematográfico,
texto circense, texto plástico, texto científico etc. Em princípio, o conjunto
desses textos responde por um sentido mais amplo, antropológico e cultural,
que também deve ser investigado pela semiótica. Cada texto produzido
atualiza e renova parcialmente os recursos de construção desse sentido
global, além de oferecer uma base concreta para se chegar aos processos
inteligíveis e sensíveis que refazem todos os dias nossos valores culturais.
O objeto deste livro é o texto cancional cuja influência na vida e na
visão de mundo dos brasileiros foi suficientemente destacada por
estudiosos de diversas áreas de pesquisa. As canções penetram
implacavelmente em nosso cotidiano e, no entanto, temos poucos elementos
para refletir sobre sua linguagem comunicativa e o seu modo de construir o
sentido. O enfoque semiótico aqui desenvolvido
SEMIÓTICA DA CANÇÃO
melodia e letra
Luiz Tatit
SEMIÓTICA DA CANÇÃO
melodia e letra
escuta
© by Luiz Tatit
3ª edição: outubro de 2007
Editores
Manoel Tosta Berlinck Maria Cristina Rios Magalhães
Conselho Editorial
Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro (UNIFOR)
Prof. Dr. Paulo Roberto Ceccarelli (PUC-MG)
Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho (UFF)
Profa. Dra. Ana Maria Rudge (PUC-RJ)
Capa
Imageriaestudio
Produção editorial
Araide Sanches
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Tatit, Luiz
Semiótica da canção / Luiz Tatit. São Paulo: Editora Escuta, 2007. 3.
ed.
ISBN: 85.7137-080
Bibliografia.
1. Canção 2. Música - Letra 3. Semiótica I. Título. II. Série.
94-3354 CDD-784.50014
índices para catálogo sistemático:
1. Canção popular: Semiótica 784.50014
2. Semiótica de canção popular 784.50014
Editora Escuta Ltda.
R. Dr. Homem de Mello, 446
05007-001 São Paulo, SP
Telefax: (11) 3865-8950 / 3672-8345 /3675-1190
e-mail: escuta@uol.com.br
www.editoraescuta.com.br
2007
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi apresentado como tese em Concurso de Livre-
Docência realizado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, em junho de 1994.
Meus agradecimentos especiais a Diana Luz Pessoa de Barros,
Nicolau Sevcenko, Ignácio Assis Silva, Eduardo Penuela Canizal e Waldenyr
Caldas que, com suas argüições ao mesmo tempo críticas e acolhedoras,
avivaram meu desejo de publicação deste livro.
Agradeço ainda aos amigos Jean Briant, responsável pelos acertos de
minhas traduções livres do francês, Waldir Beividas e Ivã Carlos Lopes, pela
companhia nas incursões semióticas.
A Lina e ao Milton, por tudo.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
I. EXTENSÃO 17
Zilberberg: a extensão 20
Webern: da concisão à coerência 25
João Gilberto: do samba à corda bamba 29
II. JUNÇÃO 39
Fundamentos da identidade 42
Junção na melodia e na letra 44
III. SILABAÇÃO 59
A sílaba em Saussure 60
A sílaba em Hjelmslev 62
A sílaba em Zilberberg 65
Concentração melódica 73
Extensão melódica 94
IV. GERAÇÃO 129
Geração dos valores lingüísticos e melódicos 131
Junção nas canções passionais 144
V. DESCRIÇÃO 193
Descrição da melodia 195
Descrição da letra 223
VI. COMPOSIÇÃO 229
Do conteúdo à expressão 231
Som e ruído 237
Canto e fala 249
Corpo, andamento e liberdade 258
“Grão da voz” 266
CONCLUSÃO 275
BIBLIOGRAFIA 281
CANÇÕES CITADAS 289
INTRODUÇÃO
En vérité, il n ’est pas de théorie qui ne soit un fragment,
soigneusement préparé, de quelque autobiographie.
Paul Valéry
Esse trabalho pretende reforçar ou mesmo reformular os princípios
teóricos que vinham orientando nossas pesquisas anteriores [NOTA 1], não
apenas em função da virada epistemológica que, nesses últimos anos, vem
abrindo perspectivas para a semiótica numa proporção a pouco
insondável [NOTA 2], mas também em atenção à atividade descritiva que
exige do modelo geral um constante desenvolvimento de sua capacidade de
explicação e de integração dos fatos analisados.
Mais que um compromisso com o rigor metodológico ou com a possível
“cientificidade” do enfoque aqui adotado, nosso esforço de estabelecer um
modelo descritivo é, antes de tudo, um gesto de solidariedade com lingüistas,
semioticistas, artistas e pensadores de modo geral que fizeram de suas
produções uma busca obstinada dos princípios mínimos que geram o sentido,
tal como o apreendemos no contato imediato. De acordo com essa afinidade
de objetivos, foram selecionadas tanto as obras de apoio teórico como as
referências de conduta artística que, por si só, definem essências de
linguagem.
P.12
Antes de comentarmos os capítulos que vêm a seguir, chamamos a
atenção para alguns dos aspectos que estão implícitos na realização desse
trabalho.
O primeiro diz respeito à aproximação de duas áreas de atividade que
poderiam ter suas respectivas evoluções históricas isentas de qualquer
cruzamento. De fato, semiótica e canção, mesmo sendo funcionalmente
compatíveis, na medida em que a primeira se comporta como sujeito
epistêmico e a segunda como objeto descritivo, não ostentam, em seus
quadros de produtores, muita disposição em realizar essa integração
sintáxica.
Tudo ocorre como se a canção não fosse suficientemente elaborada
para merecer uma abordagem sistemática e a semiótica, com todo o seu
jargão técnico, não fosse adequada para examinar uma prática
eminentemente espontânea. A única coisa comparável ao desconhecimento e
ao descaso dos semioticistas com relação à canção (que representa, no
Brasil, uma força especial de transformação estética) é o mesmo
desconhecimento e o mesmo descaso dos cancionistas em relação à
semiótica (que, depois da ascensão e queda do formalismo, parece ser a
única disciplina em busca dos realizáveis que engendram as linguagens
realizadas).
Se aceitamos a incumbência de efetuar essa aproximação, até certo
ponto surrealista, é porque ambos os campos de atividade tiveram presença
marcante em nossa própria biografia. Coube-nos apenas detectar a função
sintáxica implícita e o proveito decorrente dessa relação aparentemente
descabida.
Um outro aspecto refere-se ao verdadeiro ponto de incidência das
propostas aqui desenvolvidas.
Não é objetivo dessa pesquisa criar novas técnicas de análise e de
observação dos dados lingüísticos, musicais ou literários. Poucas são as
novidades, no nosso entender, apresentadas pelas descrições dos
fenômenos manifestos, como as recorrências melódicas ou lingüísticas, os
saltos intervalares, as mudanças de andamento, as funções narrativas, os
contrastes rítmicos etc. Esses procedimentos analíticos, que se voltam para a
identificação das constâncias e dos graus de variedade são indispensáveis
numa fase de abordagem direta da obra e, nesse sentido, não poderiam faltar
num trabalho como este.
P.13
Esperamos demonstrar, entretanto, que o desafio está em definir o
valor profundo e o lugar teórico ocupado por essas entidades reconhecidas
em superfície. Mais que isso, esperamos poder deduzir essas ocorrências de
um modelo semiótico mais amplo que, comprometido com a descrição do “ser
do sentido”, ofereça parâmetros teóricos homogêneos para a análise de
melodias, de “letras” [NOTA 3], de arranjos instrumentais, de espetáculos, de
vídeo-clips, enfim, de qualquer modelização que o sentido receba.
Isso posto, passemos às etapas desse trabalho.
O primeiro capítulo trata da “extensão” que assegura um sentido
homogêneo a toda obra musical. Para tanto, examina a atuação de artistas,
como Anton Webem e João Gilberto, que parecem atingir a própria essência
de suas respectivas linguagens (música erudita e canção popular) ao
extraírem um resultado revolucionário de uma prática obstinadamente voltada
para a criação de coerência gramatical no interior de cada obra. O fio
condutor do capítulo é a relação entre valores “intensos” (definidos por
funções contraídas no contato imediato de elementos) e valores “extensos”
(definidos por funções à distância e regulados pela extensão global da peça),
conceitos hjelmslevianos transportados ao domínio estético por Claude
Zilberberg. A apresentação deste último autor, cuja produção teórica parece
estar sendo elaborada sob medida para dar conta da produção artística
mencionada, completa os objetivos dessa fase.
O segundo capítulo estuda a hipótese de junção primordial entre sujeito
e objeto como categoria comum para a análise lingüística e musical. A
identidade profunda desses dois actantes pode se manifestar tanto na atração
que um personagem exerce sobre o outro como na tendência dos temas
melódicos a se repetirem: se a repetição é imediata, valoriza-se a conjunção;
se a repetição é distante, valoriza-se o percurso. As canções desenvolvem,
assim, suas principais formas de tratamento melódico - tendendo ora à
concentração, ora à extensão - a partir do grau de proximidade entre sujeito e
objeto, o que vai determinar, inclusive, a aceleração ou desaceleração de seu
andamento.
P.14
Os fundamentos silábicos dessa proposta são elaborados no terceiro
capítulo, a partir da conjugação dos dois principais modelos que deram
continuidade à reflexão pioneira de Saussure sobre a silabação: o modelo de
Hjelmslev e o modelo recente de Zilberberg.
De fato, o fundador da lingüística moderna estudou a sílaba como uma
categoria, articulada na cadeia fônica da fala, que tem como parâmetro
descritivo a noção de “abertura” (crescente ou decrescente) de sonoridade e
como resultado teórico uma concepção rítmica (explosão e implosão) do
plano da expressão. Hjelmslev, por sua vez, identifica a categoria silábica
com uma “força de relação” que pode, proveitosamente, ser generalizada e
transferida ao plano do conteúdo para a abordagem de suas interações
sintáxicas. Desse modo, assim como temos, no plano da expressão, os
acentos silábicos incidindo sobre a dimensão das palavras e as entonações
incidindo sobre as frases lingüísticas, temos também, no plano do conteúdo,
os morfemas nominais (caso, gênero, artigo) de pequeno alcance e os
morfemas verbais (tempo, aspecto, modo) capazes de influir sobre todo o
enunciado.
Zilberberg traduz todas essas conquistas, atreladas ao pensamento
estrutural, em princípios temporais cujas leis principais podem ser resumidas
pela expansão rítmica de Saussure e pela determinação sintáxica de
Hjelmslev. No que diz respeito à melodia, veremos, em linhas gerais, que da
determinação de um tempo mnésico sobre um tempo rítmico temos a
expansão da “tematização” e do “desdobramento” melódicos. Do mesmo
modo, da determinação do andamento, acelerado ou desacelerado, sobre o
mesmo tempo rítmico, temos a expansão do processo de concentração ou de
extensão (passionalização) pelo contínuo melódico. Nesse último caso,
quanto maior o compromisso com a extensão passional, maior a pertinência
das oscilações musicais no campo de tessitura, chamando a atenção ora para
os movimentos disjuntos (saltos intervalares por exemplo), ora para os
movimentos conjuntos (graus imediatos por exemplo).
Esses elementos concebidos para a análise melódica pressupõem os
mesmos princípios semióticos utilizados na descrição das letras, o que faz
deste capítulo uma etapa crucial da elaboração de um modelo descritivo que
trate, de maneira homogênea, os dois componentes básicos da canção.
P.15
O capítulo seguinte, “Geração”, revê os níveis profundos do percurso
gerativo, regulando sua coerência pelo modelo silábico e testando sua
adequação na abordagem conjunta de letras e melodias.
Assim, a proposta semiótica de um plano ab quo da significação, onde
se processam as primeiras apreensões do sentido, surge enriquecida, não
apenas com modulações contínuas destinadas a compor categorias discretas
no nível modal-narrativo ou a contribuir diretamente para a aspectualização
da superfície do discurso, mas, sobretudo, com a concepção de um nível
fórico - matriz de todos os processos sintagmáticos - e um nível missivo,
instaurados pelo próprio sujeito da enunciação, no momento em que
seleciona os valores primordiais geradores tanto da face lingüística como da
face melódica. De fato, a foria é um continuum dinâmico cujo estatuto se
define, paradoxalmente, a partir da interrupção do seu fluxo, quando o sujeito
reelabora suas continuidades e descontinuidades em forma de valores
dominantes e recessivos. Depreendem-se, desse ato, o nível rico (tensivo),
como instância teoricamente pressuposta, e o nível missivo contendo os
valores emissivos e remissivos que são protótipos, respectivamente, dos
programas e dos anti-programas (narrativos e melódicos) engendrados nos
níveis de superfície.
Assim como a silabação constitui uma forma constante subjacente às
“espécies fonológicas” (Saussure), o nível missivo pode ser considerado o
lugar por excelência em que o sujeito de enunciação opera com valores
abstratos antes de se submeter às leis de um sistema de significação
específico. Se as sobredeterminações temporais e os processos de expansão
silábica auxiliam, sobretudo, na compreensão do funcionamento interno dos
estratos gerativos mais profundos, as continuidades e descontinuidades,
concebidas como valores emissivos e remissivos dão subsídios para o
reconhecimento das operações de conversão dos níveis e de geração do
sentido seja por via lingüística, seja por via melódica.
As análises elaboradas nesse quarto capítulo demonstram, ainda, a
extrema afinidade e as delicadas articulações existentes entre, de um lado, os
programas emissivos e remissivos e, de outro, as variações de andamento
(aceleração e desaceleração). Do cruzamento dessas seleções com essas
variações podem ser deduzidas todas as operações de compatibilidade entre
melodia e letra.
P.16
O quinto catulo é dedicado à análise “completa” de uma canção de
Djavan (Sina) que exibe características aparentemente refratárias à
abordagem semiótica: soluções melódicas diversificadas e relações
lingüísticas pouco explícitas. Mais que aplicar o modelo teórico que, a essa
altura, está praticamente construído, a descrição aqui tem um sentido de
fazer interagir as leis gerais que engendram toda e qualquer canção com as
leis específicas responsáveis pela singularidade da obra.
O sexto e último capítulo examina, à luz dos mesmos critérios
temporais que serviram de base ao modelo descritivo, o ato de criação e de
conservação estética da canção em meio às manifestações utilitárias da fala
cotidiana. De fato, nas relações entre som e ruído, poesia e prosa ou canto e
fala esconde um conflito entre a duração e a celeridade de cuja resolução
depende o tempo ideal almejado pelo sujeito enunciativo. Nessa região fluida,
entre as leis musicais do canto e a imprevisibilidade sonora da fala, instaura-
se o que Barthes chamou de grão da voz” e que este trabalho define como o
ponto de liberdade do cancionista, ou seja, como o encontro da sintaxe
melódica com o risco da desagregação entoativa.
I
EXTENSÃO
Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? - pergunta Kublai Khan.
A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra - responde
Marco mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta:
Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
Sem pedras o arco não existe.
Ítalo Calvino
Ao final de um conhecido texto em que aproxima João Gilberto de
Anton Webern [NOTA 1], Augusto de Campos, depois de desenhar em verso-
prosa o perfil artístico do compositor vienense, arremata: “e o que é que isso
tudo tem a ver com joão gilberto?... uma sílaba.”
Esta identidade de significante teve, como toda ressonância poética, a
missão de materializar as identidades firmadas no significado e, ao mesmo
tempo, destacar uma delas: a concisão (“compressão informativa” [NOTA 2]).
Apresentando as mesmas credenciais silábicas - apenas trocando a
economia da sílaba única pelo sincretismo dos dois músicos num nome -
Claude Zilberberg pode, a nosso ver, completar um trio
P.18
predestinado a estimular o encanto da ciência a partir da precisão da arte. Na
vanguarda dos estudos semióticos da atualidade, esse novo personagem -
muito atento aos gestos dos poetas e dos artistas - surpreende pela
originalidade das conquistas teóricas obtidas por meio de uma rigorosa
revisão e reinterpretação de seus precursores. Os três autores, aliás,
chegaram a soluções inusitadas em seus respectivos campos de atividade,
depois de esmiuçarem exaustivamente as obras e o pensamento dos
criadores e sistematizadores de suas linguagens.
João Gilberto, com suas sucessivas reinterpretações de compositores
como Dorival Caymmi, Ari Barroso, Tom Jobim etc., vem retirando todos os
andaimes (harmonia predeterminada, sincronização das demarcações do
canto com as do acompanhamento...) que permanecem nas canções como
marcas de sua construção, reapresentando-as em forma de peças contínuas,
sem arestas, sem pontos de referência, soltas no tempo, como se não
sobrevivessem à singularidade da execução. O grande intérprete vem
desvendando a CANÇÃO que por trás das canções brasileiras e que se
renova a cada realização.
Anton Webern, o compositor mais radical da escola dodecafônica,
manifestou constante preocupação com os elementos essenciais que
constituíram a música do passado, tratando o dodecafonismo, não como
solução para os impasses de sua época, mas como um processo de
conquista dos 12 tons, tão trabalhoso quanto o de longa conquista dos 7
graus da escala diatônica. Por isso, debruçou-se sobre a formação dos
modos eclesiásticos, sobre os princípios da escola neerlandesa e sobre os
extraordinários recursos desenvolvidos pelos clássicos da música ocidental.
Procurava, no fundo, a SINTAXE das sintaxes, aquela reconhecida no interior
das formas tonais e ainda indispensável mesmo em suas composições mais
audaciosas. A presença meteórica de Webern neste trabalho vem, além de
aproveitar a associação anagramática estabelecida por Augusto de Campos,
apenas referendar o nosso propósito de explorar a face menos valorizada da
criação, qual seja a criação das leis internas de uma obra. Trata-se de um
aspecto pouco frisado, sobretudo em se tratando deste músico.
P.19
Claude Zilberberg, por fim, realiza no momento uma operação
impensável há cerca de duas décadas, quando os teóricos e pensadores mais
expressivos abandonaram a rota estruturalista em busca de um enfoque
crítico menos esquemático, menos fixista e com possibilidades de transcender
as limitações do formalismo. Ao considerar que o projeto teórico do lingüista
Louis Hjelmslev apresenta aquisições epistemológicas e metodológicas de
valor incomparável entre as ciências humanas do nosso século, [NOTA 3]
Zilberberg ultrapassa as insuficiências do estruturalismo alterando o
tradicional itinerário Genebra-Praga-Paris com uma decisiva escala em
Copenhague (Hjelmslev e Brondal), de onde, segundo o autor, emana toda a
fecundidade que vem impulsionando por anos a fio a semiótica de Algirdas
Julien Greimas. Dessa revisão radical da semiótica e dos princípios formais
da teoria brotam agora os termos dinamizadores que sempre impregnaram de
tensividade e temporalidade os modelos estruturais sem que pudessem vir à
tona em função das condições epistêmicas de época:
... o divórcio entre a estrutura e o tempo, divórcio comparável ao da
matéria e da energia nas ciências físicas e que desapareceu [NOTA 4]
O ingresso de Zilberberg no conjunto formado Webern e João
Gilberto, além de reforçar o fator inventividade e concisão descrito no artigo
de Augusto de Campos, chama a atenção para um outro aspecto -
aparentemente contraditório em relação ao primeiro - de afinidade entre os
três nomes: a busca obstinada de uma gramática [NOTA 5]
P.20
essencial desvinculada das variações de época. Trata-se, talvez, de um
esforço que ultrapassa a dicotomia arte/ciência em nome do poder persuasivo
do que é belo, simples e claro.
No enfoque aqui adotado, Zilberberg desempenha a função de
destinador dos critérios que nos permitiu compreender melhor o percurso
obstinado dos dois artistas em direção a uma gramática dinâmica,
descomprometida com “escolas estéticas”, tão próxima da invenção quanto
da sistematização. Nesse sentido, o próprio semioticista acumula a função de
sujeito em busca desses mesmos fundamentos sintáxicos.
ZILBERBERG: A EXTENSÃO
No resumo que introduz o capítulo “État de la description formelle”,
Zilberberg equaciona um dos aspectos centrais de sua reflexão. [NOTA 6]
Tendo como alvo a “função poética” de Jakobson - que nos trouxe elementos
para a compreensão dos pontos de singularidade poética no interior do texto -
o autor constata que o grande lingüista deixa de responder à questão mais
importante:
Como se estabelece o liame entre um determinado acidente local,
intenso e um determinado dado semântico extenso, ou seja, coextensivo ao
poema? [NOTA 7]
Grande parte da obra de Zilberberg é dedicada à formulação de um
modelo semiótico - comum ao plano da expressão e ao plano do conteúdo -
que permita uma reflexão conseqüente sobre esta questão. Seu ponto de
partida, como sempre, é a glossemática de Hjelmslev, de onde extrai a
oposição, de natureza sintagmática entre categorias “intensas” e categorias
“extensas”, ambas articulando os elementos “caracterizantes” que, em última
instância, dão conta das flexões do enunciado, ora em dimensão localizada
ora em dimensão global.
P.21
Para o mestre de Copenhague, como veremos à frente, os elementos
caracterizantes (ou expositores), que se definem pela “direção”,
compreendem, em sua vertente extensa, as categorias subjetivas, associadas
às forças verbalizantes do enunciado, destacando-se, dentre outras, o modo,
o tempo e o aspecto. Na vertente intensa, esses elementos compreendem as
forças nominalizantes traduzidas por conceitos de pouca elasticidade no
enunciado como, por exemplo, o gênero e o caso. Os elementos
caracterizantes também se manifestam no plano da expressão, produzindo,
na ordem extensa, as modulações entoativas e, na ordem intensa, os
acentos.
A glossemática descreve a inter-relação dos elementos caracterizantes
com os elementos constituintes que, por sua vez, compreendem, no plano do
conteúdo, os radicais e as derivações e, no plano da expressão, as vogais e
as consoantes. Trata-se de um modelo de grande amplitude epistemológica e
metodológica, pelo requinte na identificação das funções implicadas no
discurso, mas, como não poderia deixar de ser extremamente voltado para o
sistema lingüístico. O esforço de Zilberberg é no sentido de preservar a
coerência das noções de Hjelmslev, ampliando o seu alcance e atribuindo-lhe
um estatuto definitivamente semiótico.
O valor sintáxico dos elementos caracterizantes contrasta com o valor
morfológico (na acepção tradicional e não hjelmsleviana) dos elementos
constituintes, o que confere aos primeiros leis específicas para a análise da
dinâmica processual, base de todos os sistemas semióticos verbais ou não-
verbais. Zilberberg transfere esse valor sintáxico não apenas às categorias
modais que regem a narrativa no modelo de Greimas - e, de fato, o modo
estava previsto como força verbalizante em Hjelmslev - mas também à foria
considerada como força primordial do sentido.
Assim, em relação aos elementos constituintes, que são grandezas, os
elementos caracterizantes têm estatuto de operador sintáxico e comparecem,
por isso, em todas as etapas do percurso gerativo da significação,
desempenhando a função de termo pressuposto. Por outro lado,
internamente, os elementos caracterizantes que operam numa ordem extensa
devem ser considerados mais profundos que os de or-
P.22
dem intensa, pela simples razão de que o sentido dinâmico do processo tende
sempre à maior extensão possível. [NOTA 8]
A oscilação entre essas duas ordens é uma das operações mais
constantes no modelo de Zilberberg e, de fato, sua aplicação em outros
universos de sentido tem se revelado altamente fecunda. Ao examinar o
progresso da semiótica de Greimas em relação à abordagem estrutural de
Jakobson por exemplo, Zilberberg constata que, em última instância, aquela
soube estender as conquistas do inventor da “função poética” para o plano
sintagmático, tomando extenso todo dado pertinente proposto em termos
compressivos. [NOTA 9] Levando em conta as relações de dependência, pelo
menos na mesma proporção que considerava as relações opositivas, Greimas
operou com a apreensão participativa proposta pelos teóricos dinamarqueses
ao lado da apreensão exclusiva típica do binarismo de Praga. Além disso,
convertendo a estrutura elementar em quadrado semiótico, onde foram
introduzidos os termos contraditórios - a partir das relações privativas
(presença/ausência) - o autor de Semântica estrutural abriu o modelo
paradigmático para as operações sintáxicas. [NOTA 10]
O projeto de extensão conduzido pela semiótica ainda pode ser
verificado na transição das análises lexicológicas locais para a descrição das
pregnâncias narrativas que organizam o texto global - aprofundaremos esse
estudo no próximo capítulo - e na extraordinária passagem do sema
(elemento intenso) para a noção de isotopia (dimensão extensa) [NOTA 11].
Se os semas garantem as funções de contato, a isotopia responde pela
função à distância, pela preservação da pertinência ao longo do texto.
De acordo com Zilberberg, o processo reproduz a relação entre
totalidade e parte, prevista em todos os sistemas, na relação entre extensão
acabada e extensão inacabada. A globalidade do texto é, no fundo, o
sincretismo das desigualdades internas cujas tensões vão se resolvendo em
função do sentido predominante. A própria isotopia, nome dado à seleção
deste sentido predominante, depende das
P.23
desigualdades (embriões de outras isotopias) para assegurar o seu ritmo de
evolução e seu lugar na composição do texto como um todo.
Nesse contínuo ir e vir entre elementos intensos e extensos, Zilberberg
transfere as exigências de Saussure do domínio sistêmico para o campo do
processo: preserva a “globalidade” como critério para a descrição dos dois
planos (expressão e conteúdo) da significação, sustentando, ao mesmo
tempo, que todo detalhe faz ressaltar a economia do sentido. Não perdendo
de vista a tensão que regula os critérios de pertinência nascidos da relação
intenso/ extenso, o autor prepara o terreno para a implantação de uma
gramática dinâmica fundada no processo.
A operacionalidade desses elementos é notória porquanto que sua
aplicação independe do plano de análise e do nível de abstração considerado.
Se o tempo - «este grande produtor de sintaxe» [NOTA 12]
- em sua
dimensão fórica, é tomado como categoria extensa, o espaço, enquanto
determinador das demarcações, pode ser tratado como categoria intensa.
Entretanto, as forças de difusão (ocupação) e de concentração
(circunscrição), que articulam intemamente o espaço, reproduzem de novo,
respectivamente, a ordem extensa e a ordem intensa. Em outro exemplo,
podemos lembrar que a noção de valor, intensa quando em relação ao
conceito de direção, comporta-se como categoria extensa em relação ao
conceito de objeto. Da mesma forma, a modalidade deôntica pode
desempenhar função extensa quando origem a um percurso narrativo
segundo o /dever/ e funcionar como elemento intenso ao impor limites éticos
ao sujeito do /querer/
A categoria extensa, definida na mais autêntica tradição hjelmsleviana
pela “capacidade de dirigir a cadeia”, é um conceito universal indiferente à
substância. Sua incorporação pela semiótica, do ponto de vista da
adequação, está associada muitas vezes à temporalidade inerente às
modalidades volitivas [NOTA 13]. Basta recordarmos, entretanto, que o
/querer/ é apenas uma fase do percurso gerativo para deduzirmos que aquilo
que transita das instâncias mais profundas aas etapas de manifestação é
exatamente o seu caráter extenso.
P.24
Chegar à dimensão extensa é compreender as relações de
dependência que transformam as desigualdades parciais em elementos
rítmicos imprescindíveis ao estabelecimento de leis que fazem do texto um
todo homogêneo. Quando os segmentos, com suas funções intensas, podem
ser reconhecidos como partes incompletas que pedem a complementação
dos demais segmentos e a resposta definitiva na dimensão extensa do texto,
então estamos diante de uma gramática mais compatível com a apreensão e
inteligibilidade da obra.
A proposta de Zilberberg, enquanto tal, não é nova. Além de estar
embrionariamente contida nas teorias lingüísticas e semióticas de Saussure,
Hjelmslev e Greimas, pertence também, como lembra o próprio autor, às
reflexões de Paul Valéry sobre a ciência: “Cabe à ciência procurar num
conjunto a parte que pode exprimir todo o conjunto” [NOTA 14]. Pode ainda
ser detectada, de maneira menos explícita, nas intuições de artistas-
pensadores como Anton Webern ou de artistas-práticos como João Gilberto
que buscam nada menos que a essência de suas respectivas atividades.
Nova, realmente, é a formulação, resultante direta de uma vertente
estruturalista, alijada, por princípio, das pesquisas contemporâneas dirigidas à
estética.
Zilberberg penetrou no projeto estrutural como poucos o fizeram até
hoje, praticando uma rigorosa triagem de todos os seus conceitos, uma
reavaliação de seus maiores expoentes e uma releitura extremamente original
de sua evolução histórica. O resultado tem um sabor de obviedade como toda
demonstração científica bem sucedida. E, como anunciamos, a oposição
extenso/intenso ocupa um espaço privilegiado em sua reflexão - como se
fosse um dispositivo vel de hierarquização, onde a dimensão extensa
responde pelo plano mais profundo, pelo elemento pressuposto -, uma vez
que pode ser reaplicada em qualquer etapa gerativa como um poderoso
recurso de explicitação das gramáticas textuais, tanto das semióticas verbais
como das não-verbais.
O “comércio entre as direções e os instantes” [NOTA 15] constitui, para
Zilberberg, um ponto de partida crucial com amplas perspectivas para o
programa semiótico:
P.25
A junção do extenso e do intenso (...) pode ser considerada como uma
coincidência feliz, uma interseção euforizante da imanência com a
manifestação. [NOTA 16]
WEBERN: DA CONCISÃO À COERÊNCIA
Em fase avançada de sua produção musical, Anton Webern realizou
uma série de conferências onde expôs, sobretudo, suas preocupações com
os elementos musicais que asseguram a coerência de uma obra. Esses
trabalhos - compilados num volume sob o título O caminho para a nova
música [NOTA 17] e que servem de base aos comentários que vêm a seguir -
revelam o lado sistematizador do grande músico, deixando transparecer, por
exemplo, que a pequena dimensão de suas peças não pode ser atribuída
exclusivamente a uma ânsia natural de concisão e de criação inusitada.
Refletia, também, a consciência do compositor que se situava nos primórdios
da conquista dos 12 tons e que pensava ainda não dispor de uma gramática
suficientemente extensa para expandir suas idéias num tempo mais dilatado
sem dispersão informativa.
Ao abraçar o dodecafonismo, Webern acreditava estar, mais uma vez,
confirmando a fecundidade inesgotável da linguagem musical, sempre capaz
de renascer das aparentes dissoluções. Mais que uma modalidade estética, o
que estava em jogo para o músico era o poder da produção humana que, no
fundo, desenvolvia “sempre a mesma idéia” sob formas diferentes.
Webem não constrói propriamente uma Teoria mas consegue sintetizar
suas observações num modelo que explica coerentemente sua escolha.
Aproveita, evidentemente, inúmeras conclusões de seu mestre (Schoenberg)
mas chega a alguns resultados que parecem advir diretamente de sua
experiência de compositor e músico confrontada com o repertório consagrado
da música erudita ocidental.
P.26
Se não há um princípio teórico norteador, há uma nítida inclinação para
o pensamento desenvolvido por Goethe em alguns textos como, por exemplo,
a introdução à Teoria das cores e Metamorfose da planta. Sente-se atraído
pela identificação entre criação humana e criação da natureza. Assim, a arte
seria um “produto da natureza universal, sob a forma particular da natureza
humana” [NOTA 18]. Cabe ao homem, portanto, descobrir as “leis segundo as
quais a natureza, sob a forma particular do ser humano, é produtiva” [NOTA
19]. A especificidade da linguagem musical consistiria em relacionar a
expressão das leis da natureza com o sentido da audição [NOTA 20].
A “planta arquetípica”, que assegura a homogeneidade de uma
infinidade de plantas específicas, diferentes entre si, é um modelo natural de
criação que se reproduz na criação artística. Tal reflexão passa a ser o
“motivo” que organiza todo o pensamento de Webern:
Desenvolver tudo a partir de uma idéia principal! Eis a coerência mais
forte - todas as partes fazem a mesma coisa, como nos neerlandeses, onde o
tema era trazido por cada uma das vozes em todas as transformações
possíveis, com entradas diferentes e em diversas alturas. [NOTA 21]
A busca de “clareza”, tão cara ao compositor, estava intimamente
ligada à busca de “coerência” e esta - por incrível que pareça em se tratando
de um dodecafonista - dependia basicamente do processo de repetição (base
de todas as construções que garantem a apreensibilidade [NOTA 22]).
Nessa linha, Webern chama a atenção para o “motivo” (como unidade
mínima de uma idéia musical cujo reconhecimento depende da repetição),
para a “fuga” (onde tudo é derivado do tema) e para a “variação” (cuja técnica
se resume em deduzir o maior número possível de coisas de uma idéia
principal).
Quando Webern afirma que a coerência “resulta do estabelecimento de
relações, as mais estreitas possíveis entre partes compo-
P.27
nentes” [NOTA 23], somos levados a reconhecer um modo de pensar
estrutural, ao menos no plano descritivo, que deveria, a princípio, se conflitar
com o modo de criação serial. [NOTA 24] A Arte da Fuga (Bach), para
Webem, é o ápice da coerência polifônica: tudo é derivado do tema, atingindo
o mais alto grau de abstração musical. A coerência da fuga transferiu-se à
sonata, ao acompanhamento e à variação, sua forma mais abrangente. Tudo
ocorre como se o compositor analisasse e admirasse o repertório da música
do passado sob a ótica estrutural e experimentasse um certo impasse em sua
prática de criação, por não poder transferir simplesmente a coerência do
tonalismo para o dodecafonismo. Como obter a mesma clareza numa
linguagem serial?
Se consideramos que a coerência em música corresponde
principalmente à repetição [NOTA 25] - embora também possamos falar de
regência harmônica no campo da tonalidade- como atingir a coerência num
modelo de composição que tem como base a extinção do elemento reiterativo
e das previsibilidades harmônico-melódicas? Como garantir, num primeiro
tempo, a apreensibilidade e, num segundo, a produção de obras mais
“extensas”?
Se essas preocupações passassem pelo crivo analítico de Zilberberg e
pelas propostas que expusemos acima, talvez pudéssemos resumi-las com
apenas uma indagação: como tomar extenso um dado musical pertinente?
Sem dúvida, a noção talhada para recobrir essa questão e dar início a
uma investigação de peso sobre o tema é a de isotopia. Webem não
procurava reconhecer funções paradigmáticas - embora reconhecesse muitas
delas na música tonal - mas, sobretudo, funções à distância, funções em
expansão no plano sintagmático. Webem queria saber como expandir uma
idéia sem perder o sentido, a coerência e a clareza.
Nesse ponto, podemos dizer que essas conferências do compositor
evidenciam um esforço no sentido de encontro com a música do passado, ou
seja, uma preocupação contrária àquela de ruptura,
P.28
normalmente associada à Escola de Viena. Daí então sua leitura, um tanto
quanto dirigida mas nem por isso menos interessante, da história da música
ocidental como um percurso que vai da conquista dos sete tons até a
conquista dos doze tons.
Depois do estabelecimento da escala diatônica e dos modos
eclesiásticos, Webern estuda a dissolução destes últimos em função das
formas de resolução tonal que empregavam a sensível na busca de um
modelo mais convincente de finalização. Esses acordes ambíguos teriam,
com o tempo, se propagado às demais seções das peças musicais, assim
como a sensível teria sido transposta para todas as escalas, reduzindo os
modos a apenas duas configurações: modo maior e modo menor.
Para Webern, essa evolução toda está centrada na busca de uma
forma singular de conclusão. Do acúmulo de acidentes no movimento de
cadência e da extensão das “dominantes secundárias” para todos os graus da
escala teria resultado a música clássica levada às últimas conseqüências por
Beethoven. O resto é conhecido: exacerbação do cromatismo, distanciamento
da tonalidade e a proposta dodecafônica de Schoenberg.
Webem tem clareza quanto ao fato de a escala diatônica não ter sido
inventada e sim encontrada [NOTA 26]. Trata-se de um arranjo linear dos
graus de polarização da série harmônica. Da mesma forma, consonância e
dissonância mantêm entre si uma diferença de distância entre os graus
utilizados: “a dissonância é apenas uma etapa posterior na continuidade da
série harmônica” [NOTA 27]. Em outras palavras, as leis do diatonismo e da
tonalidade foram formuladas a posteriori, depois de o sistema estar
completamente testado e estabelecido na prática. Webem não chega a
analisar as conseqüências de um sistema musical pré-formulado, como o
dodecafonismo, cujas leis de produção foram rigidamente traçadas pelo gênio
de um compositor (Schoenberg). Prefere refletir sobre as correspondências
entre a nova música e a história anterior da linguagem (“nós não
abandonamos as formas dos clássicos” [NOTA 28], como que procurando
uma legitimidade
P.29
no interior de uma evolução que culminaria exatamente com a escola
dodecafônica.
Nesse sentido, para Webern, o dodecafonismo também opera com
repetição, ou seja, com o retomo constante das doze notas [NOTA 29]. O
dodecafonismo assimila as técnicas de retrogradação, inversão e
transformação utilizadas no apogeu da polifonia pela última escola
neerlandesa (início de século XVI). Apenas as transpõe aos doze sons
cromáticos da série.
Assim como houve a conquista dos sete tons, a Escola de Viena
estaria, naquele instante, em plena conquista dos doze tons mas visando, no
fundo, o mesmo propósito: a coerência e a clareza a partir da exploração de
todas as potencialidades de uma mesma idéia.
JOÃO GILBERTO: DO SAMBA À CORDA BAMBA
A atividade do compositor, do intérprete, do arranjador e até do técnico
responsável pela gravação é uma constante busca de coesão. A imagem do
cancionista que compõe dedilhando o violão sugere duas forças criativas: a
da voz que procura contornos inéditos e a do instrumento que,
simultaneamente, tenta estabelecer uma gramática. A fecundidade de uma
inflexão recém-criada depende menos de sua expressividade individual que
da capacidade de alimentar a cadeia sintagmática com outras inflexões. Tal
potencialidade produtiva é conduzida pelo instrumento - encarregado-mor das
funções extensas - e transferida ao arranjo global nos estágios finais que
precedem o espetáculo ou a gravação.
Toda inflexão produzida pela voz deixa traços impressos no
acompanhamento instrumental e, desse modo, influencia a criação dos
demais contornos. A tendência musical do instrumento é reproduzir com
insistência esses traços visando garantir uma coesão de fundo e, ao mesmo
tempo, limitar consideravelmente as possibilidades de invenção melódica. E
isso quando a “primeira” inflexão, a
P.30
primeira idéia, concebida numa composição não é produto de um
comportamento instrumental previamente estabelecido como gramática. Esse
caso é muito comum e talvez confirme uma certa intuição de que a primeira
idéia melódica não é tanto um perfil sonoro mas, sobretudo, uma relação
abstrata que vincula um fragmento a outro. A base instrumental se encarrega
de materializar e difundir as relações de dependência entre os fragmentos
melódicos, transformando traços intensos em medida extensa que perpassa
toda a obra. Assim, as notas que compõem uma inflexão se expandem em
tonalidade, definindo uma direção sonora. As figuras rítmicas que estruturam
os motivos se expandem em pulso, sustentando a seqüência musical em
movimento. Por vezes, trechos retirados diretamente da linha do canto se
transformam em frases instrumentais funcionando, a partir daí, como
elemento gramatical. Tudo isso regulado por variações de andamento que
privilegiam ora a fluência do processo, ora as retenções que individualizam os
contornos.
Essa tendência natural em direção a uma gramática particular a cada
nova composição - convertendo gradativamente as relações intensas em
medida extensa que, por sua vez, volta a exercer influência sobre as
primeiras relações - tem como corolário, também natural, a constituição de
uma gramática geral que incorpora não apenas os princípios formais,
indispensáveis à criação, mas, ainda, os estereótipos que vão sendo
armazenados como um repertório de condutas de composição. Assim, a
mesma tonalidade portadora de valores-fins, decisivos na condução bem
dosada das expectativas do ouvinte durante o tempo da canção, pode ser
utilizada como grade musical administrando uma previsibilidade que
dificilmente desperta a atenção. Um pulso regular, portador de valores-fluxos
[NOTA 30] imprescindíveis para garantir a força de continuidade de uma
composição, pode soar apenas como porta-voz do gênero (bolero, samba,
rock) sem qualquer vínculo com as pequenas células tmicas criadas na
ordem intensa.
A gramática geral constitui, portanto, um horizonte necessário à
passagem das relações intensas para a forma extensa. No entanto,
P.31
como qualquer outra forma resultante de práticas culturais, essa gramática
abriga também uma espécie de catálogo de operações convencionalizadas
que passa a funcionar como padrão de conduta, cujo caráter estático fere a
sua função precípua: a de oferecer diretrizes básicas para o estreitamento
das relações entre os regimes, intenso e extenso, que definem, em última
instância, a criação de uma gramática particular.
O caminho para a extensionalidade - categoria formal que articula
intenso /vs/ extenso [NOTA 31] - tem ainda outra razão no campo da canção
popular: o encontro com o sentido da letra. Evidente que o componente
lingüístico traz sua própria articulação, entre elementos intensos e extensos,
que garante a homogeneidade de suas oposições e de suas dependências
internas. Da relação entre extensionalidade de expressão (sonoridade musical
e fonológica) e extensionalidade de conteúdo (semantização investida na
letra) depende a compatibilidade entre os dois principais componentes da
canção. De fato, essa inter-relação pode ser estabelecida - sem contrariar
os princípios de Copenhague - com categorias abstratas colhidas durante as
análises parciais e nunca com grandezas substanciais como a sonoridade em
si ou as “mensagens” da letra.
A partir dessas considerações podemos melhor avaliar a contribuição
de João Gilberto no terreno da canção brasileira. Embora não tenha se
notabilizado como compositor - e a composição será nossa principal
referência durante esse trabalho - sua atuação como intérprete maior do
nosso cancioneiro tem um caráter tão abrangente que nela estão implicadas
todas as fases de produção de uma obra, desde a criação até a gravação.
Tudo engenhosamente concentrado numa integração de voz e violão.
Avesso aos estereótipos da gramática geral, João Gilberto dedica-se a
refazer a gramática particular de diversas canções - normalmente
consagradas ou, no mínimo, estabilizadas por outras execuções - alterando
precisamente as relações entre elementos intensos e elementos extensos no
plano da expressão. No plano do conteúdo, apenas aplica alguns “ajustes”
quando julga necessário, mas,
P.32
via de regra, mantém essa face como termo constante e foco de sugestões
para o trabalho com a sonoridade.
A partir do material básico oferecido pela composição - linha melódica
apoiada sobre um encadeamento de acordes definindo uma direcionalidade
tonal - João Gilberto começa por refazer a trajetória harmônica que ordena o
seu campo extenso, valendo-se de outras interpretações das relações entre
os contornos temáticos. Ao mesmo tempo, retira da combinação das lulas
rítmicas um pulso cuja regularidade reflita a expansão desses elementos ao
longo da obra, à medida que vai se configurando a nova ordem extensa -
harmonização e pulso - o cantor retoma aos pequenos fragmentos e promove
alterações significativas em suas relações, redistribuindo os ataques e as
durações no ‘continuum’ melódico. Essas mudanças de conjunto repercutem
explicitamente no resultado sonoro e, então, verificamos que algumas pausas
foram suprimidas, que frases descontínuas foram ligadas, que a aceleração
de todo um segmento foi compensada pelo alongamento de uma vogal
subseqüente, que o canto se desenvolve independentemente das marcas de
compasso, que variação harmônica onde a versão original não se
movimenta assim como, em contrapartida, um acorde se mantém justamente
onde estamos habituados a ouvir o seu desdobramento, que até a letra já não
é exatamente a mesma depois de alguns remanejamentos de versos,
algumas substituições de palavras, algumas omissões ou inserções por conta
própria e, finalmente, verificamos que havia outra canção por trás da que
conhecíamos.
João Gilberto acirra as tensões e, conseqüentemente, o compromisso
entre a medida extensa de expressão [NOTA 32] e os valores intensos que
definem a gramática particular de uma canção, recriando um produto quase
independente dos estereótipos da gramática geral. Sua maneira de conceber
o arranjo instrumental e o canto, convém frisar, é muito pessoal e não
representa a única possibilidade de intensificar o mencionado compromisso.
muitos outros intérpretes radicais que têm demonstrado alta competência
nesses “reajustes” musicais
P.33
(Caetano Veloso é um exemplo notório). João Gilberto, porém, vem
aprofundando um estilo de recriação mais de 30 anos e atinge, no
momento, um resultado cujo alcance reduz o impacto da Bossa-Nova a uma
discreta intervenção na música popular. Acompanhar o trabalho deste
intérprete através da evolução de suas execuções constitui, em si, um estudo
completo sobre a formação, o amadurecimento e as novas perspectivas da
canção popular brasileira enquanto linguagem, incluindo sua presença e
importância no âmbito da música internacional.
No final dos anos 50, a canção brasileira, que havia experimentado
uma fase de extraordinário apogeu nas décadas anteriores e que, portanto,
consolidara sua linguagem no meio radiofônico, manifestava então os
primeiros sinais de desgaste, não tanto pelas composições que sempre
mantiveram o seu vigor, mas pelo acabamento estético invariavelmente
atrelado aos padrões que se firmaram como gênero brasileiro: a marcha, o
samba, o samba-canção... e o baião. O esforço para se filiar ao gênero - que,
muitas vezes, vinha estampado no selo do disco - enfraquecia o vínculo entre
as funções de contato contraídas pelas unidades melódicas menores e a
função à distância, representada sobretudo pelo arranjo instrumental,
substituindo uma gramática particular consistente, sobejamente praticada nas
décadas de 30 e 40 (exemplo, Noel Rosa ou Dorival Caymmi interpretando as
próprias composições), por maneirismos repertoriados no âmbito da
gramática geral.
O aprimoramento técnico dos sistemas de gravação e, evidentemente,
o mercado do disco, bastante dinâmico para a época, tornaram obsoletas
as célebres soluções estéticas dos cancionistas pioneiros mas, ao mesmo
tempo, sofriam as insuficiências e os excessos de uma padronização pela
qual eles próprios eram parcialmente responsáveis. Insuficiências, pois os
novos recursos técnicos pediam novos recursos artísticos que nem sempre
eram bem-vindos nas empresas de gravação, seja por sectarismo
nacionalista (Continental, por exemplo) seja por simples falta de familiaridade
com os setores progressistas da música norte-americana que sinalizavam
os avanços; o mercado, por seu turno, estava cada vez mais restrito às
classes B e C, populosas mas com menor poder aquisitivo justamente numa
fase de implantação do long-playing. Excessos, pois, como par-
P.34
te da estereotipação generalizada, o canto também havia adquirido uma
configuração hiperbólica quando a gravação elétrica dispensava, há muito
tempo, a potência das cordas vocais [NOTA 33]; no mercado, a proliferação
de lançamentos quase que exclusivamente em estilo romântico de samba-
canção também inflacionava o setor, prejudicando as vendas.
A Bossa-Nova, como um todo, ofereceu a saída estética e
mercadológica absorvendo a “influência do jazz”, reequilibrando os recursos
artísticos com os recursos técnicos e recuperando a confiança da elite na
música popular. João Gilberto, principal porta-voz do movimento, imbuído
portanto de toda a estética revolucionária que despontava, jamais escondeu
sua atração pela linguagem de seus antepassados e, mais precisamente, pela
gramática construída passo a passo durante a primeira metade do século. Até
então, seguramente, ninguém havia isolado, com tanta objetividade, os
elementos de linguagem da canção popular brasileira. Ninguém havia
detectado sua forma, suas invariâncias e, por oposição, seus pontos
nevrálgicos de transformação. Tudo indica que essa clareza e essa
consciência emergiram da própria atividade obstinada, ou mesmo compulsiva,
de arranjo e execução de inúmeras composições, que sempre caracterizou a
carreira do intérprete baiano, até porque, reconhecemos o teor desta
consciência - jamais verbalizada - unicamente pela apreciação de sua obra.
Portanto, embora compartilhasse com seus pares as idéias e as práticas
gerais do movimento, João Gilberto apresentou, desde o início, uma inflexão
ímpar: sua produção visava restabelecer a dinâmica da gramática particular,
responsável pelo comércio interno entre os valores intensos e os valores
extensos de cada composição, reportando-se à gramática geral apenas para
se situar em relação às funções básicas que caracterizam o pulso do samba e
às direções típicas das seqüências tonais.
Hoje podemos verificar que a Bossa-Nova, para João Gilberto, foi
apenas um ponto de partida em direção ao futuro do passado. Munido dos
mais avançados e consistentes recursos estéticos, fartamente
experimentados nas composições de seus contemporâneos,
P.35
sobretudo nas de Tom Jobim, o grande cancionista embrenhou-se no
repertório da canção brasileira, promovendo uma estimulante revisão que
começou com Geraldo Pereira, Caymmi, Ari Barroso, e a dupla Bide-Marçal -
gravados nos três LPs do período Bossa-Nova - e veio parar em Caetano
Veloso e Lobão, passando por Herivelto Martins, Noel Rosa, Adoniran
Barbosa, Lamartine Babo, Johnny Alf e outros. E em meio a essa febre
ininterrupta de reinterpretação, João Gilberto teria, sintomaticamente,
confidenciado a Caetano Veloso - segundo recente depoimento deste aos
jornais, que citamos de memória - que considerava uma verdadeira
“irresponsabilidade” dos compositores esse hábito de apresentar sempre
novas canções quando ainda tantas à espera de uma interpretação
definitiva...
João Gilberto sempre fez (ou refez) “sambas”, como, aliás, declarou
várias vezes. O que singulariza o seu trabalho - talento e dotes pessoais à
parte - é o permanente reajuste da extensionalidade de cada obra,
recuperando a dinâmica de sua gramática interna e abandonando os
maneirismos estereotipados do gênero musical. Cuida de cada detalhe como
se dele dependesse a configuração global da extensão melódica. Mas, na
verdade, sua atuação sobre esses pequenos elementos decorre de um
domínio absoluto da extensão.
Interessante notar que a “batida” e a “desafinação”, imediatamente
identificadas e elevadas à condição de símbolos da Bossa- Nova, são
medidas extensas numa interação tão estreita com os elementos intensos
(células rítmicas e contornos temáticos) que não deixam vidas quanto à
determinação recíproca dessas duas dimensões. O excelente artigo Bossa-
Nova, escrito por Brasil Rocha Brito no calor da hora (1960) já destacava esse
aspecto no que diz respeito à batida:
...a melodia é estruturada, muitas vezes, segundo configurações
rítmicas derivadas das células rítmicas fornecidas pelas chamadas "batidas
da Bossa-Nova ’’. [NOTA 34]
P.36
...o termo "batida” não se refere apenas a possíveis configurações rítmicas do
acompanhamento, mas ainda às da estrutura melódica. [NOTA 35]
A batida é o pulso concebido para o acompanhamento instrumental e
que assegura a continuidade da peça. Rigorosamente dentro da gramática
geral do samba, a batida de João Gilberto propunha uma divisão regular,
deslocando, porém, seus ataques instrumentais do tempo forte do compasso.
Com isso, o intérprete garantia uma configuração extensa livre dos
estereótipos que, na época, cristalizavam o samba tradicional. Em seguida
(ou simultaneamente), calibrava de forma muito particular os acentos das
células rítmicas da melodia, indissociáveis dos acentos das palavras da letra,
com a periodicidade sincopada do acompanhamento, fortalecendo, na relação
voz/violão, a autonomia da gramática interna da canção:
...aquilo que popularmente se conhece como “batida da Bossa-Nova” é
um defasamento no tempo físico entre os acentos tônicos periódicos da linha
melódica e os do acompanhamento causado pelo uso reiterado de sincopas.
[NOTA 36]
A desafinação, termo bastante impróprio - aporque as aquisições da
Bossa-Nova exigiam uma competência de afinação bem mais requintada que
a dos cantores do passado correspondia ao efeito produzido pelo encontro da
melodia da voz com os acordes dissonantes pouco utilizados até então. Era
apreendida, em geral, como acidente local, intenso, como um deslize do canto
que, em alguns momentos, perdia a sintonia com o acorde de fundo. Essa
captação intensa é parodiada na célebre canção Desafinado quando a
melodia que cobre o final da frase “Se você disser que eu desafino, amor”
estaciona o canto sobre a nota mais alterada do acorde (uma quinta diminuta
que, a rigor, tem a função de décima primeira aumentada), caracterizando
aquele instante como o auge da desafinação.
Tratava-se, na realidade, de proposta extensa que esses acordes
vinham encadeados justamente no sentido de proporcionar novas direções
para a melodia. E mesmo que esta fosse pouco variada,
P.37
o movimento harmônico assegurava toda a dinâmica à maneira de um fundo
que se desloca para enriquecer a figura. Ao refazer a harmonia de todas as
canções que interpretava, João Gilberto modificava o sentido (a direção) das
melodias sem alterar substancialmente uma nota sequer. Se o ouvinte
captava um resultado muito diferente, a razão era uma só: mudança na
medida extensa, repercussão nas relações intensas. E, mais uma vez, a
gramática se resolvia internamente.
João Gilberto vem aprofundando e aradicalizando sua “pesquisa” no
decorrer dessas décadas como se buscasse a perfeição de ver o “todo”
presente enquanto memória em cada uma das “partes” e estas neutralizando
as diferenças em função da perspectiva global. Por isso, ele a impressão
de estar sempre fazendo a mesma coisa, sempre explorando a mesma idéia,
como Webem, e o resultado é tão exclusivo e tão único. De um lado, um
anseio, quase saussuriano, de coerência e homogeneidade. De outro, quer a
canção cada vez mais solta no tempo, auto-suficiente, despojada de
estereótipos. Quer extrair de cada execução um samba exclusivo.
Isso, porém, é matéria para uma etapa posterior deste estudo.
P.39
II
JUNÇÃO
En effet, la distance qui s'établit ainsi est, sur le plan spacial,
l’équivalent de l’attente pour la temporalité, et cette visualité imparfaite -ou
plus-que-parfaite, mais jamais parfaite- n 'est que la forme distanciée du
toucher, tant est vrai que le toucher, la plus profonde des sensations à partir
desquelles se développent les passions du «corps” e de l’«âme», vise, en fin
de compte, la conjonction du sujet et de l’objet, seule voie menant à l’esthésis.
Algirdas Julien Greimas
Entre as inúmeras formulações do mantique structurale [NOTA 1],
que deflagraram os principais conceitos da atual semiótica européia,
encontra-se a descrição do funcionamento lingüístico sob a articulação dos
processos de “condensação” e “expansão”. Conceitos eminentemente
hjelmslevianos - que traduzem a oposição universal entre elementos
intensos e elementos extensos tiveram um caráter de prefiguração do
desenvolvimento da teoria a começar do próprio plano de organização da
famosa obra. A passagem de um enfoque lexicológico - que procedeu ao
célebre estudo da unidade tête - a um enfoque decididamente narrativo, à luz
das idéias de Vladimir Propp, fez de Sémantique structurale um verdadeiro
projeto de expansão e de abertura ao enunciado textual, apostando no fato de
que quanto mais ampla a dimensão considerada mais elementos para a
estruturação do sentido.
P.40
Essa inflexão em favor do texto como um todo teve por base a escala
pragmática do /fazer/, onde o foco principal da pesquisa incidia sobre a
transformação do estado de junção do sujeito do enunciado. Antes e depois
desse momento crucial, que Propp denominou “prova decisiva”, enfileiravam-
se séries de preparações e de avaliações que, embora quase sempre
ocupassem a maior parte do texto, não passavam de razões de fundo para
justificar a grande performance do relato.
A conquista da narratividade significou para a semiótica um estágio
concreto de elaboração de uma forma de conteúdo para o nível textual. De
fato, as categorias actanciais ocupavam posições paradigmáticas que
demarcavam o percurso narrativo e, ao mesmo tempo, respondiam pela
dinâmica que movimenta suas etapas em função de um valor-fim. Fundando
uma sintaxe narrativa como espinha dorsal do sentido imanente a todos os
textos-enunciados, a semiótica pôde armar sua teoria na forma de um modelo
descritivo geral que serviu de ponto de partida para uma busca coerente das
pressuposições.
Criou-se então uma forte epistemologia do /fazer/ - expressa pa-
radigmaticamente nas categorias e nas operações do quadrado semiótico,
com um projeto descritivo baseado na transformação de estados juntivos -
herdeira legítima, numa dimensão sintagmática, dos princípios mais rigorosos
da Lingüística Estrutural.
A expansão realizada no Sémantique structurale e consolidada nos
artigos que compuseram o Du sens [NOTA 2] deixou evidentemente inúmeras
lacunas que, embora não comprometessem o avanço obtido, pediam urgente
explicação. Deu-se, então, a hora do refluxo. O desenvolvimento da teoria
tomou a forma da condensação que, no fundo, refletia um notável esforço de
explicação e de revisão das etapas pendentes. Duas grandes direções de
pesquisa manifestaram-se, então, como fundamentais ao projeto semiótico:
exploração meticulosa das instâncias profundas e reconstrução epistêmica do
sujeito da enunciação. Ambas muito semelhantes no que diz respeito a um
de-
P.41
talhamento das pressuposições do enunciado, acabaram partilhando também
um ponto de partida privilegiado para as suas indagações: o universo
passional do sujeito.
Respeitando sempre o princípio de imanência do sentido, tão caro ao
pensamento de Saussure-Hjelmslev, e fiel à máxima greimasiana que previa,
em 1974, que fora do texto não salvação [NOTA 3] a semiótica pôde,
então, voltar-se aos aspectos subjetivos do sentido e estudar as paixões a
partir de seus simulacros construídos em textos. Assim, cada vez mais, as
estruturas narrativas passaram a ser consideradas como articulações
embrionárias que compõem o universo passional do sujeito e o /fazer/ como
um ato em potência situado no interior da instância do /ser/ e p-dinamizado
pela modalidade do /querer/ [NOTA 4].
Não podemos deixar de identificar esse movimento epistemológico de
adensamento conceptual com a concentração, no sentido silábico do termo:
expansão da pequeneza [NOTA 5]. O recolhimento das estruturas narrativas
do texto no interior das figuras passionais relançou no horizonte semiótico -
agora com recursos bem mais promissores - a lexicologia desprezada durante
boa parte da década de 70. As sugestivas descrições de figuras como o
“desespero”, a “cólera”, a “indiferença”, o “ciúme”, a “avareza” [NOTA 6] etc.,
confirmam a tendência concêntrica dos anos 80 (e início dos 90) e, mais que
isso, a isomorfia entre o ritmo de extensão e condensação constatado pelas
análises de textos e o ritmo do próprio discurso da pesquisa que se
desenvolve ora se expandindo e se “verbalizando”, ora se retraindo e se
“nominalizando”.
P.42
FUNDAMENTOS DA IDENTIDADE
Se hoje assistimos ao estabelecimento de uma epistemologia das
paixões [NOTA 7] que reformula o percurso gerativo, introduzindo valores
tensivos e fóricos ao lado das discretizações modais e narrativas que
engendram o discurso, isso decorre de um aprofundamento, literalmente
falando, do conceito de enunciação. A dimensão passional do sujeito do
enunciado espelha os desejos e os valores do sujeito epistêmico que começa,
assim, a responder por todos os estratos gerativos, desde os níveis mais
profundos.
Tudo ocorre, enfim, como se a fase inicial da semiótica, marcada pela
narrativização e irradiação das categorias ao longo do texto, instituísse o
espaço de descrição e reservasse para a fase atual, centrada na contenção
passional, o estudo do tempo. A partir disso, pode-se imaginar quão oportuna
se faz a reflexão de Zilberberg a propósito da enunciação nas instâncias mais
abstratas:
O "eu” aparece, no nível figural, como um lugar de interseção e de
arbitragem entre tempo e espaço: o tempo seria apenas a contenção do
espaço enquanto que o espaço seria apenas o desdobramento do tempo.
[NOTA 8]
O despertar da paixão no centro das abordagens semióticas retirou da
instância do /ser/ o seu estatuto operacional de passividade (de resultado,
relativamente estático, de narrativas anteriores) e introduziu o germe dos
conflitos e das moderações, que ora se intensificam, ora se abrandam,
proporcionando ao modelo maior fidelidade antropomórfica. Nesse momento,
as relações juntivas que acusam uma identidade perene entre sujeito e
objeto, ao lado de uma força antagonista que exacerba as diferenças,
passaram a justificar, ainda no plano interno do sujeito-ator, o movimento
dialético que pede a diferença complementar toda vez que sujeito e objeto
estão em perfeita conjunção e que, de maneira inversa, manifesta a atração
pela identidade quanto mais as funções se distanciam no tempo. Ou seja,
P.43
durante a progressão sintagmática, o valor da alteridade aumenta com a
intensificação da identidade e vice-versa.
A identidade parcial entre sujeito e objeto é essencial para
compreendermos que um estrato mais profundo e, conseqüentemente,
mais abstrato, responsável pelo vínculo entre sujeito e o valor do objeto. Quer
chamemos de apetência do sujeito x apetência do objeto, que toma o primeiro
ativo e o segundo passivo mas atraente [NOTA 9], quer de protensividade do
sujeito x potencialidade do objeto, como faz a semiótica, retomando Husserl,
para explicar uma tendência primal do sujeito em direção ao valor do valor
[NOTA 10], ou quer ainda consideremos a relação sujeito/sub-objeto,
proposta por Zilberberg no sentido de realçar a presença do primeiro na
instância do segundo [NOTA 11], a identidade surge, em nossos dias, com
uma força sintagmática que faz do devenir um modo complementar da
relação entre os dois termos. Nessa linha atribuímos, com freqüência, ao
sujeito uma função de origem, ao objeto uma função de finalidade e ao
devenir a função de historicidade [NOTA 12].
Um sujeito em conjunção plena com o objeto, ou em identidade total,
seria um ser inexistente neste mundo: um ser sem desejo e sem paixão
[NOTA 13]. Justamente para conservar o seu vínculo extenso com o valor, o
sujeito sacrifica, a todo instante, o seu contato intenso com o objeto. Seu
contrato final é com o devenir, com a busca constante, com uma fusão plena
e utópica com um objeto correspondente ao próprio valor, fusão esta
inatingível por definição.
A vida se faz, assim, ela é, primordialmente, um ato de paixão - de
perspectivas que se estendem no rumo de um futuro infinitamente aberto, em
cujo horizonte cada ser humano antevê a sua plena realização enquanto ser,
naquele instante supremo da imersão do sujeito no seio do objeto, para a
conjunção final. Aí, então, ficarão ambos a tal ponto identificados que
desaparecerá qualquer possibilidade de distinguir um do outro, porque sujeito
e objeto estarão fundidos e já não serão nunca mais dois, mas um e o mesmo
P.44
ente simples (simples, quer dizer, completo, como se diz do ser que possui en
propre tudo aquilo que é requerido para que ele surja como uno, acabado e
perfeito segundo a sua natureza). [NOTA 14]
Admitir a identidade é, portanto, admitir, ao mesmo tempo, a alteridade
que produz o desdobramento do sentido e se traduz, sintagmaticamente, em
orientação para um outro objeto que represente o mesmo valor. Assim, o anti-
sujeito é uma função que desconecta o sujeito de seu objeto provisório,
provocando a reatualização de seu vínculo com o valor. Trata-se, no enfoque
actancial, de uma revitalização do contrato assumido com o destinador -
guardião dos valores - cuja tarefa primordial é a de restabelecer o devenir
para garantir ao sujeito a marcha da recuperação. O objeto é uma função que
carrega a marca de identidade do sujeito - que representa, na verdade, uma
versão estática e espacializada do valor, retirando-o da cadeia dinâmica da
temporalidade- e que exerce, por isso, uma atração de estabilidade e
equilíbrio, mesmo em se tratando de uma ancoragem temporária.
Desse modo, a conjunção com o objeto é função local que manifesta a
tendência à concentração. A conjunção com o valor é função à distância que
manifesta a tendência à extensão. A relação entre esses dois modos
conjuntivos - que, pelo que vimos, é ativada por uma disjunção interna -
reinstaura a semiose, numa instância definitivamente comprometida com o
processo.
JUNÇÃO NA MELODIA E NA LETRA
Essas considerações gerais sobre o sentido reconstruído pela
semiótica de hoje, tendo por base a relação sujeito/objeto como investimento
passional primordial [NOTA 15], além de trazerem novas perspectivas para o
progresso na análise do plano do conteúdo, contemplam
P.45
igualmente o plano da expressão, oferecendo, assim, um grau de
homogeneidade conceptual inusitado.
A letra, a melodia e todo o acabamento musical que compõem a
canção delineiam um campo especialmente rendoso para a comprovação
dessas conquistas. Algo ocorre em imanência que nos faz apreender a
integração e a compatibilidade entre elementos verbais e não-verbais como
se todos concorressem à mesma zona de sentido.
A canção promove a remotivação constante dos componentes próprios
do discurso oral - cadeia lingüística e perfil entoativo - gerando entre eles
outras formas de compromisso que se pautam, em geral, pela estabilidade e
conseqüente fortalecimento do plano da expressão. Durante essa operação, a
relação sujeito/objeto vai sendo reproduzida na letra, na melodia e demais
recursos musicais, ora dentro de uma dimensão extensa, ora através do
contato de elementos vizinhos, mas sempre em função do estreitamento dos
laços entre expressão e conteúdo.
O processo de estabilização melódica de uma canção prevê
necessariamente a imbricação dos ataques rítmicos (representados
foneticamente pelas consoantes e acentos vocálicos) com as durações de
sonoridade propriamente dita (instaladas foneticamente nas vogais), dando
origem ao que chamamos de perfil rítmico-melódico. Impossível uma
composição sem os ataques que sustentam os impulsos de sua continuidade
ou sem a presença das durações vocálicas que, por menores que sejam,
garantem sua direcionalidade no campo de tessitura. Ela é o produto dessa
imbricação e sua dinâmica interna depende dos fatores dominância e
recessividade entre os dois processos. Ou seja, paralelamente ao trajeto
percorrido por uma melodia bem formada sempre uma condução rítmica
com presença discreta mas decisiva. Do mesmo modo, os motivos,
enfaticamente marcados pela periodicidade de seus acentos, jamais deixam
de apontar uma orientação qualquer no domínio das alturas, ainda que não
lhe seja atribuída muita importância no contexto geral. O canto é essa eterna
oscilação entre os ataques e os contornos valorizando ora a conjunção
imediata entre os motivos, ora a conjunção à distância, mediada por uma rota
a ser percorrida.
Os ataques e as durações têm como dimensão extensa,
respectivamente, a aceleração e a desaceleração, ambas introjetadas no
P.46
acompanhamento instrumental pela ação conjunta do pulso (a batida) e da
harmonização. Em outras palavras, a ordenação típica da aceleração é a
periodicidade do pulso, a coincidência dos acentos, que tem como resolução
ideal a identidade das lulas e dos motivos melódicos. Daí decorre o papel
proeminente das reiterações nas canções aceleradas: na base da conjunção
imediata entre os temas musicais está a identidade entre sujeito e objeto que
prevê uma relação fluente, sem obstáculos, com forte tendência à
simultaneidade [NOTA 16]. A ordenação típica da desaceleração é a
orientação imprimida pelo curso tonal que, em virtude dos alongamentos
vocálicos, põe em evidência os contornos indispensáveis à realização da
trajetória melódica em direção aos motivos idênticos ou, simplesmente, à
tonalidade harmônica. Na base dessa valorização do percurso está a
disjunção temporária entre sujeito e objeto, traduzida pelas forças
antagonistas das desigualdades, que, entretanto, não representa a perda do
valor nem do desejo de reaver o objeto apesar dos obstáculos. A busca das
identidades melódicas à distância gera os desdobramentos que abrem a
canção para uma narratividade [NOTA 17] também no plano da expressão.
O agrupamento polarizado dos traços que caracterizam cada uma
dessas duas séries produz, de um lado, as canções “temáticas” e, de outro,
as canções “passionais”. [NOTA 18] Assim, aceleração, acentuação, pulso e
reiteração definem composições como A tua presença morena (cf. Ex. 1),
Aguas de março, Beleza pura ou O que é que a baiana tem? nas quais a
extensão melódica vem quase inteiramente retratada nas relações de
vizinhança entre os seus fragmentos. Trata-se da mesma conjunção, da
mesma identidade, que, na letra, inte-
P.47
gra o sujeito com o objeto-valor, seja este manifestado como “morena”,
“natureza”, “beleza” ou “baiana”.
Exemplo 1.
Na série passional, assim chamada por alimentar uma relação de
distância entre sujeito e objeto, o agrupamento quase exclusivo de traços
como a desaceleração, alongamentos de duração, contornos, desdobramento
e direcionamento da linha melódica define, por exemplo, o quadro de
estabilização de A primavera (cf. Ex. 2), Eu e a brisa, Clarice, Torre de Babel
cujo valor de cada fragmento depende da extensão completa da melodia.
Essa valorização do percurso está diretamente ligada à maior permanência
da voz em cada
P.48
grau da seqüência melódica. Esses traços de abertura no plano da expressão
ressoam “distâncias” ou disjunções parciais apresentadas na letra, onde o
sentimento de falta (retratado por saudade, solidão, mistério ou
desentendimento) convive em tensão com o desejo e a esperança do
reencontro.
Exemplo 2.
Os processos de tematização e de passionalização ainda podem ser
mantidos em oposição acentuada no interior de uma mesma canção,
dividindo suas partes. Obras como Eu quero um samba (Ex. 3), Garota de
Ipanema, No tabuleiro da baiana ou Tempo de estio ilustram bem esse caso:
se nas partes iniciais todas elas mantêm um fluxo contínuo entre sujeito e
objeto, nos termos da tematização descrita, no limiar das segundas partes
sobrevêm o efeito da desaceleração e dos alongamentos vocálicos,
interrompendo a identidade imediata dos acentos e dos motivos e trazendo
para o primeiro
P.49
os contornos individualizados como etapas de um caminho melódico a ser
percorrido. Paralelamente, nas respectivas letras, a conjunção com o samba,
com a garota, com os atrativos da Bahia ou do verão carioca é substituída
pela falta e pelo desejo de conquista.
Exemplo 3.
(1ª parte)
P.50
(2ª parte)
Como dizíamos acima, porém, a relação entre tematização e
passionalização deve ser avaliada num quadro de ampla compatibilidade
entre letra, melodia e instrumentação, em suas respectivas dimensões
intensas e extensas, tendo por base a identidade primordial entre sujeito e
objeto. Os casos citados, muito evidentes, refletem apenas a exacerbação de
traços e processos que normalmente estão entranhados e misturados no
corpo da canção.
Tomemos, como exemplo, a composição Mania de você (cf. Ex. 4).
P.51
Exemplo 4.
P.52
A compatibilidade entre seus elementos, de letra e de melodia, não é
menor que a dos modelos vistos e, no entanto, uma análise superficial
poderia constatar o contrário: euforia conjuntiva no plano do conteúdo e
expansão melódica passional, no plano da expressão, demonstrando pouca
identidade entre temas e alto compromisso com a direcionalidade harmônica.
Letra temática, melodia passional...
Mas, como sabemos, a gramática pulsa entre elementos intensos e
elementos extensos, nos dois planos da linguagem, criando correspondências
de diversas dimensões e produzindo um efeito de coerência cuja origem nem
sempre é fácil determinar. Vejamos.
Há, de fato, traços temáticos, mas não se restringem nem à letra nem à
uma só ordem de extensionalidade. A conjunção intensa vem manifestada por
atividades como “beijar” ou “fazer amor” que sugerem um vínculo espacial
entre sujeito e objeto. Na entrada do canto, também temos uma identidade
imediata dos primeiros motivos, fartamente acentuados e entremeados por
pausas rítmicas (cf. Ex. 5), esboçando uma tematização que, embora não se
concretize na melodia subseqüente, escoa pelo acompanhamento através da
pulsação marcada e do vigor da “levada”.
P.53
Exemplo 5.
Os traços de conjunção manifestam-se, portanto, com parcimônia,
como ocorrências locais na letra e na melodia, mas já contam com uma forma
expansiva conduzida pelo acompanhamento instrumental. A hegemonia da
tematização, como força extensa, surge, de fato, na segunda parte, quando
uma nova melodia, especialmente criada para esta etapa, engata os seus
acentos no pulso da instrumentação e, numa oitava acima, produz uma
seqüência final de identidades temáticas (Ex. 6). A adequação, nesse caso, é
paralela, pois a letra também retrata um estado extenso de conjunção:
Nada melhor do que não fazer nada
Só pra deitar e rolar com você
P.54
Exemplo 6.
Acontece, porém, que o corpo melódico central da primeira parte não
confirma o desenho temático inicial, derivando para uma extraordinária
valorização do contorno que começa com o salto intervalar de 10 semitons e
progride através de durações por vezes bem alongadas (cf. Ex. 7), ocupando
todo o campo de tessitura. Embora o acompanhamento conduza a memória
da tematização por todo o itinerário da peça, a melodia principal se
compromete com as metas e as direções tonais projetadas pela harmonia,
abrindo um hiato entre as identidades e instalando a distância passional que
destaca o valor do percurso.
P.55
Exemplo 7.
Tais sintomas melódicos chamam a atenção para outro aspecto da
letra que nem sempre vem à tona quando se considera, apressadamente,
essa canção. Mais que uma conjunção de fato, esse texto manifesta
claramente a conjunção com o desejo de estar permanentemente em
conjunção com o objeto. O valor é o /querer/, a modalidade que, por princípio,
abre a narrativa em direção a uma meta. [NOTA 19] Não se trata, portanto, de
conjunção local e sim de conjunção ampla com todo o percurso que traça a
continuidade do desejo. Daí a importância atribuída à freqüência e à
disseminação dos contatos de junção durante todo o relato:
A gente faz amor por telepatia
No chão, no mar, na lua
Na melodia
Depreende-se, assim, uma implicação teórica importante para o
modelo semiótico da canção. Tematização e passionalização, quando
confrontadas, delimitam áreas específicas de atuação: a primeira
P.56
opera, preferencialmente, com os dados intensos e com os valores-fluxos; a
segunda, comprometida com distâncias, contornos e orientações,
compatibiliza-se, sobretudo, com a ordem extensa e com os valores-fins.
Entretanto, examinadas internamente, ambas apresentam a articulação
universal extenso/intenso e, como sempre, isso serve para o plano da
expressão e para o plano do conteúdo.
Como estudamos a extensionalidade, do ponto de vista da
tematização, resta reconsiderá-la na face passional de Mania de você. Assim
como a valorização do percurso vai sendo conquistada pelos alongamentos
vocálicos que, nesse caso, se situam em pontos cruciais do encadeamento
tonal (cf. Ex. 8), a valorização do desejo também se nutre de passagens
intensas como: “Meu bem, você me dá água na boca”.
Exemplo 8.
Ora, esses alongamentos não são mais que manifestações intensas da
desaceleração que rege toda essa passagem melódica, definindo o regime
extenso da passionalização. Do mesmo modo, na letra, também temos a
forma expandida do desejo que, providencialmente, foi elevada a título da
canção: “mania de você”.
Se fosse possível quantificar todos os efeitos de ressonância das
dimensões intensas e extensas, da letra e da melodia, propagados ora
P.57
pela tematização, ora pela passionalização, talvez pudéssemos chegar bem
perto de toda a riqueza de sentido acumulada numa composição. Mas, na
verdade, mesmo se tudo isso fosse possível (e não arriscamos qualquer
profecia a respeito), e mesmo dentro dos limites desta aventura teórica que
estabelece os fundamentos para a sua própria veridicção - e, nesse ponto,
lembra muito uma ficção -, ainda outras esferas de exploração sem as
quais sequer contaríamos com uma coerência interna.
III
SILABAÇÃO
...e não nas nossas palavras sílabas longas e sílabas
breves, assim chamadas, porque umas ressoam durante mais
tempo e outras durante menos tempo? Fazei, meu Deus, com
que os homens conheçam por meio deste simples exemplo as
noções comuns das coisas grandes e pequenas.
Santo Agostinho
Saussure vem se sobressaindo, mais uma vez, como grande fundador,
agora das pesquisas que visam recuperar o “tempo” perdido e o “ritmo”
esquecido na condição de simples ornamento poético.
Depois do potencial paradigmático fartamente disseminado nos
estudos lingüísticos do nosso século - e levado a bom termo sobretudo no
plano da expressão -, o mestre de Genebra novamente é convocado em
nome de um enfoque, à primeira vista, incompatível com tudo aquilo que a
lingüística e a semiótica, suas herdeiras, construíram no passado. Hoje
assistimos, com um misto de perplexidade e interesse, à releitura de
Saussure como precursor da nova epistemologia que examina as
propriedades de condução da cadeia sintagmática e a pressuposição do
processo em relação ao sistema. No fundo, é o retomo inevitável dos termos
categoriais, rejeitados por falta de recursos teóricos numa determinada fase
da investigação, para o primeiro plano das preocupações, na tentativa de
solucionar impasses geralmente criados pelas próprias delimitações
conceptuais. A escolha da língua, da forma e do espaço, como lugares
teóricos privilegiados de uma reflexão cientificamente conseqüente, trouxe de
fato muitas vantagens metodológicas e epistemológicas, mas também gerou
um lamentável desconforto toda a vez que o campo de pertinên-
P.60
cia se abria para a fala, a substância e, principalmente, para o tempo.
Sabemos, entretanto, que não se trata de incluir ou deixar de incluir termos
rejeitados no quadro teórico de uma ciência. um caminho a ser percorrido
e preenchido pela imprescindível atividade de formalização, que acaba
conduzindo a pesquisa em direção aos temas deixados de lado.
O próprio Saussure deixou reservado um lugar teórico para a
lingüística da fala mas, rapidamente, revelou sua decisão de considerar os
estudos sobre a “langue” como a atividade lingüística por excelência [NOTA
1]. Mesmo esbarrando freqüentemente em conclusões provenientes de
reflexão sobre a “parole”, apressava-se em distinguir os dois domínios,
tomando sempre a direção da “langue”.
Seu senso de pertinência, no entanto, o mantinha sempre atento aos
trabalhos desenvolvidos pelas ciências vizinhas, sobretudo quando dependia
delas para melhor estabelecer os seus princípios. Assim, mesmo não se
identificando com a atividade dos fonologistas ou dos foneticistas de sua
época, Saussure acabou dedicando um capítulo memorável ao fonema na
cadeia falada, a título de corrigir a rota das pesquisas fonológicas e recuperar
o seu interesse para a teoria lingüística [NOTA 2]. Nesse sentido, além de
lançar a pedra fundamental para uma lingüística rigorosamente científica -
estudada enquanto sistema global (exaustivo), fechado (não-contraditório) e
homogêneo (simples) [NOTA 3], o mestre de Genebra ainda deixou
esboçadas as diretrizes fundamentais para o retomo - em bases formais
evidentemente- à temporalidade expressa na cadeia da fala. Sua teoria sobre
a silabação tomou-se um exemplo de abstração científica do elemento
dinâmico próprio da substância.
A SÍLABA EM SAUSSURE
Pondo-se no lugar dos fonologistas, Saussure denunciou o equívoco
das práticas que se atinham ao som isolado. Este, ao ser retira-
P.61
do de seu contexto fônico, perde todas as características dinâmicas,
tomando-se uma entidade apenas substancial, cujo detalhamento analítico
em nada contribui para os modelos lingüísticos. Era necessário tratar a
fonologia como ciência auxiliar, categorial e fornecedora de conceitos bem
engendrados, da qual se pudesse extrair uma “síntese” suficientemente geral
para o aproveitamento da linguística. A crítica era então dirigida ao “método”
empregado na elaboração dos tratados especializados e, por extensão, ao
campo sonoro delimitado para a investigação.
O estudo dos sons isolados equivale ao estudo das palavras fora do
discurso. Ambos podem ser elaborados mas, certamente, pouco podem
explicar a respeito das funções ou dos sentidos que adquirem quando em
progressão sintagmática. Por isso, chamando a atenção para o método de
abordagem, Saussure estava, na verdade, sugerindo um outro foco de
observação, ou seja, não mais o som atomizado e destacado do contexto mas
a categoria silábica que compreende a relação de, no mínimo, duas unidades
sonoras.
De fato, o alto interesse científico de Saussure sempre se manifestou
pela exigência de um constante aprimoramento metodológico. Mesmo quando
se dirigia à materialidade da fala, como horizonte geral de investigação, o seu
esforço era no sentido de extrair dali uma forma regulada por relações
abstratas. Era esta, na verdade, o seu objeto.
A ciência dos sons não adquire valor enquanto dois ou mais elementos
não se achem implicados numa relação de dependência interna. [NOTA 4]
Não se tratava apenas de constatar que a sílaba é a sonoridade
primeira que emerge da fala. Bem mais que isso, Saussure se interessava
pelo seu aspecto complexo - compreendendo dois ou mais sons - e
consecutivo. Do primeiro retirava a noção relacional; do segundo, a noção de
regra. De ambos, a dependência interna entre os elementos da cadeia.
Assim, ao lado da fonologia das espécies - estudo dos sons isolados e de
suas posições articulatórias - Saussure
P.62
propunha uma fonologia dos grupos, com vocação universal, onde os
elementos sonoros se condicionam mutuamente num jogo de preparação
mecânica e acústica dos órgãos para a emissão do som subseqüente e de
presença inevitável dos resíduos das articulações anteriores no som recém-
emitido.
O parâmetro para proceder aos estudos sobre essas categorias que
ocupam, simultaneamente, um “lugar” e um “tempo” na cadeia falada é a
sonoridade. Saussure articulou-a em duas tendências gradativas: sons que se
abrem e sons que se fecham [NOTA 5]. No primeiro caso, o movimento é
explosivo. No segundo, implosivo. A maior parte dos fonemas pode ocupar
tanto a posição de abertura como a de fechamento, dependendo apenas de
seu contexto sonoro. Assim, um p que precede um a é explosivo ( p
<
a ), mas
um p que precede um outro p é necessariamente implosivo ( p>p ). Do
mesmo modo, um i que precede um k é implosivo ( i>k ) enquanto que se
precedesse um Ɛ seria explosivo (i
<
ɛ). Nasce daí a função de “soante”, por
exemplo o i seguido de k, e a função de “consoante”, como é o caso do i
anterior a S, em fiel, por exemplo [NOTA 6].
Este enfoque funcional que Saussure deu à sílaba pode ser
considerado decisivo tanto na reflexão posterior de Hjelmslev como nas
últimas propostas semióticas de Zilberberg.
A SÍLABA EM HJELMSLEV
O sistematizador dinamarquês, que sempre preconizou a
pressuposição da lingüística pela fonética [NOTA 7], não poderia deixar de
reforçar o aspecto categorial e abstrato da noção de sílaba esvaziando-a de
suas marcas fônicas. Aqui cabem algumas observações.
Nos termos do Cours, o conceito de sílaba é estabelecido em oposição
às pesquisas dos foneticistas, sobretudo os ingleses, que praticavam uma
descrição minuciosa dos fonemas isolados, dando con-
P.63
ta de todos os seus mecanismos articulatórios e de suas variações acústicas,
numa operação que Saussure classificava como excessivamente “abstrata”.
Por isso, a nosso ver, chamava a atenção para o prisma “concreto” de sua
abordagem (“pela primeira vez, aparecem elementos concretos,
indecomponíveis...” [NOTA 8]) e, em seguida, explicava que um P estudado
isoladamente era uma “unidade abstrata” compreendendo duas execuções:
p> e p<. O seu ponto de vista era correto na exata medida em que se opunha
àqueles foneticistas. Entretanto, se examinamos essas idéias, através do
instrumental teórico deixado pela glossemática por exemplo, o enfoque se
modifica. A contribuição de Saussure, com sua teoria da silabação, não está
apenas no fonema que se abre ou que se fecha, e em suas conseqüências,
mas no estabelecimento da categoria abertura (de sonoridade) que, como tal,
novamente constitui abstração, podendo ser articulada em dois funtivos:
abertura crescente /vs/ abertura decrescente (essas “possibilidades
funcionais” são sugeridas por Zilberberg [NOTA 9]). Portanto, ao destacar p>
e p
<
como unidades concretas - que, segundo o mestre, se apresentam mais
diretamente que os sons que as compõem - está, na verdade, elaborando um
novo recorte da realidade sonora a partir de novos parâmetros de pertinência
teórica.
Compreende-se, então, porque um saussuriano convicto como
Hjelmslev adota apenas o sentido categorial atribuído à sílaba (“classe
munida de função”) e trata de expandi-lo não apenas no interior do plano da
expressão como também ao plano do conteúdo, sem deixar de sugerir sua
transferência, como noção operacional, a outros sistemas semióticos [NOTA
10].
No plano da expressão, ou no domínio cenemático proposto pela
glossemática, a definição de sílaba pressupõe a de acento (cuja unidade
mínima central é a vogal), da qual decorre a noção de tema acentual, que
compreende a vogal e a parte periférica - a consoante - ligadas por uma
função [NOTA 11]. Se o propósito de formalização de Hjelmslev passa um
tanto ao largo de aspectos importantes do enfo-
P.64
que saussuriano, como por exemplo a gradação da sonoridade que se abre e
que se fecha ritmicamente, há pelo menos duas aquisições dignas de nota no
modelo dinamarquês:
a. instituição definitiva da sílaba como componente categorial abstrato,
operando regras de pressuposição entre cenemas centrais (vogais) e
cenemas periféricos (consoantes) a partir do conceito de acento;
b. proposta de uma versão extensa do acento na forma da modulação
entoativa; de fato, um tema de modulação que desenvolve função paralela
ao tema acentual, que em dimensão mais dilatada na cadeia prosódica do
discurso. A modulação também prevê relações internas de pressuposição
onde, por exemplo, as curvas ascendentes pressupõem a inflexão
descendente identificada com a resposta afirmativa.
Apostando sempre numa isomorfia conceptual entre plano da
expressão e plano do conteúdo, Hjelmslev estende essas noções
cenemáticas originárias da silabação, a saber os constituintes centrais (as
vogais) e os constituintes periféricos (as consoantes), para o plano
pleremático (da forma do conteúdo), estabelecendo igualmente os pleremas
centrais (os radicais) e os pleremas periféricos (as derivações). Além disso,
de acordo com a dimensão considerada, intensa ou extensa, Hjelmslev ainda
propõe a correspondência entre os prosodemas acentuais e modulatórios do
primeiro plano e os morfemas intensos (ex: comparação, número, gênero,
artigo) e extensos (ex: pessoa, voz, ênfase, aspecto, tempo, modo) do plano
do conteúdo [NOTA 12].
O esforço de Hjelmslev no sentido de fazer da sílaba um exemplo de
categoria formal, da ordem dos realizáveis lingüísticos [NOTA 13] -
separando-a tanto da manifestação fônica como da significação lexicológica -
foi suficiente para evidenciar sua vocação semiótica, não apenas nas
sugestões, restritas de seu estudo de 1939, onde constata a possível
presença da sílaba na escrita, nos gestos e nos si-
P.65
nais [NOTA 14], mas no quadro geral dos conceitos dedutivos que o grande
lingüista estabelece para uma futura teoria geral da linguagem.
A SÍLABA EM ZILBERBERG
Apoiando-se justamente na noção dinamarquesa - oriunda de
Saussure - de sílaba, que reserva para esta o estatuto de categoria,
Zilberberg decifra, a nosso ver, as coordenadas teóricas que revelam a
passagem da dimensão lingüística para a dimensão semiótica.
O núcleo de sustentação das propostas deste autor está na definição
de categoria como “classe munida de função”. Classe determina uma posição
hierárquica num conjunto de relações. Função, na axiomática de
Copenhague, é a capacidade que um elemento tem de interagir com os
demais na cadeia sintagmática. Classe e função constituem, assim,
oscilações da noção de categoria que ora se concentra e ora se expande
numa “intricação do paradigmático (morfológico) e do sintagmático (sintáxico)
[NOTA 15]. Nesse sentido, tanto a sílaba quanto o morfema preenchem as
condições categoriais identificadas com essa “força de relação” tão valorizada
por Hjelmslev:
...O segredo do mecanismo gramatical reside no jogo combinado entre
categorias morfológicas que contraem relações “sintáxicas (por exemplo,
preposições e casos) e unidades sintagmáticas que contraem correlações e
formam categorias... [NOTA 16]
Tudo ocorre como se Hjelmslev reencontrasse o ponto de partida de
Saussure, preenchendo as etapas teóricas que este havia deixado apenas
sugeridas.
vimos que Saussure partiu de observações empíricas sobre os
fenômenos acústicos, chamando de “concretos” os elementos que ocupavam
um “lugar” e representavam um “tempo” na “cadeia
P.66
falada”. vimos, também, que essa maneira didática de expor a teoria, a
partir da substância, não chegou a dissimular o pressuposto categorial que
presidia sua reflexão: abertura de sonoridade, crescente ou decrescente. De
qualquer maneira, o esforço de captar as leis do movimento seqüencial, como
uma eterna perseguição do termo ausente - abertura crescente > abertura
decrescente > abertura crescente >... - fez da silabação saussuriana um
exemplo modelar da ação do ritmo sobre o tempo. Ou, para avançarmos na
conceptualização de Zilberberg [NOTA 17], o gesto de Saussure em direção à
fala ilustra a aplicação do tempo rítmico sobre o tempo cronológico, da
iteração sobre a singularidade, da lei sobre a sucessão. Suas explicações,
tentando regulamentar a “impressão de continuidade” transmitida pela cadeia
falada, abriram campo para a abordagem das gradações e para introduzir - ao
lado do princípio de exclusão, o caro ao mestre de Genebra - o princípio de
participação.
Nesse sentido, Zilberberg destaca as duas noções centrais da teoria da
silabação que, articulando limites e gradações, produzem os efeitos de
estrutura aspectual: a “fronteira silábica” e o “ponto vocálico” [NOTA 18]. A
primeira decorre da passagem da implosão à explosão ( >< ), enquanto a
outra noção se processa na passagem da explosão, ou do silêncio, à
implosão ( <> , 0 >). A fronteira silábica responde, assim, pelas demarcações
(incoativa e terminativa) que, por sua vez, se opõem às segmentações
(duratividades) referentes ao ponto vocálico. [NOTA 19]
Em outras palavras, a sistematização de Saussure começa por testar a
adequação de seus todos - e nesse aspecto podemos dizer que se
aproxima da substância da fala - e acaba se aplicando na coerência e na
simplicidade do seu modelo, onde tudo decorre da “consecução das
implosões e das explosões na cadeia”. [NOTA 20]
Hjelmslev, de sua parte, reconhece a dimensão categórica e
abstrata do conceito de sílaba. Esta, “enquanto unidade estrutural” [NOTA
21],
P.67
exerce um papel definido na hierarquia dedutiva de suas noções lingüísticas.
De um lado, a sílaba pressupõe o acento. O acento é um prosodema
intenso que se opõe, ainda no plano da expressão, à modulação (prosodema
extenso). No plano do conteúdo, o acento identifica-se aos morfemas
nominais (caso, gênero, artigo...) que, por sua vez, se opõem aos morfemas
verbais (pessoa, tempo, aspecto, modo...) de valor extenso.
De outro lado, a sílaba é pressuposta pelas noções de vogal e
consoante que representam, respectivamente, seus constituintes central e
periférico. Nesse nível conceptual, a categoria da sílaba ocupa, no plano da
expressão, a mesma posição do nome (com seu radical e suas derivações)
no plano do conteúdo.
A ocupação deste lugar preciso no paradigma teórico de Hjelmslev
se consuma quando consideramos também a força sintáxica de seu
pressuposto e de seus termos constituintes. No primeiro caso, os temas
acentuais determinam-se mutuamente fundando extensões maiores definidas
por uma direção. No segundo, temos necessariamente uma função (recção)
entre parte central (vogal) e parte periférica (consoante), estabelecendo uma
lei mínima para a manifestação do continuam fônico. Ambos apresentam a
face dinâmica do conceito hjelmsleviano de estrutura.
Operando declaradamente com formas puras, Hjelmslev termina o seu
artigo sobre a sílaba apontando para uma descrição da substância (da
pronúncia ou da escrita) como medida complementar, decorrente da evolução
das deduções categoriais. Mais importante que isso, porém, é o seu gesto de
apreensão da vitalidade própria da cadeia sonora, equacionando essa
dinâmica no cruzamento do morfológico com o sintáxico representado pela
categoria.
E chegamos assim à proposição formulada de passagem por
Hjelmslev, mas pinçada por Zilberberg com toda a acuidade que o
caracteriza: “força de relação”. Força, para o semioticista, pode representar a
progressão contínua do elemento fórico, enquanto relação permanece como
estrutura do elemento figural.
E para entendermos o alcance humano desta constatação teórica
(aparentemente apenas técnica), nada mais eloqüente que as pa-
P.68
lavras de Edward Lopes, outro semioticista, que sem se referir aos textos aqui
comentados, conclui:
Passando o tempo, viria a semiótica evoluir a ponto de aceitar um dia,
na medida em que passou a estudar as paixões, que são forças, a inclusão
de um componente energético, em cujo bojo ingressam na disciplina os dados
do movimento e da temporalização, predecessores, quem sabe, do futuro
estabelecimento nela de uma (até pouco impensável) “espiritualização”.
[NOTA 22]
Partindo do que chamou de dimensão concreta da sílaba, Saussure
tinha como objeto a categorização. Colhendo os resultados desses estudos e,
portanto, tratando a sílaba como categoria conceptual, Hjelmslev tinha
como objeto a substância lato sensu. Não apenas a materialidade sonora
produzida pela fala mas todas as manifestações dos mais diversos sistemas
semióticos, compreendendo sempre os respectivos planos de expressão e de
conteúdo. A orientação oposta adotada por essas trajetórias de pesquisa
respondia, evidentemente, a indagações históricas diferentes no campo da
linguística. Saussure sintetizava as conquistas empíricas da gramática
comparada enquanto Hjelmslev analisava o alcance epistemológico das
idéias lançadas pelo autor do Cours. Ambos, no entanto, compartilhavam
princípios fundamentais do pensamento teórico que, de um modo ou de outro,
acabou mobilizando grande parte das ciências humanas deste século. Um
dos centros motores deste pensamento está na possibilidade de formalização
científica da linguagem, de tal maneira que os conceitos resultantes se
estruturem mutuamente, escorados por coerência interna, e se desvinculem
de qualquer comprometimento substancial. E a categoria mais representativa,
seguramente por condensar as noções de lugar morfológico e força
sintagmática, é, sem dúvida, a silábica.
Da sílaba de Saussure, definida como consecução das implosões e
das explosões na cadeia, Zilberberg retira seu modelo rítmico. Da sílaba de
Hjelmslev, transformada em categoria geral a ser articulada nos dois planos
da linguagem, o semioticista retira uma interessante equivalência entre ritmo
e sintaxe, respondendo, respectivamen-
P.69
te, pelo plano da expressão e pelo plano do conteúdo. Na qualidade de novas
categorias, porém, tanto o ritmo quanto a sintaxe podem ser operados em
ambos os planos, dependendo do enfoque adotado. Assim, uma modulação
entoativa rege sintaxicamente uma sequência de acentos, da mesma forma
que o tormento causado pela perda de um objeto de valor e a alegria de sua
recuperação [NOTA 23] perfazem um ritmo narrativo.
Portanto, as correspondências entre expressão e conteúdo, que
Hjelmslev exemplificava, no máximo, em vel de pequenos enunciados -
embora previsse teoricamente um alcance textual -, encontram em Zilberberg
um terreno fecundo de exploração, pois podem ser processadas nos diversos
estratos do percurso gerativo do sentido. A passagem de uma implosão à
explosão (> < ) pode, então, corresponder, no plano figurativo, ao efeito de
ocorrência (= efeito vocálico); no plano narrativo, à espera; no plano modal, à
instauração do /querer/; e ainda, num plano missivo, à presença de valores
emissivos. [NOTA 24]
Mas o modelo realmente fecundo que Zilberberg constrói, a partir da
teoria da silabação, insere o ritmo num quadro amplo de investigação sobre o
tempo. Dentro de sua ótica, a silabação é uma poiétique [NOTA 25] da qual
se depreende uma função por excelência: a expansão. Esta,
conseqüentemente, articula-se em dois funtivos responsáveis pelo progresso
sintagmático: abertura crescente /vs/ abertura decrescente (extensão /vs/
concentração). [NOTA 26]
Para explicar todo esse processo, o autor abandona a idéia de um
tempo compacto, propondo dimensões que não apenas discretizam esse
tempo, como também o estruturam em termos de determinações sintáxicas.
Importante que essas dimensões vêm organizadas em categorias, intensas
ou extensas, prefigurando ordens de sobremodalização.
A categoria intensa compreende as dimensões cronológica e tmica.
Articulando a categoria extensa, estão as dimensões mnésica
P.70
e cinemática. A incidência das últimas sobre as primeiras explica, em boa
medida, a atuação da função expansiva própria da silabação.
Enquanto o tempo cronológico responde pelo fluxo sucessivo do
devenir, transformando a continuidade em descontinuidade, numa ordem
histórica onde imperam as noções de antes e depois, o tempo rítmico opera,
simultaneamente, em função da neutralização do sucessivo e da recuperação
dos intervalos desprezados na primeira dimensão. Se o primeiro representa a
fluência do tempo passando, o segundo impõe a consistência da lei e a
homogeneização dos valores.
Por trás da oposição entre essas duas dimensões temporais impera
ainda o princípio da divisibilidade que caracteriza o tempo cronológico como
portador das relações exclusivas e o tempo rítmico como portador das
relações participativas. Das primeiras extraímos as separações ou as
polarizações, próprias dos pontos limítrofes e das balizas de demarcação, que
fazem da sucessão uma abertura infinita ao antes do antes... e ao depois do
depois... [NOTA 27]. Das relações participativas extraímos a tendência à
simultaneidade produzida por leis que instauram as identificações
sintagmáticas e, conseqüentemente, as alternâncias rítmicas. Em outras
palavras, o tratamento rítmico encerra o elemento sucessivo numa ordenação
tal que reduz consideravelmente o seu aspecto irreversível e imprevisível.
Dizer que esses confrontos temporais se processam no interior de uma
categorização intensa é o mesmo que descrever os fenômenos e as regras
que conduzem as relações de vizinhança entre os elementos de uma cadeia.
Para uma abordagem da expansão do tempo nos contornos gerais traçados
pelo texto, levando em conta sobretudo as relações à distância, Zilberberg
formula um interessante modelo sintáxico onde essas categorias intensas
surgem necessariamente sobremodalizadas pelas categorias extensas -
dimensões mnésica e cinemática - e, dessa forma, a organização temporal do
sentido fica sendo sempre o resultado de uma combinatória complexa de
dimensões.
Da incidência do tempo mnésico sobre o tempo cronológico, por
exemplo, decorre a retenção do processo num sistema de relações
P.71
associativas, em que a sucessão toma um caráter bem mais elástico - na
forma de passado/presente/futuro - mas, ao mesmo tempo, se traduz em
permanência e simultaneidade que todo o devenir se submete ao controle
mnésico da lembrança e da espera (como memória do futuro). [NOTA 28] Se
a tendência do tempo cronológico é converter, incessantemente, o presente
em passado irrecuperável, o tempo mnésico rebate esta força com uma
constante presentificação do passado. Assim, em relação à evolução
ininterrupta do cronológico, o tempo mnésico proporciona uma abertura
decrescente que detém, de alguma forma, sua fluência. Ambos os tempos,
entretanto, compartilham a divisibilidade e o princípio das relações exclusivas:
antes / depois, com predominância da progressão sucessiva no caso do
cronológico; passado / presente / futuro, com predominância da
simultaneidade, no caso do mnésico.
Ao contrário desse efeito implosivo, a combinatório tempo mnésico /
tempo rítmico provoca uma abertura crescente, na medida em que expande a
lei para todo o percurso sintagmático. Equivale à instauração do ritmo à
distância, ou, em outras palavras, equivale à abertura da célula rítmica para a
espera. Tudo se resume, segundo Zilberberg, em demonstrar como o tempo
rítmico se disjunta do tempo cronológico [NOTA 29] - diante do qual mantém
uma função neutralizadora (de retomo a zero) e, portanto, de fechamento
ainda na ordem intensa - e se conjunta ao tempo mnésico para realizar
plenamente a expansão.
O ritmo, na qualidade de algo que precisa ser mantido para assegurar
a coesão do sentido, desempenha um papel conservador no interior do
percurso sintagmático. Ao instaurar a lei entre os elementos melódicos, o
tempo rítmico neutraliza, até certo ponto, a inexorabilidade do tempo
cronológico, fazendo coexistir impressões de simultaneidade ao lado de
impressões de sucessividade. A lei, aqui, equivale a um radical que poderá
ser expandido “nominalmente”, em forma de relações locais, vizinhas, ou
“verbalmente”, em forma de relações amplas, à distância. Do ponto de vista
intenso, de
P.72
construção de uma base ou de um radical, o ritmo apresenta certa auto-
suficiência: sua sintaxe, erigida como “pergunta” (valores subjetais) e
“respostas” (valores objetais), constitui, por si só, uma predicação [NOTA 30].
Do ponto de vista extenso, porém, essa “base” rítmica vem sempre
modalizada pelos tempos mnésico e cinemático, produzindo, segundo
equação fundamental de Zilberberg, a forma mais completa da expansão
silábica.
Com a modalização do tempo mnésico sobre o tempo cronológico,
temos a expansão da abertura decrescente pelo processo sintagmático,
realizando o que o autor chama de concentração (expansão da pequeneza).
Inversamente, com a modalização do tempo mnésico sobre o tempo rítmico,
temos a expansão da abertura crescente, denominada extensão (expansão
da grandeza) [NOTA 31]. Tais categorias, entretanto, já estão impregnadas de
funções cinemáticas uma vez que “concentração” constitui, no fundo, uma luta
contra a dispersão sonora provocada pela velocidade do tempo cronológico e
“extensão”, na medida em que expande a lei, expande também a gradação e
a ordenação responsáveis pela desaceleração do processo. Não é por outra
razão que, ao vir determinado diretamente pelo tempo cinemático, tanto no
modo da aceleração como no modo da desaceleração, o tempo rítmico
também pode ser definido pelos mesmos conceitos de “concentração” e
“extensão”.
Para os estudos da temporalidade na música e, particularmente, na
canção, a sobremodalização do tempo rítmico pelos tempos mnésico e
cinemático tem, a nosso ver, um interesse especial. O funcionamento
melódico, em contrapartida, exibe um verdadeiro roteiro no plano da
expressão daquilo que a semiótica de hoje estabelece como relação sica
entre descontínuo e contínuo no plano do conteúdo. Nada mais promissor,
portanto, que tentar, a partir de agora, construir toda a recursividade
necessária para a adaptação da temporalidade, contida nos processos de
concentração e de extensão, ao fenômeno melódico.
P.73
CONCENTRAÇÃO MELÓDICA
A noção de concentração melódica pressupõe que, nas instâncias
fundamentais do percurso gerativo da significação (a ser estudado no próximo
capítulo), a junção sub-objetal esteja fraturada em virtude de uma apreensão
descontínua da foria pelo sujeito da enunciação. O próprio sentido de
concentração - definido por forças de convergência a um centro - acusa um
movimento de reparação de um conteúdo (ou de um tema) que se dispersou,
suspendendo os elos sub-objetais.
A manifestação mais tangível dessa força de dispersão é a celeridade
do continuum melódico e a moderação no uso do espaço de tessitura, como
que destacando a importância da progressão horizontal. Esta, porém, não se
caracteriza como um percurso, que conduz o programa melódico à sua meta,
e sim como uma sucessão de blocos, com valor paradigmático, que se
integram por ostensiva similaridade ou se opõem por flagrantes contrastes.
De qualquer forma, nessas transições descontínuas está o segundo fator de
celeridade que provoca a resposta do procedimento inverso de contenção dos
“saltos” sucessivos.
Nesses termos, a concentração melódica, como expansão geral, define
um comportamento típico das canções mais velozes que dependem
profundamente da atuação mnésica, como controle da sucessividade
cronológica, para conter os possíveis excessos dispersivos.
Começamos, assim, por precisar a determinação do tempo mnésico
sobre uma linha musical que pode ser identificada como linha do canto. Tudo
indica que, ao reforçar o tempo rítmico, expandindo sua lei por toda a
extensão melódica, o tempo mnésico praticamente anula o que de fluência
imprevisível no tempo cronológico, traduzindo-o num conjunto de relações
associativas. Ao mesmo tempo, porém, contribui para a recuperação do
processo sucessivo, numa ordem extensa, uma vez que, ao lado das regras
de atração que articulam as relações associativas, o tempo mnésico expande
também as leis de predicação que exigem a desigualdade complementar na
constituição da cadeia sintagmática. De fato, como as relações associativas
não podem ser pensadas apenas no contexto paradigmáti-
P.74
co que lhes propôs Saussure, sua definição deve ser revista à luz das regras
que organizam os elementos na cadeia global. Expandir a lei pode significar
produção de coerência articulando desigualdades e identidades, que o
tempo rítmico se caracteriza pela alternância de modos operatórios.
As relações associativas se constroem por identidades mas dependem
das desigualdades para completar o sentido da linha melódica. E, ao transitar
pelas desigualdades, nem sempre essas identidades preservam todas as
suas características. Sofrem, com freqüência, transformações que vão desde
os habituais desvios de contorno no âmbito da altura, aas modificações de
parte de suas células rítmicas. Mas, de qualquer forma, as identidades
subsistem desde que haja alguma dimensão melódica cuja recorrência
permita a associação.
Portanto, em consonância com o modelo saussuriano, que apresenta
um elemento comum (um radical, um sufixo, um significado ou mesmo uma
sonoridade) em meio a outros totalmente distintos numa constelação de
palavras, a série mnemônica melódica também se sustenta na recorrência de
algum parâmetro - em geral as figuras de duração - ao lado de flagrantes
modificações das unidades. Por outro lado, diferentemente do modelo do
grande lingüista, que prevê uma associação descontínua e direta entre os
termos, pois que realizada aos saltos no domínio da mente, as identidades e
as desigualdades melódicas surgem como produtos de um percurso
sintagmático que expõe suas relações in praesentia. Desse modo, cada
unidade da série deixa seu rastro de evolução contínua, dando indícios das
direções que buscam ora as identidades, ora as desigualdades.
Por isso tudo, ao examinarmos a atuação do tempo mnésico sobre o
rítmico, estamos, de certo modo, considerando o aspecto sucessivo do
tempo cronológico, que sob o controle das predicações sintáxicas ou, se
preferirmos, das lembranças e das esperas temporais. Grosso modo,
podemos dizer que o tempo cronológico permanece no interior do tempo
rítmico nas relações de desigualdade que respondem pelo progresso
sintagmático. Se, na ordem intensa, o tempo rítmico neutraliza a sucessão do
tempo cronológico, convertendo sua fluência desimpedida em leis de
alternação - e, nessa operação de oclusão, é auxiliado pela atuação do tempo
mnésico que também traduz em permanência a inexorabilidade do tempo
cronológi-
P.75
co - na ordem extensa, em contato com o tempo mnésico, o ritmo absorve as
desigualdades e as identidades, como elementos indispensáveis ao seu
funcionamento sintáxico, e projeta-os, sucessiva ou alternadamente, em
função de um esquema de expectativas.
O tempo mnésico sobre o tempo rítmico responde, portanto, pela
expansão de inúmeras leis melódicas que garantem a homogeneidade e a
inteligibilidade dos contornos da canção. A lei geral, porém, aquela
pressuposta pelas determinações específicas criadas no ato de composição
de cada obra, se resume, a nosso ver, no controle e na boa distribuição das
relações de identidade e de desigualdade. Ora, tal controle supõe, como
dissemos, um conflito entre a escolha primordial do sujeito - recaindo, nesse
caso, sobre o andamento acelerado - e o seu compromisso com um programa
melódico que lhe garanta uma continuidade ou uma duração mínima para que
desfrute a conjunção com o objeto. Diremos, então, que o progresso melódico
das canções mais velozes é controlado pelo movimento de concentração,
cujo funcionamento básico resume-se na conversão de um processo de
“evolução” ao elemento novo em “involução” ao elemento conhecido.
Evolução e involução, no sentido que estamos adotando, explicam, em
grande parte, o comportamento periódico utilizado para estruturar as canções.
O retorno, de tempos em tempos, do mesmo material melódico pressupõe
que os intervalos sejam preenchidos por material diferente. Enquanto o
primeiro opera em função da involução em tomo do núcleo, o segundo aponta
para a necessidade de se comprometer com o percurso, instaurando
direcionalidades. De acordo com o primado das funções subjetais e objetais
na instauração do sentido [NOTA 32], a involução descreve os movimentos
melódicos que tendem a sincretizar as duas funções ao passo que a evolução
resulta das forças antagonistas que acabam por cindir o núcleo e promover a
busca.
Nesse momento, não podemos deixar de pensar no papel da música
na reflexão semiótica, principalmente quando se trata de oferecer critérios
bem sugestivos para a articulação do imaginário do su-
P.76
jeito epistemológico. [NOTA 33] Assim, analisamos o processo de involução
como um simulacro, construído no plano da expressão, do retorno ao proto-
actante indiferenciado, à fusão original, na medida em que seu curso prima
por evitar a orientação. [NOTA 34] A evolução melódica, por sua vez decorre
da cisão do núcleo em, pelo menos, dois motivos discretos, instaurando a
direcionalidade - de um e de outro - e transformando a foria em devenir.
Nesse sentido, não podemos deixar de pensar ainda que evolução e
involução constroem novamente, agora no interior da concentração, a
estrutura básica da expansão silábica e que este modelo - que está na origem
da reflexão sobre os dois planos da linguagem [NOTA 35]
- contempla com
ampla motivação as instâncias semióticas reservadas às modulações
tensivas. De fato, quando a semiótica de hoje constata que as paixões
acompanham todo o discurso, promovendo, periodicamente, verdadeiros
mergulhos numa zona de tensividade fórica indiferenciada [NOTA 36], onde
os valores subjetais e objetais se confundem e que, por outro lado, neste
mesmo nível profundo, surgem as “tensões favoráveis à cisão” [NOTA 37] e,
com elas, a orientação, estamos diante de um modelo rítmico muito próximo,
do ponto de vista conceptual, do que vimos descrevendo no âmbito da
melodia. Em ambos os casos, a apreensão da foria se dá ora como involução,
ora como evolução.
Esses dois modos de expansão realizam uma interdependência à
maneira do modelo silábico: a presença de um alimenta a expectativa do
outro. Quanto mais aumenta a abertura silábica mais próxima se encontra da
tendência decrescente e vice-versa. Do mesmo modo, a imagem da “vibração
do sentido”, no plano da tensividade fórica, prevê uma oscilação entre fusão e
cisão - que num percurso evolutivo se traduz por fusão / cisão / reunião -
como manifestação de um sentir mínimo que hesita em infletir a foria [NOTA
38].
P.77
Pois a melodia, a nosso ver, também pratica a expansão no quadro
oscilatório proposto pela silabação e, talvez, os princípios que regem a tão
decantada quanto desconhecida noção de periodicidade possam ser agora ao
menos depreendidos. Ao refrear a atuação das desigualdades (vestígios do
tempo cronológico), investindo nas coincidências dos acentos e na tendência
reiterativa dos motivos, o tempo mnésico expande o tempo rítmico sob a
forma da involução. Ao suspender as identidades em função da desigualdade
complementar que, afinal, sentido (direção) à melodia e restaura a
sucessividade numa ordem extensa, o tempo mnésico expande o tempo
rítmico sob a forma da evolução.
A força de involução melódica, que se manifesta de forma intensa ao
longo da canção, corresponde ao nosso conceito - mencionado no capítulo
anterior - de tematização. Por meio desse processo, formam-se núcleos
localizados, fundados na recorrência, que contribuem diretamente para a
fixação mnésica das obras. A manifestação extensa desta força de involução
é o refrão, núcleo amplo, também fundado na recorrência, de onde saem e
para onde convergem todas as outras partes de uma composição.
A força de evolução tem como forma intensa o desdobramento que, a
todo instante, fratura o cleo temático em função do devenir propriamente
musical. No plano extenso, a evolução melódica pode ser ilustrada com a
tradicional noção de segunda parte (que se desdobra, por vezes, em terceira,
quarta etc.), a responsável pela resolução sintagmática da canção popular.
[NOTA 39]
concentração
forma intensa
forma extensa
involução
tematização
refrão
evolução
desdobramento
segunda parte
P.78
Se a tematização e o refrão participam da mesma tendência centrípeta
da involução melódica, não nada que restrinja as duas formas ao mesmo
campo de ocorrência. Podemos ter tematização no refrão e/ou na segunda
parte. Do mesmo modo, o desdobramento, que compartilha com a segunda
parte a força centrífuga, também pode comparecer em qualquer das etapas
da canção. Onde quer que ocorra, a tematização reforça os valores-fluxos
transportados na batida do acompanhamento enquanto que o desdobramento
se vale dos valores-fins conduzidos pela harmonia.
A tematização e o refrão, dentro de suas respectivas dimensões,
respondem pela involução silábica resultante da determinação do tempo
mnésico sobre o tempo rítmico. O desdobramento e a segunda parte
respondem pela evolução e decorrem da mesma sobredeterminação. Repetir
um refrão é confirmar um núcleo melódico. Repetir mais e mais é criar uma
expectativa centrífuga que convoca a evolução, nem que seja apenas para
valorizar um retorno subseqüente ao núcleo.
Assim como a abertura da sonoridade silábica pode decrescer apenas
um pouco, até o nível de uma semi-vogal ou de um fonema lateral por
exemplo, ou, então, decrescer radicalmente até a barreira produzida por um
oclusivo surdo, um refrão pode ter uma estrutura interna menos ou mais
fechada. Em outras palavras, um refrão, sem perder suas propriedades
centrípetas, pode conter, internamente, uma tendência ao desdobramento ou
uma tendência à tematização. Assim, também, uma segunda parte concorre à
abertura silábica com qualquer uma das formas intensas. As funções de
evolução e de involução não dependem da estruturação interna do refrão nem
da segunda parte mas da relação de oposição que estes mantêm entre si.
De resto, convém frisar que nem sempre a noção de refrão - e,
conseqüentemente, a de segunda parte - define-se apenas pelo esquema de
repetição e alternação rítmico-melódico, sob a influência do tempo mnésico.
Muitas vezes, um refrão vem especificado por variações do tempo cinemático
(aceleração ou desaceleração) e, quase sempre, se resolve
definitivamente quando adquire uma relação plena ou parcialmente
cristalizada com a letra.
P.79
- CONVERSA DE BOTEQUIM
Qualquer aficionado do cancioneiro popular sabe distinguir um refrão
de uma segunda parte baseando-se apenas no contraste entre ambos. Nem
sempre, entretanto, as razões dessa apreensão intuitiva vêm estampadas nas
repetições ou nas desigualdades melódicas a partir de recursos estritamente
musicais. Nesse sentido, Conversa de botequim apresenta algumas
peculiaridades que chegam bem a propósito.
Exemplo 9.
1ª parte (refrão)
P.80
P.81
2ª parte
P.82
Em primeiro lugar, essa composição confirma a independência total
entre a forma intensa e a forma extensa tanto no interior da involução como
no interior da evolução. O material melódico dos quatro primeiros segmentos,
reconhecidos tradicionalmente como refrão, apresenta uma estrutura interna
calcada no desdobramento dos contornos. Esse gênero de involução
melódica conserva um grau mínimo de oclusão silábica, ou seja, a
periodicidade só se concretiza a partir de unidades maiores (estróficas) -
quando a linha melódica reencontra o seu ponto de partida (“fecha a porta da
direita...”) e refaz, nesse caso com outra letra, a trajetória -, que suas
células internas, distintas entre si, estabelecem considerável distância entre
os elementos recorrentes.
A desigualdade entre as lulas melódicas instaura automaticamente
uma relação de dependência entre elas, atrelando o seu sentido à exposição
completa de todo o trecho (neste caso, os dois primeiros segmentos). Não há
o que poderiamos chamar de núcleo dentro do núcleo, ou seja, zonas de
convergência que caracterizariam uma tematização no interior do refrão.
Todas as células têm o mesmo valor e todas respondem pela completude da
unidade maior que é o próprio refrão.
Essa liberdade de inflexão melódica, cuja origem enunciativa
examinaremos no capítulo VI, caracteriza-se por manter o canto serpeando
em torno do pulso e dos ataques do acompanhamento sem, contudo, entrar
em fase perfeita com eles. E, quanto mais se des-
P.83
vincula da centralidade e regularidade impostas pelos valores-fluxos
investidos na batida da base instrumental, mais a melodia se compromete
com o núcleo tonal e com os valores-fins conduzidos pelo encadeamento
harmônico. Sem papel específico na sustentação do pulso, a involução, nesse
caso, compõe o seu núcleo com a tonalidade, criando verdadeiros “morfemas”
melódicos para engatar a frase em sua própria recorrência. Assim, a diferença
de perfil, no final dos segmentos 2 e 4 (cf. Ex. 10), se deve, sobretudo, a um
ajuste harmônico, onde o trecho que cobre “um guardanapo / e um copo
d’água bem gelada”, situado sobre uma região de dominante, eleva-se para
anunciar o reinicio da frase, enquanto que o fragmento que cobre “...freguês
do lado / qual foi o resultado do futebol” perfaz uma descendência conclusiva
para acompanhar a volta do tom e o encerramento do material melódico.
Exemplo 10.
Note-se que a terminação do segundo segmento leva em si o ápice da
força centrípeta, não tanto pelas funções harmônicas de dominante, mas,
sobretudo, por utilizar a “chamada” do tom como expediente para a
recorrência. A terminação do quarto segmento, de maneira complementar,
responde pela força centrífuga na medida em que confirma, com a
descendência melódica e o retorno ao tom,
P.84
o desfecho das recorrências e, portanto, o encerramento do processo de
oclusão. De acordo com as regras silábicas, o rmino da oclusão coincide
necessariamente com o início do processo inverso de abertura. Das leis
rítmicas expandidas pelo tempo mnésico destaca-se, então, a evolução que,
no fundo, é a incorporação das forças antagonistas pouco afeitas às
identidades. Tal conflito se traduz sintagmaticamente em assimilação de um
novo percurso que retarda um pouco o reencontro dos elementos idênticos e
impõe uma orientação mínima, um sentido de busca, sem a qual a canção
viraria um rito de celebração de valores plenamente adquiridos.
Tudo ocorre como se a repetição do refrão correspondesse à expansão
do próprio paradigma e a abertura oferecida pela segunda parte assumisse de
vez a rota sintagmática cuja marca é a relação e...e..., ou seja, a combinação
de classes diferentes. A regulamentação natural, que instituiu duas partes
para a canção, fundamentou-se, involuntariamente, num princípio rítmico-
silábico: involução (formação do núcleo-refrão) e evolução (segunda parte).
A segunda parte de Conversa de Botequim apresenta alguns aspectos
curiosos, dignos de nota.
De um lado, os seus quatro segmentos mantêm o compromisso tonal
(agora firmado com a subdominante), reforçado, a exemplo da primeira parte,
pelos “morfemas” melódicos terminativos, ora chamando a recorrência (cf. Ex.
11), ora anunciando o retomo ao refrão (cf. Ex. 12).
P.85
Exemplo 11.
Exemplo 12.
P.86
De outro, apresenta uma estruturação interna bem mais cerrada que a
da primeira parte, criando pequenos núcleos temáticos cuja periodicidade
encena um maior engajamento com o gênero marcado na batida do samba.
(CF. Ex. 13)
Exemplo 13.
Ora, se o refrão compõe com o desdobramento, sem deixar de ser
refrão, a segunda parte, por sua vez, compõe com uma relativa tematização
sem deixar de ser evolução. Afinal, como dissemos, são funções que se
opõem na ordem extensa e que dependem da presença da tematização e
do desdobramento quando se trata de determinar o seu grau de abertura
interna. Tudo ocorre como se a segunda parte compensasse o refrão, que
perfaz uma duração um tanto dinâmica, com uma abertura suficiente apenas
para configurar um certo avanço, sem muita dispersão de sonoridade. Em
poucas palavras, involução sem muita contenção e evolução sem muita
velocidade caracterizam o equilíbrio do ritmo silábico da melodia de Conversa
de botequim.
Esses traços, aliás, são típicos das composições populares que, como
esta, operam largamente com construções de simulacros do discurso oral.
Engajam-se com a tonalidade mas não a ponto de per-
P.87
correr zonas dissonantes ou, muito menos, regiões de modulações
audaciosas. Comprometem-se com o gênero (em geral o samba), mas
também não a ponto de executar o seu pulso nas inflexões rítmico-melódicas.
São canções que fazem dos recursos musicais balizas de estabilidade sonora
para justamente demonstrar sua insubordinação e sua imprevisibilidade
técnica. Suas melodias estão para as respectivas letras assim como as
entonações lingüísticas estão para a fala cotidiana. Sacrificam o engajamento
musical em nome de inflexões que contribuem diretamente para a clareza do
conteúdo do texto.
Se a exacerbação dos traços que vinculam a canção à fala é específico
de algumas criações como esta, ora examinada, o vínculo em si é um
imperativo geral (matéria do capítulo VI) que deixa inúmeras marcas
impressas em sua constituição formal. Uma delas é o compromisso do refrão
com a letra. Submetido às leis da reiteração melódica, todo refrão se
completa dentro de um procedimento de cristalização, em graus variáveis, da
relação entre melodia e letra. É esse conjunto que deve ser repetido e que,
portanto, mantém função de interdependência com a própria repetição. O
conjunto se cristaliza com a repetição e esta pode adquirir valor de
refrão ao incidir-se sobre um conjunto cristalizado.
Embora apresente uma estrutura interna melodicamente mais aberta
que da segunda parte, os quatro segmentos iniciais da canção de Vadico e
Noel Rosa extraem o seu valor de refrão de uma relação invariável entre
melodia e letra que se renova ritmicamente como núcleo a cada repetição.
Inversamente, o que se configura como tematização na segunda parte se dilui
na mudança de letra que faz dos segmentos “Não se esqueça de me dar
palitos...” e “Vá dizer ao charuteiro...” uma nova evolução, consideravelmente
distinta da primeira descrita pelos segmentos “Se você ficar limpando...” e “Vá
pedir ao seu patrão...”.
A harmonia, nesse caso, vem corroborar o processo de involução,
reservando, aos segmentos marcados pela cristalização entre melodia e letra,
a área da tonalidade. Trata-se de expediente muito comum na história da
canção brasileira, mas nunca a tônica, por si só, pôde substituir a força
centralizante de uma melodia que se fixa a uma letra.
P.88
- O QUE É QUE A BAIANA TEM?!
Exemplo 14.
1ª parte (refrão)
P.89
2ª parte
P.90
Representando um altíssimo grau de oclusão, essa famosa
composição de Caymmi mantém um núcleo bastante denso, fundado em
periodicidade contínua, como se reduzisse a cadeia sintagmática a um
elemento: “o que é que a baiana tem”. Cada célula é um tema que se une
aos demais por relação de identidade e por proximidade. Em seqüência,
esses temas simulam a continuidade e o movimento concêntrico buscando a
fusão. A periodicidade faz parte da própria estrutura do refrão, criando um
núcleo dentro do núcleo. Nesse sentido, podemos dizer que o refrão está
definido em cada um de seus temas, embora necessite de todos para
caracterizar a expansão por involução intensa.
Entretanto, toda essa tendência centrípeta não faz senão acirrar a
espera e mesmo a necessidade de partição do núcleo para que se instaure,
por fim, uma saída ou uma orientação que justifique a cadeia. Sempre
levando em conta o modelo padrão da sílaba, quanto mais a sonoridade se
fecha, mais iminente se torna sua abertura. Quanto mais intensa a estrutura
do refrão, mais expectativa se cria em tomo da evolução. Esta, afinal, terá que
exibir uma consistência suficiente para se impor como alternativa ao núcleo e,
ao mesmo tempo, manter sua função de segmento provisório, estritamente
orientado para o regresso a ele.
O interesse desta canção está exatamente na resistência que o refrão
impõe à segunda parte. no primeiro gesto de rompimento parcial com o
tema nuclear, a partir da frase melódica que cobre “tem graça como
ninguém...” (cf. Ex. 15), o refrão se prolonga simultaneamente neutralizando
qualquer possibilidade, nesta fase, de sentido diretivo e absorvendo as
pequenas diferenças melódicas como variação do mesmo paradigma.
P.91
Exemplo 15.
A segunda parte surge, de fato, no quarto segmento, com uma
progressão descendente, também altamente tematizada, criando uma
oposição que, na verdade, preserva os mesmos valores do refrão (cf. Ex. 16).
Exemplo 16.
P.92
Sem variação harmônica e praticando uma pulsação melódica em total
sintonia com o fluxo do acompanhamento, essa canção estabelece um elo
contínuo entre os temas, uma junção prévia, que dispensa qualquer direção,
qualquer finalidade. Daí o efeito bumerangue da evolução: abandona o refrão
sinalizando sua volta iminente. Se a tematização que estrutura o refrão tem
um papel altamente oclusivo, a tematização da segunda parte é apenas
pouco menos fechada, com uma (falsa) direcionalidade que se justifica
como regresso ao mesmo ponto. Note-se que é na seqüência de uma
variação ascendente do tema do refrão que a segunda parte engata a sua
frase melódica com o único propósito de restabelecer a seqüência inicial em
seu devido campo de tessitura (cf. Ex. 17).
Exemplo 17.
Apesar da independência entre a forma extensa e a forma intensa da
involução, quando elas se fundem num corpo musical produzem um efeito
de ressonância plena, onde prevalece, em geral, o estado eufórico de
conjunção que alimenta as letras das canções decantatórias. [NOTA 40]
P.93
A segunda parte em O que é que a baiana tem? configura-se não
apenas por manifestar o único foco de desigualdade melódica digno de nota,
mas também por sediar o trecho de variação na letra (cf. Ex. 17). Variação
expressiva, diga-se de passagem, pois, em sua primeira aparição, até a forma
enunciativa que, no refrão vinha em terceira pessoa, modifica-se bruscamente
para a segunda: “Quando você se requebrar...”.
Necessário ressaltar, ainda, que a tematização no interior do refrão,
quando muito intensificada, acaba por criar núcleos dentro do núcleo. E aqui
voltamos ao papel decisivo da letra no sentido da melodia. Assim como uma
relação invariável entre esses dois componentes pode definir a pertinência de
um núcleo, estabelecendo-o como refrão, a variação do texto lingüístico sobre
motivos melódicos rigorosamente idênticos, como é o caso, pode criar
nuanças dentro do próprio refrão, separando conjuntos mais cristalizados de
conjuntos menos cristalizados. Nesse sentido, o tema melódico cobrindo o
verso “o que é que a baiana tem?” é mais central que o mesmo tema cobrindo
os demais versos (“tem torço de seda tem, tem brincos de ouro tem” etc.),
embora todos eles sejam repetidos sem qualquer variação na forma extensa,
caracterizando-se como refrão. É como se o motivo sobre “o que é que a
baiana tem?” constituísse um ponto dentro do círculo, centralizando ainda
mais a sua tendência.
Entre a configuração decididamente concêntrica dessa canção de
Caymmi e a configuração, digamos, mais expansiva de Conversa de
botequim, oscila grande parte do repertório brasileiro. Resta ponderar que
esses aspectos decorrentes da atuação do tempo mnésico sobre o tempo
rítmico possuem um caráter mais contrastante, opositivo ou, abusando um
pouco da metalinguagem, mais paradigmático quando sob o influxo da
aceleração. A velocidade, como veremos a seguir, constitui, por si só, força
de concentração na medida em que aproxima as identidades, abrevia os
percursos e acirra os contrastes. Mas isso já é matéria para o próximo tópico.
P.94
EXTENSÃO MELÓDICA
A atuação do tempo cinemático, estudado aqui no plano da expressão,
reflete diretamente a sobredeterminação dos valores articulados no estrato
mais profundo do percurso gerativo da significação (plano do conteúdo,
portanto), concebido por Zilberberg como o nível tensivo.
Na qualidade de elemento conservador, o ritmo identifica-se a um
radical que tem suas variações regidas pelas oscilações de velocidade do
TEMPO fundamental, cujo funcionamento, nesse sentido, é equiparável ao de
um morfema. [NOTA 41] Quando sobrevêm a aceleração, o ritmo se
concentra, ganha mais consistência e seus intervalos sofrem considerável
redução. Com a desaceleração, ao contrário, o ritmo tende a privilegiar a
duração, o que vai determinar, nos níveis menos abstratos, a continuação de
um estado. Portanto, o TEMPO rege a duração, estendendo-a ou contraindo-
a, de acordo com as oscilações ligadas à “vida interior” do sujeito enunciativo.
[NOTA 42]
O TEMPO assume a posição de sujeito operador figural e a duração a
de sujeito de estado que os valores da duração estão na dependência dos
valores do TEMPO: a aceleração anula a duração uma vez que impele a
duração para o “instante”, enquanto que a lentidão opera uma reparação da
duração se esta foi desfeita. [NOTA 43]
Esses traços de ordem geral, que sempre estiveram presentes na
concepção da música erudita, notadamente em suas variações de andamento
(allegro, adagio etc.), vêm ganhando, nos últimos tempos, um destaque
especial também no campo da canção popular, não tanto pelas composições,
que esporadicamente acentuam contrastes de velocidade melódica, mas
principalmente pelas interpretações de grandes cantores que alteram o
andamento original de uma obra para transformar radicalmente o seu sentido
geral.
P.95
Caetano Veloso, Gal Costa, Elis Regina, Jorge Ben Jor, João Gilberto,
Gilberto Gil são nomes que freqüentemente pautam seus trabalhos como
intérpretes pela reformulação do andamento. Podemos lembrar aqui algumas
de suas recriações a partir das matrizes consagradas:
Exemplo 18: Felicidade (versão acelerada <A> com o Quarteto
Quitandinha; versão desacelerada <D> com Caetano Veloso).
Exemplo 19: Aquarela do Brasil (<D> com Silvio Caldas; <A> com Gal
Costa).
Exemplo 20: Pois é (<A> com Ataúfo Alves; <D> com Jorge Ben Jor).
Exemplo 21: Me chama (<A> com Marina Lima; <D> com João
Gilberto).
Exemplo 22: Marina (<D> com Dick Farney; <A> com Gilberto Gil).
O resultado mais explícito é o deslisamento de sentido no componente
lingüístico. Conteúdos em destaque na versão acelerada passam para
segundo plano na versão desacelerada, enquanto que outros, apenas
sugeridos na primeira versão, revelam-se dominantes na segunda. E vice-
versa.
O processo é relativamente simples. A tendência básica da aceleração
é a de eliminar as distâncias e, por conseqüência, os percursos que vinculam
gradativamente o sujeito ao objeto. A proximidade dos elementos aguçam as
coincidências e similaridades, bem como os contrastes que se manifestam
nas formas, descritas, do desdobramento e da segunda parte. As letras, ou
partes de letra, resultantes das mesmas relações juntivas (conjunções ou
disjunções como estados relativamente fixos) integram-se harmoniosamente
a essas melodias produzindo os efeitos de compatibilidade que apreendemos
na canção. Do mesmo modo, se a tendência básica é a desaceleração, cada
nota passa a ser ampliada em sua duração
P.96
valorizando os contornos melódicos do percurso sintagmático e se
compatibilizando, assim, com letras que acusam um distanciamento entre
sujeito e objeto cuja tensão é resolvida por algum tipo de busca narrativa.
Trata-se, quase sempre, de um sujeito que sente falta de um objeto,
associado a uma meta, mas que mantém conjunção com o valor, a duração, a
direcionalidade ou o percurso que leva a esse objeto.
Por isso, uma canção como Felicidade de Lupicínio Rodrigues, na
versão original (Cf. Ex. 18), acelerada, descreve os traços da concentração
melódica, como a tematização e a oposição refrão/segunda parte, extraindo
da letra tudo que há de valores adquiridos,
É por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora
e de rapidez no alcance das metas:
A minha casa fica lá de trás do mundo
Onde eu vou em um segundo
Quando começo a pensar
na conhecida versão de Caetano Veloso, ostensivamente lenta, a
simples seleção do valor melódico “desaceleração” desloca o centro de
sentido da letra para as tensões passionais da perda e da distância:
Felicidade foi embora
E a saudade
No meu peito ainda mora
Dentro da tendência paradigmática da aceleração, a evolução é
concebida como cisão repentina com o núcleo, como abertura ao novo
material, cuja única orientação é definida pelo retomo ao centro de
recorrência. Na tendência sintagmática da desaceleração, a extensão é
concebida como conjunção à distância, dependente de um percurso. Aqui,
não se passa bruscamente de um material melódico a outro, mas, em
compensação, a transformação musical é constante e gradual, assimilando
contra-temas como células de um mesmo trajeto que, no fundo, é responsável
pelo vínculo à distância. Nesse
P.97
sentido, a desaceleração é sempre extensão que arrasta a obra para o campo
da duração e do tempo vivido intensamente:
O TEMPO de um lado, a duração e a extensão de outro variam em
razão inversa um do outro: se o TEMPO embala, esta aceleração é
compensada por uma diminuição do campo, ou seja, por um deslocamento do
e para o ou, da conjunção para a disjunção... Ao contrário, quando o tempo
desacelera, o regime do ou ofusca-se diante do regime do e; então, o campo
controlado pelo sujeito se es tende. [NOTA 44]
A esta forma extensa da desaceleração corresponde o nosso conceito,
um tanto quanto metafórico, de passionalização (ou extensão). Uma canção
inteiramente desacelerada está propícia aos estados de paixão onde os
objetos perdidos ou ausentes são sempre menos importantes que os vínculos
que permanecem em forma de saudade, esperança, desejo, enfim, valores
investidos na duração.
A forma intensa da desaceleração é a tonalização, termo empregado
aqui no sentido de valorização dos “tons”, das “alturas”, das “notasque são
alongadas sob a regência deste funtivo do tempo cinemático. Uma imagem
excessiva, mas, de qualquer modo, ilustrativa do processo de tonalização
seria uma sucessão de “fermatas” retendo o fluxo melódico e assegurando as
durações passionais da forma extensa. Num segundo tempo, a tonalização é
também fator de valorização da tonalidade subjacente, tratada pelo
encadeamento extenso da harmonização instrumental de base.
Para a forma intensa da aceleração, sugerimos um termo composto:
ataque-acentuação, que define um tipo de articulação melódica marcada e
sem maiores alongamentos. As canções portadoras desta aceleração intensa
dinamizam seus ataques (consonantais) e seus acentos rítmicos enquanto as
canções tonalizadas dinamizam suas durações vocálicas. Para a forma
extensa da aceleração reservamos a noção de concentração - cuja estrutura
interna estudamos acima - no sentido de “recolhimento “melódico” ao estágio
quase paradigmático de oposição entre refrão e segunda parte:
P.98
melodização
forma intensa
forma extensa
aceleração
ataque-acentuação
concentração
desaceleração
tonalização
extensão
(passionalização)
A afinidade entre “concentração” deste quadro e “involução” do quadro
anterior se reproduz, evidentemente, ao compararmos “extensão” com
“evolução” [NOTA 45]. Ambas as noções mantêm compromisso com a
direcionalidade e com a dinâmica de oscilação dos processos juntivos
(conjunção/disjunção). Entretanto, enquanto “evolução” se define como
abertura ao elemento novo (desdobramento e segunda parte), a “extensão” se
fecha no encaminhamento metonímico definido pela desaceleração, pois se
identifica com a duração investida no percurso. Evolução por transição brusca
e descontínua entre partes musicais opostas no primeiro caso, e extensão
gradativa, através da junção sintagmática progressiva das inflexões a
constituir toda a seqüência, no segundo.
Ocorre que a atuação da desaceleração sobre o tempo rítmico
responde pela expansão de um novo tipo de pertinência melódica que ainda
não consideramos diretamente até a presente etapa do modelo descritivo.
Trata-se do sentido investido nas oscilações de altura, que vai se tornando
mais importante na proporção em que cresce o papel da tonalização e da
extensão.
A permanência nas notas sublinha as etapas de constituição do perfil
melódico, de tal modo que suas ascendências e descendências passam a ser
realmente a descrição da direcionalidade. Nesse sentido, a extensão
passional chama a atenção também para a forma de ocupação do campo de
tessitura, estabelecendo oposições e gradações no eixo “vertical” [NOTA 46]
da freqüência. Inflexões que não teriam
P.99
qualquer relevância num contexto veloz, sob o influxo da desaceleração
assinalam solenemente sua presença, marcando, em cada fase do espaço de
tessitura percorrido, o valor da duração.
A extensão passional combina, com freqüência, dois recursos
melódicos que vão incidir diretamente sobre a captação psicológica do
ouvinte. Em primeiro lugar, o alongamento do percurso por meio das
retenções vocálicas, das pausas etc. Em segundo, o desvio de rota que tem
como corolário a exploração do campo de tessitura. Tudo ocorre como se um
tempo maior destinado ao itinerário pudesse ser aproveitado para um
“passeio” por outras regiões, desde que essas se apresentem como desvio de
rota mas não de meta. A meta, quase sempre, é tonal. O alongamento e os
desvios que dão tempo (e espaço) ao tempo equivalem à duração do estado
passional do sujeito.
Na perspectiva que adotamos aqui, o alongamento do percurso
sobredetermina o desvio de rota uma vez que, em contexto acelerado, as
variações de altura acabam sendo absorvidas pelos motivos temáticos. Em
outros termos, a atuação da desaceleração é justamente no sentido de dilatar
o tempo de alternância rítmica permitindo os acidentes de percurso, os
desvios de rota e tudo que possa protelar, às vezes indefinidamente, o
encontro das identidades primordialmente inscritas nas categorias “...jectais”
(subjectal / objectal).
A passionalização melódica é esse tempo de espera ou de lembrança
(cuja definição depende da letra), essa duração que permite ao sujeito refletir
sobre os seus sentimentos de falta e viver a tensão da circunstância que o
coloca em disjunção imediata com o objeto e em conjunção à distância com o
valor do objeto. Por isso, a extensão passional é também a exploração de
outros espaços de tessitura.
Cada vez mais, espaço e duração estão identificados como grandezas
que sofrem, em igual proporção, a sobremodalização do tem-
P.100
po cinemático. A distância entre países, por exemplo, é calculada mais pela
duração que pela quilometragem:
... se... a distância entre New York e Paris é hoje medida em horas,
era, anteriormente, medida em meses, depois em semanas, depois em dias,
mas essa modificação atesta que a apreensão do espaço, não tanto do
espaço propriamente mas de sua profundidade, ou seja, de sua travessia, é
efetuada a partir da duração. [NOTA 47]
A aceleração reduz o espaço e a duração assim como a desaceleração
os amplia. Se o espaço traduz uma medida de natureza objetal, a duração
representa sua face subjetal.
Justamente por ampliar de uma vez duração e espaço, a
desaceleração redobra a pertinência das oscilações de altura musical e,
portanto, da ocupação do campo de tessitura. E, quando examinamos essas
variações verticais, surgem, de imediato, os dois modos gerais da inflexão
melódica que chamaremos de movimento conjunto e movimento disjunto.
[NOTA 48]
Uma canção como Chove fora, por exemplo, realiza sua primeira
ascendência por meio de movimento conjunto, em que as alturas vão se
elevando por “degraus” até atingir o final da frase no agudo. (Cf. Ex. 23)
P.101
Exemplo 23.
Manhã de carnaval, por sua vez, opera a ascendência com movimento
disjunto, fazendo soar apenas os dois pólos de altura. (Cf. Ex. 24)
Exemplo 24
P.102
Esses recursos, de resto inerentes à linguagem musical, apresentam
diferenças pertinentes no que diz respeito à ocupação do campo de tessitura.
Se o primeiro executa o percurso sintagmático que liga os dois extremos da
inflexão, o segundo suprime-o, realizando o que chamaremos de síncope, no
sentido fonético do termo. [NOTA 49] O primeiro estende o que o segundo
concentra, mas ambos retratam oscilações tensivas no eixo da freqüência.
Devem ser analisados nas relações mútuas que contraem ao longo da cadeia
melódica, de onde emana o ritmo interno entre rupturas e gradações que
regula o progresso afetivo do percurso.
... no es el cambio de dirección lo que más importa, sino la alternancia
de progresiones por movimiento conjunto y por salto, que es lo que podría
compararse con el fenômeno de la elasticidad de los cuerpos y que nosotros
llamaremos aqui elasticidad melódica. [NOTA 50]
Os movimentos contínuos ou descontínuos jamais podem ser
estabelecidos como intervalos absolutos. Imprescindível que se faça um
exame específico de cada tratamento melódico para se configurar, caso a
caso, a fronteira entre o contínuo e o descontínuo. O alerta de Ernst Toch vai
justamente nessa direção:
Estos conceptos han de tomarse aqui en sentido relativo; el que el
intervalo de tercera, y a veces aun el intervalo de cuarta, se consideren ya
como "salto ", ya como "movimiento conjunto , es cosa que depende dei
sentido general de la línea, dei conjunto de intervalos de que están rodeados
aquéllos. En una línea compuesta exclusivamente de intervalos de segunda,
constituirá la tercera un "salto en medio de sextas y séptimas, en cambio, se
apreciará como "paso conjunto". [NOTA 51]
Um salto descontínuo em meio a frases contínuas pode proporcionar
um desvio de rota, um deslocamento espacial no campo de tessitura com
valor semelhante ao da duração que se prolonga. É o caso do movimento
inicial de Olê olá (cf. Ex. 25):
P.103
Exemplo 25.
Sob o regime da desaceleração, esses pontos extremos tomam- se
muito sensíveis pois traduzem verticalmente as distâncias que estão sendo
valorizadas nos alongamentos das figuras rítmicas. Em outras palavras, do
ponto de vista semiótico, mais relações entre os intervalos de altura e os
intervalos de duração do que, em geral, se imagina. A disseminação das
durações ampliadas incide diretamente sobre o valor das alturas no processo
melódico, de tal modo que cada tom ganha tempo para assinalar sua
presença na seqüência. [NOTA 52] Dentro dessa perspectiva, o tom que se
projeta ao agudo, produzindo um desvio de rota, traz consigo a chave da
ampliação do espaço de tessitura, pois transportará os seus limites para
regiões inexploradas pelo encadeamento melódico horizontal. O investimento
na duração dos tons que delimitam o intervalo de altura - e, na desaceleração,
todos os tons contam com um mínimo de investimento nesse sentido -
potencializa o valor da distância entre suas notas extremas e, mais que
nunca, o espaço é vivido como
P.104
duração, como possibilidade de desvio de rota e passagem por outros
caminhos.
Por vezes, é o movimento contínuo que corta o fluxo melódico,
ampliando seus limites verticais. Minha voz, minha vida, por exemplo,
apresenta esta intervenção. (Cf. Ex. 26)
Exemplo 26.
Em composições com intensa atividade no eixo da freqüência como
Carolina (cf. Ex. 27), a síncope pode vir aplicada na seqüência do movimento
contínuo, acelerando o seu processo de ascendência,
P.105
Exemplo 27.
ou, ao contrário, revertendo bruscamente uma progressão em declínio (cf. Ex.
28):
Exemplo 28.
P.106
De qualquer forma, a relevância do movimento, como já foi frisado,
depende do contexto sintagmático melódico. Em Três apitos, as pequenas
elevações de sua parte inicial são consideravelmente sensíveis por
emergirem de uma ondulação melódica estável (cf. Ex. 29).
Exemplo 29.
Do mesmo modo, os pequenos intervalos iniciais de Brilho de beleza
(cf. Ex. 30) destacam-se como inflexões altamente emotivas, não pelo
paralelismo com a letra, mas também por brotarem de um trecho sem
oscilação de tom:
Exemplo 30.
P.107
Talvez nem precisássemos dizer que a pertinência dessas oscilações
no eixo da freqüência independe da direção tomada pelo movimento
melódico. Podemos ter síncopes descendentes com alto teor passional (a ser
avaliado na conjunção com a letra), como aparece em Coisas do mundo,
minha nega (cf. Ex. 31):
Exemplo 31.
e movimentos contínuos, também em direção à região grave do campo de
tessitura, provocando, como na segunda parte de Último desejo (cf. Ex. 32),
um nítido efeito de engajamento do sujeito enunciativo:
P.108
Exemplo 32.
Todos esses exemplos retratam a forma intensa dos movimentos,
conjunto e disjunto, que fazem oscilar o campo da freqüência. No primeiro
caso, o perfil melódico vai se constituindo por graus imediatos enquanto que,
no segundo, o movimento se define pelo salto intervalar (a síncope).
Embora reconheçamos que o progresso melódico pode ser, ao
mesmo tempo, temporal e espacial, não podemos deixar de verificar que as
oscilações verticais de freqüência ganham peso especial quando o tempo
cinemático age no sentido de expandir as durações. O resultado imediato
dessa atividade de desaceleração é o alargamento do percurso melódico,
quer pelo distanciamento físico dos tons, quer pela impressão de
distanciamento foijada no arranjo dos contornos. Considerando que a duração
e o espaço configuram-se, cada vez mais, como faces, subjetal e objetal, da
mesma medida (ver acima p. 100), estamos inclinados a propor que a
pertinência da espacialidade melódica se manifesta, em sintonia com o
aumento da duração, pelas oscilações no campo da freqüência. Essas
mesmas oscilações, quando perdem o valor de duração sob o regime da
velocidade, perdem também o sentido de “estágio” em outras regiões da
P.109
tessitura, de modo que mesmo os intervalos mais dilatados são incorporados
pelo irresistível fluxo melódico horizontal. Surge, assim, uma tendência à
temporalização, quando a duração perde valor e tudo concorre para o
progresso da melodia, e uma tendência à espacialização quando duração e
altura se expandem valorizando cada etapa do percurso musical.
Entretanto, como sempre, essas características, verificadas até aqui na
dimensão intensa, ganham nova proporção quando estudadas na forma
extensa. Neste caso, denominaremos gradação o movimento conjunto que
corresponde à ascendência ou descendência, ordenadas em progressão
contínua ao longo de um trecho amplo da composição, e transposição o
movimento descontínuo que se refere aos grandes contrastes de tratamento
melódico decorrentes, sobretudo, da mudança de registro no campo de
tessitura [NOTA 53]; o exemplo mais comum é o da canção que tem sua
primeira parte no grave e a segunda no agudo. Veremos adiante.
A composição que melhor ilustra o movimento extenso da gradação é
Eu sei que vou te amar (cf. Ex. 33). Sua evolução passional vai se
configurando, etapa por etapa, no decorrer de toda a primeira parte.
P.110
Exemplo 33.
P.111
Ao mesmo tempo que uma nítida identidade entre os temas, própria
do processo conjuntivo, a desaceleração deflagra os alongamentos
responsáveis pela disseminação das durações e, consequentemente, pela
pertinência da progressão no eixo da freqüência.
De fato, diga-se de passagem, a letra também anuncia uma intensa
conjunção com o valor, representado a princípio pelo “amor”, que persiste
durante toda a primeira versão da obra,
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente
Eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
- ainda que abalada, ligeiramente, pela alusão do terceiro verso (“Em cada
despedida, eu vou te amar”) -, mas que vai se revelando, num segundo tempo
como sofrimento decorrente da disjunção iterativa com o objeto,
P.112
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
para, finalmente, se definir como conjunção perene com a própria disjunção,
ou seja, o eterno vínculo com a falta e com o tempo concentrado na noção de
“espera”:
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado seu
Por toda a minha vida
Essa passagem, nuançada pela letra, de um estado de conjunção, que
poderia ser pleno se compreendesse valor e objeto, a um estado progressivo
de carência que desemboca, por fim, na consciência de um sentimento
continuado de espera - no fundo, uma equivalência entre amor e sofrimento
como faces do mesmo valor extenso, vem traduzida e a antecipada na
gradação ascendente dos motivos melódicos. É a duração que vai se
estendendo e tomando conta de toda a tessitura, retendo a atuação do tempo
em nome de um espaço de vivência passional.
Mas a especificidade dessa canção está exatamente na constituição de
seu percurso. A identidade entre os temas neutraliza até certo ponto uma das
principais atribuições do processo sintagmático: a combinação de elementos
pertencentes a classes distintas. Isso significa que, durante a etapa inicial de
Eu sei que vou te amar, não contra-temas que provoquem o
desdobramento da melodia. Não há, teoricamente, motivo para a evolução.
Temos aqui, na verdade, uma dupla atuação contra o progresso do
tempo cronológico: a repetição e a duração. A repetição (processo mais típico
da aceleração) reflete a determinação do tempo mnésico que conjuga todas
as relações associativas no presente. A duração, por sua vez, é oriunda do
tempo cinemático, no modo da desaceleração, e conta da criação do
tempo subjetal, do “tempo antes do tempo”
[NOTA 54], num regime que tende
à parada. Entretanto, se a pri-
P.113
meira ressalta, em geral, um estado conjuntivo, a segunda vive o paradoxo da
disjunção local com o objeto (a identidade temática) e a não-disjunção com o
valor que se propaga por toda a extensão; por isso, nesse caso, falamos de
uma conjunção com o percurso que é a forma extensa de relação com o
objeto.
A valorização do percurso, entretanto, não pode ser confundida com
recuperação do tempo cronológico. Ao contrário, o percurso melódico retém o
tempo em seus contornos, em seus espaços, em suas durações, criando uma
espécie de “estado de percurso”. Ou, para não invertermos a ordem das
determinações, a desaceleração temporal retém a melodia no percurso,
valorizando cada etapa de seu deslocamento no espaço de tessitura.
Em Eu sei que vou te amar, repetição e duração associam-se na
mesma empresa de produção do sentido, uma neutralizando parcialmente o
progresso cronológico (horizontal) da melodia para que a outra se atenha ao
percurso e concentre suas variações no eixo da freqüência (vertical).
Destaca-se então, nesse contexto, o papel da gradação como o processo de
variação mais relevante, responsável pelas principais oscilações tensivas
desta composição.
Mas a questão da tensividade no plano da expressão - musical -
também merece algumas observações.
uma tensão harmônica, comum a todas as composições, que lhes
assegura um itinerário extenso e um sentido de processo que se extenua
com o encontro da meta tonal. outra tensão, agora acústica, que
transcorre no eixo grave-agudo, regulada pelas freqüências rítmicas (hertz)
internas a cada som e estreitamente vinculada à tensão fisiológica - ciclos de
batimento das cordas vocais - que aumenta toda vez que o cantor busca a
região aguda. Todas operam simultaneamente deixando suas marcas no
sentido musical.
Quando enfocamos a gradação, porém, estamos considerando um
gênero de tensão que, embora aproveite os influxos das outras, mantém um
ritmo próprio, mais valioso do ponto de vista semiótico. A tensão gradativa é
uma programação sintáxica do enunciador para comprometer e conduzir a
expectativa do enunciatário de acordo com uma medida de altura que
progride de modo regular. Trata-se de uma espécie de transferência rítmica
do eixo horizontal para o
P.114
vertical, substituindo, assim, parcialmente, a evolução sucessiva pela
ocupação programada do espaço de tessitura. Até mesmo o efeito da
tensividade gradativa, a nosso ver, depende menos dos fatores físicos,
fisiológicos e culturais, de fato onipresentes - limites de agudo, de extensão
vocal e o próprio hábito de compensar ascendências com descendências -
que da iminência de desagregação que ameaça constantemente o seu
movimento conjuntivo. A lei de gradação tem por limite sua própria supressão.
Em Eu sei que vou te amar, a gradação inicial se desagrega no
início da segunda parte (cf. Ex. 34), quando nos deparamos com uma
alternância de saltos e graus imediatos sem qualquer relação direta com o
comportamento anterior.
Exemplo 34.
Entretanto, esse choque disjuntivo é imediatamente compensado com
nova gradação, agora em progressão descendente e seguindo nova medida
regular, numa conduta, muito comum, de estabelecer a gradação ligando os
picos de agudo (cf. Ex. 35).
P.115
Exemplo 35.
Quando, mais adiante, a melodia retoma o processo inicial de gradação
ascendente para conduzir, desta feita, os conteúdos disfóricos da letra, a
desagregação surge na forma da transposição (cf. Ex. 36). Configura-se
então uma “terceira” parte que salta da região dia de tessitura para a sua
extremidade superior, promovendo uma ruptura de freqüência com tudo que
se organizou até então.
P.116
Exemplo 36.
Pois mesmo com esse expressivo desvio de rota, cuja tensão se deve
mais ao rompimento da lei que ao seu controle, muito rapidamente a
gradação vai reagregando os motivos melódicos e estabelecendo uma
descendência regular, ainda que por meio de intervalos mais amplos
compensativos do salto de transposição (cf. Ex. 37).
P.117
Exemplo 37.
Trata-se, portanto, de uma composição que contém saltos e até uma
transposição significativa, mas que apresenta amplo domínio do movimento
conjunto da gradação. Tudo ocorre como se a conjunção com a eterna
disjunção afetiva, retratada na letra, correspondesse à contínua agregação
dos componentes melódicos desagregados que, nessa canção, se manifesta
pela submissão dos movimentos musicais disjuntivos aos movimentos
conjuntivos.
Mas cada criação tem sua solução particular e, por enquanto, convém
nos atermos um pouco mais aos tipos de gradação para, logo em seguida,
podermos compará-los ao processo, ligeiramente examinado, da
transposição.
A integração entre as unidades melódicas por intermédio da gradação
está para o eixo vertical e para a desaceleração assim como o refrão está
para o eixo horizontal e para a aceleração. Ambas concorrem para uma
continuidade interna e alimentam a expectativa de ruptura ou de
desagregação.
Uma canção como Preciso aprender a ser também se vale do
processo de gradação (cf. Ex. 38) durante a maior parte de seu corpo
melódico,
P.118
Exemplo 38.
Exemplo 39.
e até a um rasgo de transposição (cf. Ex. 40),
P.119
Exemplo 40.
Mas, a finalização retoma a gradação em sentido descendente,
reassumindo a escolha da agregação como forma de conquista do percurso
(cf. Ex. 41):
Exemplo 41.
Processo muito comum, portanto, a gradação, nessa sua orientação
ascendente, ainda pode ser encontrada em canções como
P.120
Louco, Eu disse adeus, Esses moços, Ai, que saudade da Amélia, João
Ninguém, Ovelha negra, para ficarmos apenas com exemplos bem
conhecidos. Na orientação descendente, o número de casos talvez ainda seja
maior e, aqui, cabe mencionar pelo menos alguns exemplos que se baseiam
quase que inteiramente nesse gênero de gradação: Volta (cf. Ex. 42), Rancho
Fundo (cf. Ex. 43), Boas festas, Eu te amo, Insensatez, Queixa e Detalhes (2ª
parte).
Exemplo 42.
P.121
Exemplo 43.
Uma composição como Ronda, por exemplo, incorpora a gradação
descendente na constituição de fragmentos melódicos que, por sua vez, farão
parte de uma gradação ascendente (cf. Ex. 44), ambas contribuindo para o
projeto contínuo e integrado desta melodia.
Exemplo 44.
P.122
Se a gradação opera, portanto, com a força do movimento contínuo
que estabelece uma regularidade e uma previsibilidade na condução do
percurso, ao mesmo tempo que instaura como tensão, também gradativa, a
proximidade inexorável da desagregação, a transposição é a resultante
imprevisível de uma ruptura de percurso que associa suas tensões físicas e
fisiológicas, próprias da região aguda, com a expectativa de retomo à faixa de
tessitura abandonada. Em outras palavras, se a gradação tem por limite a
parada e a desagregação, a transposição tem por limite a recuperação de
uma zona dia e confortável de tessitura e, sobretudo, a reintegração da
melodia no movimento contínuo.
Travessia constitui um dos casos mais expressivos de transposição,
com mudança radical no registro de tessitura de uma faixa grave/média, na
parte inicial, para uma faixa decididamente aguda durante toda a segunda
parte. Compare-se, por exemplo, os dois primeiros segmentos de ambas as
partes (cf. Ex. 45):
Exemplo 45.
P.123
E, apesar dos grandes saltos intervalares, próprios de uma canção com
tessitura tão generosa, a primeira parte se ordena por gradação (cf. Ex. 46),
Exemplo 46.
P.124
enquanto que o corte da transposição se processa de forma extremamente
contrastante, pois que emerge do tom em sua posição mais grave no campo
da tessitura (cf. Ex. 47):
P.125
Exemplo 47.
Interessante observar que o mesmo material melódico gradativo é
utilizado para cobrir, no âmbito da letra, tanto o percurso narrativo da
disjunção, como o da conjunção. Na primeira parte, depois da perda de um
valor fundamental,
Quando você foi embora
o sujeito vai perdendo uma série de objetos (a força, o espaço e a própria
vida),
Forte eu sou mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha
E nem é meu esse lugar
P.126
até atingir a solidão total:
Estou só e não resisto
No quadrado semiótico:
Na estrofe final, a gradação ascendente faz ressoar a recuperação dos
objetos a partir de novos valores,
Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
que, a essa altura, se define como a substituição do “sonho” pela
“realidade”,
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver
e como um reencontro com a vida:
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
E executa-se, assim, o percurso inverso, sob nova determinação
ideológica:
Isso tudo significa que ambos os percursos, embora mantenham uma
oposição básica entre si, adquirem considerável homogeneidade em função
do tratamento melódico. Ocorre que o verdadeiro corte opositivo, a expressão
máxima da disjunção, define-se pela
P.127
transposição que faz da segunda parte um espaço distante da primeira.
Nessa separação melódica, instaura-se o núcleo passional contendo o
sentimento de falta e a espera de um novo processo de agregação dos
elementos.
No âmbito da letra, repete-se, mais uma vez, o percurso da conjunção,
Solto a voz nas estradas
Já não quero parar [NOTA 55]
e da disjunção,
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar
situados, ambos, na face disjuntiva do sintagma melódico.
Portanto, as conjunções e disjunções retratadas na letra são
englobadas pelas duas formas melódicas situadas em registros
diametralmente opostos, demonstrando que não precisa haver paralelismo
entre o relato lingüístico e a cobertura melódica. Isso não significa, por outro
lado, que as oscilações juntivas reveladas pela letra sejam neutralizadas pela
homogeneidade de cada tratamento melódico. Apenas elas funcionam como
variáveis dentro de um mesmo valor que, nesse caso, se adere à melodia.
Daí o impacto maior provocado pela passagem da gradação à transposição
melódica e vice-versa, à mudança de registro, ou seja, à transformação
brusca do movimento conjuntivo em movimento disjuntivo, está associada a
alteração do valor, a prova decisiva que instaura a espera de um retomo ao
material melódico original em novas bases ideológicas. A transposição
funciona, neste caso, como a correspondente sonora da “travessia” que é um
conteúdo implícito (só explicitado no título) na letra.
P.128
A transposição regula a relação melódica entre primeira e segunda
parte em inúmeras canções desaceleradas, ampliando suas extensões
verticais e acentuando, do ponto de vista tensivo, o processo de
passionalização. Em complementação, podemos citar exemplos expressivos
como Oceano, Vingança, Não identificado, Força estranha, Nervos de aço e
Ave Maria no morro.
E o modelo final para a análise das oscilações no campo da freqüência
poderia, talvez, ser apreciado no mesmo quadro concebido para o domínio
da horizontalidade.
extensão
forma intensa
forma extensa
movimento conjunto
graus imediatos
gradação
movimento disjunto
salto intervalar
transposição
IV
GERAÇÃO
...le niveau présupposé est celui de la "musique” et le niveau
présupposant celui des "paroles ”, de que la "musique parle mais
indistinctement, ce qui, comme chacun sait, ne l'empêche pas de se faire
comprendre...
Claude Zilberberg
Ao final de uma de suas célebres entrevistas, Greimas destacou a
“valorização do mundo” como a grande missão ideológica da semiótica
naqueles meados da década de 80. “Valorização”, para o entrevistado
emanava, sem dúvida, da noção de valores-fms:
A semiótica tal como foi construída é uma semiótica axiológica que
postula um sujeito antropomorfo em busca de valores. [NOTA 1]
O semioticista declarou ainda que, depois de elaborar algumas
investigações no campo das axiologias epistêmicas, éticas e estéticas,
chegou à confirmação de que “a base de um fazer semiótico é o programa
narrativo” e que é preciso “habituar as pessoas a pensar que visam (sempre)
alguma coisa”, independentemente dos valores investidos.
Essas afirmações, aparentemente redundantes aos que acompanham
de perto a evolução da teoria, ultrapassam em muito a noção
P.130
de programa narrativo (PN) como medida operatória integrada aos princípios
da semiótica da ação. De fato, longe da mera confirmação de sua eficácia
metodológica, o PN vem ganhando outros lugares teóricos de reflexão. Vem,
mais precisamente, se deslocando do campo da ação para o campo da
paixão, das estruturas de superfície para as estruturas profundas.
O teor das palavras de Greimas deve ser interpretado nesse contexto
de ampla reformulação do modelo, quando a paixão passou a ser
depreendida - em sua instância ad quem - a partir do discurso como um todo
[NOTA 2], abarcando as funções de sujeito, de objeto, e a própria relação de
junção entre eles. Nessa dimensão extensa, não é difícil compreender que a
paixão contenha sempre o programa narrativo. Da mesma forma, na instância
ab quo, em meio às oscilações entre estado de fusão e estado de cisão, lugar
das “protensividades” e das “valências”, as paixões se prefiguram nos
contornos de um devenir que delineia uma sintaxe rudimentar com efeitos
de origem (protótipo da função de sujeito) e de finalidade (protótipo da função
de objeto). Em outras palavras, as paixões nascem da mesma fonte que gera
o PN, como se fossem um reflexo semântico das prefigurações sintáxicas.
Embora possamos identificar a cisão da massa fórica com os recortes
produzidos sobre a nebulosa sêmica de Saussure ou a substância amorfa de
Hjelmslev, o enfoque processual dos nossos dias privilegia os elos de
coexistência entre os elementos resultantes da cisão, como se esta
provocasse um desequilíbrio de tensões que precisasse ser imediatamente
compensado com a reordenação dos elementos numa orientação.
“Orientação”, “protensividade” ou “devenir” [NOTA 3] são noções que trazem
dentro de si o embrião do PN.
Se Greimas deu um peso especial ao conceito de programa narrativo,
Zilberberg chama a atenção, num dos textos semióticos mais instigantes de
nossa época (“Pour introduire le faire missif’), para o conceito de anti-
programa:
P.131
... faremos a suposição de que todo momento da cadeia é um lugar de
emoção e, eventualmente, de resolução de um contraste entre programa e
antiprograma [NOTA 4]
O anti-programa surge em Zilberberg como a chave sintáxica que pode
ser generalizada e remetida ao vel profundo para produzir as primeiras
manobras com a tensividade. Nessa instância, o conceito recebe sua
formulação temporal e passa a ser representado pela <parada> ou
interrupção, evitando, assim, a metalinguagem espacializante que traduz as
oposições em recortes, discreções ou delimitações. Se a <parada>
corresponde ao anti-programa ou, em seu nível, à interrupção do continuum
fórico, a <parada da parada> corresponde ao PN ou à retomada da foria na
forma já direcionada do devenir.
GERAÇÃO DOS VALORES LINGÜÍSTICOS E MELÓDICOS
Atribuir ao programa narrativo toda a sua importância na geração do
sentido é adotar de vez a cadeia processual como lugar privilegiado de
investigação semiótica. Valorizar o anti-programa é oferecer elementos
operacionais concretos para o estudo do seu funcionamento. Afinal, a
<parada> faz parar mas também faz continuar quando incide sobre si mesma
(<parada da parada>). Nessa linha de aprimoramento do instrumental
epistemológico da teoria, o modelo de Zilberberg vem com uma proposta
global de revisão de seus pontos pendentes a partir das seguintes iniciativas:
a. a identificação da tensividade fórica com uma dimensão espaço-
temporal profunda de onde emanam os valores sintáxicos primordiais (os
limites expectantes e as progressões originantes) que serão investidos nos
níveis superiores, pelas modalidades, pelos actantes e pela própria
narratividade. [NOTA 5]
P.132
b. a subordinação de todos os estratos gerativos, a começar do plano
tensivo, à instância da enunciação, pelo simples fato de que todas as
oscilações desses valores profundos - todas as modulações aspectuais -
revelam a presença e a mediação de um corpo que percebe, sente e tem
desejos.
c. a recuperação da forma hjelmsleviana, comum aos dois planos da
linguagem (expressão e conteúdo), esquecida pela semiótica durante muitos
anos: realce especial à categoria da sílaba e à oposição universal entre
elemento intenso e elemento extenso.
A introdução de um nível “missivo” representa um esforço no sentido
de explicar a passagem das modulações tensivas para as discretizações
modais e actanciais. Mais neutro que a noção de foria - cuja articulação em
euforia e disforia traz investimentos em termos de atratividade e
repulsividade - o conceito de “missivo” pode se desdobrar nos termos
“remissivo” e “emissivo”, onde o primeiro responde pelas contenções, pelas
saliências ou pela <parada> e o segundo, pelas distensões, pelas passâncias
ou pela <parada da parada>, sem qualquer compromisso axiológico ou
ideológico, pelo menos nesta fase.
Essas noções, apesar do seu potencial operatório, ainda flutuam um
pouco nos estratos gerativos propostos por Zilberberg. Algumas vezes,
remissivo e emissivo articulam diretamente o nível fórico ou tensivo, como
sinônimos de “disfórico” e “eufórico” ou “retensivo” e “distensivo”
respectivamente. [NOTA 6] Outras, constituem já um nível menos abstrato, de
resolução da foria. Nesse caso, o termo missivo concorre com “aspectual” ou
“nômico” e acusa um primeiro grau de comprometimento ora com os limites,
ora com as continuidades. A predominância dos limites ou das demarcações
é experimentado como força de totalização. Ao contrário, a predominância
das continuidades ou segmentações revela a força de infinitização. Qualquer
que seja a opção adotada neste estrato missivo, nasce uma primeira
decisão quanto aos “destinos figurais” da foria”:
P.133
a. totalização dominante - foria apreendida como concentração
b. infinitização dominante - foria apreendida como expansão [NOTA 7]
Deixando de lado as hesitações metalingüísticas, próprias de uma fase
de reconstrução teórica, podemos pressentir o alcance de um modelo que
busca, a todo custo, a economia e a homogeneidade saussuriana inspirando-
se sempre nos princípios de coerência exigidos por Hjelmslev. Ora, operar
com as noções de “concentração” e “expansão” (ou, mais precisamente,
“extensão” como especifica o autor em outro trabalho [NOTA 8], na instância
ab quo do percurso gerativo, é cumprir à risca o postulado de isomorfismo
conceptual preconizado pelo lingüista dinamarquês. Afinal, não são outras as
categorias silábicas responsáveis pelas oscilações sintagmáticas do plano da
expressão. Se elas puderem ser pensadas como forma comum aos dois
planos (de expressão e de conteúdo), estaremos recuperando, evidentemente
com novas possibilidades de aproveitamento, o conceito de função semiótica
como lugar privilegiado de reflexão sobre o sentido. Vale lembrar que a
semiótica - tributária confessa da epistemologia de Hjelmslev - erigiu toda sua
teoria no interior do plano do conteúdo, atendo-se apenas à relação entre
forma e substância. [NOTA 9] De fato, quanto mais adotava a inflexão
sintagmática - dos semas às isotopias, das relações de oposição aos
confrontos entre programas narrativos, da estrutura elementar da significação
às oscilações dinâmicas do quadrado semiótico - mais a semiótica se
distanciava dos modelos fonológicos e da própria necessidade de se munir de
uma metalinguagem já testada no plano da expressão.
Mas, como sempre, as descobertas prosperaram em direção ao termo
abandonado pela pesquisa. A necessidade de definir as condições e as p-
condições de geração do sentido - anteriores à modalização, à
actancialização e à própria aspectualização - conduziu os estudos para o
campo da tensividade, onde foi detectada, senão uma articulação, pelo
menos uma vibração rítmica que ora se concentra e ora se estende. Note-se
que Hjelmslev já instituira, premonitoria-
P.134
mente, o modelo silábico - contendo essas dimensões, intensa e extensa -
como categoria comum aos dois planos da linguagem. Basta acrescentarmos
que a silabação é a mais completa herdeira do conceito de função semiótica
e, portanto, da idéia de isomorfia entre categorias de expressão e categorias
de conteúdo, com a vantagem de representar um esquema voltado
inteiramente para a cadeia sintagmática. Trata-se de mais uma forma
inaugurada por Saussure, nesse caso para dar conta da substância nica da
cadeia falada, que esperou quase um culo para encontrar a sua
correspondente no plano do conteúdo. Como a sílaba, a tensividade tem
vocação para se tomar categoria universal, dando conta, ao mesmo tempo,
do plano do conteúdo e do plano da expressão dos sistemas. [NOTA 10]
O fazer enunciativo, a partir da introdução do nível missivo, é
necessariamente uma prática rítmica que alterna concentração e extensão em
suas múltiplas formas de manifestação nos dois planos da linguagem.
No percurso gerativo revisto por Zilberberg [NOTA 11], esse ritmo
apresenta uma interessante evolução no plano do conteúdo. A apreensão da
foria como totalização revela a atuação do fazer remissivo com seu poder de
concentração e de contenção do fluxo espaço-temporal. Essa condição de
fechamento e espera, privilegiando as saliências (limites e demarcações),
gera, no nível superior, um processo de transgressão e de excesso que nega
os limites em favor da continuidade. Por outro lado, a apreensão da foria
como infinitização declara a predominância do fazer emissivo, com suas
formas de expansão do mesmo fluxo, notadamente a abertura e a distensão,
que se traduzem em passâncias (gradações e segmentações) e contínua
transposição dos limites. De modo análogo, a trajetória gerativa da força de
expansão passa por sua negação quando sobrevêm a demarcação aspectual.
Desta <parada> decorre a noção de falta pressuposta pela narratividade.
P.135
Portanto, para o autor, tanto o excesso quanto a falta participam desta
fase de resolução aspectual das tensões ricas e, ao mesmo tempo,
respondem parcialmente pela conversão ao nível modal. O excesso desperta
a modalização deôntica que sobrevêm justamente para contê-lo. A falta
desperta a modalização volitiva que tem como projeto extenso a sua
reparação. Em outras palavras, antes de definir um objeto como seu destino
narrativo, o sujeito modal procede à negação do excesso ou da falta em
busca de uma medida de equilíbrio. Nesses termos, podemos entender
quando Zilberberg diz que o sujeito entra em conjunção com “um valor
deduzido da aspectualidade": conjunta-se com a negação do excesso ou com
a negação da falta. [NOTA 12]
Se a predominância do excesso ou da falta, no nível aspectual,
provoca, respectivamente, o contra-fluxo do /dever/ ou do /querer/ no nível
modal, as primeiras apreensões do nível tensivo também reaparecem aqui
como investimento formal das categorias modais. Os dados remissivos
instruem a modalização deôntica, oferecendo os seus recursos
demarcatórios, enquanto os dados emissivos instruem a modalização volitiva
com sua tendência à extensão. [NOTA 13]
Essas sucessivas “transvalorações”, enriquecidas de nível para nível
com investimentos e operações cada vez mais complexos, são também
processos de conservação das categorias e dos valores selecionados no nível
missivo. Assim, os elementos continuativos e afirmativos vão reaparecer nas
etapas sêmio-narrativas de conjunção, engendrando, por exemplo, o conceito
de “bom”, de “desejo” e de infinitização do objeto. Os dados de concentração
e de <parada>, por sua vez, vão gerar as relações subjetais reguladas pela
ética e pelo compromisso com o “bem” coletivo.
Portanto, os valores estabelecidos no nível missivo-aspectual [NOTA
14]
atravessam, segundo Zilberberg, todos os estratos gerativos da sig-
P.136
nifícação, fazendo-se sentir ano nível discursivo, depois de constituídas as
axiologias, pelo processo de naturalização (“instintivação”) dos deveres -
caracterização deôntica com ajuda do volitivo- que tem, como contrapartida, a
moralização dos desejos - caracterização volitiva com ajuda do deôntico.
[NOTA 15] Ligado diretamente à atividade do sujeito da enunciação, o fazer
missivo traz uma interessante proposta de interface entre tempo e espaço:
A instância da enunciação apresenta-se como poder de configuração
complexa, oscilante, regulador rítmico, criador de tempo quando o fazer
remissivo sobrevêm, concentra, nominaliza e modaliza; criador de espaço
quando o fazer emissivo advêm, difunde, verbaliza e "narrativiza”. O “eu
aparece, no nível figural, como um lugar de interseção e de arbitragem entre
tempo e espaço: o tempo seria apenas a contenção do espaço enquanto que
o espaço serias apenas o desdobramento do tempo. [NOTA 16]
Assim, a <parada> produzida pelo fazer remissivo - pelo anti-programa
- é sempre um fator de entrave, ou no mínimo de resistência, ao fluxo
temporal e à ocupação espacial que, pressupondo uma tensividade em nível
mais profundo [NOTA 17], responde pela espera e pelo sentimento de falta.
Nesse sentido, cria o tempo - é uma “chronopoíèse” - e oferece parâmetros
para se estabelecer o progresso discursivo. A <parada da parada> produzida
pelo fazer emissivo é sempre a retomada do programa narrativo e,
conseqüentemente, do projeto de desdobramento do tempo e de abertura do
espaço, este último definido como a face objetal da duração. [NOTA 18] Em
outras palavras, a retomada do tempo enquanto duração - a “chronotrophie”
[NOTA 19] - é também um gesto de criação do espaço, de preenchimento dos
lugares que levam o sujeito ao objeto.
P.137
Constituindo um verdadeiro modelo de predicação para instruir os
níveis seguintes, a instalação da oposição missiva, tendo como resolução
figurativa a noção de <parada> vs <parada da parada>, proporciona, segundo
Zilberberg o “regime imanente do polêmico”. [NOTA 20]
Não há termo
positivo, apenas dupla negação. O movimento, ou nesse caso o tempo,
começa a partir de um gesto negativo que corresponde à resolução do
sincretismo firmado no nível tensivo. Este, por sua vez, é a forma temporal da
substância amorfa de Hjelmslev ou da nebulosa sêmica de Saussure
(conforme veremos no capítulo VI). Antes de ter seus valores selecionados
por um sujeito da enunciação, a tensividade fórica é um continuum absoluto
que, como tal, nada significa. Se pensarmos, teoricamente, num movimento
sem qualquer delimitação, chegaremos à infinita continuação da continuação
que não está muito distante da inércia. É deste ponto de vista, a nosso ver,
que Zilberberg lança mão, diversas vezes, do aforismo de Valéry: “tudo
começa por uma interrupção” (T. 1. a.). O primeiro gesto de <parada> é, no
fundo, uma interrupção da inércia de uma foria inexorável que seria, por isso
mesmo, sem sentido. A <parada> introduz a foria no universo semiótico e,
a partir daí, começa o movimento... e a apreensão do tempo.
Em todas as ocasiões, os fenômenos do tempo aparecem de início
num progresso descontínuo. Apresentam-nos uma ordem de sucessão. Nada
mais, nada menos. [NOTA 21]
A <parada da parada>, como diz o próprio termo, pressupõe o gesto
inicial, que agora estabelecendo-o como marco incoativo. Nesse sentido,
podemos dizer que o fazer emissivo é uma mobilização de segundo grau que
recobra a foria numa escala inteiramente antropomórfica.
Essa concepção de Zilberberg, à parte seu caráter temporalizante e de
aprofundamento das instâncias gerativas, não se afasta muito do modelo
padrão da semiótica, sobretudo no que diz respeito à construção das
estruturas elementares no nível ab quo da significação.
P.138
O primeiro gesto de apreensão do sentido, representado no quadrado
semiótico, se traduz por uma operação de negação dos termos que são
captados como diferenças (onde um é a negação do outro) [NOTA 22]:
Numa de suas mais importantes entrevistas, Greimas manifesta-se a
propósito desta sintaxe, sumária por definição, nos seguintes termos:
Para mim, o gesto fundador, o julgamento fundador, é a negação
desses termos diferenciais, negadores eles próprios. Temos ai uma espécie
de ser que não é nada, de ser em formação. O ato do julgamento é a negação
do negativo que faz aparecer a positividade. [NOTA 23]
Tal enfoque, nas palavras do grande semioticista, constitui a própria
razão de ser dessa ciência:
... como poderiamos imaginar uma semiótica enquanto sistema de
relações se não se chegava a fundamentar o conceito de relação? [NOTA 24]
E, por fim, mais adiante:
A relação de contradição encontra-se assim partida em duas,
fundando, ao mesmo tempo, apositividade e o descontínuo. [NOTA 25]
A <parada> e a <parada da parada> constituem a versão temporal
deste modelo, mas não se reduzem a isso. São valores que, uma vez
selecionados nos níveis ab quo da significação, sofrem sucessivas
conversões nos níveis seguintes até atingir a instância ad quem. E, como
podemos pressentir a essa altura, são valores que transitam do plano do
conteúdo para o plano da expressão e vice-versa.
P.139
No que tange ao plano do conteúdo, Zilberberg descreve a atuação do
fazer remissivo no nível modal gerando, não apenas o /dever/, como
comentamos, mas também outras modalidades que afirmam a presença de
uma <parada>: “ignorar”, “surpreender-se” ou “interromper-se”. Da mesma
forma, o fazer emissivo instrui, além do /querer/, outras modalidades que
projetam uma extensão a ser preenchida no nível narrativo: “prever”, “crer” e
“esperar”. [NOTAS 26]
Os valores missivos são também “pregnâncias actanciais” que operam
como funções articulando, no nível narrativo, as relações do sujeito com o
objeto ou com outro sujeito. As funções emissivas sublinham a relação de
identidade entre sujeito e objeto e entre destinador e destinatário, relação esta
inscrita no nível missivo que faz do percurso destinador > destinatário-
sujeito > objeto um contínuo. As funções remissivas instalam a
descontinuidade tanto nas relações objetais como nas relações subjetais.
Para conservar o elo de identidade -a relação de dependência- entre
sujeito e objeto, proveniente do fazer emissivo, Zilberberg propõe a relação
“sujet/sub-objet”, onde a partícula “sub-”, extraída de subjectum, já. acusa a
presença do sujeito na instância do objeto. Do mesmo modo, a relação do
sujeito com outro sujeito, dentro da ordem emissiva, pode ser representada
como “trans-sujet/sujet reproduzindo, mais uma vez, o elo de identidade.
Esta última, como dissemos, traduz a comunicação entre destinador e
destinatário.
A expressão do fazer remissivo sobre essas principais categorias
actanciais é concebida pelo semioticista como relação entre “sujet” e “abjet”
no plano objetal, e como relação entre “sujet” e “anti-sujet” no plano subjetal.
Se esta última relação é muito conhecida nos meios semióticos, a anterior
pode causar alguma surpresa em razão do termo “abjeto”. De qualquer forma,
porém, o efeito abjetal traduz satisfatoriamente a dominância do remissivo
sobre o emissivo uma vez que indica a interrupção de um processo sem
significar sua extinção. Algo que expressasse a “indiferença”, por exemplo,
entre sujeito e objeto, estaria negando automaticamente o plano missivo
como categoria pressuposta.
P.140
A letra de uma canção como Menino do Rio constitui exemplo
eloqüente da força emissiva tanto no plano da relação com o objeto como no
plano subjetal.
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção corpo aberto no espaço
Coração
De eterno flerte
Adoro ver-te
Menino vadio
Tensão flutuante do Rio
Eu canto pra Deus proteger-te
O Havaí
Seja aqui
Tudo que sonhares
Todos os lugares
As ondas dos mares
Pois quando eu te vejo
Eu desejo o teu desejo
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Toma essa canção como um beijo
O ator “menino do Rio” é, a um tempo, objeto de desejo e elemento
deflagrador do /querer/ do EU enunciativo. Para tomarmos apenas um caso
significativo de cada função, podemos transcrever o enunciado “Adoro ver-te”,
que pressupõe o desejo de capturar o objeto pela visualidade, e as
seqüências “Pois quando eu te vejo / Eu desejo o seu desejo” que indicam a
atuação do ator (ou da visão do ator) sobre o desejo do sujeito. Este último
caso ganha maior proporção quando se considera este quase aforismo de
Zilberberg,
-O outro é aquilo ou aquele que me inspira: trans-ego. [NOTA 27]
P.141
onde “trans-ego”, mais uma vez, parafraseia a relação destinador/
destinatário. O fluxo missivo, quase totalmente desobstruído, sugere uma
ligeira manifestação do fazer remissivo, como que para justificar a plena
dominância do emissivo, no receio de perder o objeto/destinador:
Eu canto pra Deus proteger-te
Outra letra, também com predominância emissiva, pode ilustrar o
crescimento gradativo da presença remissiva - Por causa de você, menina:
Por causa de você bate em meu peito
Baixinho quase calado
Um coração apaixonado por você
Menina, menina,
Que não sabe quem eu sou
Menina, menina,
Que não conhece o meu amor
Pois você passa e não me olha
Mas eu olho pra você
Você não me diz nada
Mas eu digo pra você
Você por mim não chora
Mas eu choro por você...
Na primeira parte da canção, “você” desempenha a função de trans-
ego, ou seja, de destinador que faz fazer, independentemente do fato de que
tudo se dá no imaginário do sujeito:
Por causa de você bate em meu peito
Baixinho quase calado
Um coração apaixonado por você...
P.142
Na segunda parte, o ator “você” vai se transferindo para a função de
anti-sujeito e, como tal, impondo resistências à atuação do sujeito. Temos
então, a cada verso, respectivamente, a <parada> e a <parada da parada>
encenando, singela e didaticamente, o confronto entre valores remissivos e
valores emissivos, esses sempre transcendendo os obstáculos criados por
aqueles:
Pois você passa e não me olha
Mas eu olho pra você
Você não me diz nada
Mas eu digo pra você
Você por mim não chora
Mas eu choro por você...
A letra de Último desejo, por sua vez, bem mais complexa, perfaz a
dominância dos valores remissivos. Na primeira parte, o ator “eu” se desdobra
em destinador julgador e sujeito narrativo. Na segunda, novamente sincretiza
duas funções actanciais, agora de destinador manipulador e de objeto.
Vejamos.
O destinador julgador é sempre um actante do momento terminativo
que avalia o percurso do sujeito, com suas perdas e aquisições, aa etapa
de transformação final de seu estado. Nesse caso, a avaliação recai sobre
uma narrativa, extremamente acelerada, cujo desfecho disjuntivo, disfórico,
tem apenas o sentido de desencadear os estados passionais sub-seqüentes:
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar sem violão...
Essa conclusão, em si remissiva (SUO), estende-se por diversas
outras relações descontínuas, onde o “eu”, agora na função de sujeito, sofre
uma série de entraves afetivos que o impedem de realizar qualquer tipo de
conjunção:
P.143
Perto de você me calo
Tudo penso, nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo...
O fazer emissivo sobrevêm juntamente com a função de destinador
manipulador. Depois de tantas negações, de tantas paradas, mesmo a
presença de uma nova “inspiração”, de uma nova ordem transcendente, para
restabelecer a continuidade na forma da <parada da parada>:
Mas meu último desejo
Você não pode negar
A voz do destinador recobra, no nível narrativo, a temporalidade
emissiva, traçando as coordenadas, as direções, que devem ser seguidas
pelo destinatário-sujeito. Embora essas recomendações ocupem toda a
extensão da segunda parte da canção (“se alguma pessoa... que você pagou
pra mim”), a seqüência como um todo não é homogênea.
Sua primeira fase reforça os valores emissivos ao construir novos
simulacros tanto de relações subjetais,
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga
Se você me quer ou não
como de relações objetais:
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação
As condições impostas em nível discursivo (“Se alguma pessoa
amiga... (então) diga que você me adora...”) pressupõem uma compatibilidade
missiva: se o fluxo entre os sujeitos for contínuo (“pessoa amiga”), sem
intervenção das forças antagonistas, então as relações com o objeto serão
mantidas na ordem emissiva (“você me adora”).
P.144
A segunda fase dessa extensão reintroduz os valores remissivos, mais
uma vez mantendo a compatibilidade entre relações subjetais e relações
objetais. O surgimento do anti-sujeito, aquele que faz parar,
E às pessoas que eu detesto...
corresponde, assim, à construção, nos versos subseqüentes, da categoria
abjetal:
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é um botequim
E que eu arruinei sua vida
E que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim
Anti-sujeito e abjeto, duas funções representativas dos valores
remissivos que foram largamente predominantes na primeira parte, vêm
portanto encerrar o ciclo emissivo do (último) desejo, conservando uma
dramaticidade interna não resolvida.
JUNÇÃO NAS CANÇÕES PASSIONAIS
Os princípios de identidade que estão na base da relação entre sujeito
e objeto, justificando a atração que este actante exerce sobre o primeiro,
pedem evidentemente uma instância mais profunda responsável pela
sincretização das conjunções e disjunções parciais que mobilizam o nível
narrativo. De fato, os estados de relação com o objeto pressupõem a junção
do sujeito enunciativo com valores mais extensos, anteriores às
incorporações axiológicas, representados pelas modulações fóricas. O que
de continuidade nessa massa fórica, pertencente ao nível tensivo, responde
pela junção, por tudo aquilo que faz do objeto uma entidade instalada no
interior do sujeito e que se configura como tal a partir da cisão primordial,
quando o uno se dualiza, inaugurando a tensão própria da atividade sintáxica.
A noção de <parada>, como vimos, retrata bem essa atuação do
descontínuo sobre o que é teoricamente contínuo (a junção), até porque
P.145
ela conta também da retomada do contínuo quando aplicada sobre si
mesma: <parada da parada>. Vinculados à primeira noção, temos os valores
remissivos que se opõem aos valores emissivos próprios da continuidade.
Essa pulsação rítmica do nível tensivo que, nesta fase, representa a
própria existência do sujeito enunciativo num tempo e num espaço ainda não
cifrados, reaparece no nível missivo-aspectual como resultado de uma
primeira escolha dos valores preponderantes que deverão instruir as
modalidades e os actantes dos níveis subseqüentes, além de estimular a
atuação contrária dos valores recessivos. A definição dessa escolha coincide
necessariamente com a instauração e configuração completa do sujeito
enunciativo na instância ab quo da significação. Afinal, sujeito e valores são
categorias funcionais interdependentes que se manifestam em todo e
qualquer cálculo semiótico desde as operações mais elementares.
- ANÁLISE DAS LETRAS
Tomemos, como exemplo, a letra da canção Eu disse adeus:
Eu disse adeus
Nem mesmo eu acreditei
Mas disse adeus
E vi cair no chão
Todos os sonhos meus
E disse adeus às ilusões também
E aos sonhos meus
Eu disse adeus
E vi o mundo inteiro
Desabar em mim
Queria ser feliz
E acabei assim
Me condenando a ter
Recordações, recordações
Vai ser tão triste
Olhar sozinho tudo
Tudo que era de nós dois
P.146
Mas foi melhor
Dizer adeus naquela hora
Pra não chorar depois
Eu disse adeus
Nem mesmo eu acreditei
Mas disse adeus
Pisei as ilusões
E até os sonhos meus
E veio o pranto
E mesmo assim
Eu disse adeus
Eu disse adeus
Como cabe a todos os discursos decidir sobre o valor de seus valores
selecionados, sempre encontraremos a dominância de uns sobre outros a
partir do nível missivo. Não é difícil constatar que, nesta letra, a foria foi
apreendida, sobretudo, por suas formas retensivas que definem uma
tendência à concentração. A reincidência do mote “eu disse adeus” durante
todo o percurso do texto, disseminando a marca da disjunção narrativa,
corresponde, antes de tudo, a uma ruptura de junção, a uma <parada> no
interior do fluxo fórico que estabelece a continuidade entre sujeito e sub-
objeto.
Entretanto, o valor desses valores remissivos selecionados só pode ser
devidamente aquilatado quando em confronto com os valores emissivos
também escolhidos para capacitar a força de expansão. Em outras palavras,
a veemência da <parada> provocada pelo antiprograma narrativo pode ser
comprovada tendo em vista a intensidade passional que move o programa.
[NOTA 28] Nesse sentido, as posições emissivas dos “sonhos”, tratados
como nostalgia da conjunção (“Vai ser tão triste olhar sozinho / Tudo o que
era de nós dois”), manifestam-se como o desejo ardente de um ser fraturado
P.147
que, embora não consiga esconder a presença dos valores próprios da
infinitização, da expansão, revela sua difícil opção pela totalização, pelos
limites, enfim, pelos valores remissivos.
O caráter disfórico dessa opção vai se manifestando, evidentemente,
nas instâncias superiores do percurso gerativo, a partir da reapresentação
dos valores emissivos em forma de modalidade volitiva e dos valores
remissivos em forma de modalidade deôntica. O /dever/ funciona como uma
modalidade ética que intercepta os excessos da infinitização que, por sua vez,
se configura como transgressão aos valores-limites impostos pela
aspectualização no nível missivo. Essa letra pressupõe que o conflito entre
valores emissivos e remissivos vem de longe (do ponto de vista lógico e
temporal). O gesto de <parada> necessário à apreensão do fluxo fórico não
deixa de provocar um primeiro abalo na relação juntiva responsável pela
unidade entre o sujeito enunciativo e seus valores. Esta falta pode ser
rapidamente sanada com a retomada do fluxo dentro da ordem emissiva
(<parada da parada>). Entretanto, por vezes, esta retomada adquire um
ímpeto desmedido que se traduz na recusa de todo e qualquer limite, mesmo
que este obedeça a uma simples regra tmica de alternação entre fazer
emissivo e fazer remissivo. Eu disse adeus parece pressupor esse excesso
depositado nas modalidades volitivas (“Queria ser feliz...”) quando nega
peremptoriamente o fluxo emissivo como se tivesse que interromper um
equívoco para evitar um mal maior:
Mas foi melhor
Dizer adeus naquela hora
Pra não chorar depois
Esses traços figurativos de superfície são, na verdade, expressões
figurais que traduzem a intensidade das primeiras conversões em nível
profundo. Contrapondo-se à dominância remissiva todo um projeto de
expansão, identificado nos estratos posteriores como busca da felicidade, que
não tolera a falta, não convive com os limites impostos pela totalização e que
instrui um /querer/ renitente atravessando todos os veis gerativos. Essa
força emissiva pode ser dimensionada pelo contrafluxo da <parada>:
P.148
Eu disse adeus
E vi o mundo inteiro
Desabar em mim...
Se a luta, em última instância, é pela junção com os valores ou, mais
precisamente, por sua recuperação em termos de conjunção objetai, a opção
pelo fazer remissivo, que se reverte em descontinuidade entre os dois
actantes, revela um nível modal sob a égide do / dever não ser/, ou seja, sob
a forma de suspensão da identidade entre sujeito e objeto, criando entre eles
uma IMPOSSIBILIDADE de vínculo.
A resolução narrativa desta obstrução modal se processa em termos
de duplicação actancial onde um sujeito volitivo assume os valores emissivos
e sofre a intervenção implacável de um sujeito deôntico que confirma a
predominância dos valores remissivos. A duplicação é flagrante desde os
primeiros versos:
Eu disse adeus
Nem mesmo eu acreditei
Mas disse adeus
O sujeito que faz é diferente do sujeito que crê. O primeiro representa o
pólo ativo das relações éticas [NOTA 29], que age em nome de um destinador
julgador determinando a impossibilidade de conjunção:
(...)
E acabei assim
Me condenando a ter
Recordações, recordações
O segundo desempenha as funções do sujeito passivo que, embora
não abdique de seu /querer/, manifestado passionalmente até os últimos
instantes, atende às determinações deônticas preparando, com essa forte
oposição entre valores emissivos (recessivos) e valo-
P.149
res remissivos (dominantes), a dramaticidade exposta em nível discursivo:
(...) E veio o pranto
E mesmo assim
Eu disse adeus
Examinemos, agora, a conversão modal num outro exemplo: Volta.
Quantas noites não durmo
A rolar-me na cama
A sentir tanta coisa
Que a gente não sabe explicar
Quando ama
O calor das cobertas
Não me aquece direito
Não há nada no mundo
Que possa afastar este frio
Em meu peito
Volta
Vem viver outra vez a meu lado
Não consigo dormir sem teu braço
Pois meu corpo está acostumado
Novamente em cena o aspecto juntivo. Ao contrário da letra anterior, o
fazer emissivo manifesta-se como resposta aos limites impostos pelos valores
remissivos. O sujeito vive as tensões de uma ruptura juntiva, temporalmente
definida como continuação da <parada>. Os traços figurativos da inquietação
(“Quantas noites não durmo / A rolar-me na cama / A sentir tanta coisa...”) ou
da insatisfação (“O calor das cobertas / Não me aquece direito...”) compõem
um estado passional disfórico cuja intensidade não deixa vidas quanto, de
um lado, à negação da <parada> cuja duração responde pelo sentimento de
falta onipresente em todos os estratos gerativos e, de outro, à existência de
um /querer/ mais profundo, fortemente instruído pelos valores emissivos.
P.150
O papel central do apelo contido em “volta” está, mais uma vez, a
serviço da integridade do sujeito ameaçada pela perda objetal. Aquilo que, em
superfície, clama por uma recuperação do estado anterior de conjunção
ressoa, nas instâncias profundas, como elemento revelador de uma
tensividade fórica pressuposta: nostalgia do continuum e da junção plena.
Considerando que a extensão do texto é uma temporalidade controlada
pelo sujeito enunciativo [NOTA 30], a figura do “corpo desintegrado (“Não
consigo dormir sem teu braço / Pois meu corpo está acostumado”), razão de
toda a insatisfação, em busca da reunificação sujeito/sub-objeto, corresponde
à negação do fazer remissivo pelo fazer emissivo. Nesse enfoque
estritamente temporal, a desaceleração que caracteriza a permanência no
estado disfórico da primeira parte da letra provoca um tempo repentinamente
veloz e incisivo que posiciona o sujeito num agora enunciativo (por meio do
imperativo: “volta!”) e convoca a espera como a maneira mais rápida de se
orientar para o objeto:
Volta
Vem viver outra vez a meu lado
Ora, se com a velocidade o sujeito pode descobrir seu objeto nas
regiões mais recônditas de seu ser - disseminado pela extensão textual
somente com a duração ele pode, de fato, preencher o percurso que
restabelece o elo de transição. Nesse sentido, a “volta” não é apenas o apelo
cortante que anuncia a ruptura com o estado anterior mas também a
restituição das noites não dormidas, a reintegração dos corpos e a
restauração dos costumes do passado num tempo futuro [NOTA 31]:
P.151
Não consigo dormir sem teu braço
Pois meu corpo está acostumado
Tudo converge, enfim, para o restabelecimento de uma continuidade,
no interior da qual as próprias funções de ativação e passivação transitem
livremente entre sujeito e objeto. O primeiro sente a falta mas se comporta
como termo passivo, pedindo ao segundo que se desloque em sua direção
(“Volta / Vem viver outra vez a meu lado”). [NOTA 32] Essa flexibilidade das
funções faz parte da retomada do fluxo juntivo que, nesta letra, vem traduzida
pela opção emissiva.
A conversão modal desse quadro de abertura missiva, que pode ser
definida passionalmente pela espera, apresenta, no que tange à modalização
de seus estados juntivos, uma ampla compatibilidade entre o /querer ser/
(quando o objeto é considerado DESEJÁVEL ao sujeito) e o /dever ser/
(quando o objeto é considerado NECESSÁRIO ao sujeito).
Em Eu disse adeus, um compromisso original do sujeito da enunciação
com os valores remissivos, freando o potencial da força emissiva, instaura a
narrativa do anti-programa. Em Volta, a predominância da escolha emissiva
manifesta-se como a reação do programa narrativo diante da descontinuidade
imposta sobre a relação sujeito/objeto. Na primeira canção, como vimos, a
conjunção é tratada no âmbito da IMPOSSIBILIDADE de realização enquanto
que, na segunda, é tratada como NECESSIDADE indispensável à integridade
do sujeito. Constituem, portanto, tratamentos contrários resultantes das
primeiras seleções de valores efetuadas pelo sujeito enunciativo. O fazer
remissivo do sujeito de Eu disse adeus e o fazer emissivo do sujeito de Volta,
analisados sob o ponto de vista objetal, podem preencher os termos do eixo
dos contrários do quadra-
P.152
do semiótico sobre o qual está prevista a articulação da categoria modal
alética [NOTA 33]: /dever ser/ (Volta) vs /dever não ser/ (Eu disse adeus)
Vejamos, ainda, outra canção cuja letra também se organiza sob as
diretrizes traçadas pela opção emissiva mas que adquire nuanças bem
específicas já a partir do nível modal: Eu e a brisa.
Ah!
Se a juventude que essa brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só
Pra ser um sonho
E aí então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então pra nós seria
E depois que a tarde nos trouxesse a lua
Se o amor chegasse eu não resistiria
E a madrugada acalentaria a nossa paz
Fica!
Oh! brisa fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar
Tudo se concentra na perspectiva de superação de um estado disfórico
literalmente identificado com a ruptura juntiva. Trata-se de um tempo parado
que precisa se distender e esta transição - entre a falta disjuntiva e o prazer
não disjuntivo - vem sintetizada na seguinte seqüência:
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só
Pra ser um sonho
Repetindo o que ocorre na canção anterior, as funções de ativação e
passivação se flexibilizam, permitindo a transferência da força de ação para o
objeto e do estado passivo para o sujeito,
P.153
E aí então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
onde “um sonho em forma de desejo” é o próprio sujeito (EU) inserido no
quadro de uma transformação hipotética (“Eu poderia esquecer a dor / De ser
tão só / Pra ser um sonho”).
Mas o dado discursivo central e comum às duas canções é o apelo:
“Volta!” na primeira e “Fica!” na segunda. São efeitos semelhantes que,
entretanto, traduzem temporalidades opostas. “Volta!”, como comentamos,
reproduz a opção pela ruptura veloz de um estado disfórico em nome de um
projeto de distensão que pretende restabelecer uma continuidade, uma
conjunção, enfim, uma duração no futuro. “Fica!”, ao contrário, traduz a opção
pela permanência, pela duração, como se a preservação do tempo lento fosse
o requisito homeopático capaz de provocar uma reação oposta, ou seja, uma
repentina aceleração:
Oh! brisa fica pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
Enquanto Volta define-se como <parada da parada>, onde a relação
sujeito/objeto equaciona-se nos termos de uma direcionalidade bem
determinada, Eu e a brisa perfaz a <continuação da parada> e dispensa
qualquer direcionalidade sintáxica que seu objeto é eventual e imprevisto.
Afinal, o que está em jogo na primeira canção é a reconquista de um passado
já conhecido. Em Eu e a brisa, a única realidade vivida é o sentimento de falta
resultante de uma espécie de disjunção crônica. Qualquer possibilidade de
reversão desse quadro aparece então como algo bem-vindo mesmo que
completamente desconhecido.
Portanto, embora ambas compartilhem a espera da conjunção, o
sujeito de Volta possui, além do /querer/, um /saber/ sobre o seu objeto, o que
lhe permite acelerar repentinamente o processo, desfechando o ataque do
imperativo (“Volta!”), e deixar que a duração venha se constituindo em
seguida até preencher as etapas intermediárias que justificam o apelo. Neste
segundo tempo, acomoda-se toda a argumentação discursiva referente à
necessidade de conjunção:
P.154
“Vem viver outra vez a meu lado / Não consigo dormir sem teu braço / Pois
meu corpo está acostumado). O sujeito de Eu e a brisa, comprometido com
um /querer/ liquidar a própria carência mas sem identificação de objeto,
mergulha numa espera indefinida que hipertrofia a duração, expondo-se
voluntariamente à mudança brusca do regime temporal imposta pela
surpresa.
A base disso tudo está no fato de que o tempo de espera sob controle
do sujeito apresenta, em geral, uma alternância equilibrada entre velocidade e
duração. A aceleração excessiva, anulando o próprio conceito de espera,
pode levar à precipitação fazendo com que o sujeito chegue ao objeto “antes
do tempo”. Inversamente, vivendo uma espera lenta por demais, o sujeito
pode se distrair, tomando- se desatento e, nessa condição, presa ideal dos
eventos inesperados. [NOTAS 34]
Como nem sempre podemos contar com uma alternância equilibrada
entre as duas formas de andamento temporal, o que se verifica geralmente é
um «ritmo» de compensação entre elas: a aceleração brusca pede um reparo
posterior das etapas omitidas no processo [NOTA 35] (cf. a parte final de
Volta); o alongamento desmedido da duração, por sua vez, pode desconectar
o sujeito do tempo sucessivo, deixando-o à mercê dos fatos externos (cf. a
situação do sujeito de Eu e a brisa sob a dependência de uma surpresa).
Esse ritmo que pode, do ponto de vista teórico, ser generalizado como
uma questão fundamental de construção do sentido, aparece muitas vezes
como traço da mais alta pertinência nos textos manifestos, facilitando muito a
análise de suas determinações narrativas. Observe-se a propósito que, em
Volta, a interrupção e precipitação do apelo respondem à duração de um
estado de inquietude figurativizado como “noites mal dormidas”. O apelo em
Eu e a brisa, por seu turno, incide sobre a permanência da duração que,
desde o início, a figura da “brisa” é selecionada para cobrir a noção de um
P.155
tempo efêmero, passageiro, que a qualquer momento pode se dissipar. O
apelo (“Fica!”) em nome da duração responde a esta provável celeridade que
sonega ao tempo o tempo de conjunção.
Portanto, nesta última canção, se o estado disjuntivo vem de longe, as
condições para a sua transformação são recentes e bastante transitórias.
Corresponderia, no nível narrativo, a uma breve passagem do destinador
[NOTA 36] - cuja figura, evidentemente, é a brisa -, capaz de proporcionar
uma mudança decisiva no estado do sujeito, desde que produzida sob sua
influência:
Se a juventude que essa brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
O esforço do sujeito no sentido de preservar o sopro (ou o canto) da
brisa no nível discursivo, ou de conservar o destinador no nível narrativo, é
um sintoma da seleção de valores emissivos responsáveis pela duração e por
sua conversão modal em espera. Nesses níveis mais profundos, o que está
em jogo é o próprio ritmo cinemático do tempo: DURAÇÃO (solidão crônica),
VELOCIDADE (o canto da brisa), DURAÇÃO (apelo: “Fica!”), VELOCIDADE
(“o inesperado faça uma surpresa”) e DURAÇÃO (“e junto a mim queira
ficar”).
De acordo com essa lógica rítmica - a mesma inerente à silabação de
Saussure - a afirmação de um elemento na cadeia sintagmática é o primeiro
passo para a sua negação subseqüente. Depois da explosão vocálica
teremos sempre a implosão consonantal e vice- versa. Ao dirigir o seu apelo
em favor da duração, o sujeito, imbuído da tmica missiva, está prevendo
sua ruptura iminente. Daí a construção, aparentemente paradoxal, de um
sujeito à espera que o “inesperado faça uma surpresa”. Depois da duração, a
velocidade da ruptura.
P.156
Essa elaboração da espera, verificável em todos os níveis do percurso
gerativo, mantém o sujeito à beira da conjunção, ainda que reservando-lhe as
funções passivas. Se, em Volta, os valores emissivos, conduzidos por um
fazer também emissivo (cf. abaixo p. 153), concentram-se sobretudo na fase
imediatamente posterior à aceleração do apelo, preenchendo as etapas
omitidas, em Eu e a brisa, esses valores ocupam a fase que antecede a
aceleração de um possível “inesperado”, fazendo do próprio apelo (“Fica!”)
um motivo de continuidade. A NECESSIDADE de conjunção justifica, no
primeiro caso, a urgência da aceleração efetuada pelo corte-abertura
emissivo (<parada da parada>). A POSSIBILIDADE de conjunção, no
segundo caso, justifica a desaceleração e, nos níveis mais superficiais, a
“paciência” e a “esperança” de um sujeito que, enfim, /pode esperar/.
O /querer estar em conjunção/ do sujeito de Eu e a brisa conta com o
/poder ser/, com a POSSIBILIDADE aberta pela presença do destinador
(“brisa”) que, no quadro das modalidades aléticas, ocupa o termo /não dever
não ser/. A síntese discursiva de tal possibilidade vem expressa no verso:
Oh brisa fica pois talvez quem sabe...
E para concluir essa seqüência, em que examinamos a repercussão
das escolhas operadas no nível missivo sobre os níveis menos abstratos,
nada mais procedente que a abordagem da letra de Sonhos que, além de
apresentar uma resolução pouco comum desses valores tensivos,
complementa nosso quadro de caracterização alética do nível modal.
Tudo era apenas uma brincadeira
E foi crescendo, crescendo, me absorvendo
E de repente eu me vi assim completamente seu
Vi a minha força amarrada no seu passo
Vi que sem você não há caminho, eu não me acho
Vi um grande amor gritar dentro de mim como eu sonhei um dia
Quando o meu mundo era mais mundo
E todo mundo admitia
P.157
Uma mudança muito estranha
Mais pureza, mais carinho, mais calma, mais alegria
No meu jeito de me dar
Quando a canção se fez mais forte e mais sentida
Quando a poesia fez folia em minha vida
Você veio me contar dessa paixão inesperada
Por outra pessoa
Mas não tem revolta não
Eu só quero que você se encontre
Ter saudade até que é bom
Melhor que caminhar vazio
E a esperança é um dom
Que eu tenho em mim
Eu tenho sim
Não tem desespero não
Você me ensinou milhões de coisas
Tenho um sonho em minhas mãos
Amanhã será um novo dia
E certamente eu vou ser mais feliz
As gradações e os limites alternam-se durante todo o texto dando
mostras de um equilíbrio na seleção dos valores emissivos e remissivos
elaborada pelo sujeito da enunciação. A continuidade é sempre gradativa e
crescente e a <parada> sempre brusca e incisiva, criando, ambas, a urgência
da ordem seguinte. Assim, a imperfectividade do primeiro verso,
Tudo era apenas uma brincadeira
recebe, no interior de sua duração, uma intensificação gradativa,
E foi crescendo, crescendo, me absorvendo
que determina a aceleração do verso seguinte:
E de repente eu me vi assim completamente seu
Segue-se uma série perfectiva de recomposição das etapas omitidas
por esse salto descontínuo,
P.158
Vi a minha força amarrada no seu passo
Vi que sem você não há caminho, eu não me acho
Vi um grande amor gritar dentro de mim como eu sonhei um dia
até que retoma o aspecto imperfectivo desacelerando novamente o processo:
Quando o meu mundo era mais mundo
E todo mundo admitia
O ritmo se confirma, um pouco mais adiante, com o reaparecimento da
intensificação gradativa,
Quando a canção se fez mais forte e mais sentida
Quando a poesia fez folia em minha vida
que culmina com uma aceleração vertiginosa provocada pela <parada> ou, se
preferirmos, pela implosão do programa narrativo que vinha se configurando:
Você veio me contar dessa paixão inesperada
Por outra pessoa
Na última estrofe, recupera-se o processo fórico e os valores
emissivos, mas numa nova orientação que aparecerá, nos níveis seguintes
soba forma de novo arranjo modal e novo programa narrativo.
Diferentemente das canções anteriores, os valores emissivos não se
convertem, aqui, em espera. Esta é apenas um elemento pressuposto no
passado (“Vi um grande amor gritar dentro de mim como eu sonhei um dia”).
O fazer emissivo manifesta-se diretamente nas mencionadas identidades e
transições entre actantes. Nesse sentido, Sonhos conserva algumas
semelhanças com relação a Eu e a brisa e Volta\ a perspectiva de uma
comunhão plena com o objeto flexibiliza as funções de ativação e passivação
de forma que, repentinamente, o sujeito se capturado pelo objeto (“...me
absorvendo / E de repente eu me vi assim completamente seu”). E o sujeito
experimenta, de fato, a euforia da conjunção como um estado de fusão plena,
onde os dois actantes representam a mesma entidade:
P.159
Mais pureza, mais carinho, mais calma, mais alegria
No meu jeito de me dar
Grosso modo, porém, se esta canção se assemelha às demais no que
tange à seleção primordial dos valores missivos e à sua alternância na
temporalidade do texto, ela confirma sua singularidade na cobertura modal,
narrativa e figurativa desses valores.
Pela mesma razão que constatamos não haver espera, ou mesmo
uma caracterização volitiva, para investir as projeções emissivas, não
também o contra-fluxo, o anti-programa que obriga o sujeito a parar,
recobrindo os valores remissivos. Não existindo a função que separa ou
afasta o sujeito da trajetória objetal, desaparece a causa principal da espera.
Mesmo quando a <parada> vem recoberta pela formulação mais típica da
intervenção de um anti-sujeito,
Você veio me contar dessa paixão inesperada
Por outra pessoa
a imediata neutralização das paixões (“Mas não tem revolta não/ ...Não tem
desespero não”), supostamente originárias de uma atuação antagonista ou
mesmo do simples sentimento de falta, desfaz essa linha de leitura, definindo
a <parada>, não como interrupção provisória do curso fórico, mas como
finalização de uma narrativa que conquistou plenamente seus objetivos. Se
o desfecho foi inesperado para o EU como actante sujeito não o foi para o
destinador julgador, outra função sincretizada pelo mesmo ator, que, para a
semiótica, sempre surge no momento terminativo, revelando que os valores
remissivos e emissivos do percurso narrativo em questão estão esgotados.
[NOTA 37]
Mais expressiva ainda que a relação objetal examinada nas duas
primeiras estrofes, a relação subjetal vai paulatinamente definindo o sujeito
EU como sujeito-destinatário (mais destinatário que sujeito) submetendo-se à
orientação traçada pelo ator VOCÊ no papel de destinador persuasivo:
P.160
Vi a minha força amarrada no seu passo
Vi que sem você não há caminho, eu não me acho
Nessa ótica, o êxito da conjunção sujeito/objeto durante as etapas
iniciais deve-se mais ao que resultou como experiência e aprendizagem que
ao vínculo em si. Ou seja, para além da identidade, que regula a dependência
entre os dois actantes, a orientação que o destinador transfere ao
destinatário capacitando-o a desenvolver outros programas narrativos. Isso
justifica a imediata adoção, por parte do sujeito EU, de novo programa tendo
como recurso apenas a orientação adquirida na relação anterior:
Melhor que caminhar vazio
E a esperança é um dom
(...)
Não tem desespero não
Você me ensinou milhões de coisas
Portanto, na última estrofe, o projeto emissivo se esboça com um
sujeito competente mas tendo em vista um objeto ainda difuso (a felicidade)
que não lhe permite traçar uma diretividade precisa. Por isso, a letra constrói
a figura da esperança e não da espera. Aquela é menos tensa e se
caracteriza como resolução de um /crer/ enquanto esta se define em
relação ao objeto e manifesta, acima de tudo, um /querer/.
Tais são as condições que determinam o tratamento peculiar que
Sonhos reserva ao seu único momento disjuntivo. [NOTA 38] Em vez de se
converter em falta a ser reparada, de alguma forma, no decorrer do texto, o
novo estado absorve a experiência anterior como programa auxiliar que deve
compor a competência do sujeito em sua narrativa principal (a busca da
felicidade). O /querer estar em conjunção/ com o objeto, que afinal faz da
disjunção um fato inesperado, compatibi-
P.161
liza-se então com o termo /não dever ser/, ou seja, com a não necessidade de
estar em conjunção. Objeto desnecessário é objeto marcado por sua
DISPENSABILIDADE na esfera das intenções do sujeito.
- CIFRA MODAL E CIFRA SILÁBICA
Essas quatro letras descritas ilustram as diferentes formas de
tratamento que podem ser atribuídas aos primeiros valores selecionados pelo
sujeito enunciativo no nível missivo. Destacamos, sobretudo, o aspecto de
sua conversão modal - aquele que define a existência modal dos objetos e,
por extensão, dos sujeitos - que vai incidir diretamente sobre as junções
narrativas. Assim, por exemplo, no quadro das categorias modais aléticas, a
noção de /dever ser/ pode recobrir um valor emissivo, determinando, no nível
narrativo, uma necessidade de conjunção entre sujeito e objeto. Um /dever
não ser/, como vimos, normalmente converte um valor remissivo e se
reapresenta, no nível narrativo, como impossibilidade de conjunção entre os
dois actantes. A projeção dessas quatro canções sobre os termos do
quadrado semiótico do /dever ser/ [NOTA 39], poderia apontar para algumas
especificidades configuradas nessa etapa, ainda abstrata, do percurso
gerativo:
P.162
À luz da silabação, Eu disse adeus e Volta traduzem, respectivamente,
a seqüência “implosiva” (») e a seqüência “explosiva” («). [NOTA 40] A
primeira letra fixa-se na obstrução total da narrativa sem deixar margem a
qualquer continuidade. A segunda tem como núcleo uma abertura para o
reencontro do objeto. O movimento silábico, ora em direção à consoante, ora
em direção à soante, contém a representação microcósmica dessas duas
canções. Mas podemos ir além. A minuciosa preparação, em Eu e a brisa, se
processa como um cultivo da duração que precede imediatamente a
transformação -esperada como fechamento repentino da duração (“o
inesperado faça uma surpresa”) - cuja ocorrência depende justamente da
POSSIBILIDADE. Estabelecendo a mesma aproximação e guardando as
devidas proporções, cremos que esta letra preenche as condições do
conceito de “ponto vocálico” (< >) saussuriano que também se define como a
duração sonora (“soante”) que contém os germes da oclusão subseqüente.
E, finalmente, o caráter sucessivamente implosivo e explosivo de Sonhos,
suspendendo uma narrativa para, no mesmo ato, deflagrar outra, vem de
encontro à noção de “fronteira silábica” (> <) [NOTA 41], construída a partir do
contraste entre uma progressão terminativa e outra incoativa:
P.163
Você veio me contar dessa paixão inesperada
Por outra pessoa
Mas não tem revolta não
Eu só quero que você se encontre...
A equivalência com a seqüência implosiva e a fronteira silábica
contribui para destacar a importância atribuída ao fazer remissivo nas letras
de Eu disse adeus e Sonhos. Ambas selecionam o limite, a <parada>, como
foco imprescindível ao seu relato. Mas os conceitos silábicos sugerem
também os diferentes tratamentos que os valores remissivos receberão,
durante as etapas gerativas, em cada canção. A seqüência implosiva de Eu
disse adeus aponta para o gesto inevitável de suspensão fórica, de disforia,
onde o sujeito seus desejos tolhidos por uma espécie de intolerância ética
que toma a conjunção impossível. A fronteira silábica, que marca a passagem
de uma seqüência implosiva para uma seqüência explosiva, corresponde, no
plano do conteúdo, à suspensão de um programa narrativo para dar lugar,
imediatamente, ao nascimento de outro. Desse modo, o fazer remissivo, em
Sonhos, é incorporado nos níveis modal, narrativo e discursivo como
elemento que assinala a fronteira entre duas fases, igualmente eufóricas, do
sujeito, sem a implicação dramática contida na canção anterior. A aceitação
da <parada> como simples acidente de percurso é um conteúdo que se
depreende da relação entre o modal e o narrativo, quando o estado de
conjunção do primeiro programa é considerado dispensável (/poder não ser/)
para a realização plena do sujeito.
A aproximação com a seqüência explosiva e o ponto vocálico serve,
por outro lado, para destacar a escolha comum do fazer emissivo nas letras
de Volta e Eu e a brisa e para salientar, como nos casos anteriores, as
especificidades de tratamento modal e narrativo. Enquanto Volta tem como
núcleo o apelo que instaura a <parada da parada> (v. acima p. 153),
responsável pela direcionalidade e pela atuação conjunta do desejo e da
necessidade do sujeito, Eu e a brisa investe na duração que antecede uma
possível transformação. Se a explosão de “Volta!” designa a fase inicial de
retomada emissiva, o “ponto vocálico” preservado em Eu e a brisa visa
estender a duração como se fosse possível exercer um certo controle sobre a
vinda inexorável da implosão.
P.164
Assim como a silabação constitui uma forma constante subjacente a
todas as “espécies” fonológicas que venham a preenchê-la [NOTA 42]
- e isso
lhe assegura um elevado grau de generalidade, a ponto de fornecer
parâmetros rítmicos para os modelos sintáxicos do plano do conteúdo o nível
tensivo-fórico, além de oferecer uma base temporal e espacial para a
dinâmica das conversões de valores no percurso gerativo, ainda devolve ao
plano da expressão alguns critérios descritivos altamente compatíveis com o
devenir da sonoridade.
Desse modo, se no capítulo anterior acompanhamos a influência da
silabação sobre as atuais reformulações dos modelos semióticos, estudando
a canção a partir de seu componente melódico de expressão, mas sem deixar
de examinar as implicações de tal abordagem no conteúdo do componente
lingüístico, agora tomamos o itinerário inverso e, depois dessas aproximações
descritivas centradas sobretudo nas letras, pretendemos finalizar este capítulo
mostrando a repercussão das escolhas elaboradas no nível missivo também
na constituição da melodia.
- ANÁLISE DAS MELODIAS
Levando ainda em conta as quatro canções descritas, não é difícil
identificarmos algumas correspondências de elaboração dos valores missivos
em seus dois planos.
Em Eu disse adeus, por exemplo, a seleção da ordem remissiva se
traduz em boa parte pela recorrência do mote “Eu disse adeus” durante toda a
apresentação da letra, enfatizando a descontinuidade fórica da relação
objetal. Pois o mesmo valor remissivo pode ser verificado nos saltos
intervalares que, associados ao andamento desacelerado da música,
instauram a pertinência da “verticalização” e, em três impulsos, transportam a
região melódica para o topo da tessitura (cf. Ex. 48):
P.165
O salto, como vimos, é sempre uma descontinuidade melódica que
estabelece um movimento veloz nas oscilações de altura e que, em geral,
pede uma compensação em graus imediatos, como se fosse necessário
reparar a duração omitida na passagem brusca de um tom a outro. Daí os
motivos contínuos que sucedem cada salto, proporcionando um “estágio”
pouco mais duradouro nos patamares atingidos pelos tons agudos (cf. Ex.
49):
P.166
Se o salto, nesta canção, representa a forma mais direta de tratamento
dos valores remissivos no componente melódico - estabelecendo
descontinuidades fóricas no eixo da altura, ainda que parcialmente atenuadas
pelos graus conjuntos ilustrados acima -, a gradação, numa escala extensa,
impõe um controle de direcionalidade e, conseqüentemente, uma ordem no
tempo sucessivo. Basta acompanharmos a progressão das sílabas mais
agudas, assinaladas abaixo, para verificarmos a medida da gradação cujo
desfecho, com temas reiterativos, reproduz a mesma lei no sentido horizontal.
(Cf. Ex. 50)
P.167
Exemplo 50:
A gradação estabelece etapas e, de certa forma, recupera o que possa
haver de “precipitação” nos saltos intervalares. Trata-se, na verdade, de uma
dupla negação. A importância do salto, vimos, é proporcional à força de
desaceleração musical. Se os tons duram mais, a distância entre eles, no eixo
da freqüência, torna-se mais acentuada em virtude da alta definição dos dois
pólos de altura: acirra-se o contraste. Desse modo, a transferência repentina
de uma região de tessitura para outra constitui, quase sempre, um gesto de
velocidade que nega o andamento primordial das canções comprometidas
com a duração. Quando os saltos, intensos por natureza, são reincorporados
pela gradação, numa ordem extensa - caso manifestado em Eu disse adeus -,
temos então a negação da velocidade, ou seja, o restabelecimento das
etapas de progressão num âmbito mais amplo. A lei de gradação instaura
previsibilidades que atenuam os efeitos dos “sobressaltos”.
Entretanto, como sempre, ambas as dimensões (intensa e extensa)
continuam fazendo valer os seus sentidos respectivos dando margem a
correspondências - variáveis de canção para canção - com o
P.168
plano do conteúdo. A evolução melódica através dos saltos impõe a
velocidade do processo descontínuo e, conseqüentemente, provoca a falta
dos movimentos contínuos intermediários que dariam tempo ao tempo ou,
mais precisamente, duração ao tempo. Essa fratura melódica corresponde,
quase sempre, à disjunção que origem à falta objetal assinalada na letra.
No caso desta canção, o salto é a manifestação melódica do mesmo sujeito
que o seu desejo sendo definitivamente tolhido pelos valores éticos de
uma instância transcendente. Essa condição passional de perda - que, na
melodia, se traduz pela disseminação das descontinuidades intervalares -
mantém-se durante toda a trajetória musical ainda que fazendo parte do
arranjo extenso regulamentado pela gradação. Algumas correlações podem
então ser efetuadas.
A opção pelo movimento desacelerado [NOTA 43] constitui em si
uma primeira forma de apreensão extensa da foria, onde a desaceleração
corresponde à preservação de durações. Trata-se do mesmo gesto que
instaura, no plano do conteúdo, a infinitização como valor pressuposto. A
tendência natural - cuja descrição pode ser expressa no jogo dialético das
conversões no percurso gerativo -, a partir desses compromissos
fundamentais com a desaceleração (que relevância às inflexões verticais)
e com a infinitização, é a negação missiva desses processos por intermédio
de limitações e descontinuidades que produzem transformações bruscas
tanto na Expressão (saltos, transposições) como no Conteúdo (rupturas
objetais e subjetais). A grande maioria das canções românticas pode
confirmar essa tendência com suas vastas explorações do campo de tessitura
ao lado dos constantes casos de separação e perda afetiva. Tais alterações
preenchem as condições teóricas mínimas para se operar com as oscila-
P.169
ções do tempo: o ritmo entre velocidade e duração faz com que a escolha de
uma se reverta em escolha da outra como seu destino invariável. Não
como evitar saltos, transposições ou outras formas de movimento
descontínuo (veloz) nas canções lentas, assim como não se pode prescindir
do termo disjuntivo para analisar os vínculos subjetais e objetais considerados
em suas letras.
Eu disse adeus não foge à regra nessas primeiras etapas de conversão
gerativa. A opção pelos valores remissivos vem negar, nos dois planos
semióticos (Expressão e Conteúdo), a força de infinitização que, por sua vez,
continua operando como processo latente que pode emergir a qualquer
momento. Afinal, não podemos esquecer, a estratificação gerativa é apenas
uma representação esquemática e espacializada da extensão temporal que
contém, simultaneamente, todos os seus níveis. De fato, os valores
emissivos, negados juntamente com a infinitização, retomam no componente
melódico na forma do projeto gradativo verificado na ordem extensa (cf. p.
167). Na letra, porém, as coisas não se sucedem com a mesma
previsibilidade. Em geral, a falta do objeto se traduz modalmente por um
/querer/ recuperá-lo e pela configuração de um percurso narrativo em sua
direção. O estado de espera em que se situa o EU enunciativo anuncia
então uma retomada prévia do vínculo juntivo (uma conjunção com o tempo
que leva ao objeto) e, portanto, um reaproveitamento do fazer emissivo. Em
Eu disse adeus, a definição precoce da relação objetal como disjuntiva
pressupõe, no nível dessa relação, um estágio terminativo onde a sanção
ganho de causa ao anti-sujeito. Essa disforia atravessa todos os estratos
gerativos até atingir a forma de mote no nível figurativo: “Eu disse adeus”.
Entretanto, a mesma ordem ética que assume os valores remissivos tanto no
nível narrativo, fazendo prevalecer o /dever/ sobre o /querer/, como no nível
narrativo, fazendo prevalecer a não-conjunção sobre a conjunção, acolhe
também os valores emissivos na esfera das relações subjetais, regulando a
atuação de um sujeito ativo, moralizador, sobre um sujeito passivo que aceita
sem restrição - mesmo que em prejuízo de sua própria realização volitiva -
suas determinações. Tal relação intersubjetiva reproduz o elo contratual que
define a ascendência do destinador sobre o destinatário. então, nesse
nível emis-
P.170
sivo, pode-se falar em compatibilidade entre letra e melodia. O fluxo contínuo
que estabelece a transição - sem obstáculos - entre fazer persuasivo do
destinador e fazer interpretativo do destinatário corresponde à gradação que
instaura uma regra para o encaminhamento da melodia, criando um fundo de
homogeneidade, um regime extenso de compensação das elevações bruscas
dos saltos.
Volta e Eu e a brisa são canções que exigem menos recursos
descritivos para se chegar aos termos de compatibilidade entre letra e
melodia. Como a anterior, ambas operam sobre uma apreensão desacelerada
da foria mas se diferenciam no modo de negar as durações e estabelecer o
ritmo missivo.
No caso de obra de Lupicínio, o fluxo fórico recebe um tratamento
musical que valoriza suas durações por meio de movimentos conjuntos tanto
na ordem intensa como na ordem extensa: graus imediatos e gradação (cf.
Ex. 51).
Exemplo 51.
P.171
Tais expedientes musicais associados à reiteração dos motivos no
plano horizontal respondem, todos, pela confirmação da desaceleração (cf.
quadro à p. 180) e, conseqüentemente, pelo alongamento da situação de
inquietude descrita na letra. Assim como, no plano do conteúdo, o sujeito
enunciativo encontra-se num estado continuado de disforia, onde experimenta
a falta do outro como desintegração da própria identidade, a notável
concatenação melódica, no plano da expressão, ao mesmo tempo que
elabora a duração, a permanência neste mesmo estado, aguça, com sua
atuação quase que exclusivamente lenta, a necessidade do valor
complementar: a velocidade. A diferença está no fato de que a falta, retratada
na letra, desperta o /querer/ transformador do sujeito enquanto que o excesso
de duração acumulado no plano melódico impõe, de acordo com a rítmica
básica inscrita na silabação, um “/dever/” de transcendência desse modo
operatório. Afinal, o destino inexorável da implosão é a explosão, a retomada
do fluxo rico, a forma natural de dissipação da tensão contida. A
desaceleração excessiva da melodia e o estado disfórico na letra descrevem,
no fundo, o embaraço vivido pelo sujeito da enunciação que não pode
prolongar indefinidamente o seu estado de carência.
Se todos esses recursos empregados na primeira parte estão a serviço
do prolongamento intensivo do estado disjuntivo que, como
P.172
tal, pode ter sido produto de uma atuação remissiva anterior, cumpre-nos
compreender toda essa etapa como <continuação da parada>, como
continuação dos efeitos do anti-programa sobre o programa do sujeito.
Forçoso reconhecer, por outro lado, que não havendo qualquer dispositivo de
compensação para a falta na letra e para o excesso na melodia e,
conseqüentemente, não havendo meio de conservar por muito tempo os
valores emissivos conduzidos por esta última sob controle do estado
remissivo definido pela primeira, o grau de tensão vai se tornando
insustentável até que essa ordem geral de contenção é rejeitada em bloco
pelo sujeito enunciativo.
A interrupção melódica desse quadro ocorre em duas oportunidades,
mas só na segunda pode ser realmente descrita como <parada da parada>. A
primeira aceleração, no eixo vertical, praticada, de forma intensa, por um
amplo intervalo de 12 semitons (cf. Ex. 52) é imediatamente absorvida como
dispositivo de conexão com o reinicio do material melódico, tendo por base a
orientação extensa traçada pela harmonia. De qualquer maneira, o salto,
nesse contexto, atende parcialmente às necessidades do sujeito enunciativo
que deseja instaurar uma descontinuidade e, em última instância, alterar o
rumo de seu programa.
Exemplo 52.
P.173
A transformação decisiva no componente melódico coincide com a
mesma no âmbito da letra. De fato, o expressivo salto melódico (cf. Ex. 53) -
cujo caráter incoativo, separando a primeira parte da segunda, tem um sabor
de transposição
[NOTA 44] -, recai sobre o momento central do apelo fazendo
com que, na melodia e na letra, a desaceleração seja, por fim, negada.
Exemplo 53.
Se o apelo interrompe a inquietude passiva do sujeito, instaurando o
registro da espera e da direcionalidade, o salto intervalar entra em fase com a
abertura da segunda parte, e essas duas expressões do movimento remissivo
negam o que era da ordem remissiva, ou seja, o que vinha se
configurando como excesso na <continuação
P.174
da parada>. Nesse instante, tem início a seqüência explosiva que estamos
definindo como <parada da parada> e que é central na construção do sentido
de Volta. A nova progressão gradativa que vem a seguir, com intervalos
internos mais dilatados (cf. Ex. 54), tem a função de reconstituir a duração, a
continuidade, e de compensar a velocidade imprimida pelo salto. Trata-se de
uma operação expansiva que agrega valores emissivos dentro de uma ordem
também emissiva. Tal <continuação da continuação>, se é que podemos
assim conceber, converte-se em narrativa projetada mas não concluída,
solução aliás muito utilizada em canções, deixando a cargo do
encaminhamento harmônico paralelo a finalização formal da peça.
Exemplo 54.
Se, em Volta, a <continuação da parada> é um estágio preparatório
que sinaliza intensamente sua própria interrupção, no caso de Eu e a brisa,
de acordo com o que estudamos, o sujeito enunciativo cultiva a
permanência no estado disjuntivo como a melhor forma de se expor a um
possível encontro “inesperado”. Para tanto, a melodia de Johnny Alf reproduz
o extraordinário equilíbrio entre
P.175
VELOCIDADE e DURAÇÃO registrado acima (p. 155) na criação da letra.
Todo salto intervalar vem seguido de movimento em graus imediatos e vice-
versa. (Cf. Ex. 55)
Exemplo 55.
P.176
Tal “elasticidade melódica” [NOTA 45] revela uma seleção equilibrada
de valores remissivos e emissivos de modo a favorecer o alongamento da
espera. Não porque sentir a ausência do valor complementar uma vez que
ele é oferecido regularmente em sua dimensão intensa. Saltos e graus
imediatos traduzem, sucessiva e respectivamente, a disforia do sujeito que
tem pressa em alterar sua condição e a euforia do sujeito integrado à
desaceleração e que, portanto, pode esperar.
No plano extenso, poderíamos identificar - dependendo do aspecto
valorizado pela interpretação - uma transposição que a primeira parte tem
início na região grave e a segunda no agudo. (Cf. Ex. 56)
Exemplo 56.
Seria uma intensificação da descontinuidade no eixo vertical,
contribuindo para a negação do movimento lento e gradativo que ca-
P.177
racteriza a espera. Nesse caso, porém, teríamos que constatar,
simultaneamente, a gradação-repetição que permeia a condução de ambas
as partes - gradação crescente na primeira e decrescente na segunda (cf. Ex.
57) - concorrendo para o engate na desaceleração e para a tradução contínua
do fluxo fórico. De qualquer forma, não cremos que essas categorias
extensas, de resto um tanto diluídas nas interpretações que privilegiam as
durações, apresentem aqui o mesmo poder de equilíbrio concentrado em sua
versão intensa.
Exemplo 57.
Com efeito, basta a operação de alternância dos saltos com os graus
imediatos para manter a melodia num estado flutuante, sem as tensões que
emanam da urgência de compensação dos valores carentes. verificamos
que apostar com certa exclusividade nos valores emissivos é conduzir a
melodia em direção aos valores remissivos e vice-versa. Quando o sujeito de
Volta aposta na duração, reforçando o modo desacelerado com a gradação,
tudo faz convergir para a velocidade (o salto) que, negando o modo anterior,
confere
P.178
um sentido, uma direção, à melodia. No caso da canção de Johnny Alf, o
ritmo entre velocidade e duração melódica - que reproduz rigorosamente o
ritmo temporal da letra (cf. p. 145) - elimina a urgência da interrupção pois
ambos os valores estão presentes. Note- se que, ao cotejar essa distribuição
regular dos valores missivos pelo sintagma melódico com o estado do sujeito
enunciativo descrito pela letra, não podemos deixar de apurar a adequação
de toda essa elaboração da espera com a condição do sujeito que compensa
sua disjunção objetal com a conjunção subjetal. De fato, o “Eu” aguarda um
contato, de preferência mais duradouro (“E junto a mim queira ficar”), com
“alguém”, mas desfruta o tempo em companhia da “brisa” (destinador).
Ouvimos a falta objetal nos saltos de tessitura e a satisfação subjetal na
seqüência conjugada dos graus imediatos.
Pode-se dizer, enfim, que a melodia de Eu e a brisa adota a maneira
mais complexa e eficaz de segurar o tempo sem alimentar muita necessidade
de progresso, ao deixá-lo escoar, paulatinamente, através dos avanços
verticais que atribuem ao cenário vagaroso das gradações um caráter pouco
mais sucessivo e pouco mais veloz. Mas como a presença dos saltos é
regular e cíclica acaba contribuindo para a permanência do ritmo que tende a
fazer de todo processo um estado.
Tal nuança ajuda a distinguir a <continuação da parada> que precede
o apelo em Volta da <continuação da parada> de Eu e a brisa. Se, na
primeira, os valores emissivos estão a serviço do fazer remissivo construindo
invariavelmente a tensão que leva à <parada da parada>, na segunda, o
equilíbrio dos valores desfaz a hierarquização interna de tal modo que se
toma difícil estabelecer a predominância do fazer enunciativo. O que
chamamos de <continuação da parada> poderia ser também <continuação da
continuação> se não fosse a letra determinar que o sujeito vive uma
descontinuidade objetal traduzida como carência no nível figurativo. Do ponto
de vista estritamente melódico, o que se manifesta é a conjunção com o
percurso, nos diversos estágios de ocupação do campo de tessitura,
expandindo controladamente a duração até que o inevitável “inesperado”
venha suspender o ritmo de alternância e fechar a sonoridade. Nessa
perspectiva, identificamos Eu e a brisa com o ponto vo-
P.179
cálico da silabação saussuriana uma vez que um investimento especial no
aspecto “soante” da espera passional e melódica.
Desnecessário dizer que esses mesmos recursos musicais poderiam
ser empregados em nome de formas narrativas e discursivas completamente
distintas das configuradas por essa letra sem perder o seu elo de
compatibilidade, porquanto que a utilização dos valores emissivos e
remissivos - asseguradores deste elo - tanto no componente melódico como
no componente lingüístico, é uma prática inevitável em todo processo de
composição.
Esses três exemplos estudados são típicos de uma apreensão
extensiva e passional da foria. As três canções valorizam a tonalização que
faz do percurso melódico uma conquista inegável do espaço de tessitura.
Afinal, quanto menos velocidade mais duração e, conseqüentemente, mais
espaço a percorrer. A ocupação do espaço melódico produz o que chamamos
de efeito de verticalização, onde os movimentos de elevação e descendência
adquirem especial relevância na caracterização do sentido global da obra.
Voltamos aqui a uma questão crucial da análise melódica: a seleção
primordial do andamento. A apreensão musical do elã fórico como movimento
acelerado ou desacelerado define um caráter geral de expansão que serve de
base para uma redistribuição dos valores emissivos e remissivos. [NOTA 46]
A introdução desses valores na pequena tabela conceptual que vimos
construindo apresenta, não uma lei de compatibilização, mas apenas uma
certa ordem de predisposição de ocorrência.
P.180
EXPANSÃO
velocidade horizontalidade
EXPANSÃO
duração verticalidade
EMISSÃO
intensa
refrão
gradação
EMISSÃO
extensa
tematização
graus imediatos
REMISSÃO
intensa
desdobramento
salto
REMISSÃO
extensa
segunda parte
transposição
Essas noções, enquanto tais, migram, com freqüência, da série
“velocidade” para a série “duração” e vice-versa. Enquanto funções,
entretanto, mantêm interações sintáxicas precisas. Os valores emissivos
negam a velocidade e confirmam a duração. O refrão, por exemplo, é um
conceito que se refere à estabilização, à desaceleração, do progresso
seqüencial de uma canção veloz, assim como a gradação recompõe, etapa
por etapa, a evolução do percurso de uma melodia lenta. Os valores
remissivos, por sua vez, negam a duração e confirmam a velocidade. Se a
segunda parte recupera o percurso neutralizado pelo refrão, reavivando a
transformação e a prosperidade no eixo horizontal, a transposição expande
repentinamente o campo de tessitura, provocando síncopes que omitem as
durações intermediárias.
duração (eixo vertical)
valores emissivos
confirmação
valores remissivos
negação
P.181
Os valores emissivos são objetos dos programas melódicos eufóricos
responsáveis pela reconstituição da duração perdida. Esse processo é
correlato à reconstituição do elo entre sujeito e objeto de valor. Nesse sentido,
podemos identificar “programa melódico” (PM) com desaceleração [NOTA
47], tanto na série velocidade como na série duração, e defini-lo como busca
dos valores emissivos. Se a expansão selecionada é a velocidade, o PM vai
negar a escolha em nome da integridade do sujeito. Ao contrário, se a
escolha primordial recai sobre a duração, o PM vai confirmar a opção por
meio da recomposição gradual da trajetória melódica.
Os valores remissivos são objetos do anti-programa melódico que
indicam a presença inevitável das forças antagonistas no plano musical. Ao
mesmo tempo que respondem pelo progresso melódico, tanto no eixo
horizontal como no eixo vertical, através de desdobramentos do material
musical e de expansões bruscas do campo de tessitura, os elementos
remissivos decompõem o núcleo melódico, precipitando a passagem para
outros itinerários e outras regiões de altura. Tal precipitação, que se define
pela transição descontínua de uma etapa à outra, faz do anti-PM um processo
de aceleração que vai confirmar a velocidade como expansão e negar a
duração.
Assim, Sonhos, a última canção do conjunto que vimos analisando,
define-se pela busca dos valores emissivos tanto na letra como na melodia.
Considerando que comentamos a discreta presença da função antagonista
em seus versos - a perda do objeto é neutralizada em proveito da aquisição
de competência para um novo programa narrativo - resta-nos destacar as
soluções que atribuem um peso especial ao programa melódico em sua
missão de estabelecer a duração e, por seu intermédio, o vínculo entre sujeito
e objeto.
Do ponto de vista da velocidade, no registro extenso, a última estrofe
configura-se como refrão, com letra e melodia cristalizadas sob a atuação de
um pulso vigoroso que reforça, no acompanhamento
P.182
instrumental, o modo ataque-acentuação peculiar à concentração melódica.
No registro intenso, a tematização estrutura internamente o refrão a partir da
contraposição dos dois motivos (cf. Ex. 58).
Exemplo 58.
O refrão e a tematização, como vimos, são práticas de recorrência
cuja função precípua é justamente a de criar zonas de contenção no interior
de uma expansão veloz. Nesse sentido, dizemos que essas práticas
restabelecem o PM ao negar o contexto geral de velocidade melódica
evitando a dispersão dos temas e, conseqüentemente, a fratura da relação
objetal. A concentração da foria, nesse caso, é o que garante o compromisso
com os valores emissivos e com as identidades inerentes à relação entre
sujeito e objeto.
Do ponto de vista da duração, no registro intenso, temos os graus
imediatos que se manifestam, nas partes iniciais, como movimento oscilatório
entre tons ou semitons (cf. Ex. 59) e, no registro extenso, a gradação que
regulamenta a progressão dos tons graves no decorrer do refrão. (Cf. Ex. 60).
P.183
Exemplo 59.
P.184
Exemplo 60.
P.185
Acontece que, nesta canção, a separação entre os dois principais
programas narrativos da letra vem expressa, na melodia, pelo contraste entre
duas ordens de expansão: duração nas primeiras estrofes e velocidade na
última. A presença de ambas as ordens na mesma canção cria um modo
operatório favorável às migrações de recursos de uma para a outra,
proporcionando novos sentidos no aproveitamento melódico. A gradação
descendente que acabamos de citar constitui exemplo típico da migração de
um processo de expansão vertical para a ordem da velocidade, onde, em
geral, prevalece os traços de evolução horizontal da obra. Como se não
bastasse, o próprio anti-PM, que, nesse contexto, manifestaria sobretudo as
características de desdobramento horizontal, surge também como
desaceleração repentina, onde a transposição do material melódico para o
ponto culminante da tessitura expõe com toda a crueza a presença dos
valores remissivos representativos da duração. (Cf. Ex. 61)
P.186
Exemplo 61.
Se considerarmos ainda que os próprios motivos da tematização
absorvem em seu pulso intervalos de amplitude pouco comum nesse gênero
de evolução melódica (cf. Ex. 62),
P.187
Exemplo 62.
não podemos deixar de verificar a presença de uma força expansiva, de
abertura crescente, apontando para a duração, para a extensão passional,
tudo isso em meio à forma predominante da concentração melódica cujo
caráter veloz e nuclear (refrão) é inegável. Em outras palavras, a migração de
recursos próprios da duração para a última estrofe de Sonhos, regida pela
velocidade, tem por função não apenas deter a aceleração - tarefa
cumprida pela tematização - mas, principalmente, criar um espaço de duração
que reintegre o sujeito com o seu percurso, ou seja, com o PM que traça a
relação extensa entre sujeito e objeto. A transferência dos valores, emissivos
e remissivos, da etapa inicial para o interior do refrão faz da concentração
melódica uma tendência à extensão, processo correlato à cadeia explosiva
silábica. E a ressonância desses sinais da abertura, na letra, parece-nos
evidente:
Amanhã será um novo dia
E certamente eu vou ser mais feliz
P.188
O exame melódico das estrofes iniciais oferece-nos a contrapartida
desse processo. Apesar da escolha de uma expansão inequivocamente lenta
- que o contraste com a melodia do refrão não deixa margem à dúvida a
exploração do campo de tessitura, da verticalidade, é muito discreta. A
gradação, ascendente ou descendente, vem substituída por uma oscilação de
tons ou semitons, cuja recorrência está mais próxima da tematização, embora
despojada de pulso, que das progressões imediatas próprias da duração. (Cf.
Ex. 63)
Exemplo 63.
P.189
Mesmo passando por breves momentos de maior amplitude oscilatória
(cf. Ex. 64), a tendência sobejamente expressa no encadeamento melódico
das duas primeiras estrofes é a de fechamento do espaço de tessitura e
concentração no sentido horizontal da melodia (cf. demais segmentos dessa
parte inicial na Ex. 65).
Exemplo 64.
P.190
Exemplo 65.
P.191
Tais recursos, típicos da expansão acelerada, vigorando em plena
duração, reforçam a condição de extensão decrescente que essa melodia
possui por contracenar com as características forçosamente centrípetas do
refrão. Em outros termos, dirigir-se ao refrão significa concentração daquilo
que de abertura melódica (tanto no sentido de “segunda parte” [NOTA 48]
como de “passionalização” dos contornos); servir-se antecipadamente dos
recursos do âmbito da velocidade (horizontalização, tematização etc.)
significa aprofundar a oclusão silábica, o movimento involutivo, consolidando
não apenas uma <parada> mas uma verdadeira finalização. E o paralelismo
com a letra é flagrante:
Você veio me contar dessa paixão inesperada
Por outra pessoa
A tendência para a concentração na parte inicial, contrapondo- se à
tendência para a extensão no refrão, faz de Sonhos uma versão
macroscópica da fronteira silábica saussuriana ( >< ) e, podemos dizer, agora,
que tanto na letra como na melodia.
V
DESCRIÇÃO
La limite entre verbe et nom tend à s'effacer... la raison est que tout
verbe fini (base nue) est un nom potentiel, et que tout nom est un verbe
potentiel; tout verbe peut se transformer en nom; tout nom (base nominale)
peut se transformer en verbe.
Louis Hjelmslev
Em complementação ao capítulo anterior, propomos agora o exame do
programa melódico de uma composição que apresenta, como escolha
primordial de andamento, a velocidade. Sina (cf. Ex. 66), de Djavan, além de
se pautar pela farta distribuição dos ataques, dos acentos e dos processos
gerais de concentração próprios da celeridade, exibe uma letra pouco afinada
com os esquemas convencionais de narrativa, o que nos permite demonstrar
que os fundamentos sintáxicos da relação sujeito/objeto independem da
configuração histórica da manifestação.
Outra característica desta canção é a imbricação dos valores emissivos
e remissivos por toda sua extensão melódica: o que parece ruptura numa
dimensão pode ser continuidade em outra e vice-versa. Isso, porém, não
constitui dificuldade especial quando se confronta, em todas as etapas
descritivas, os elementos intensos com os elementos extensos, pois que o
sentido, passando por todos, vai deixando as marcas para a sua própria
reconstrução.
P.194
Exemplo 66.
P.195
DESCRIÇÃO DA MELODIA
OPERAÇÕES EMISSIVAS
Lembrando que o programa melódico de uma canção, conforme
concluímos no capítulo anterior, define-se pela busca dos valores emissivos -
pelo restabelecimento dos elos que ligam sujeito e objeto -, podemos iniciar
esta análise pela comparação dos segmentos que, regulados pela mesma
“levada” instrumental, parecem deter a hegemonia do fazer emissivo, embora
apresentem diferenças melódicas marcantes na resolução deste fazer.
Utilizando conceitos que nos são familiares, diremos, de imediato, que os
dois primeiros segmentos, conquanto cumpram função de segunda parte no
plano extenso, garantem a continuidade emissiva (eufórica), no plano intenso,
em função de uma estrutura interna altamente tematizada. O quarto
segmento, em contrapartida, embora exiba um extraordinário desdobramento
interno, mantém uma relação cristalizada com a letra e um programa de
sucessivas repetições que lhe atribuem, no plano extenso, o estatuto de
refrão.
Semelhante à forma de Conversa de botequim, Sina apresenta um
refrão concentrado mas sem oclusão interna e uma segunda par-
P.196
te que expande seu material mas sem muita abertura interna. [NOTA 1]
Entretanto, a canção de Djavan ainda traz uma terceira parte (segmento 3),
fundamental à sua compreensão que abordaremos adiante.
Mas voltemos ao início da análise.
O primeiro e o segundo segmentos perfazem a tematização, onde a
sucessão dos motivos similares tende a se neutralizar, provocando um efeito
de fusão no interior do mesmo pulso. Os pequenos contrastes internos são
absorvidos pela repetição recuperando, por assim dizer, o fluxo contínuo
próprio da foria.
Assim, os fragmentos (cf. Ex. 67):
Exemplo 67.
em periodicidade absoluta, contribuem diretamente para a integração
emissiva e o “retorno da fusão”. Um motivo que compreende por inteiro o seu
subseqüente, abole a dualidade assim como um sujeito em plena conjunção
com seu objeto. Estaria aí, ao que parece, a habitual correspondência entre
melodias com tematização e letras de exaltação.
P.197
Os pequenos contrastes, por sua vez, restauram a sucessão através
da preservação de um mínimo dual (cf. Ex. 68):
Exemplo 68.
Apesar das alterações de suas notas centrais, esses motivos cumprem
a mesma função diante dos fragmentos acima citados: asseguram, por
contraste, uma discreta evolução cronológica mesmo que dominada pela forte
simultaneidade rítmica.
O quarto segmento apresenta uma progressão interna em
desdobramento. A permanência do valor emissivo, que vem sustentada pela
base instrumental de acompanhamento em progressão idêntica à da primeira
parte, se consolida de fato quando a repetição de todo o segmento acusa
sua função concêntrica. De um lado, portanto, no plano intenso, o fluxo
melódico tende à dispersão, desdobrando-se em pequenos fragmentos,
distintos entre si, que evoluem em todas as direções orientados apenas pela
tonalidade principal; reduzidas a durações efêmeras e separadas por pausas
igualmente breves, tais células rítmicas tomam-se mais velozes e passam a
manifestar também uma alteração de temporalidade cinemática. De ou-
P.198
tro lado, no plano extenso, a atuação do refrão desacelera o progresso
melódico, valorizando a duração. (Cf. Ex. 69)
Exemplo 69.
Esse tipo de ordenação melódica pauta seus temas pelo pulso
(altamente prestigiado neste segmento pela aceleração) e por outras regras
que valorizam os acentos, os ataques, a tonalidade e a dinâmica de modo
geral (nesse exemplo, a seqüência de grupos de duas, três ou quatro notas
entremeados por pausas brevíssimas), mas evita o processo de fusão da
periodicidade. Com isso, insere o impulso emissivo num quadro de previsão
da cadeia sintagmática global do segmento sem, contudo, abreviar a rota que
o sujeito enunciativo deve percorrer. Pelo contrário, a tendência é dispersiva
e, mesmo com as regras criadas ad hoc, a direcionalidade dos contornos
permanecería totalmente imprevisível não fosse o parâmetro e as
delimitações traçados simultaneamente pelo acompanhamento instrumental.
A tematização evidencia o controle que o sujeito enunciativo tem da
homogeneidade global da orientação melódica. O desdobramento interno ao
refrão evidencia as tensões de percurso e, conseqüentemente, um fazer
emissivo ainda por se completar. Em outras
P.199
palavras, enquanto este se abre ao ato de conquista do percurso, aquela já se
encontra em estado de integração plena com ele. São duas maneiras distintas
de articular o fluxo fórico sob a regência do mesmo pulso: com a
periodicidade, os motivos se fundem como se fosse possível abolir as
distinções e dispensar o devenir temporal. Nos estágios de prefiguração do
sentido esta tendência corresponderia à fidúcia responsável pela zona franca
da inter-subjetividade. No caso de desdobramento, os motivos se armam
numa trajetória sem interrupções mas com desigualdades que serão
homogeneizadas no término da seqüência. São conversões melódicas da
protensividade que associa subdivisão com orientação e instaura o devenir
propriamente dito.
Essas distinções apontadas na superfície da melodia não podem ser
confundidas com as oposições profundas que traçam as diretrizes
fundamentais para a compatibilidade entre melodia e letra e que regulam o
RITMO geral desses dois componentes alternando fazer emissivo e fazer
remissivo. Nesse sentido, os arranjos instrumentais, quando bem elaborados,
são os mais fiéis intérpretes do que se passa em profundidade. As duas
partes emissivas de Sina, por mais que apresentem diferenças radicais na
condução do perfil melódico, recebem tratamento músico-instrumental quase
idêntico. Tudo como se coubesse ao arranjo desvendar a opção do
enunciador pela predominância emissiva.
OPERAÇÕES REMISSIVAS
Mas não como conceber continuidade sem a presença, ainda que
virtual, da interrupção (basta pensarmos genericamente na apreensão que
acompanha o sentimento de felicidade em função do receio de perdê-la ou,
inversamente, na esperança que subjaz à infelicidade, tomando-a suportável).
Uma se justifica pela outra. Ou, ainda, para aproveitarmos diretamente as
formulações de Zilberberg, ambas se justificam pela parada - a forma da foria.
dissemos que a parada interrompe a continuidade mas também interrompe
a si própria, recomeçando o processo: <parada> vs <parada da parada>.
P.200
O fazer emissivo é aquele que tende a neutralizar as diferenças,
devorando os sintomas da parada (os pequenos contrastes) e, quando esta é
inevitável, interrompendo-a tão logo quanto possível. Entretanto, nada
acontece indefinidamente pois isso equivaleria ao repouso e à própria
anulação do acontecimento. O valor da temporalidade emissiva é proporcional
à intensidade dos valores remissivos implicados. A própria definição do fazer
emissivo como <parada da parada> pressupõe a interrupção na qualidade
de forma primeira. Responsável pela segmentação do tempo, o fazer
remissivo cria obstáculos à sua fluência, substituindo assim a idéia de
evolução temporal contínua por uma espécie de sobrepujança dos focos de
resistência. A propósito disso, Zilberberg comenta o final das narrativas que
normalmente “se abre a um tempo momo, esvaziado, vazio de valores
remissivos”. Sem a perspectiva (ou a espera) da <parada>, a temporalidade
se esvai numa continuidade sem interesse,
como se os valores remissivos triunfassem no mesmo instante em que
sucumbem! [NOTA 2]
Em Sina, os valores remissivos se manifestam em duas fases: a
<parada> propriamente dita, como suspensão da atividade emissiva e a
<continuação da parada> contendo o anti-programa melódico, aquele que
impõe resistência à homogeinização e à busca da simultaneidade. Enquanto
a primeira vem determinada por uma desaceleração repentina, a segunda,
pelo contrário, pratica uma sensível aceleração:
O TOM SOBRE “JAZZ”
A desaceleração que causa um alongamento expressivo da nota sobre
a palavra “jazz”, em suas duas aparições, dirige a atenção para a oscilação
de altura nem sempre muito pertinente nesta can-
P.201
ção. De fato, este tom rebate as durações anteriores que vão se somando e
se concentrando na nota fundamental (cf. Ex. 70):
Exemplo 70.
Essas três notas insistindo na tonalidade contribuem diretamente para
a fusão emissiva produzida pela tematização. São escalas de permanência da
voz em região de tessitura confortável, com duração generosa, e seguidas de
pausa. O corte incisivo sobre “jazz” assinala a contrapartida mais aguda
dessas notas que vêm sendo amalgamadas em nosso ouvido como extensão
da mesma fonte. Portanto, os valores remissivos se expressam aqui também
no eixo vertical, obedecendo a uma regra geral de geração dos segmentos
melódicos e a uma regra específica criada em sua sintaxe de superfície:
a. A regra geral diz respeito à dominância do parâmetro altura quando
a linha melódica é sobre determinada pela desaceleração. Os valores
missivos passam a ser produzidos e examinados no eixo vertical.
b. A regra específica prevê a inversão melódica do pólo de incidência
da duração após três retenções do tom fundamental e a supressão abrupta,
nessa inversão, das duas notas de apoio que ante-
P.202
cedem as durações, tudo isso transformando o que era cíclico em ruptura. Daí
a repetição, logo em seguida, da mesma formulação, apenas com um reforço
da duração sobre “jazz” enriquecido por alguns melismas vocais. (Cf. Ex. 71)
Exemplo 71.
Essa noção de regra sintáxica de superfície tem função precisa na
análise que estamos conduzindo. O corte em “jazz” está longe de significar
uma oposição indesejável à estabilidade da tematização. Sua aparição, pelo
contrário, é resultado de uma programação melódica para traduzir a
alternância RÍTMICA entre fazer emissivo e fazer remissivo desenvolvida por
uma enunciação profunda, anterior a ambos os componentes (lingüístico e
musical). Nessa acepção, as três retenções do tom fundamental operam no
sentido de somar seus alongamentos em função da duração-mor a ser ouvida
quatro semitons acima. Elas caminham em direção ao corte e preparam a
própria interrupção. É nesse sentido que entendemos o remissivo
conduzido embrionariamente pelo emissivo. A insistência nas retenções
tonais não são apenas para reforçar uma periodicidade circular mas para
fundar, ao mesmo tempo, uma direcionalidade que
P.203
pode ser definida como busca da diferença complementar - a mesma que
instaura o devenir. De fato, essa sintaxe que leva a seqüência das três
retenções à duração sobre “jazz” articula um movimento de atração -
constituído pelas identidades entre elas (notas monossilábicas, terminativas,
alongadas etc.) -, através do qual sentimos que a seqüência “pede” a citada
duração como desfecho, como um contra-movimento de repulsão e
preservação das diferenças - assinaladas acima como regra b mas cujo traço
principal, neste caso, é a suspensão da periodicidade - que permite a relação
mas impede firmemente que a duração sobre “jazz” seja absorvida pela
seqüência.
A passagem dessa progressão emissiva inicial para a unidade sonora
“jazz” é a primeira dualidade de peso que permanece como uma das tensões
fundamentais de toda a extensão melódica de Sina. Em momentos assim,
temos a impressão de que algo resiste ao fluir contínuo do tempo,
provocando, com a interrupção, a passagem descontínua de um tempo a
outro. É a sucessão dessas segmentações que impulsiona o progresso
melódico, resultante, no fundo, de um conflito de forças: uma que quer
continuar e absorver e outra que quer parar e separar. E o RITMO temporal é
tanto mais evidente quanto maior a contundência da <parada>.
O tom sobre “jazz”, nesse sentido, diz a que veio. Não se deixa integrar
pela tematização, mas permanece como sua meta sintáxica, sua sina, nas
duas aparições. Atrai e repele. Objeto e abjeto. É uma interrupção prevista
pela regra de superfície da tematização. É o seu ponto final.
E essa convivência conflituosa de duas forças - oriundas do RITMO
profundo que articula fazer emissivo e fazer remissivo - pode ser explicada
pelas altemações de dominância entre os encadeamentos de superfície. O
fato de destacarmos a dominância da tematização nos trechos referidos não
significa a ausência de outros encadeamentos simultâneos, geralmente em
fase de gestação. Dissemos, ainda pouco, que, em função do RITMO
básico presente em qualquer texto, o emissivo leva ao remissivo em busca da
diferença complementar. Dissemos também que essa busca pode ser
observada, no plano da manifestação, pela iteração de identidades que
viabilizam a incorporação da ruptura como parte integrante e coerente com a
P.204
totalidade do texto. Analisando todo esse processo, propomos os seguintes
itens de formulação:
a. A <parada> da tematização, quando da duração prolongada sobre
“jazz”, é a manifestação mais típica do corte remissivo no interior de um
percurso melódico dominado pela aceleração. De fato, os acentos e os
ataques, que vinham sendo disseminados na horizontalidade melódica,
cedem lugar à dominância da duração e, nesse momento, a periodicidade se
interrompe.
b. A função desse tom alongado sobre a palavra “jazz” - duplamente
valorizada na segunda aparição - é realmente tão importante quanto o belo
efeito musical que produz. Seu valor intenso e localizado na vogal de “jazz
faz ressoar o valor extenso do tempo cinemático, retirando da virtualidade
uma desaceleração que sempre esteve presente como progressão recessiva
mas que talvez não aflorasse sem essa intervenção: o tom alongado remotiva
as três retenções precedentes (e suas respectivas pausas), tomando
pertinentes, embora não dominantes, outros parâmetros dependentes da
desaceleração.
c. Assim, podemos depreender, por trás da evidência remissiva, uma
atuação gradativa das durações, conduzida pela força regente da
desaceleração, que institui o tom sobre “jazz” como limite final de um
processo emissivo desenvolvido subrepticiamente no alinhavar deste tom com
as três retenções iniciais. Em outras palavras, a desaceleração é a razão
profunda do movimento de atração que leva as três durações tonais à
duração maior de “jazz”.
d. Justamente em resposta a essa força de desaceleração subjacente,
o ponto de pertinência se desloca também para as oscilações de altura,
reforçando os valores remissivos com o corte vertical. O intervalo de apenas
quatro semitons toma-se significativo em função do alongamento (ou
tonalização) de “jazz”: inverte-se o ponto de equilíbrio. Se o alongamento
retém o tempo na vogal, a valorização do salto intervalar instaura a síncope
vertical, a passagem brusca que omite a duração das etapas transitórias.
Além disso, a elevação do nível de freqüência requer uma execução
necessariamente mais tensa (mais aguda) da fonte sonora vocal. A
conjugação desses
P.205
três fatores - tonalização, salto e agudização - é favorável à manifestação da
melodia passional.
Em resumo, a presença dominante do fazer remissivo regendo o tom
sobre “jazz” se faz sentir tanto no plano horizontal como no plano vertical. A
interrupção da tematização que vinha modulando o fazer emissivo explicita o
limite de finalização de um processo, ao mesmo tempo que assinala, em
superfície, um ponto crucial de desaceleração. Disso decorre a outra
oposição, no plano vertical, que articula níveis diferentes de altura para a
sustentação da voz. Uma regra sintáxica, entretanto, integra o tom sobre
“jazz” à seqüência precedente, conferindo-lhe função de objeto na
direcionalidade melódica de todo o fragmento. Tal regra responde, em
superfície, pelo caráter extenso do tempo cinemático cuja desaceleração
vinha gradativamente se constituindo por “detrás” dos motivos tmicos
periódicos, nas três retenções mencionadas anteriormente. Assim, temos uma
progressão emissiva e subreptícia das durações que vem preparando a
entrada do tom sobre “jazz”, fazendo fundo a outro percurso emissivo,
explicitado pela tematização, que se interrompe inapelavelmente com o
advento do mesmo tom. Ouvimos, evidentemente, as duas coisas ao mesmo
tempo, e a letra, neste caso, só contribui para manter a superposição.
-ANTI-PROGRAMA MELÓDICO
A mudança de comportamento melódico pressupõe a suspensão das
leis que vinham regendo uma determinada etapa da música e sua
substituição por outras que produzam resultados necessariamente
contrastantes. Evidente que há um sujeito enunciativo responsável tanto pelas
leis como por suas alterações, o que garante a homogeneidade da canção
integral. Como dissemos, o lugar teórico deste sujeito é ainda mais
profundo, pois dele depende as oscilações RÍTMICAS entre fazer emissivo e
fazer remissivo. Quando da interrupção da periodicidade inicial pelo tom sobre
“jazz”, a presença silenciosa do sujeito enunciativo esteve implícita no ponto
de articulação entre dois modos de dizer bastante distintos. Em seguida, a
mesma presença se toma sonora por meio de um fragmento, com perfil e
P.206
caráter próprios, que intervém sobre a mesma base musical, criando uma
tensão passageira logo desfeita pelo retomo do motivo-chave da tematização
(cf. Ex. 72):
Exemplo 72.
Trata-se, na verdade, de uma pequena amostra do processo de
desestabilização que vem a seguir, no terceiro segmento, imediatamente
após a segunda aparição, mais explorada por melismas vocais, do tom sobre
“jazz”. Podemos reconhecê-la pela semelhança do contorno inicial dos
motivos (cf. Ex. 73):
P.207
Exemplo 73.
Além de interromper incontestavelmente a condução melódica anterior,
o limite imposto por esse terceiro segmento possui uma considerável
“espessura” - <continuação da parada> - que oferece campo suficiente para a
manifestação e a manobra dos valores remissivos também selecionados em
profundidade pelo sujeito da enunciação. Se na primeira intervenção (cf. Ex.
72), o motivo não resiste ao fluxo recém-instalado da tematização,
funcionando como simples passagem à re-exposição do programa melódico
principal, no terceiro segmento (cf. Ex. 73), a alteração musical, além de se
impor como entrave e resistência à absorção emissiva, ainda inaugura um
curso sintagmático turbulento, constituído internamente de fragmentos
bastante desiguais.
Ao mesmo tempo que se detecta um impulso de formação de nova
periodicidade na iteração do tema melódico (cf. Ex. 74):
P.208
Exemplo 74.
essa tendência se desfaz, a cada passo, com o movimento subseqüente
exibindo características eminentemente intensas: funções localizadas que não
se estendem ao restante da música. No primeiro caso, com função
terminativa, a inflexão descendente recupera a configuração padronizada da
entonação conclusiva debelando a sustentação suspensiva programada no
tonema do fragmento anterior (cf. Ex. 75):
Exemplo 75.
P.209
No segundo, com função incoativa, a inflexão acirra a tensão
suspensiva interrompendo bruscamente o percurso do motivo que acabara de
ser traçado (cf. Ex. 76),
Exemplo 76.
para expandir o campo de tessitura até o seu nível agudo (cf. Ex. 77):
Exemplo 77.
P.210
Mais que um arremate da etapa remissiva, essa elevação configura-se
como chamada introdutória para a parte final (<parada da parada>).
As saliências melódicas concentradas no terceiro segmento
representam, sem dúvida, a maior força de resistência ao fluxo emissivo que
vem, até então, incorporando os contrastes como elementos de valorização
de sua própria potência. O acompanhamento instrumental reforça
decisivamente esse conflito de tendências quando interrompe a pulsação -
fundada na recorrência de dois ataques de contrabaixo marcando o tempo
forte -, substituindo-a por acentos e rufos de bateria típicos da espera, mas
deixando-a soar durante a pausa entre os dois fragmentos como se não fosse
possível contê-la totalmente. (Cf. Ex. 78)
Exemplo 78.
Assim, embora tenhamos, neste terceiro segmento, a realização mais
plena do anti-programa melódico, comparecem outra vez, mesmo aqui, as
identidades que manifestam uma atração subjacente aos valores remissivos
predominantes. A semelhança apontada no Ex. 73, entre o contorno inicial do
motivo sobre “tocarei seu nome...” e o
P.211
dos dois pertencentes a este terceiro segmento, constitui um primeiro
exemplo desse processo de atração: ainda que funcionem sempre como fator
de interferência antagonista na cadeia sintagmática, esses motivos não
deixam de traçar a própria história cada vez que despontam como perfis
alternativos à melodia principal. Manifestam uma articulação mais acelerada,
tendendo ao staccato, cujo valor extenso pode ser comprovado não apenas
pela recorrência dos motivos em si, no primeiro e no terceiro segmentos, mas
também pela disseminação de suas propriedades no interior do último
segmento (cf. aqui a função dos ataques, dos acentos, das pausas e,
principalmente, do staccato). O reaparecimento do pulso conduzido pelo
contrabaixo na base instrumental, bem no centro deste terceiro segmento (cf.
Ex. 78), é o segundo exemplo de identidade que serve para atrair o
movimento anterior. E, por fim, a significativa elevação do motivo final do
terceiro segmento (cf. Ex. 77) não deixa de reproduzir, no topo da tessitura,
uma das células típicas da primeira parte (cf. Ex. 79):
Exemplo 79.
As identidades parciais, como essas que acabamos de assinalar,
chamam a atenção para um gênero de encadeamento melódico onde
P.212
a busca se depara com a desigualdade. Ao contrário do movimento periódico
que promove uma verdadeira fusão dos temas num modelo matricial único, as
identidades parciais perfazem uma trajetória de atração que define a
direcionalidade da melodia, mas conserva a tensão entre os temas, pois as
diferenças, substanciais ou funcionais, não permitem um processo de simples
absorção. Prevalece, portanto, a relação complementar entre temas dentro do
mesmo programa melódico. A identidade parcial aproxima um tema-sujeito de
um tema-objeto, mas nunca o suficiente para que haja captura. A diferença
entre eles garante o efeito de tempo sucessivo.
Quando o programa melódico prevê uma periodicidade ou uma
direcionalidade fundadas num processo de identidade integral ou parcial, o
anti-programa melódico pode desenvolver todo um percurso conflitante ou se
instaurar em fragmentos intensos, localizados, ou, ainda, responder pelas
diferenças parciais que formam a contrapartida das identidades. De qualquer
modo, o programa é sempre concebido para veicular os valores emissivos,
selecionados em profundidade, enquanto o anti-programa se incumbe dos
valores remissivos (nada impede que a relação entre os programas e os
valores seja invertida).
Em Sina, de acordo com a relação descrita, o programa melódico
produz o efeito vocálico, de núcleo de sonoridade, e o anti-programa produz
os limites e as interrupções equivalentes ao efeito consonantal. A tematização
do início e o refrão do quarto segmento perfazem o que estamos chamando
de programa melódico. O tom sobre “jazz”, a inflexão sobre “tocarei seu nome
pra poder fa” e todo o terceiro segmento descrevem o anti-programa.
observamos acima que o tom sobre “jazz” interrompe a tematização
e que, por suas propriedades vinculadas aos fragmentos anteriores (a
duração, por exemplo) aliadas à expressiva desaceleração, se caracteriza
como ponto de chegada do movimento melódico inicial. Esse traço terminativo
é ainda mais valorizado quando um novo corte subseqüente se interpõe -
suspendendo uma possível atividade de alongamento a exemplo de “jazz” - e
dele desponta o desenho melódico que cobre “tocarei seu nome pra poder fa”,
claramente regido pela aceleração, com impulsos e acentos completamente
inusitados em relação ao material melódico desenvolvido até
P.213
então. Tudo indica, nesse ponto, que outros procedimentos e outras leis estão
sendo implantados a partir desse novo contorno.
Desse modo, tanto o tom sobre “jazz” como a inflexão sobre “tocarei...”
representam manifestações dos valores remissivos, o primeiro em caráter
terminativo e o segundo em caráter incoativo. Ambos alinham-se ao anti-
programa melódico impondo limites ao fluxo emissivo que vem alimentando o
programa.
Entretanto, nessa primeira etapa da canção, por mais que tais limites
imponham resistências ao programa melódico, a predominância inequívoca
da seleção dos valores emissivos pelo sujeito da enunciação não deixa
qualquer margem de manobra a esses dois elementos, tolhendo-os e
absorvendo-os no nascedouro. Se o tom sobre “jazz” acaba sendo
parcialmente incorporado como valor-fim (função objetal), a inflexão sobre
“tocarei...” também se integra parcialmente como componente auxiliar (função
de adjuvante) de retomo à rota melódica traçada. Essa função salta aos
olhos quando, após o contorno inusitado, a linha melódica engata-se
novamente no programa sem constituir núcleo próprio (cf. Ex. 72).
De qualquer forma, os indícios do anti-programa melódico subsistem
nas diferenças parciais que mantêm os contrastes e a duplicação para além
da parcela absorvida. Somente ao final do segundo segmento e estendendo-
se por todo o terceiro, sentimos redobrar a potência dos valores remissivos na
forma de uma operação prolongada com fragmentos do anti-programa que
freiam o curso emissivo, mas, ao mesmo tempo, são por ele incorporados
como componentes de extremidade de um único projeto melódico:
a. Componente terminativo: tom sobre “jazz” que, no final do segundo
segmento, vê ampliada sua duração nas oscilações dos melismas vocais. Sob
a regência da desaceleração, temos a manifestação de melodia com perfil
passional.
b. Componente incoativo: estruturação do motivo melódico sobre “a luz
de um grande prazer”, apenas esboçado no primeiro segmento (cf. Ex. 73). O
caráter destoante deste fragmento, cuja aceleração repentina ultrapassa o
andamento da tematização inicial e acirra o contraste em relação ao tom
sobre “jazz”, funciona, retrospectivamente, como desagregação entoativa.
Prospectivamente, sua arti-
P.214
culação acentuada, repetida pouco mais adiante, anuncia uma propensão
temática que não chega a se consumar.
c. Componente terminativo independente: descendência asse- verativa
- com função exclusivamente intensa - marcada semanticamente pelo uso
lingüístico; funciona à maneira de um dêitico que simula o aqui-agora
enunciativo (cf. Ex. 75). Isolado no plano do enunciado melódico, esse
tonema figurativo manifesta uma asserção procedente diretamente da
enunciação.
d. Retomo do componente incoativo sobre o fragmento “quando o grito
do prazer” e expansão máxima de sua função preparatória por intermédio da
<parada da parada> (cf. Ex. 76) e o movimento de agudização do último
fragmento (cf. Ex. 77) que abre o campo de tessitura para o estribilho final.
Neutralização de qualquer periodicidade nesse terreno remissivo e reforço da
atividade figurativa.
- DIFUSÃO DAS CÉLULAS MELÓDICAS NO REFRÃO
A retomada da atividade emissiva vem acompanhada de notável
transformação. Os motivos o de tal forma fracionados e descaracterizados
em relação às seções anteriores que, não fosse o reaparecimento da base
instrumental assegurando a coesão musical fundada na extensão do pulso e
do encadeamento harmônico - literalmente idênticos aos da primeira parte -, e
teríamos a nítida sensação de dispersão melódica. De fato, ao invés de
resolver a tensão entre as partes com a simples predominância de uma sobre
outra, esse quarto segmento assimila a desigualdade dos contornos como
traço fundamental de sua evolução sintagmática e propõe uma interessante
convivência dos valores emissivos selecionados no início com os valores
remissivos que engendraram o terceiro segmento. E isso se processa tanto
numa ordem extensa como numa ordem intensa.
No primeiro caso, temos a articulação entre o comportamento periódico
da instrumentação (primeiro e segundo segmentos) e o canto acentuado que
prevaleceu durante a <parada>. No segundo, a aproximação de elementos
resultantes da ampliação de tessitura empreendida no final do terceiro
segmento (cf. Ex. 77) a outros típicos da primeira parte (cf. Ex. 80):
P.215
Exemplo 80.
No mais, motivos inéditos orientados apenas pelo pulso e pela
harmonia.
Nesse momento, podemos recuperar algumas das formulações básicas
que instruem o modelo semiótico da canção. A força de coesão concentrada
na base instrumental de acompanhamento exerce um poder disciplinador tão
imperioso que, muitas vezes, reduz consideravelmente o nível de variedade
melódica na linha do canto. A tematização representa, de certo modo, essa
aderência da melodia principal à base extensa e contribui especialmente para
a manifestação da gramática particular - própria de uma canção - que sempre
se sobrepõe à gramática geral (responsável pela tonalidade, pelo gênero,
pela divisão de compassos e outros padrões poucas vezes questionados no
âmbito da produção popular).
Entretanto, uma vez assegurada a coesão no acompanhamento e
traçadas as diretrizes sintáxicas da obra, a linha do canto pode explorar
soluções inusitadas sem qualquer comprometimento da unidade geral. Assim
se comporta o desenrolar melódico do quarto segmento de Sina: contando
com o retomo da versão extensa do programa emissivo, inscrito na base
instrumental dos dois segmentos iniciais - e explicitamente interrompido
durante o terceiro segmento -,
P.216
esse último trecho se abre ao devenir com inflexões francamente desiguais,
apostando numa homogeneidade que se consuma no transcurso linear de
toda a extensão. Daí a incompatibilidade com os processos de tematização:
as partes não possuem autonomia suficiente para se converterem em
elementos reiterativos (temas). São células que se justificam como partes
constituintes - rigorosamente ordenadas em cadeia sintagmática - de um
período melódico integral. A partir deste nível, pode-se falar novamente em
unidade passível de reiteração. Em todas as versões conhecidas desta
canção [NOTA 3], o quarto segmento se torna uma porção indivisível que
recebe um tratamento circular, com a finalização abrindo-se ao reinicio do
trecho.
Não há temas no seu interior, pois que ele próprio se configura como
um “grande tema” resultante de toda a extensão melódica. As identidades
intensas, que localizamos no Ex. 80, são apenas de ordem morfológica.
Funcionalmente, tais elementos deixam de ser temas autônomos e
articuláveis e se transformam em células dependentes do período como um
todo. Note-se ainda que, neste caso, o propósito deliberado de nutrir a
desigualdade entre as células - desde o seu perfil melódico, que jamais se
repete, até o número de sílabas que as compõe (às vezes 3, outras 2, 4 até 6
sílabas), passando pela variedade de suas figuras rítmicas e relações
intervalares (de 2 a 12 semitons) -, para acentuar seus elos de dependência
na cadeia sintagmática e investir, assim, na sucessão ordenada que responde
pela orientação integral do período. Cada célula depende da anterior e da
seguinte para se estabilizar, e todas se orientam pela extensão. A
desigualdade entre elas não permite o processo de absorção próprio dos
temas periódicos. Neste último caso, como dissemos, uma sensível
neutralização das forças antagonistas - dos contra-temas - uma vez que os
temas se fundem sem maior resistência, abreviando a busca inerente à
atividade melódica. Tudo como se a recorrência revelasse um objeto
incorporado. Havendo desigualdade entre os elementos, a extensão depende
do arranjo sintagmático de todas as suas células para se configurar e se
atinge a meta me-
P.217
lódica no final da cadeia. Em vez de simultaneidade, temos um tempo a ser
percorrido e uma trajetória a ser cumprida.
Portanto, no cerne da importantíssima oposição entre periodicidade e
não periodicidade, reside um mecanismo de controle metonímico. Com a
periodização, temos o controle da extensão em suas partes. Sem ela, essas
partes passam a ser controladas pela extensão. Por meio das identidades
temáticas, o comportamento periódico transforma o sucessivo em simultâneo,
de modo que as metas melódicas são absorvidas durante o processo. Por
meio das desigualdades, a meta melódica é constantemente protelada, até
atingir o final da seqüência.
Em outras palavras, a reiteração temática demonstra uma integração
melódica nas relações intensas, de vizinhança, que vão progredindo
gradativamente e desenhando, no próprio trajeto, o gênero. Com a redução
da atividade periódica, cresce o papel da harmonia tonal subjacente, que
passa a funcionar como depositária extensa das metas musicais. As células
melódicas formulam perguntas que, encadeadas, vão adiando a resposta e
acirrando uma tensão dissolvida com o regresso do tom no encerramento
do período. E se a tonalidade preserva a meta, o pulso - que recebe a
transferência da periodicidade evitada na linha principal - estabelece uma
regra cíclica para assegurar a boa dinâmica do processo. A manifestação
mais explícita dessas dimensões extensas - tonalidade e pulso - encontra-se,
conforme temos frisado, no acompanhamento instrumental.
A predominância da periodicidade corresponde ao fortalecimento do
núcleo temático pois que um contato direto entre esses elementos
musicais no nível da melodia principal, configurando a absorção de um tema
pelo outro. Disso resulta uma considerável neutralização das demarcações,
incoativa e terminativa, e, no limite, do próprio percurso. Afinal, o tema está
conquistado e devidamente capturado pelo núcleo. O movimento sucessivo
vai se convertendo gradativamente em simultaneidade, como se os
desdobramentos se recolhessem à unidade e o fazer emissivo descrevesse
os contornos do próprio ser. A isso chamamos “involução”.
A centralização da melodia no núcleo temático sempre se caracterizou
como meta geral da canção popular. De fato, grande parte das canções
tendem ao refrão, onde a fusão dos temas representa
P.218
a conjunção definitiva que permite a desativação da direcionalidade. Tal
condição, porém, tem sua contrapartida. A perda da direcionalidade é também
uma perda de sentido e a canção não pode explorar indefinidamente um
tempo que não progride, vazio, sem expectativa e sem devenir, a menos que
esteja perto de sua finalização. Portanto, a escolha de um modo operatório -
periodicidade ou variedade melódica-pelo sujeito enunciativo jamais significa
a exclusão do outro. Na ordem do “e”, ou da cadeia sintagmática, tudo que se
omite numa etapa está marcado para ressurgir na etapa seguinte como modo
complementar, ocupando, inclusive, a posição de objeto do procedimento
anterior [NOTA 4]. Nesse sentido, a perda dos valores objetais no nível
temático, em função do modo periódico, é compensada por sua transferência
ao plano dos procedimentos.
Podemos dizer, agora utilizando uma metalinguagem espacial, que a
periodicidade fecha o contínuo melódico nas formas concêntricas do refrão e
do núcleo temático enquanto que a variedade (ou desdobramentos) abre esse
mesmo contínuo em direção a outros cleos criando evoluções, levemente
desestabilizadoras, que dão um sentido de busca ao percurso musical.
Evidente que minuciosa gradação entre esses pólos - sinais de
fechamento até o fechamento completo ou sinais de abertura até a abertura
completa - mas a tendência para um ou para outro assegura um processo
rítmico que, no fundo, representa a assunção dos valores emissivos e
remissivos nos segmentos menores da expressão melódica.
Assim, se considerarmos agora a eliminação do modo periódico em
favor da variedade melódica, teremos aquele imediatamente instaurado como
objeto a médio ou longo prazo. Os motivos vizinhos deixam então de ser
temas-objetos para adquirirem a função de contra-temas, ou seja, elementos
melódicos que impõem desvios de rota e outros obstáculos cuja superação
vai definir um sensível progresso temporal dentro do regime emissivo. Quanto
maior o número de contra-temas maior a distância que separa sujeito e objeto
e maior a tensão investida na espera da conjunção. Portanto, temos dois con-
P.219
ceitos que reproduzem dois pontos de vista, duas funções diferentes da
mesma espécie significante: contra-temas, portadores das forças
antagonistas que dificultam a aproximação dos elementos idênticos ou
semelhantes; e lulas - analisadas acima - que são os próprios contra-
temas incorporados como partes constituintes de um período (ou grande
tema) integral.
Os contra-temas são responsáveis tanto pelos pequenos contrastes
que atenuam a força concêntrica da periodicidade, como vimos no início de
Sina (cf. Ex. 70), quanto pelas grandes progressões que chegam a desfazer o
motivo temático original ou, pelo menos, remetê-lo a outra dimensão
(voltamos aqui ao quarto segmento de Sina que evita qualquer repetição no
nível das partes, para praticá-la apenas no nível do período).
Ao passar do modo periódico ao não periódico, o sujeito enunciativo
transfere as relações objetais das funções de contato para a função à
distância. Até que as identidades motívicas reapareçam como objetos
integrados, o sujeito terá que manobrar uma variedade melódica
necessariamente impregnada de valores remissivos. É a hora que a coesão
poderia sofrer um certo abalo, não fosse a ação peremptória da base
instrumental. A tonalidade se encarrega das demarcações, incoativa e
terminativa, e da direção harmônica a ser seguida pela melodia.
Desempenha, de acordo com o jargão narrativo da semiótica, a função de
destinador, na medida em que zela à distância pela eficácia do fazer emissivo
[NOTA 5]. Da mesma forma, como constatamos, o pulso sustenta a
dinâmica do elo durativo, por meio de uma periodicidade extensa que não
permite a dispersão da variedade melódica durante o processo. O sujeito
enunciativo que opera tudo isso -temas, contra-temas e a própria base coesa
da instrumentação- pode, assim, investir na função à distância sem perder o
controle do caminho a ser percorrido.
A melodia do quarto segmento de Sina começa e termina em fase com
o acompanhamento. Os fragmentos sobre “O luar” e “estrela” fazem coincidir
seus acentos com os ataques duplos do contrabaixo que marcam o tempo
forte; as alturas, por sua vez, emitem
P.220
a quinta do acorde fundamental. O fragmento conclusivo, que recobre “o que
de bom”, reencontra a fase com o pulso e descansa sua última nota no
tom. Entre esses momentos extremos, porém, os motivos se dispersam na
desigualdade dos contornos, na ocupação profusamente variada do campo de
tessitura e na defasagem com o tempo forte. A garantia de coesão fica por
conta do acompanhamento que transporta os aspectos regulares,
concentrados nas duas extremidades, para toda a extensão melódica através
do pulso e da tonalidade rigorosamente observados.
De qualquer forma, este segmento representa um dos casos mais
audaciosos de abertura do contínuo melódico numa fase em que a canção
se conclui e poderia, simplesmente, recobrar, dentro do mesmo regime
emissivo, o procedimento periódico que prevaleceu na fase inicial. O
fechamento rítmico do segmento se define a partir de sua reiteração
integral, em forma de refrão, quando se configura, enfim, o “grande tema”
determinado pelas fases anteriores da canção sem ser, entretanto,
determinante. Ou seja, embora mantenha elos de identidade com os dois
primeiros segmentos e, sobretudo, responda e complemente as expectativas
criadas no terceiro, este último segmento, depois de deflagrado, adquire
relativa autonomia e não pede mais, em qualquer plano, o regresso da
primeira parte. Por isso, reitera-se ad infinito, não em tomo de um núcleo
temático, mas reproduzindo toda a extensão melódica num pulsar contínuo
entre difusão das células no percurso musical, ocupando com originalidade o
espaço harmônico, e os pontos de finalização e reinicio que dinamizam a
seqüência por ameaçar interrompê-la.
- RESUMO DA DESCRIÇÃO MELÓDICA
Numa visão de conjunto da trajetória melódica de Sina, identificamos
uma etapa inicial de condução dos valores predominantemente emissivos
(segmentos 1 e 2), interrompida, na altura do terceiro segmento pelo
comportamento retensivo da melodia e do acompanhamento, o qual, por sua
vez, é negado pelo quarto segmento, quando este novamente põe em marcha
o fluxo emissivo.
P.221
No interior da primeira etapa, localizamos uma forte tendência
concêntrica, involutiva, configurada pela expansão do núcleo temático,
através da manifestação da periodicidade, tendência esta valorizada por
sinais do anti-programa melódico, consubstanciados primordialmente no tom
sobre “jazz e na inflexão sobre “tocarei seu nome pra poder fa...” e,
secundariamente, nos pequenos contrastes assinalados no Ex. 68. Além
disso, o controle à distância, estabelecido pela base instrumental, ainda
reforça a coesão desta fase, sublinhando seus pontos extremos (incoativo e
terminativo), restringindo sua direcionalidade (harmonização tonal) e
acentuando a periodicidade do ciclo (pulso). A predominância da tendência
concêntrica age no sentido de neutralizar a sucessão e a fluência temporal
em função da consistência do núcleo que impõe às unidades idênticas um
ritmo de absorção. Estas definem-se como temas-objetos passíveis de
captura, não fosse a presença - ainda que discreta - dos contra-temas
impingindo alguma distância entre elas.
Na segunda etapa (3º segmento), destacamos a alta concentração dos
valores remissivos que realiza, primeiramente, a suspensão do modo
operatório da etapa anterior, e que cria, em seguida, intensa expectativa com
relação à retomada iminente do fazer emissivo. Esse movimento se processa
sob a determinação de uma notória aspectualização saliente, onde os
componentes terminativos e incoativos se sucedem como retenções
sinalizando uma distensão que se aproxima. Pensando no modelo da sílaba,
teríamos sobretudo fronteiras silábicas (unidade terminativa > unidade
incoativa) e pontos vocálicos implosivos acusando uma tendência ao
fechamento consonantal. Essa expressiva dominância dos valores remissivos
faz deste segmento a grande <parada> da canção como um todo, lugar onde
os contra-temas não apenas resistem mas também produzem considerável
transformação no programa melódico, desenvolvido a então em tomo do
núcleo temático. Os efeitos desse embate são ouvidos na etapa final.
Nesta o retomo do regime emissivo se consolida com a inevitável
transferência dos procedimentos de coesão - distribuídos na primeira parte
entre a linha do canto e a base de acompanhamento -, quase que
inteiramente, para a harmonia e o pulso conduzidos pela instrumentação. As
relações de identidade (sujeito/objeto), que pre-
P.222
sidiam a função de contato entre as unidades melódicas, se transformam em
função à distância mediada pela orientação extensa concebida no
acompanhamento. A presença dos contra-temas abre significativamente a
trajetória melódica, vinculando o sentido de suas células à extensão completa
do período. A atuação do tempo cine- mático profundo, pendendo para a
aceleração, repercute na constituição dessas lulas, reduzindo a duração de
suas notas, das pausas intermediárias, ao mesmo tempo em que os acentos
e os ataques passam a ser valorizados e articulados em staccato.
A diferença entre as duas manifestações do fazer emissivo é resultado
das transformações ocorridas na cadeia melódica a partir da atuação, cada
vez mais incisiva, dos contra-temas, mensageiros dos valores remissivos. O
ápice deste confronto, como vimos, concentra-se no terceiro segmento.
Na primeira formação emissiva, a tendência à involução à unidade do
núcleo temático, estimulada pelo modo periódico, é coextensiva à condição
de sujeito de estado, onde o emissivo se define pela integração sujeito-objeto,
pelas identidades que os aproximam. Na formação emissiva final, a
diversidade dos elementos melódicos, que adquirem homogeneidade na
extensão integral do período, apontam para a trajetória a ser percorrida pelo
sujeito e para o sentido (ou direção) de busca contido nas verdadeiras
relações objetais. O sujeito desta formação se manifesta como sujeito do
fazer e seu elo com o objeto depende estritamente do percurso.
Em resumo, o RITMO geral da canção, encadeado sintagmaticamente
como Emissivo / Remissivo / Emissivo, acusa, não uma alternação pura e
simples entre os dois principais fazeres missivos, mas, sobretudo, uma
transformação, um progresso da expansão involutiva do cleo temático, com
suas funções de contato, para a expansão evolutiva e direcionalizada das
células melódicas que descrevem a função à distância. Essa passagem das
relações intensas para as relações extensas define, em Sina, uma abertura
do próprio devenir, onde a tendência à fusão é substituída pela tendência ao
desdobramento, como se a nominalização se verbalizasse.
P.223
DESCRIÇÃO DA LETRA
A letra de Sina faz acentuar ainda mais a dominância dos valores
emissivos reproduzindo, agora com recursos lingüísticos, a transformação das
funções de contato (nominalização) em função à distância (verbalização). As
forças antagonistas (remissivas), embora não venham citadas, são aquelas
que retardam a transformação e aumentam a tensão de sua espera:
Um dia
A fúria deste front
Virá lapidar o sonho
Até gerar o som...
O trabalho de justaposição dos versos não esconde um movimento
progressivo que se define quando alcança a meta, constituída, aqui, pela
resolução musical: o “som” em si, o “grito”, ou sua mais completa tradução na
figura do “jazz”. De fato, as duas primeiras estrofes perfazem,
respectivamente, a rota temporal e a rota espacial, para atingir o mesmo
ponto:Além da procedência rica, comum ao tempo e ao espaço, esses dois
trechos ainda se igualam na evolução simultaneamente eufórica e metafórica.
A euforia resulta diretamente da escolha dos valores emissivos, os
mesmos responsáveis pela tematização no componente melódico. Esses
valores instauram uma continuidade que pode ser descrita, em superfície,
como configuração temática da ‘origem’. É o que asse-
Pai e mãe
Ouro de mina
Coração
Desejo e sina
Tudo o mais
Pura rotina
Jazz
Minha princesa
Art nouveau
Da natureza
Tudo o mais
Pura beleza
Jazz
P.224
gura um mínimo de gradação entre os versos “Pai e mãe”, “Ouro de minae
“Coração”, abarcando, inclusive, “Da natureza”, pertencente à segunda série.
Talvez essa ‘origem’ ainda venha acompanhada do sema ‘nobreza quando
se pensa no metal (“ouro”), no órgão (“coração”) e na ressonância desses
traços numa das mais elevadas expressões da música negra (“jazz”) ou na
luz irradiada por um gás igualmente nobre (“neon”).
Mas a decifração da força evolutiva, que desimpede o trajeto para a
conexão eufórica, se processa realmente no nível modal, com a conjugação
de dois conceitos que teriam normalmente funções antagônicas: “Desejo e
sina”. O impulso originante do primeiro, tradicionalmente compatibilizado com
os valores emissivos que instruem a modalidade do /querer/, poderia entrar
em choque com os limites impostos pela predestinação, contida em “sina”,
cuja cifra modal é o /dever/ e sua resolução dos valores remissivos.
Entretanto, a equivalência sintagmática desses dois domínios, volitivo e
deôntico, que se confirma em outras equivalências - tais como “Pai e mãe”,
onde o primeiro carrega a marca mítica do legislador ou destinador (cujo
/querer/ se traduz em /dever/ no âmbito do filho-destinatário) e a segunda
personifica a fonte original do desejo e da criação, ou mesmo o paralelismo
entre “Pura rotina” e “Pura beleza”, uma determinando a força do hábito,
também como predestinação, e outra conformando o parâmetro figurativo da
atratividade -, exclui, em grande medida, os fatores de descontinuidade que
poderiam frear o avanço emissivo.
A metáfora caracteriza a rapidez com que os versos transitam pelas
diferentes áreas de conteúdo, valendo-se das continuidades estabelecidas em
nível profundo para promoverem saltos na superfície discursiva do texto: “Pai
e mãe / Ouro de mina / Coração / Desejo e sina / ...”. Esses recursos
produzem a impressão de que não sintaxe narrativa e, no entanto, ela
subjaz a toda conexão isotópica, gerando seus fluxos, suas direções e suas
metas. Por meio dela, podemos acompanhar o movimento confluente que
leva tanto o tempo - “rotina”, como o espaço - “beleza” (fígurativizado por
“Minha princesa, art nouveau da natureza”), ao /fazer/ musical representado
por “Jazz”.
P.225
De qualquer modo, a dimensão narrativa em sua forma canônica
também comparece para auxiliar na passagem das categorias fundamentais
ao plano figurativo:
Tocarei seu nome
Pra poder falar
De amor
Define-se, então, o lugar narrativo por onde transitam os valores
emissivos, entre as funções subjetais de destinador e destinatário. O “nome”
do destinador, do «trans-ego» (aquele que inspira), é necessário e suficiente
para transferir ao sujeito o /poder fazer/: “poder falar de amor”. E note-se,
ainda, a passagem quase literal da nominalização à verbalização, processo
que está na base de todas as regras que engendram esta canção. Tal
desenvolvimento narrativo, condutor dos valores emissivos, sustenta as duas
principais isotopias, figurativa e temática, que, em superfície, dão vida ao
texto: a criação da música (figura do som que elege a ordem sensorial
auditiva) paralela à realização dos sonhos (tema da atração que se estende
pelas noções de “desejo”, “beleza”, “prazer”, “dom”, “o que há de bom” e que,
nesse momento, se realiza em “falar de amor”). Assim, o termo “tocarei”
funciona como dispositivo de duplo engate isotópico, podendo introduzir tanto
a face figurativa (o viés musical) como a face temática (no sentido de menção
ao nome).
Embora a relação destinador/destinatário indique uma direção e,
portanto, um compromisso com a continuidade, a permanência nesse estágio
narrativo da persuasão-manipulação revela que as condições para a ação
propriamente dita ainda não foram preenchidas. Desse modo, se os valores
remissivos não chegam a se materializar numa figura de anti-sujeito, o
retardamento da performance acusa a presença camuflada das funções
antagonistas. Trata-se, pois, de um sujeito virtual, beneficiário de um /querer/
(“desejo”) e de um /dever/ (“sina”) extensos que, entretanto, ainda o pode
ultrapassar a etapa da espera.
As figuras produzidas na terceira estrofe, que renovam o tema da
atratividade (“prazer”) tanto na ordem visual (“A luz de um
P.226
grande prazer...”) como na ordem auditiva (“Quando o grito do prazer...”),
reintegrando o espaço e o tempo, confirmam a espera ao anunciar o gesto
que serve para detonar o ponto de partida em direção ao ano-bom:
Quando o grito do prazer
Açoitar o ar
Réveillon
Assim como os valores nominais da primeira parte encontram seu
sincretismo verbal na noção de “jazz” como fazer musical, acusando a
transformação [NOTA 6] das funções de contato em função à distância, a letra
que articula o refrão reproduz a relação dos elementos intensos provenientes
da natureza (“o luar, estrela do mar, o sol”) como um “dom” transferido ao
destinatário-sujeito e que lhe desperta de fato a passagem para a dimensão
extensa.
O luar
Estrela do mar
O sol e o dom
Quiçá
Um dia
A fúria deste front
Virá lapidar o sonho...
A espera do encontro com os valores extensos da verbalização é
projetada como ações consecutivas no plano narrativo (lapidação do sonho e
geração do som) e como materialização dos anseios no plano discursivo
(sonho —> som). Por fim, a isotopia figurativa do “som” corresponde à
isotopia temática do “bom”, cuja categoria pulsiva geradora [NOTA 7] justifica
a predominância dos valores emissivos, da modalidade volitiva e até das
formas de espera narrativa.
P.227
O nome do destinador, todos sabem, é o de Caetano Veloso,
personagem-ator a quem esta canção é dedicada. Sua transformação em
verbo (“caetanear”) é a mais completa figurativização da passagem da
dimensão intensa para a extensa que uma letra podería traduzir.
VI
COMPOSIÇÃO
... mais sitôt que des signes vocaux frapent vôtre oreille, ils
vous annoncent un être semblable à vous, ils sont, pour ainsi
dire, les organes de l'âme, et s 'ils vous peignent aussi la
solitude, ils vous disent que vous n ’y êtes pas seul. Les
oiseaux sifflent, l 'homme seul chante, et l 'on ne peut
entendre ni chant ni symphonie sans se dire à l 'instant: un
autre être sensible est ici.
Jean-Jacques Rousseau
E o que é que isso tudo tem a ver com João Gilberto? A essa altura
podemos fazer ressoar novamente a pergunta que encerra o texto João
Gilberto / Anton Webern” de Augusto de Campos [NOTA 1], e que deu início a
este trabalho, mas alterando um pouco os seus pontos de inflexão: por que
João Gilberto tem a ver com tudo isso?
Protagonista maior do processo de estabilização sintáxica da canção
brasileira, em termos de depuração de uma gramática particular para cada
obra, João Gilberto vem agora promovendo a execução de canções
consagradas num limite perigosamente próximo da desestabilização. Tudo
como se tivesse testando o grau de flexibilidade do sistema e, com isso,
explorando todo o seu potencial semiótico. João Gilberto pertence ao elenco
dos artistas que, em processo obstinado de criação, enveredam pelas
questões essenciais da construção do sentido, demonstrando que os valores
profundos (extensionalidade, gradualidade, categorialidade...) estão sempre
presentes
P.230
em qualquer parcela mínima de realização. [NOTA 2] Seu percurso de
intérprete constitui, a nosso ver, uma referência segura para qualquer estudo
sistemático da canção.
As reflexões que desenvolveremos a seguir pretendem completar o
quadro conceptual deste trabalho mas não deixam de ser também simples
explicitação de valores que o canto de João Gilberto pressupõe.
estudamos, no segundo capítulo, a evolução da semiótica rumo à
dimensão extensa do discurso e a repercussão desses avanços nas
instâncias profundas de seu modelo, bem como no tratamento da questão
enunciativa. Resta acrescentar que todo esse progresso foi acompanhado,
como não poderia deixar de ser, por uma mudança de inflexão epistemológica
facilmente observável quando comparamos a visão social, sistêmica e
espacializante de Saussure (de acordo com a interpretação “oficial” do Cours)
ao enfoque enunciativo e processual, com forte tendência temporalizante,
adotado pela semiótica de hoje:
Meu esforço foi sempre de partir da fixidez para dinamizar as
estruturas. [NOTA 3]
P.231
Apesar de inequívocas, tais mudanças na perspectiva teórica jamais
desprezaram os esforços iniciais de Saussure no sentido de distinguir o
espaço de reflexão lingüística no cruzamento das ciências humanas com as
ciências físico-acústicas e fisiológicas. Algumas imagens criadas pelo mestre
de Genebra, certamente com propósitos didáticos, permaneceram, sofrendo
as necessárias adaptações, como ponto de partida inevitável dos modelos
preocupados com a concepção integral da teoria, seja no campo lingüístico,
seja no campo semiótico. Dentre elas, queremos realçar aqui a célebre
constituição da forma lingüística na interface de duas “massas amorfas”
reconhecidas como “pensamento” e “sonoridade”. [NOTA 4]
DO CONTEÚDO À EXPRESSÃO
Atualmente, na esteira dos avanços obtidos pela semiótica da paixão, o
conceito de foria surge, a nosso ver, como herdeiro direto da noção de massa
amorfa, impregnado, porém, dos valores dinâmicos indispensáveis à análise
do processo. Isso porque a tensividade fórica corresponde também, como
vimos, a outra noção saussuriana concebida, a princípio, para o plano da
expressão: a silabação. Ambas concorrem para a homologação das leis que
fazem do ritmo e da sintaxe operações comuns aos dois planos da linguagem.
[NOTA 5]
“Massa amorfa” é sem vida uma imagem sugestiva para representar
uma fase da experiência humana em que, hipoteticamente, a ngua não
tivesse sido estruturada. Entretanto, de acordo com a correção precisa de
Hjelmslev, nada autoriza - a não ser numa prática “pedagógica”- a criação de
uma instância anterior à forma lingüística, uma vez que aquela não pode ser
analisada sem esta. Por
P.232
essa razão, as noções de “substância de conteúdo” e “substância de
expressão” definem, na axiomática do lingüista dinamarquês, o único modo
de acesso às matérias, semântica e fônica, depois de passar pela
estruturação das respectivas formas nos dois planos da linguagem.
Apesar da ressalva, Hjelmslev não despreza o ângulo estimulante da
metáfora desde que tratada como “grandeza não-analisada” extraída da
comparação entre as diferentes formas de organização das substâncias nas
línguas particulares. O “fator comum” que subjaz às diferenças entre as
línguas - e que permite, inclusive, o ofício da tradução - é o “sentido não-
formado” ou, simplesmente, o “sentido”, conceito que o autor prefere à massa
amorfa. A imagem de Saussure reaparece, no entanto, quando Hjelmslev
determina a singularidade do processo de formalização de cada língua:
Cada uma dessas línguas estabelece suas fronteiras na “massa amorfa
do pensamento ” ao enfatizar valores diferentes numa ordem diferente, coloca
o centro de gravidade diferentemente e dá aos centros de gravidade um
destaque diferente. [NOTA 6]
Em outras palavras, para evitar o deslocamento da imagem de
Saussure a um domínio pouco funcional - como aquele que permite a
identificação de massa amorfa com dois inesgotáveis reservatórios,
semântico e nico, dos quais as culturas retiram os significados e os
signifícantes de que têm necessidade -, Hjelmslev considera que esse sentido
não-formado, embora não tenha pertinência científica, brota da coexistência
dos sistemas lingüísticos onde pode ser reconhecido nas regiões da
substância negadas por algumas línguas mas adotadas por outras. A
potencialidade de significação está justamente na ausência de um sentido
que, em outra forma lingüística, pode ser manifestado. [NOTA 7]
P.233
Trata-se, pois, de decisão teórica que afasta a lingüística e a semiótica
de uma possível abordagem ontológica ou filosófica lato sensu - que foge à
competência dessas ciências - e as aproxima dos sistemas em
funcionamento, embora ainda em termos basicamente paradigmáticos e
representativos de uma coletividade. Hoje em dia, quando a semiótica analisa
tanto os elementos paradigmáticos como os elementos coletivos dentro do
arranjo proposto por um sujeito da enunciação - portanto, sob a égide de um
“corpo” que “percebe” e “sente” -, o conceito de foria ganha um estatuto, sob
alguns aspectos, semelhante ao de massa amorfa: ambos são variáveis
reconhecíveis a partir de uma apreensão individual (processual), no primeiro
caso, e coletiva (sistêmica), no segundo. O acesso ao elemento fórico, ou a
seus termos correlatos (missivo, tensivo), se confere a partir da seleção
primordial do sujeito impondo dominância entre os valores eufóricos e
disfóricos, muitas vezes tratados como emissivos e remissivos ou mesmo
distensivos e retensivos. A forma constante é oferecida pelas operações do
sujeito enunciativo nas etapas sucessivas do percurso gerativo. Sob outros
aspectos, entretanto, foria e massa amorfa apresentam características
diametralmente opostas. A metáfora espacial desta última se opõe à acepção
temporal da primeira. A noção de “sentido”, no caso de foria, corresponde à
direção. Massa amorfa é uma grandeza basicamente semântica enquanto
que foria é um conceito sintáxico por excelência. A noção de Saussure está
identificada com sua opção pela “langue” enquanto sistema. A foria é
resultante das paradas e continuidades, das expansões e contrações, das
velocidades e durações, que determinam o processo sintagmático.
Ambas as imagens, por fim, são tributárias, em épocas distintas, do
gesto inicial de Saussure - que Hjelmslev levou às últimas conseqüências -
em direção à língua enquanto forma e não substância nos dois planos da
linguagem. No plano do conteúdo, lingüistas e semioticistas criaram e
aprimoraram seus modelos de reconstrução do sentido identificando, com
maior definição, de um lado, as categorias formais e, de outro, as variáveis
substanciais. No plano da expressão, porém, a despeito de alguns
importantes estudos poéticos e prosódicos (que mencionaremos abaixo),
nada há, até o momento, que possa ser comparado à pesquisa independente
e ininter-
P.234
rupta realizada no conteúdo. Na verdade, a massa amorfa fônica nunca teve,
na própria acepção de Saussure, o mesmo prestígio da massa amorfa do
pensamento. A lingüística e a semiótica vêm se caracterizando, até o
momento, como disciplinas que estudam a organização do plano do
conteúdo. Em termos hjelmslevianos, são disciplinas da forma de conteúdo. A
fonologia, responsável pela forma da expressão, confere pertinência às
suas unidades mínimas se essas puderem distinguir signos, ou seja,
significados no plano do conteúdo. Ela “sempre tem em vista a língua como
um sistema de comunicação na sua teoria e no seu procedimento de análise”.
[NOTA 8] E por “comunicação” entenda-se, aqui, o que Jakobson chamaria de
“função referencial” da linguagem. [NOTA 9] O estudo do significante sempre
se configurou como descrição do veículo que conduz o significado, o
verdadeiro objeto lingüístico. Edward Lopes, em seu manual de lingüística,
resume essa dominância nos seguintes termos:
A pedra de toque é sempre o plano do conteúdo: ali onde estivermos
em presença de diferentes conteúdos, estaremos em presença de diferentes
morfemas, não importando a configuração que assuma o plano da expressão
desses morfemas. [NOTA 10]
Como não poderiam deixar de ser, os estudos lingüísticos sempre se
dedicaram ao “pensamento abstrato” [NOTA 11], assim como todos os
setores da semiótica preocupados com a reconstrução do sentido na mente
humana. Neste ponto - e não apenas neste - Saussure foi um verdadeiro
profeta ao sinalizar o progresso lingüístico da substância para a forma,
descompatibilizando-se totalmente com a matéria fônica:
Ademais, é impossível que o som, elemento material, pertença por si à
língua. Ele não é, para ela, mais que uma coisa secundária, matéria que põe
P.235
em jogo. Todos os valores convencionais apresentam esse caráter de não se
confundir com o elemento tangível que lhes serve de suporte. (...) em sua
essência, este [o significante linguístico] não é de modo algum fônico; é
incorpóreo, constituído, não por sua substância material, mas unicamente
pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas as autras.
[NOTA 12]
Há, sem dúvida, estudos admiráveis sobre a sonoridade da fala [NOTA
13]
e sua função de restabelecimento de aspectos contínuos que a
abordagem da língua - tradicionalmente prestigiada por seus recortes
intelectivos - tende a desprezar. Outros há dedicados aos fenômenos sonoros
que acompanham o discurso na condição de traços paralingüísticos, com
função fonoestilística, dando conta do ritmo, do acento e, sobretudo, da
entonação. [NOTA 14] São trabalhos com base na experimentação
laboratorial, que buscam estabelecer padrões sonoros em escala supra-
segmental e que, a o momento, têm apresentado resultados pouco
conclusivos mas bastante sugestivos no que diz respeito ao papel das
modulações contínuas na configuração do sentido.
Todos esses estudos, porém, contam com a interinidade do plano da
expressão. Os fenômenos sonoros podem completar, enfatizar ou, até
mesmo, suplantar a função intelectiva da linguagem mas nunca recebem um
tratamento suficiente para fixar e perpetuar o discurso do ponto de vista
fônico. Isso, aliás, nem convém, que o maior índice de eficácia de
transmissão do conteúdo de um texto está exatamente na possibilidade de
fazer economia de seu plano da expressão tão logo se complete a
comunicação. [NOTA 15] A fixação do conteúdo, que é abstrato por definição,
não depende da conservação da expressão. Esse tema, central na
diferenciação entre prosa e poesia, será retomado, mais adiante, com toda a
atenção que merece.
P.236
Os modelos formulados para dar conta das práticas linguísticas
comprometidas com a conservação da matéria de expressão (fônica ou
gráfica) pertencem a uma tradição estética e são conhecidos por suas
aplicações em análises de poesia. O desejo de estabelecer critérios objetivos
- científicos, na medida do possível - vem se manifestando ao longo de todo o
nosso século, por influência ora dos poetas-pensadores (Pound, Mallarmé,
Valéry), ora das próprias conquistas lingüísticas (Jakobson, Tynianov,
Todorov, Barthes), mas, apenas nas duas últimas décadas, podemos dizer
que se instalou um verdadeiro programa semiótico para construir uma forma
de expressão que nada tem a ver com o significante lingüístico de Saussure.
Este continuaria exercendo o seu papel em função do plano do conteúdo
mas, a partir de alguns trabalhos do próprio Greimas em colaboração com
outros semioticistas contemporâneos [NOTA 16], avistou-se a possibilidade
de construção de “modelos formais de organização das taxias fêmicas e das
regras de geração dos discursos fonêmicos”, nos termos de uma autêntica
“gramática da expressão poética” [NOTA 17] a ser articulada com a gramática
do conteúdo. Pela primeira vez, então, foi estabelecida, no nosso entender,
uma proposta de isomorfismo não-paralelo entre os dois planos da linguagem
poética, criando correspondências entre enunciados semânticos e unidades
silábicas. [NOTA 18] Pela primeira vez, ainda, a expressão poética foi situada
na interface do som enquanto função discriminatória e das “seqüências de
sonoridades ordenadas constitutivas da linguagem musical”. [NOTA 19]
A partir daí, a proposta mais consistente e, ao mesmo tempo mais
audaciosa de análise da sonoridade poética, com a mesma metalinguagem
descritiva utilizada no plano do conteúdo, pertence, como deixamos
entender, a Claude Zilberberg. Escorado epistemologicamente nos princípios
de Saussure via Hjelmslev, e guiado pelas intuições de Paul Valéry, entre
outros escritores teóricos, o autor tem se dedicado à concepção de um
modelo rítmico adequado aos dois
P.237
planos da linguagem [NOTA 20] buscando, através do projeto anagramático
de Saussure, estabelecer um núcleo fônico imanente responsável pelas
direções sonoras manifestantes. Em sua análise, extremamente original, do
Poema Larme de Rimbaud, por exemplo, Zilberberg reconstrói as relações
tensivas entre valores (tímicos e dúlicos) do plano do conteúdo, associando-
as à tensão entre vocalismo e consonantismo do plano da expressão e
verifica que a resolução dessas tensões em favor dos valores micos, no
primeiro caso, e do vocalismo, no segundo, revela a opção enunciativa pela
abertura e pela continuidade. A metodologia desenvolvida nessa descrição,
modelar sob vários aspectos, foi de grande valia no decorrer deste trabalho.
SOM E RUÍDO
Em se tratando de canção, contudo, o plano da expressão não se
caracteriza apenas pela ordenação fonêmica e prosódica, que geralmente é
pouco elaborada, mas, sobretudo, pela estabilização e conservação do
elemento melódico. A letra de canção, como se sabe, pertence a uma esfera
de valores muito particular, altamente comprometida com a melodia e todo o
aparato musical circundante, de tal modo que sua avaliação à luz de critérios
unicamente poéticos [NOTA 21] redunda, quase sempre, em julgamento
desastroso. A fixação da sonoridade na canção é basicamente um problema
musical. A desestabilização da sonoridade, fenômeno a ser analisado mais
adiante, já se configura como questão entoativa.
Vejamos, primeiramente, o aspecto musical.
Fundada sobre a materialidade do som, razão de sua existência, a
música é paradoxalmente conhecida pela abstração que caracteriza o seu
funcionamento semiótico. Constitui, talvez, uma das sintaxes mais puras que
o homem já produziu, no terreno estético,
P.238
sem o confortável apoio de elementos semânticos e, por isso mesmo, sua
conservação depende visceralmente da relação contraída entre forma e
substância, ambas no plano da expressão.
A recente publicação de José Miguel Wisnik, O som e o sentido [NOTA
22], obra ao mesmo tempo abrangente e profunda, congrega, a nosso ver,
todas as questões sobre a sonoridade e sua apreensão sócio-psicológica
necessárias à formulação de uma verdadeira semiótica musical. Um dos
pontos centrais desse trabalho, o que considera as relações entre som e
ruído, parece-nos reconstruir, cristalinamente, a metáfora saussuriana
configurada na oposição língua/massa amorfa, que numa ótica
inteiramente orientada para a conservação do plano da expressão em sua
materialidade. Embora o autor não se filie a qualquer linha de pesquisa pré-
determinada - muito menos à semiótica que constitui, com todas as vantagens
e desvantagens, uma verdadeira escola de reflexão - sua abordagem
altamente centrada numa categoria invariante, (um “monolito”), reconhecida
pela articulação entre “tom” e “pulso”, assegura um princípio rigoroso
norteando a incansável exploração musical que empreende por todo canto
histórico e geográfico do planeta.
As relações entre som e ruído foram fartamente debatidas em
interessante trabalho de Jacques Attali comprometido com a elaboração de
uma “economia política da música”. [NOTA 23] Em sua visão, impregnada de
modelos míticos, narrativos e polemológicos, o ruído é tratado como um
representante das forças antagonistas constantemente sacrificado pelo rito
musical que representa a afirmação de uma ordem sócio-política:
O ruído é uma arma e a música é, originalmente, a formalização, a
domesticação, a ritualização do uso desta arma num simulacro de morte
ritual. [NOTA 24]
P.239
Utilizando a metalinguagem empregada no capítulo anterior,
poderiamos dizer que, para Attali, a música é sempre um programa que
simula em suas leis a ordem social e que resulta de um conflito inevitável com
o anti-programa musical operando em sentido inverso. Ou, para lançar mão
de uma formulação feliz de Fontanille a respeito da noção de devenir, a
música pode ser definida como “a vitória das forças coesivas (aquelas que
fazem de cada ponto do caminho um ponto de bifurcação possível)”. [NOTA
25] Daí sua função, segundo Attali, de afirmar, em meio à virulência ruidosa
das forças contrárias, que “a sociedade é possível”. [NOTA 26]
Nessa perspectiva, a música executa um ritual de sacrifício,
“canalizando” o ruído, essa ameaça de morte, através de leis sonoras e
atenuando, assim, seus sinais de desarmonia. Ruído, como noção portadora
dos valores remissivos, em oposição à música, enquanto agente dos valores
emissivos, parece ser uma decorrência semiótica natural do pensamento de
Attali:
De um lado, o ruído é violência: ele incomoda. Produzir ruído é romper
uma transmissão, desligar, matar. É um simulacro da morte.
De outro, a música é canalização de ruído e, portanto, simulacro de
sacrifício. Ela é pois sublimação, exacerbação do imaginário, ao mesmo
tempo que é criação de ordem social e de integração política. [NOTA 27]
Wisnik absorve e adota, até certo ponto, os traços polêmicos que
definem a relação entre música e ruído no texto de Attali, mas expande a
abordagem para outras esferas com implicações teóricas mais conseqüentes.
[NOTA 28] Incidindo diretamente sobre os processos de fixação do plano da
expressão, O som e o sentido propõem, no nosso entender, uma forma
científica (ou física) e uma forma antropológica do som e do ruído,
circunscrevendo um campo de estudos que,
P.240
com todo rigor, podemos denominar “forma da substância sonora”. [NOTA 29]
Resta-nos depreender daí uma forma semiótica que ajude a instruir melhor o
modelo da canção.
Depois de uma explicação meticulosa sobre a natureza física do som e
sua correlação com as disposições somáticas e psicológicas do homem,
estabelecendo o que chamamos de forma científica dos padrões musicais,
Wisnik demonstra que a sobreposição de “complexos ondulatórios” (já
compostos de freqüências regulares e irregulares) produz, dependendo do
grau de periodicidade interna, fases e defasagens responsáveis pelas
tendências - ora à estabilidade, ora à instabilidade - do som. [NOTA 30]
Desde essa etapa de explanação, o autor lança mão da metáfora que
julgamos ser muito próxima da de Saussure, quando extrai a língua da massa
amorfa:
Descreve-se a música originariamente como a própria extração do som
ordenado e periódico do meio turbulento dos ruídos. Cantar em conjunto,
achar os intervalos musicais que falam como linguagem, afinar as vozes
significa entrar em acordo profundo e não visível sobre a intimidade da
matéria, produzindo ritualmente, contra todo o ruído do mundo, um som
constante... [NOTA 31]
Além de comparecer textualmente a própria idéia de “linguagem”, ainda
temos a dimensão social do “acordo profundo” sobre a matéria sonora que,
segundo a visão saussuriana, passa para a escala humana justamente em
função desse consenso. O mais importante, porém, é que, na esteira dos
termos especificadores do som e do ruído, vão se revelando os valores que
Wisnik atribui a essas noções.
Com relação a “som”, todo um inventário isotópico que pode ser
acompanhado através das acepções de “ordenação”, “periodicidade”, “rito”, e
“constância”, todas se reportando às leis de recorrência que dão certa
solenidade ao material sonoro escolhido. Mais que isso, esse conjunto de
regras funciona no sentido de asse-
P.241
gurar a espera valeriana, a progressão rítmica que reduz consideravelmente a
possibilidade de intervenção abrupta da surpresa. Todas as medidas contra a
surpresa, vimos, visam alimentar a evolução histórica com durações que
evitem rupturas e a conseqüente necessidade de compensação temporal.
Com relação a ruído, não é difícil extrair, mesmo desse pequeno trecho
citado, o sentido inverso de instabilidade e irregularidade, mas acrescido de
um traço bastante sugestivo para a nossa análise: a “turbulência”. Esse fundo
de agitação começa a configurar o ruído como um campo de celeridade.
Se a dimensão caótica do ruído pode, como imaginamos, ser tratada
em termos de velocidade, estaremos mais próximos de uma forma semiótica
pois, em contrapartida, as funções ordenadoras da música terão, por certo,
algum compromisso com a desaceleração. Trata-se, no fundo, de um
verdadeiro controle da escala temporal humana, que se ressente tanto das
passagens bruscas e descontínuas, como dos movimentos excessivamente
lentos e duradouros. No primeiro caso, o sujeito, vítima da velocidade, cone o
risco de perder o objeto; no segundo, embalado por uma “duração
interminável”, o sujeito pode distrair-se e perder-se no objeto. [NOTA 32]
Evidente que o aumento de velocidade o se refere apenas às
alterações de andamento mas, principalmente, à perda das etapas que
traçam um itinerário entre sujeito e objeto. Acelerar é queimar etapas e
atentar contra a espera, categoria que está na base tanto do ritmo como da
sintaxe. Nesse sentido, o ruído, na concepção de Wisnik, identifica-se,
inequivocamente, com a velocidade:
A introdução do ruído atua ambivalentemente como acréscimo de
carga informativa das mensagens e acelerador entrópico dos códigos (o que
realimenta entropicamente as mensagens). [NOTA 33]
P.242
E talvez tenhamos o primeiro critério de distinção entre a metáfora
saussuriana, na formulação original, e os conceitos posteriores que, direta ou
indiretamente, reconsideraram o seu lugar teórico.
“Massa amorfa” é extensão absoluta, estática e infinita, a ser
dinamizada nos recortes produzidos pelos sistemas lingüísticos; é um estado
potencial tão lento que pode ser comparado à rotação terrestre: imperceptível
para a escala humana. O “sentido” de Hjelmslev, embora apresente uma
mobilidade operacional, ainda conserva as noções de fronteiras espaciais pré-
fixadas pela língua enquanto sistema. “Foria” e “ruído” são conceitos
totalmente mergulhados na abordagem do processo lingüístico, musical, ou
de qualquer outra natureza. O primeiro, muito utilizado pela semiótica de
Greimas, marca a mudança de inflexão epistemológica dessa teoria em
direção à temporalidade e aos conteúdos subjetivos. O continuum fórico é um
constante devenir cuja apreensão depende necessariamente de uma
<parada> que negue a passagem desenfreada do fluxo e reapresente-o em
regime concentrado ou expandido. O segundo fornece a versão mais
completa e dinâmica da imagem saussuriana e, no entanto, como
salientamos, não compartilha, nem com a semiótica e nem com o próprio
fundador da lingüística moderna, as implicações teóricas de suas
proposições. Certamente, porém, se massa amorfa prima por inspirar uma
idéia de estaticidade - ou de movimento mínimo, nebuloso e indistinto -, cujo
significado depende da aceleração imprimida pela incidência paradigmática
dos sistemas lingüísticos, ruído caracteriza-se por uma celeridade básica que
só pode ser aplacada pelas leis sintáxicas de um processo. Senão vejamos.
Interessante observar que apesar de desenvolver o seu pensamento
numa linha independente, talvez por isso mesmo, Wisnik, ao lapidar seu
conceito de ruído, esbarra em todas as fases lingüísticas e semióticas de
tratamento do continuum amorfo. Assim, reproduzindo a estratégia didática de
Saussure, o autor se reporta, às vezes, a uma “grande reserva de ruídos”,
composta de elementos desprezados durante a “triagem” [NOTA 34]
elaborada pelas culturas, quando definem seus sons e suas leis musicais.
Mas a correção hjelmsleviana
P.243
se faz logo presente, no nosso entender, quando Wisnik esclarece que essa
reserva de ruídos reside, na verdade, em outras seleções culturais, efetuadas
no mesmo ou em outro momento histórico, assim como o “sentido” (= massa
amorfa) é o que pode ser manifestado em outra língua embora seja vetado na
primeira:
... (uma permanente seleção dos materiais visando o estabelecimento
de uma economia do som e ruido atravessa a história das músicas: certos
intervalos, certos ritmos, certos timbres adotados aqui podem ser recusados
ali ou, proibidos antes, podem ser fundamentais depois). [NOTA 35]
O ruído, porém, ganha toda sua amplitude conceptual ao identificar-se
com foria que - assim como a massa amorfa em relação às línguas - se
manifesta em função de um fazer enunciativo. Se foria vem sendo utilizada
para a análise semiótica do plano do conteúdo, ruído pode desempenhar o
mesmo papel no plano da expressão, sobretudo no que se refere a processos
estéticos, como a música ou a canção, que dependem da conservação da
sonoridade. A apreensão musical corresponde, ipsis litteris, ao primeiro gesto
de apreensão fórica:
A música é capaz de distender e contrair, de expandir e suspender, de
condensar e deslocar aqueles acentos que acompanham todas as
percepções. [NOTA 36]
Tanto o ruído quanto a foria, que não passam de um continuum
indistinto antes da intervenção enunciativa, tornam-se identificáveis, no
interior da forma antropomórfica, sob o aspecto da oposição som/ruído no
primeiro caso, e euforia/disforiano segundo. O par som-euforia corresponde
segundo nossa leitura do texto de Wisnik, àquilo que uma cultura seleciona
em função de leis combinatórias bem definidas e que lhe assegura um grau
satisfatório de estabilidade e previsibilidade. O par ruído-disforia, também
selecionado por uma comunidade cultural, representa a parcela de elementos
refratários, de
P.244
forças antagonistas [NOTA 37], passível de ser administrado e, de
preferência, absorvido pelas regras dominantes:
O som se produz negando terminantemente certos ruídos e adotando
outros, para introduzir instabilidades relativas: tempos e contratempos, tônicas
e dominantes, consonâncias e dissonâncias [NOTA 38]
A construção de uma forma semiótica exige que as acepções de som e
ruído sejam suficientemente rastreadas no texto e reduzidas, por fim, a seus
valores essenciais. Os sintomas isotópicos, detectados acima, com relação
ao tratamento cinemático dispensado aos dois conceitos, podem ser agora
confirmados em escala mais ampla. Se, de um lado, som-euforia significa
basicamente ordem, sintaxe, ritmo e espera, e ruído-disforia significa o
inverso disso tudo e se, por outro lado, ordenação corresponde à ritualização
musical do material sonoro para evitar, na medida do possível, a intervenção
abrupta da surpresa, a “história das músicas” de Wisnik relata, primeiramente,
o esforço das culturas no sentido de conter a velocidade imposta pelos ruídos
- outros sons de outras culturas -, ao mesmo tempo que dependem da
administração de alguns deles para impedir que seus discursos musicais
tomem-se ritos excessivamente lentos. Relata, em seguida, o destino
inexorável da música rumo ao mundo dos ruídos, cuja velocidade, marcada
pela coexistência dos sons de todo o planeta em cada cultura, com suas
potencialidades multiplicadas pelo avanço eletrônico e pelas exigências de
mercado, requer novas gramáticas, ou gramáticas de emergência, capazes
de frear - com a serialização, a repetição, a mixagem, os sintetizadores, os
“loops” e com a própria canção em si - uma possível dispersão total de
sonoridade.
Assim, a trajetória proposta por Wisnik, da música modal às
“simultaneidades contemporâneas”, pode ser lida como a passagem
P.245
gradativa da desaceleração à aceleração vertiginosa do tempo. Evidente que
não se trata apenas de um tempo mobilizado pelas diferenças de andamento
mas, principalmente, da velocidade das mudanças bruscas, típicas dos
processos descontínuos, em oposição à moderação [NOTA 39] que,
regulamentando as medidas musicais, valoriza e alimenta a duração do
percurso.
A formação das escalas como verdadeiros paradigmas culturais, a
repetição acirrada de seus pulsos e de seus contornos, as manobras em tomo
de uma tônica rigorosamente fixa, tudo isso que, segundo Wisnik, expressava
forte compatibilidade entre a música modal e o mundo pré-capitalista, com
suas “formações sociais resistentes à mudança e a todo tipo de evolução”
[NOTA 40], assinala também a desaceleração de um tempo que tende a
parar:
A música modal participa de uma espécie de respiração do universo,
ou então da produção de um tempo coletivo, social, que é um tempo virtual,
uma espécie de suspensão do tempo, retornando sobre si mesmo. [NOTA 41]
No rito de construção das escalas e de determinação de suas leis
intervalares sempre esteve implicada a proteção dos sons contra os ruídos,
assim como um cultivo de previsibilidade contra a atuação do inesperado.
Escalas, intervalos, pulsos e tonalidades são medidas tomadas em nome da
desaceleração do tempo.
A presença latente do trítono (intervalo de três tons inteiros ou quarta
aumentada) nas melodias do canto gregoriano, por exemplo, presença esta
sistematicamente negada pelos sicos, que realizavam todas as evoluções
necessárias para impedir sua manifestação, também traz uma justificativa
espaço-temporal a ser adicionada aos motivos físicos, metafísicos e morais
que, para Wisnik, determinaram o “recalque” prolongado deste intervalo na
música euro-
P.246
péia. Com efeito, as razões acústicas e harmônicas que retardaram a
assimilação do trítono remetem-se, todas, ao fator descontinuidade, ou seja,
mais uma vez, à “suspensão de um regime permanente”. Portador de valores
remissivos, o trítono, diabolus in musica, realizava considerável fratura no
continuum rico e, nessa condição de ruído-disforia - uma “velocidade
estonteante” para a época -, criava a necessidade de compensação e, por
conseguinte, de reconstituição do percurso musical omitido. [NOTA 42]
Por isso, a passagem gradativa do mundo modal ao mundo tonal,
selada por um “acordo com o trítono” ou um “pacto com o diabo”, segundo
formulação precisa de Wisnik [NOTA 43], se consuma numa troca de dons
(ou sons), onde esse intervalo é assimilado desde que devidamente
preparado e resolvido. Nessas fases, anterior e posterior, depositam-se os
valores emissivos encarregados da transição sem rupturas. A distância
harmônica passa, então, a ser ocupada por um percurso que leva e traz de
volta, desacelerando o processo.
Mas o “diabo” cobra muito e o que temos, durante séculos de
tonalidade, é uma “tritonização generalizada” [NOTA 44] responsável por
modulações cada vez mais ágeis e contínuas, desembocando num
cromatismo que possibilita todos os desvios de rota imagináveis no campo
das alturas, de tal modo que a escala diatônica - garantia de estruturação,
solenidade e previsibilidade do sistema tonal - se transforma, pouco a pouco,
numa série de doze tons, sem eixo harmônico, ao sabor das múltiplas
derivações (agora, não apenas no campo das alturas) e dos saltos peculiares
ao mundo do ruído-disforia.
P.247
O dodecafonismo é a mais completa explicitação do pano de fundo
cromático sobre o qual se desenvolve o tonalismo, que vem à tona negando
todo o diatonismo e todo movimento cadencial. [NOTA 45]
A despeito de todos os esforços de desaceleração dos discursos
musicais, dos quais resultaram as obras mais reverenciadas pela humanidade
em todos os tempos [NOTA 46], a atração pelos lugares sonoros
desconhecidos acabou prevalecendo e, mais que isso, a sua busca acelerada
sem maior transição. Wisnik realça esse aspecto quando utiliza, em algumas
passagens, o modelo smico para indicar o processo de dispersão a que foi
submetida a música tonal durante sua evolução histórica:
A tonalidade e seu grande arco podem ser vistos, então, não como um
cosmo encerrado em sua centralidade, mas como um cometa que se afasta,
tendo no seu núcleo a forma clássica (mais precisamente aquele elo barroco-
clássico, que vai de Bach a Beethoven), a cauda romântica, e sua dispersão
atonal-serial-eletrônica. [NOTA 47]
O caráter difuso e veloz da série dodecafônica, por sua vez, sofreu
severa resistência do cérebro de Schoenberg que condicionava o seu uso a
uma série de princípios, onde não faltavam instruções para a conduta dos
compositores, todas elas negando terminantemente o espectro da gama
diatônica. Como sempre, a necessidade de sintaxe e de ritmo surge como
resposta temporal, em nome da “espera”, ao excesso de imprevistos. Quanto
a Webern, comentamos sua incansável busca de coerência (cf. Cap. I)
através do estreitamento das relações entre os elementos intensos e a
expansão geral
P.248
da obra, projeto este inspirado em minuciosa revisão da história da música
tonal. [NOTA 48]
A experiência serial que, segundo Wisnik, contracena, neste século,
com a experiência minimalista (Philip Glass e Steve Reich), atingindo,
respectivamente, os confins da dissonância e da defasagem, obrigam, ambas,
a repensar as gramáticas musicais como desenvolvimentos parciais - cultural
e historicamente comprometidos - de uma “mesma base freqüencial”, fonte
geradora do tom e do pulso, o primeiro explorado à exaustão pela música
européia, o segundo pela música africana. [NOTA 49]
A música de hoje está mergulhada num vasto processo contínuo de
interações - com fronteiras imperceptíveis entre origem melódica e origem
rítmica bem como entre linha erudita e linha popular onde não mais tempo
para implantação de novos sistemas ou novas gramáticas duradouras. Sob a
égide matricial do tom e do pulso, as gramáticas particulares nascem e
morrem em cada obra, mas vivem o suficiente para conservar, na extensão
de uma sonoridade ordenada, uma fração do nosso tempo histórico. A
presença dos proto-sistemas (tonalismo ou ritmismo pulsante) nas canções
populares é apenas mais um sintoma de concomitância daqueles princípios,
mesmo no interior de obras de pequena extensão sem que isso represente
muita coisa no resultado final de suas significações particulares.
Diminuem as distâncias culturais, diminuem igualmente as durações. O
extraordinário avanço tecnológico contribui para a eliminação dos espaços e
dos tempos que separam o som do ruído mas, em contrapartida, oferece
recursos quase ilimitados para a repetição
P.249
e a reprodução em série, possibilitando ordenações e sintaxes, até pouco,
insondáveis. A trajetória do texto de Wisnik rumo às simultaneidades
contemporâneas descreve, no nosso entender, o esforço dos músicos, ao
longo da história, no sentido de controlar a velocidade crescente imposta
pelos ruídos, lançando mão de recursos cada vez mais apurados. Daí a
homologação que vimos sugerindo, entre, de um lado, ruído e aceleração
e, de outro, som e desaceleração. A velocidade desenfreada não permite
sequer a fixação sonora indispensável à própria existência musical:
Entramos numa câmara universal de músicas que despontam à
atenção e se dissipam, ficando provisoriamente guardadas em algumas
"obras" Os timbres se multiplicam com a celeridade das mercadorias, e não
fixam o som. A música é um sinal errático entre essas granulações,
submetido ao poder da repetição. Nesse processo de aceleração em queda
livre que acompanha o ritmo da dessacralização generalizada do som, o
monolito de tom e pulso é, se quisermos, a única referência, enigmática, óbvia
e intacta. [NOTA 50]
Essa noção de ruído como sonoridade provisória, refratária à
conservação da matéria, parece-nos fecunda para uma reflexão consistente a
respeito da própria origem da canção popular.
CANTO E FALA
No mundo da canção, os valores musicais recebem outros pesos e
outras medidas. As tensões sonoras, paulatinamente conquistadas no
decorrer da história das músicas, são incorporadas de forma compacta no
acompanhamento instrumental e raramente se agregam aos componentes
que o identidade à canção. Permanecem na condição de manifestantes -
de variáveis cuja forma manifestada - bem menos variável - é a relação
entre melodia e letra. De fato, por mais que se transformem os arranjos
instrumentais, a linha da voz,
P.250
conduzindo os valores melódicos e lingüísticos, continua sendo a única
garantia de que se trata da mesma canção.
Nesses termos, as funções que articulam som e ruído têm sua
gravidade deslocada para outro centro. Não importa tanto a sonoridade lato
sensu, mas a sonoridade produzida pelos órgãos vocais, a mesma que
sustenta a expressão de nossa linguagem cotidiana. O som se caracteriza,
assim, pela negação das inflexões entoativas da fala, sobretudo no que essas
têm de instabilidade e interinidade, e pela instauração de uma gramática que,
além de fixar a linha da voz projetando os tempos rítmico e mnésico sobre
o tempo sucessivo -, engendra os valores que tomam melodia e letra
compatíveis, o suficiente para instruir adequadamente o trabalho de arranjo
instrumental.
Constituída na tangente da linguagem oral e a partir da musicalização
dos mesmos recursos empregados por qualquer falante em sua comunicação
diária, a canção sempre correu o risco de perder- se no fluxo itinerante e
provisório das mensagens corriqueiras. Esse risco era mais presente antes da
generalização dos processos de gravação. O disco e o rádio contribuíram em
muito para destacar e estabilizar o que era canção no meio da fala. Sem
dúvida, porém, o trabalho mais delicado de seleção da sonoridade a ser
conduzida pela voz e de administração das interferências ruidosas da
linguagem oral ficou por conta das atividades artísticas dos compositores e
dos intérpretes. Ao mesmo tempo que rejeitavam as funções prosaicas e
finalistas da fala, sentiam-se atraídos pela imprevisibilidade espontânea de
suas entonações e de suas expressões coloquiais.
A onipresença dos processos da linguagem oral no universo da canção
foi objeto de nossos estudos em inúmeras oportunidades [NOTA 51], mas
agora vislumbramos a possibilidade de integrá-los como valores
equivalentes aos que transitam nos estratos gerativos do sentido. A chave
está na necessidade de conservação da substância sonora da voz, quando
letra e melodia se entrosam em função do canto, em oposição à necessidade
de abandono da mesma substância quando os dois componentes estão em
função da fala. O caráter impreciso e efêmero das entonações linguísticas,
extremamente adequa-
P.251
do à rapidez da circulação das mensagens na vida cotidiana, torna-se
incompatível com as leis de fixação sonora exigidas pela canção. Nesse
sentido, a velocidade da fala é ruído-disforia a ser negado pela canção, ao
mesmo tempo que constitui importante recurso ao alcance dos compositores
e cantores interessados na dinamização sonora de suas obras.
Os trabalhos de Paul Valéry sobre a estética, associados às suas
reflexões sobre o tempo, constituem, a nosso ver, a mais ampla e profunda
referência para quem deseja abordar as práticas significantes que
desempenham função artística a partir de material comprometido com
funções utilitárias. [NOTA 52] Embora mantendo a tônica na relação entre
poesia e prosa, Valéry estende seus princípios à relação entre canto e fala, e
até mesmo à relação entre dança e marcha (o “andar” do dia-a-dia). A função
utilitária da prosa, da fala e da marcha dispensa as leis solenes que ritualizam
e estabilizam o plano da expressão. De acordo com o autor, todas essas
práticas extraem seu valor e sua eficácia da rapidez com que se convertem
em algo abstrato, desvinculado tanto da matéria como do percurso traçado no
significante.
O conteúdo temporal implicado na diferenciação entre poesia e prosa
vai se configurando no discurso de Valéry, como o foi no caso de Wisnik,
numa isotopia de segundo grau [NOTA 53], onde a força de desaceleração da
linguagem poética pode ser deduzida a partir de um constante conflito
implícito com a aceleração - esta sim, muitas vezes evocada - da prosa e da
linguagem coloquial:
A poesia, arte da linguagem, é portanto coagida a lutar contra a prática
e a aceleração moderna da prática. Ela valorizará tudo o que pode diferençá-
la da prosa. [NOTA 54]
P.252
As palavras, para o autor, têm mais sentido que funções e estas
últimas são evidenciadas pelo tratamento veloz, quando aquelas se
comportam como “meio” e não como “fim” [NOTA 55]:
... que compreendemos os outros, e que compreendemos a nós
mesmos, graças à velocidade de nossa passagem pelas palavras. [NOTA 56]
Ocorre que o plano da expressão, embora seja indispensável ao
universo da comunicação, nunca se caracteriza como seu objetivo. A
compreensão intelectual depende não apenas da rapidez com que se passa
pelas palavras mas, sobretudo, da rapidez em que se processa a
transformação do som em sentido abstrato. Quanto mais provisória a
ordenação fônica mais eficaz a comunicação.
Compreender consiste na substituição mais ou menos rápida de um
sistema de sonorização, de durações e de sinais por algo totalmente diferente
que é, em suma, uma modificação ou uma reorganização interna da pessoa a
quem se fala. [NOTA 57]
Nesse sentido, vale sublinhar a imprecisão melódica das entonações
lingüísticas que, elaboradas para acompanhar nossas sequências da fala, não
subsistem a elas. A instabilidade acústica dos contornos entoativos
compensada por uma ordenação elementar dos tonemas (terminações de
frases melódicas) que fixam o parâmetro descendência / não-descendência -
desempenha a função precípua de auxiliar na transmissão de mensagens
sem adquirir autonomia sonora. Em outras palavras, a entonação é
programada para ter vida breve, para se extinguir no limiar da compreensão e
suas leis estão irremediavelmente subordinadas às leis lingüísticas. E,
realmente, como vimos, de acordo com os princípios saussurianos, o valor
fonológico do som jamais se define por representação acústica mas pela
capacidade de engendrar e distinguir significados abstratos. O desa-
P.253
parecimento iminente da entonação dos discursos orais, tão logo cumpram
sua função informativa - afinal, o perfil entoativo de um texto constitui o único
esboço (não mais que isso) de uma ordenação extensa da sonoridade
lingüística -, é o maior sinal de interinidade do plano da expressão nas
práticas de comunicação abstrata.
... nos empregos práticos ou abstratos da linguagem, a forma [NOTA
58], ou seja, o físico, o sensível e o próprio ato do discurso não se conserva;
não sobrevive à compreensão; desfaz-se na clareza; agiu; desempenhou sua
função; provocou a compreensão, viveu.. [NOTA 59]
Na dissolução da expressão está implicada a dissolução do próprio “ato
de discurso” e do processo engendrado para se atingir a meta informativa.
Está implicada ainda a supressão das leis que organizaram o significante em
função de um projeto, cujo êxito pode ser aferido pela instantânea
transposição ao plano do conteúdo. De fato, nas utilizações práticas da
linguagem oral, a meta é atingir, de maneira rápida e econômica, a
formulação e a conseqüente compreensão do conteúdo lingüístico. Valéry
identifica essas práticas às nossas andanças diárias, quando também são
orientadas para objetivos determinados:
O andar, como a prosa, visa um objeto preciso. É um ato dirigido para
alguma coisa à qual é nossa finalidade juntarmo-nos. São circunstâncias
pontuais, como a necessidade de um objeto, o impulso de meu desejo, o
estado de um corpo, de minha visão, do terreno etc. que ordenam ao andar
seu comportamento, prescrevem-lhe sua direção, sua velocidade e dão-lhe
um prazo limitado. Todas as características do andar são deduzidas dessas
condições
P.254
instantâneas que se combinam singularmente todas as vezes. Não existem
deslocamentos através do andar que não sejam adaptações especiais, mas
abolidas e como que absorvidas todas as vezes pela realização do ato, pelo
objetivo atingido. [NOTA 60]
A busca do caminho mais rápido, o automatismo dos movimentos
envolvidos nessa busca e, principalmente, o imediato apagamento de todo o
processo assim que se atinge a meta, comprovam a desimportância do
percurso diante do resultado, embora aquele seja condição para se chegar a
este. [NOTA 61] Nossa marcha do dia-a-dia equivale aos programas gestuais,
estudados por Greimas [NOTA 62], cujos significados parciais vão se
“dessemantizando” e adquirindo uma posição metonímica que pode ser
avaliada à luz do projeto global da sequência gestual. Assim, todos os
fragmentos gestuais que compõem um programa de pesca, por exemplo,
definem um significante extenso que nada mais é que um desdobramento
ordenado de um projeto, o seu significado. Em outros termos, a meta de um
programa gestual - independentemente de ter sido alcançada - é a razão que
sentido (ou direção) à seqüência executada. Esta poderá, portanto, ser
ampliada, reduzida ou, enfim, otimizada em relação aos objetivos do projeto.
No quadro das funções utilitárias, as seqüências gestuais estão para seu
projeto assim como as seqüências fonológicas estão para o plano do
conteúdo lingüístico. Ambas são dispensadas tão logo atingem a meta.
O contínuo sacrifício da sonoridade, no campo lingüístico, para
salvaguardar o conteúdo é fenômeno previsto no modelo de Saussure-
Hjelmslev quando se atribui à forma de expressão um estatuto rigorosamente
abstrato em interdependência estrita com a forma de con-
P.255
teúdo. As leis lingüísticas que organizam a expressão em função do conteúdo
não contemplam os requisitos necessários à conservação da substância
sonora. Ao contrário, traçam um percurso sintagmático para ser utilizado uma
única vez.
Os impulsos de ritualização, de musicalização ou de estetização de
modo geral são manifestações de defesa do corpo, da substância e do
presente contra a rapidez e a efemeridade das práticas cotidianas. Assim, por
exemplo, se uma dança opera com seqüências gestuais semelhantes às de
um programa de pesca, jamais o seu sentido pode ser substituído pelo
resultado prático dos movimentos (ex: um peixe, cujo tamanho e cuja
qualidade seriam suficientes para dar indicações sumárias sobre a
gestualidade empregada). Ao contrário, o resultado, neste caso, é apenas um
efeito de sentido diluído no percurso sintagmático que, este sim, deve ser
conservado em toda a sua integridade.
A dança é totalmente diferente. È, sem dúvida, um sistema de atos:
mas que têm seu fim em si mesmos. Não vão a parte alguma. [NOTA 63]
A poesia também, segundo Valéry, depende da conservação da
expressão embora faça uso de grandezas e de leis muito semelhantes
àquelas empregadas na prosa ou no discurso coloquial. [NOTA 64] A
delicadeza da atividade do poeta está justamente na necessidade conciliar a
celeridade própria das comunicações abstratas com a fixação da substância
sonora e do percurso sintagmático.
...O poema (..) não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para
renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser. A
P.256
poesia reconhece-se por esta propriedade: ela tende a se fazer reproduzir em
sua forma, ela nos excita a reconstituí-la identicamente. [NOTA 65]
As leis musicais, que dão forma e estabilidade ao som, operam no
sentido de ritmar o tempo cronológico e de conter os saltos promovidos pelo
tempo mnésico. Numa palavra, elas desaceleram as manobras associativas
do pensamento, instaurando uma contigüidade in praesentia. [NOTA 66]
É nesse sentido que “a execução do poema é o poema”. [NOTA 67] A
substância sonora - seu timbre, sua melodia e seus acentos - e as leis que a
fixam são extensões concretas do ser do sujeito que organizam e perpetuam
alguns de seus instantes. No caso da canção, esses fenômenos de
presentificação enunciativa são ainda mais acentuados em virtude da
necessária interpretação de um cantor que literalmente recompõe a obra a
cada nova execução. Além disso, a voz e a melodia se sobressaem,
respectivamente, como substância e forma sonoras, cujas unidades se
constituem de temas ou frases bem além das dimensões silábicas. A sintaxe
musical instaura-se, assim, no plano da expressão da canção popular,
oferecendo formas de estabilização tão completas que chegam a dispensar,
do ponto de vista técnico, a participação lingüística. Aquilo que chamamos de
“melodia” concentra os principais valores musicais gerados pela composição,
de tal modo que as aliterações e os contrastes fonológicos tomam-se, quase
sempre, efeitos de segundo plano. Componente melódico e componente
lingüístico ou, sumariamente, melodia e letra, responsáveis por um sentido
homogêneo, exibem, entretanto, sintaxes próprias, a primeira assegurando a
presença física da matéria sonora e a segunda encarregando-se, sobretudo,
do conteúdo abstrato. Ambas são suscetíveis, como atestam os capítulos
anteriores, de serem analisadas pelos mesmos princípios teóricos e
descritivos.
P.257
E se na criação de uma letra de canção um tratamento poético
que contribui para a estabilização da matéria fônica, esse processo se
completa e se define verdadeiramente com a proposta melódica. [NOTA 68]
nesse estágio, a canção identifica-se, também, com a própria execução,
eternizando um instante do ser que a criou. Valéry refere-se diretamente ao
canto nesses termos:
O canto é mais real que a fala plana; porque ela vale por uma
substituição e uma operação de decifração enquanto ele move e faz imitar,
faz querer, faz estremecer como se sua variação e seu tecido fossem a lei e a
matéria de meu ser. Ele se põe em meu lugar; mas a fala plana está na
superfície, ela detalha as coisas exteriores, fragmenta, rotula. [NOTA 69]
A letra que integra a canção continua dando conta das abstrações do
pensamento e dos conteúdos ausentes mas só dos que podem ser renovados
a cada execução. O resto é sacrificado e canalizado pelo rito melódico-
musical. O resto é o texto-fala, esse universo ruidoso que subjaz à canção
mas que deve ser negado por sua absoluta incapacidade de conservação
sonora.
A sobreposição das leis musicais sobre o componente melódico, com
repercussão direta no componente lingüístico, desloca o foco de tensão da
relação entre melodia e letra - que as duas recebem o mesmo tratamento
de fixação - para a relação entre canção e fala, consideradas, ambas, como
portadoras de melodia e letra mas sob a influência predominante de leis
diferentes. A instabilidade das entonações lingüísticas - adequada, como
vimos, à rapidez das transmissões intelectivas - é um desafio ao tratamento
musical. Suas evoluções melódicas são arrítmicas e micro-tonais, ostentando
o descompromisso com o plano da expressão, mas demonstrando, ao mesmo
tempo, uma natural compatibilidade com as evoluções lingüísticas. Mais que
isso, as entonações dependem da coesão assegurada no ní-
P.258
vel da forma do conteúdo da linguagem para cumprir seu papel de adjuvante
nas formulações enunciativas e, sobretudo, nas modulações dos afetos
investidos nos textos. A instabilidade é, no fundo, um fator de flexibilidade que
faz das entonações algo conformável a toda e qualquer proposição oral. Tais
melodias devem contribuir para o sentido geral do texto mas não podem
subtrair a atenção dos interlocutores, sob pena de comprometer a eficácia da
transmissão.
Resumindo, podemos dizer que a configuração coesão linguística /
instabilidade entoativa define o quadro ideal para que os discursos, velozes e
efêmeros, processem com êxito suas comunicações abstratas do dia-a-dia.
De fato, a introdução de leis musicais altera significativamente a
relação entre melodia e letra, gerando implicações importantes no plano
enunciativo. Conservar a sonoridade, a partir da estabilização melódica,
equivale a bloquear o mecanismo natural de transposição imediata da
expressão ao conteúdo, próprio da fala. Equivale, ainda, a uma transformação
do objeto ausente em objeto presente, em relação contígua com o corpo,
através da voz. Assim, mais uma vez, é oportuna a passagem de Valéry que
fala sobre a dança, o verso e o canto:
A dança não tem por objetivo me transportar daqui para lá; nem o
verso, nem o canto puros.
Mas eles existem para me tornar mais presente a mim mesmo, mais
inteiramente entregue a mim mesmo, exaurido diante de mim inultimente, me
fazendo suceder a mim mesmo, e todas as coisas e sensações não possuem
mais outros valores. [NOTA 70]
CORPO, ANDAMENTO E LIBERDADE
A noção de “presente”, para Valéry, é uma simultaneidade, uma
sincretização de todos os tempos na pessoa do EU e na percepção e
P.259
consciência o corpo. [NOTA 71] Há, neste conceito, um sentido de
neutralização temporal (todos os tempos equivalendo a nenhum tempo), um
grau zero desprovido de tensão [NOTA 72], onde o “aqui” e o “agora”
enunciativos correspondem, respectivamente, à assimetria e à intransitividade
[NOTA 73]. Nesse concepção, o EU é um centro de ancoragem de onde
partem e para onde voltam todas as extensões espaciais ou temporais que
engendram os nossos conteúdos.
Presente - é um funcionamento.
funcionalmente - um retomo a um ponto que é o EU - do instante. -
Este retorno é tão obrigatório quanto o retorno do coração ao estado de
retomada de sua contração. [NOTA 74]
Ocorre que o espaço realmente se define para o sujeito ao expandir-se
do AQUI enunciativo a um outro ponto que pode ser um ALI, um LÁ, um -
LONGE... podendo ir ao infinito. Do mesmo modo, o AGORA, identificado
com o presente enunciativo, adquire sentido quando se expande em
direção ao -JÁ, ao DAQUI A POUCO, ao BREVEMENTE ou mesmo ao
PARA SEMPRE. Considerando que a distância espacial e a duração temporal
são conceitos dependentes da velocidade de andamento implicada na relação
entre dois pontos e que esses valores de andamento pertencem, num
enfoque semiótico, à esfera subjetal, Zilberberg propõe uma arguta
correspondência entre EU enunciativo e TEMPO, no sentido de andamento
ou, em termos mais técnicos, de tempo cinemático.
... o TEMPO controla a extensão da qual o "agora" e o "aqui" são os
pontos de ancoragem. [NOTA 75]
P.260
Em outras palavras, se o EU demarca um ponto de ancoragem, o
andamento determina a duração e, conseqüentemente, a extensão espacial
envolvidas no processo. exploramos exaustivamente em outros momentos
desse trabalho, os efeitos do andamento sobre o tempo e o espaço. A
aceleração subjetal provoca a redução da duração e da distância nas
extensões objetais enunciadas. A desaceleração, produzindo o efeito inverso,
instaura a continuidade que recupera a junção do sujeito com o objeto ou com
o percurso que leva ao objeto.
Todas essas observações nos fazem pensar que a exigência de
fixação do plano da expressão, tão cara às atividades estéticas, tem o sentido
de criar um prolongamento do corpo do sujeito, de modo que artista e obra
sejam dimensões da mesma grandeza - e aqui retomamos sujeito e objeto
como termos originários de uma unidade primordial -, fazendo do trabalho de
execução uma duração do presente. Isso corresponde a uma interrupção do
ritmo de vida cotidiano ou, se preferirmos, ao recolhimento das espacialidades
e temporalidades ao AQUI-AGORA intransitivos da enunciação para uma re-
exposição programada dos valores subjetivos sob a égide das oscilações de
andamento. O enunciado estético resultante, inscrito numa substância de
expressão e sustentado geralmente por um ritmo que vincula o todo às
partes, é, em si, por sua própria materialidade, uma reação ao caráter
efêmero dos discursos utilitários que transmitem mensagens abstratas.
Chegamos, assim, a um lugar de delicada implicação epistemológica,
onde concebemos a atividade artística - e, para não ampliar demais os limites
desse trabalho, pensemos apenas na canção, na poesia ou na dança cujas
leis e cujos componentes participam vivamente das práticas utilitárias - como
um processo de desaceleração. Compor, por exemplo, é criar uma duração
que mereça ser preservada e destacada do ciclo rotativo das comunicações
cotidianas. Pressupõe, portanto, uma parada do fluxo utilitário para dar origem
a um novo movimento, cuja direção valoriza cada vez mais a própria duração
ou, se preferirmos, o próprio espaço de duração da obra.
Arriscamos, neste ponto, estabelecer um elo entre a criação estética -
mantendo sempre no horizonte, a idéia de composição e
P.261
uma estimulante noção de “liberdade” lançada por Zilberberg em seu estudo
sobre o pensamento de Wõlfflin. [NOTA76]
Segundo o semioticista, a liberdade situa-se exatamente no encontro
da <parada> com a <parada da parada>, ou seja, na negação de um
processo, geralmente sob a regência modal de um /dever fazer/, e na
afirmação subseqüente de outra extensão, desencadeada pelo /querer fazer/
e sustentada pelas modalizações do /saber fazer/ e do /poder fazer/. De fato,
a extensão de uma obra é anunciada pelo ato de composição no mesmo
instante em que se rejeita a interinidade da fala.
Numa fase posterior, se a foria for apreendida como duração, o salto
intervalar, como vimos, pode interromper o processo e apresentar um
contra-fluxo a ser negado pela retomada da gradação. Se a foria for
apreendida como aceleração, as forças dispersivas do desdobramento
melódico retiram o sujeito de sua trajetória, impondo-lhe uma parada
prolongada em relação ao caminho que leva ao objeto. A função da
tematização (ou do refrão) é negar o desvio de rota e reimplantar o progresso
melódico em direção a sua meta. Todas essas atuações do programa
melódico em busca dos valores emissivos e contra o fazer remissivo do,
igualmente necessário, anti-programa melódico, descrevem um ponto de
recusa e de retomada, facilmente associável ao “ponto de liberdade” que
Zilberberg retira, mais uma vez, do modelo silábico:
Em homenagem a Saussure que estabelecia, em relação à sílaba, a
emergência de um “ponto vocálico”, gostaríamos de evocar aqui a informação
de um “ponto libertário a “liberdade supõe primeiramente uma parada, uma
interrupção num progresso em curso avaliado como disfórico; sob esta
condição, a liberdade é a princípio livramento, libertação, desengajamento, de
maneira que o sujeito se sente como libertado de... Mas, sendo terminal, este
ponto libertário é igualmente um ponto inicial e o sujei-
P.262
to se sente como livre de...; a liberdade é agora - mesmo correndo o risco de
forçar um pouco o termo - deliberação e engajamento. Assim, este "ponto
libertário é - como é natural? - um sincretismo tal que o sujeito é, se sente,
se crê ao mesmo tempo libertado e livre. Por outro lado, este "ponto” é um
ponto "crítico " que reaviva ao sujeito a percepção do próprio progresso. A
liberdade é um termo complexo conjugando um tempo de parada e um tempo
de impulso, um término e uma partida. [NOTA 77]
Sabe-se que o valor da liberdade aumenta na proporção em que
cresce o perigo de perdê-la. Criar na tangente do mundo ruidoso, absorvendo
as atuações do anti-programa em proveito da evolução do programa,
constitui, portanto, um exercício de liberdade, fundado na competência do
sujeito enunciativo. salientamos, nesse sentido, que a administração dos
valores remissivos, das descontinuidades que provocam rupturas na letra e
na melodia das canções, é uma característica inalienável da prática do
compositor-intérprete. Este compensa as suspensões bruscas do elo afetivo,
os desdobramentos melódicos repentinos, os saltos intervalares, as
transposições melódicas, enfim, as síncopes aceleradoras do processo, com
a restituição do vínculo temporal, aplicando leis que restauram a espera, a
lembrança, a previsão, a gradação, numa palavra a duração que estabiliza a
matéria sonora como extensão do corpo do artista.
Entretanto, de acordo com a argumentação que vimos desenvolvendo,
a principal batalha entre valores emissivos e valores remissivos (o principal
grito de liberdade) é travada, não no campo desses conflitos internos que
apenas enriquecem a trajetória lingüístico-melódica, mas no esforço de
negação extensa das funções utilitárias da fala. Este é o verdadeiro palco de
luta entre a duração e a celeridade pois se, de um lado, a fala é uma
constante ameaça à perpetuação da composição, de outro, ela é a principal
garantia de dinamização da linguagem. A fala desfaz os gêneros: não é
samba, não é rock, não é bolero, não é rap... ela não se deixa fixar. É um
antídoto aos estereótipos da gramática geral que cristaliza o gênero. Por isso
que os grandes autores costumam operar na tangente das entonações da
fala, negando sua interinidade, como condição de produ-
P.263
ção, mas, ao mesmo tempo, instituindo os seus contornos indomáveis como
meta para a ação disciplinadora das leis musicais.
A fala como horizonte da canção brasileira verifica-se, não apenas de
um ponto de vista lógico - relação de dependência entre as funções estéticas
e as funções utilitárias -, mas também de um ponto de vista cronológico,
desde os processos iniciais de formação da linguagem, na primeira metade
do culo, até as mais recentes produções, sob os auspícios da parafernália
eletrônica.
Os primeiros sambas, produzidos nas brincadeiras de roda,
demonstravam um esforço de fixação dos versos que, elaborados de
improviso, tendiam a se diluir nas mensagens com função imediata. As quatro
partes de Pelo telefone, todas constituídas à maneira de um refrão, refletiam
bem a necessidade de contenção das frases e das interjeições, cujo registro
coloquial sugeria, por si só, inúmeras substituições (essa canção
experimentou, de fato, muitas versões antes de chegar à forma mais
consagrada). A gravação ainda era uma realidade incipiente reservada
apenas aos trabalhos depurados musicalmente, ou seja, estabilizados
por um esquema de previsibilidade que adotou, como âncora, o refrão.
Sinhô mandando recados a seus desafetos através da canção, Noel
Rosa e Wilson Batista criando polêmica e desenvolvendo farta argumentação
em suas obras, as vozes entoativas de Noel, Lamartine Babo e Mário Reis, o
tom de oratória dos sambas de exaltação, o samba de breque, os ditos
populares estampados nas marchinhas de carnaval, isso tudo sempre realçou
a atração exercida pela fala. Da mesma forma, em direção oposta, o canto
cerimonioso, e por vezes empolado, de diversos intérpretes (de Silvio Caldas
a Vicente Celestino, passando pela última fase de Francisco Alves), a
estabilização dos gêneros rítmicos, a letra “quase-literária” (de Cândido das
Neves, algumas de Sinhô, de Pixinguinha e dos mestres do samba-canção
como Cartola, Nelson Cavaquinho e mesmo Lupicínio Rodrigues), agiam no
sentido de negar, ou sublimar, a presença incômoda da fala que, enquanto
tal, não contribuía para a liturgia artística.
Os dois comportamentos são, na verdade, exacerbações polarizadas
de momentos que se integram dialeticamente na prática do cancionista. Como
já vimos, ao negar a celeridade da fala em seu pri-
P.264
meiro gesto de composição (em nome da preservação da obra), o artista
repropõe esse mesmo valor como objeto de sua atuação musical. A meta final
é nada menos que a irrealizável conquista do mundo coloquial.
Na fase moderna da canção brasileira, a Bossa-Nova compensa as
largas inflexões do samba-canção, conduzidas quase sempre por uma voz
impostada, com um enriquecimento harmônico que possibilita a exploração
parcimoniosa do campo de tessitura dentro de um registro bem compatível
com a emissão da linguagem cotidiana. Se a canção retoma a retórica das
grandes durações, dos alongamentos vocálicos, na chamada fase de protesto
da MPB, a Jovem Guarda faz o contraponto de época, apontando para os
temas e as entonações do dia-a-dia.
A Tropicália, em sua fase “Panis et Circencis” (sic), que se caracterizou
pela diluição do discurso monolítico adotado pela MPB em meados da década
de 60, teve o seu ponto intenso marcado por uma passagem abrupta do canto
para a fala, quando, por ocasião de sua participação no III Festival
Internacional da Canção, realizado pela TV Globo do Rio de Janeiro em 1968,
Caetano Veloso, em conflito direto com a reação negativa da platéia, desfez a
canção E proibido proibir, altamente estabilizada, em pronunciamento verbal
(musicado ao fundo pelo conjunto “Os mutantes”), articulado com tamanha
veemência que mal conseguiu retomar o refrão (“fora do tom, sem melodia”)
no final do discurso. Esse fenômeno de decomposição, próprio de uma época
caracterizada por maniqueísmos (direita / esquerda, vanguarda /
conservadorismo, engajamento / alienação) extremamente enrijecidos, teve
sua contrapartida histórica, recentemente, em Tropicália II. Concebida num
cenário de Brasil exaurido pela corrosão econômica, sócio-política e moral,
sem condições de responder, com a devida rapidez, aos desafios da nova
ordem mundial, Tropicália II veio clamar por ordenação. [NOTA 78]
P.265
A canção manifesto, Haiti (de Gilberto Gil e Caetano Veloso), nasce da
fala concreta, com sua complexidade rítmico-melódica a serviço do amplo
relatório da situação nacional expresso pela letra, fixa-se musicalmente nos
contornos do tema da guitarra e desemboca num refrão concebido como
espaço de duração (<continuação da parada>) destinado à avaliação dos
valores e das junções:
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
Tudo isso sob a interrupção do tema instrumental e o alongamento
ostensivo dos acordes e das vogais. Nesse sentido, Tropicália II é
recomposição de uma ordem, configurada, no plano musical, pela passagem
das entonações à melodia do canto e, no plano lingüístico, por uma proposta
de reflexão sobre o momento brasileiro.
Esse refrão, a nosso ver, é apenas a projeção de outra canção do
mesmo disco, Aboio (Caetano Veloso) [NOTA 79], que apresenta um
verdadeiro exercício de duração musical - destacado no arranjo pela
resistência da linha principal diante dos apelos de aceleração lançados por
um pandeiro -, convidando a cidade a uma auto-reflexão a partir de suas
origens ainda desaceleradas:
Pensa o que é e será e foi
Pensa no boi
P.266
Enfim, de Jorge Ben Jor a Djavan, de João Gilberto a Caetano Veloso,
todos os cancionistas são convidados a estabelecer uma posição diante da
fala cotidiana, diante do universo caótico das entonações lingüísticas,
dosando o grau de influência das leis musicais, de modo a obter ordenação
sem hipertrofiar o gênero. Em outras palavras, o desafio que paira sobre a
produção dos grandes cancionistas é justamente o de conduzir a atuação
musical em direção ao descompasso dos elementos entoativos, aplacando a
velocidade que os toma irrepetíveis, mas, ao mesmo tempo, desbravando os
caminhos sugeridos por seus avanços.
“GRÃO DA VOZ”
Este é, no nosso entender, o espaço de manifestação daquilo que
Roland Barthes chamou de “grão” da voz. Trata-se de uma qualidade que
pode ser apreendida quando a música e fala estão em dinâmica de influência
mútua.
...espaço (gênero) muito preciso em que uma língua reencontra uma
voz. Vou dar imediatamente um nome a este significante ao nível do qual,
creio, a tentação do ethos pode ser liquidada - e, portanto o adjetivo
dispensado: será o grão: o grão da voz, quando esta se encontra em dupla
postura, em dupla posição: de língua e de música. [NOTA 80]
Embora Barthes tenha como referência a canção erudita, o lied - e isso
valoriza a sua intuição pois que, nesse terreno, a participação da voz que fala
é bem mais discreta que no universo popular sua argumentação preenche
exatamente as condições para uma reflexão sobre a voz como extensão
metonímica do corpo, nos termos valerianos de retomo ao EU, ao instante em
que a enunciação repropõe os valores temporais e espaciais de acordo com o
andamento que emana do sujeito. Mais que isso, o conceito do pensador
francês com-
P.267
preende a fixação da sonoridade num espaço de duração sem abrir o da
celeridade que caracteriza os discursos em língua natural:
O “grão” será isso: a materialidade do corpo falando a sua língua
maternal: talvez a letra: quase seguramente a significância. [NOTA 81]
Barthes distingue o grão da voz, não apenas dos recursos técnicos - de
execução e representação musical - mas, sobretudo, dos recursos
expressivos em que o cantor pretende externar suas emoções subjetivas.
Tudo isso, para o autor, pertence à ordem do feno- canto (noção criada por
analogia ao feno-texto de Kristeva) e não atinge o estatuto de “dicção” de uma
língua, por meio da qual, a voz que canta expõe o corpo a uma relação
“erótica” com o ouvinte.
O genocanto é o volume da voz que canta e que diz, o espaço onde as
significações germinam “de dentro da língua e na sua própria materialidade";
é um jogo significativo estranho à comunicação à representação (dos
sentimentos), à expressão: é esta ponta (ou este fundo) da produção onde a
melodia trabalha verdadeiramente a língua - não o que ela diz, mas a
voluptuosidade dos seus sons - significantes, das suas letras: explora como a
língua trabalha e identifica-se com este trabalho. E, numa palavra muito
simples mas que é preciso tomar a sério: a dicção da língua. [NOTA 82]
Em outros termos, o grão da voz depende do ruído, da entonação e da
velocidade para se manifestar, embora esteja necessariamente fundado numa
forma do som, nas leis melódicas e no rito de desaceleração da linguagem
cotidiana. É na canção transcorrendo no limiar da fala que se configura o
corpo do cancionista, o grão, a voz que canta porque diz e que diz porque
canta.
Essa experiência-limite tem sido explicitada, cada vez com mais
freqüência, pelos artistas de peso da canção brasileira, como se eles
estivessem em busca dos mistérios ruidosos da fala. Jorge Ben Jor, por
exemplo, ao mesmo tempo que mantém suas composições sob o
P.268
rigoroso controle do pulso, acentuado instrumentalmente, libera a linha
melódica para acompanhar as veleidades da letra, pondo à prova toda a
elasticidade do canto que se expande e se contrai - muitas vezes sem
qualquer respeito métrico - para atender às digressões temáticas (lingüísticas
e melódicas) típicas do autor. A extraordinária W Brasil, lançada
recentemente, está repleta de procedimentos dessa natureza. Basta citarmos
o contraste rítmico entre os dois segmentos que completam o sentido do
verso “Deu no New York Times...”. Ao espaço melódico do primeiro que
estampa a notícia “A feira de Acari é um sucesso”, corresponde a versão
melódica, necessariamente mais dilatada, que cobre “Fernando, o belo, não
sabe se vai participar do próximo campeonado de surf ferroviário”. O apelo às
funções utilitárias da letra faz desta algo muito próximo da fala, tanto nas
oscilações lingüísticas como nas oscilações entoativas. Mas o pulso, o tom, a
força centrípeta dos refrões e outras medidas musicais não deixam que a
sonoridade se dissolva em troca da mensagem. Ambas permanecem.
Procedimento semelhante consta da obra de Caetano Veloso desde
a caão Tropicália [NOTA 83] mas vem sendo explorado com mais
assiduidade a partir do LP Estrangeiro. [NOTA 84] Recentemente, a
composição Fora da ordem, Lançada em Circuladô, pode oferecer outro
exemplo de multiplicação inesperada de sílabas em função do sentido da
letra. A mesma melodia que cobre os versos “Vapor barato, um mero serviçal
do narcotráfico” e “E o cano da pistola que as crianças mordem” e que
desemboca, no primeiro caso, num contorno melódico de mesmo andamento
(“Foi encontrado na ruína de uma escola em construção”), quase se desfaz na
aceleração exigida para a articulação, no mesmo lugar melódico, da frase
“Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita e
muito mais intensa do que no cartão postal”. Embora também sob forte
controle musical, esses momentos traduzem muita atração pelo contínuo
ruidoso e pela velocidade, com todo o risco de desintegração (de
desaparecimento da sonoridade) que isso possa acarretar.
P.269
Nessa linha de investigação, o trabalho de João Gilberto pode ser
parcialmente explicado, pelo menos no que diz respeito ao encontro do
espaço por excelência de realização do grão da voz. Mais amplamente que os
compositores citados acima, João Gilberto aproxima a sonoridade imprecisa
da linguagem oral de toda a extensão da obra musical. Restabelece as
medidas musicais em função do projeto entoativo e coloquial subjacente a
cada composição. Sua interpretação visa nada menos que uma execução
exclusiva - assim como um trecho de fala irrepetível - e, ao mesmo tempo, a
perpetuação deste instante de singularidade por meio de um processo
incessante de transformação de rupturas em continuidades. Assim, as
acelerações melódicas, que dão mais naturalidade ao dizer, mas que podem
comprometer a ordem progressiva e gradual do encaminhamento musical,
são reintegradas numa nova expansão, onde as eventuais passagens
bruscas se convertem em perfeitas continuidades melódicas, orientadas por
outras balizas harmônicas e rítmicas. Na esteira desse processo, nova
continuidade se instaura pois que as fronteiras entre voz que fala e voz que
canta vão se diluindo e dando lugar ao grão que, a essa altura, podemos
entender como o encontro feliz da interinidade com a perpetuação.
Evidente que ainda estamos longe de uma formalização
verdadeiramente semiótica de todas essas transformações proporcionadas
pelo canto de João Gilberto. Entretanto, a direção da pesquisa pode ser
traçada, pelo menos em seu aspecto indutivo, a partir do confronto de
interpretações como as que marcaram, por exemplo, a execução de Sampa,
na versão consagrada de Caetano e na reversão proposta por João Gilberto.
[NOTA 85]
Embora essa composição manifeste, originalmente, uma relação
pouco comum entre melodia e letra, apresentando grande variedade de
distribuição silábica nos espaços semelhantes de melodização [NOTA 86], o
seu projeto está explicitamente identificado com o gênero rítmico, não apenas
pela alusão direta ao samba paulista, na
P.270
transcrição de melodias e frases de Ronda de Paulo Vanzolini, mas também
pela fusão do gênero na forma sincopada de dizer o nome da cidade de São
Paulo: samba / Sampa. Caetano enfatiza essas marcas de identificação com
um pulso acentuado no acompanhamento do violão e com uma inflexão vocal
fartamente recortada pelas consoantes e pelos impulsos vocálicos.
Vivendo intensamente a plenitude de sua fase “pós-mercado” [NOTA
87], João Gilberto aceita o desafio de dominar, com sua concepção musical
muito peculiar, a celeridade das entonações subjacentes à melodia de
Sampa, começando por neutralizar as marcas descontínuas presentes na
inflexão de Caetano. Com a eliminação dessas referências de estabilidade, a
emissão das frases tomam-se muito mais velozes sem qualquer outra
alteração do andamento geral da música. Isso pode ser facilmente verificado
na comparação das duas versões do mesmo trecho [NOTA 88]:
Exemplo 81.
Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva...
P.271
Outro sinal de assimilação do fluxo entoativo da fala é a redução das
pausas entre os versos e mesmo entre as estrofes. O canto de João Gilberto
aproxima significativamente alguns segmentos melódicos que, na versão de
Caetano, estão bem espaçados:
Exemplo 82.
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
Exemplo 83.
Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João
Quando te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Além disso, trocando as regras musicais de distribuição dos acentos
por um outro tipo de acomodação que observa os lugares tônicos das
palavras e das frases na linguagem cotidiana, João Gilberto ainda propõe:
a. a duplicação da palavra “alguma”, onde a primeira serve para
valorizar o lugar nico de acento da segunda e, também, desencadear o
processo de descendência gradativa que se completa com a tônica de
“acontece” e de “coração”. [NOTA 89] Em Caetano, aparecem essas duas
últimas.
b. o deslocamento e redução dos lugares tônicos das frases eliminando
os pontos de descontinuidade que refreiam a interpretação de Caetano.
Podemos verificar a neutralização dos acentos em: “Nada do que não era
antes...” e sua substituição por inflexão ligada, apenas levemente acentuada
em: “Nada do que não era antes...”
P.272
c. a acomodação do acento de “Panamérica...” - que, em Caetano,
incide sobre a primeira sílaba - em seu lugar de uso na língua natural:
d. a introdução de síncopes silábicas, transformando duas unidades em
apenas uma (cf. “...de/tu/a/s es/qui/nas” ou “...de/tu/as/ me/ni/nas” de Caetano
e “...de/sua/s es/qui/nas” ou “...de/suas/me/ni/nas” de João)
Esses exemplos, que especificam as marcas intensas de apreensão da
celeridade contida na fala, valem apenas como comprovação localizada de
uma estratégia geral que move as atuais intervenções de João Gilberto na
canção brasileira. Partindo de obras consagradas, que sofreram, portanto,
toda sorte de ordenação, emissiva e remissiva, e de estabilização sonora e
gramatical, o intérprete baiano decompõe os traços de execução que
integram a canção às leis gerais próprias de um gênero rítmico, como se
estivesse percorrendo, em sentido oposto, o caminho da composição. Se esta
se caracteriza por converter as forças entoativas em formas melódico-
musicais, o trabalho de João Gilberto é no sentido de recuperar as
modulações da fala, reformulando, em função de suas forças, o enfoque da
conservação musical. Em outros termos, enquanto o ato de composição, no
intuito de transformar a interinidade das entonações em duração musical,
subentende um processo de desaceleração do ruído contínuo da fala, a
interpretação gilbertiana provoca sempre o que chamaríamos de aceleração
sintáxica do gênero: não se trata, evidentemente, de um simples aumento de
velocidade substancial da linha melódica, conservando os mesmos valores
rítmicos (como um aumento de rotação (RPM), por exemplo), mas sim de uma
remoção das balizas que respondem pela liturgia do gênero, reprogramando,
numa trajetória mais desimpedida, a articulação dos valores missivos.
Tudo ocorre como se a tendência natural de fixação da sonoridade das
composições conduzisse a uma ritualização progressiva dos componentes
melódicos, resultando em gêneros estereotipados, de onde decorrem os
paradigmas de samba, de bolero, de rock, de reggae, de rap etc. A própria
versão de Sampa executada por Caetano, embora apresente diversas partes
refratárias ao que se poderia
P.273
considerar uma gramática geral do samba, sustenta um propósito explícito de
se atrelar, pelo menos parcialmente, a algumas formas paradigmáticas deste
gênero.
Ao reelaborar continuamente a sintaxe melódica musical, decompondo
os paradigmas e recompondo as relações em outras bases rítmicas e
harmônicas, João Gilberto vem demonstrando até onde se pode captar a
velocidade contínua e irregular da sonoridade da fala sem correr o risco de
desagregação. E, assim como a sílaba constitui atualmente um modelo
microcósmico do funcionamento do sentido em escala macroscópica, o grão
da voz gilbertiano é o ponto minúsculo que vem orientando a maneira de
compor e de cantar dos maiores cancionistas brasileiros, independentemente
dos estilos pessoais, do volume de voz ou do gênero adotado. Buscando o
que há de mais específico em termos de execução e equilíbrio entre música e
fala, João Gilberto atinge o proto-canto, o modelo virtual que está na base das
principais realizações da canção popular anterior e posterior à Bossa-Nova.
Estudá-lo, com profundidade, é definir os próprios critérios gerais de análise
da canção brasileira.
CONCLUSÃO
Le philosophe s 'est toujours posé le problème du Temps, plus
rarement celui de l’Espace. La raison en est que le Temps est notre maître,
que nous le subissons, qu 'il nous échappe, alors que l 'Espace semble
maîtrisable, que nous le dominons (en nous y déplaçant volontairement), que
nous le conquérons. L’Homme se trouve ainsi placé en position de
«transition» entre l’un e l'autre.
Bernard Pottier
A música é o processo semiótico que melhor traduz o esforço de
recomposição fórica dispendido em toda atividade enunciativa. Ao operar
diretamente com diferenças que vão adquirindo homogeneidade no decorrer
da constituição extensa da peça, a música propõe a questão básica do
sentido sem a qual não se compreenderia a própria existência da enunciação.
De fato, a hipótese - exclusivamente teórica - de junção plena e conformidade
absoluta entre o homem e o mundo e entre o homem e seus semelhantes
eliminaria as tensões e os conflitos com os quais estamos habituados a
conviver, mas, ao mesmo tempo, baniria do universo antropológico a noção
de sentido, de busca, e a própria necessidade de enunciar. Sujeito e objeto
surgem da cisão primordial que desfaz o sonho de uma harmonia absoluta
mas, em compensação, inaugura aquilo que conhecemos como “sentido de
uma vida”: cabe ao homem restabelecer, em suas enunciações, o elo fórico
perdido. Se as canções primam por explicitar, em suas letras, o tema da
junção, em forma de rupturas e encontros afetivos, suas melodias reforçam
consideravelmente o pro-
P.276
cesso de reintegração das diferenças, recuperando, também do ponto de
vista musical, o fluxo interrompido.
Evidente que, em consonância com o enfoque semiótico, não nos
preocupamos, no decorrer deste trabalho, em definir o estatuto ontológico do
nível fórico. Deixamos isso a cargo de outras abordagens que adotem
prismas epistemológicos paralelos. Para nossos objetivos, foi suficiente
conceber a foria como um nível pressuposto pelas articulações missivas e
narrativas, cujo caráter contínuo, dinâmico e integrado justifica as
instabilidades e as tensões decorrentes das <paradas> e das disjunções
produzidas nos níveis subseqüentes. Se reconhecemos que o sujeito é
sempre portador de uma “apetência” que o impele em direção ao objeto e que
este, por sua vez, sempre reúne as propriedades necessárias para exercer
sua atratividade, é de se supor que esses actantes resultem da quebra de
uma identidade profunda onde as mencionadas tensões estariam
neutralizadas. A foria pôde, assim, ser definida como esse pressuposto de
identidade e unidade, como uma proto-sintaxe que faz perpetuar entre sujeito
e objeto a relação de dependência.
dissemos que esse trabalho teve como objetivo apresentar - ou
mesmo instituir e estruturar - esses valores tensivos que estão na base dos
conceitos utilizados nas práticas de descrição em geral e, em particular, na
análise da canção. Tematização”, “passionalização” e figurativização” são
exemplos de noções que nós mesmos vínhamos empregando sem uma
delimitação mais elaborada de seus respectivos lugares teóricos. Podemos
acrescentar agora, ao final dessa empresa, que outro objetivo foi cumprido
quando traçamos diretrizes específicas para a descrição melódica a partir dos
mesmos princípios semióticos que fundamentam a análise da letra e, de
resto, de toda e qualquer produção de sentido.
Para tanto, as conquistas recentes da semiótica tiveram papel
destacado nesse projeto - sobretudo na versão escrita por Zilberberg -, pois
que o ingresso das modulações e demais elementos de natureza prosódica
na concepção do plano do conteúdo e na ordenação do percurso gerativo
trouxe uma perspectiva operacional comparável aos primeiros gestos de
formalização dos estudos lingüísticos a partir do êxito obtido na análise do
significante. Nesse sentido, a resolução do nível fórico teve como modelo
privilegiado a silabação que, en-
P.277
quanto forma, indiferente à substância de expressão, instaura um ritmo de
abertura - definido por Saussure como “implosão” e “explosão” mas
reformulado por Zilberberg como um processo de expansão que se manifesta
ora como “concentração”, ora como “extensão” - responsável pela articulação
entre lugar morfológico e força sintagmática. Não é outro o funcionamento
daquilo que chamamos - seguindo também a sugestão de Zilberberg - de
nível missivo, onde a expansão fórica sofre retenções, reconhecidas pela
noção de “fazer remissivo” e distensões, identificadas pelo “fazer emissivo”,
ambas manobradas pelo sujeito da enunciação.
Tudo ocorre como se a enunciação compensasse sua inevitável
suspensão do fluxo fórico com uma reprodução da força expansiva original
em termos de valores remissivos (que provocam o refluxo próprio da atividade
antagonista) e valores emissivos (que recuperam o afluxo e promovem a
<parada da parada>).
No que se refere aos primeiros valores, nossa pesquisa ainda
comprovou a estreita relação entre as <paradas> produzidas pelo anti-
programa (narrativo e melódico) e a celeridade que se caracteriza pela
mudança brusca de regime operatório. De fato, os contrastes e as
similaridades, dispensando os percursos de transição, estimulam a atividade
metafórica mas retiram o sujeito de seu tempo (de sua duração) e
comprometem, momentaneamente, o seu vínculo com o objeto. Nesse
sentido, os valores remissivos, responsáveis pelas descontinuidades,
contribuem para a intensidade do instante que, muitas vezes, leva o sujeito à
precipitação e ao desvio repentino de sua meta.
O primeiro sintoma de um comprometimento fundamental do
cancionista com os valores remissivos manifesta-se na opção pelo
andamento acelerado da melodia e na proposta de contrastes bem definidos
entre suas partes. Trata-se de uma escolha que valoriza o poder dos anti-
programas (dos contra-temas) e, por isso mesmo, define a meta do programa
melódico como recuperação da identidade ameaçada. A recorrência temática,
nesses casos, não é apenas um recurso técnico mas também uma
necessidade de contenção do tempo acelerado para devolver ao sujeito a
duração e, com ela, o restabelecimento de seu elo com o objeto.
De acordo com o que expusemos nos capítulos “Silabação” e
“Geração”, essa opção fundamental pela celeridade e pelas
P.278
descontinuidades remissivas repercute na expansão melódica sob o modo da
concentração que reproduz, internamente, as forças emissivas (com a
melodia “involuindo” nos processos de tematização e refrão) e as forças
remissivas (com a melodia “evoluindo através dos desdobramentos e
segundas partes), num combate cuja única meta é fazer do anti-programa
melódico um caminho de volta ao programa emissivo, onde o sujeito
permanece em estado de conjunção direta com o objeto (por meio das
identidades melódicas). A orientação do processo evolutivo ao processo
involutivo, onde se instaura o núcleo do programa melódico, justifica-se pela
própria definição de concentração como “expansão da pequeneza”. Afinal,
concentrar é reduzir cada vez mais.
No que diz respeito aos valores emissivos, não pudemos deixar de
verificar, em contrapartida, uma interessante afinidade entre as progressões
gradativas, que reintegram o sujeito em seu curso, vale dizer em seu tempo, e
a desaceleração que decorre, basicamente, de uma ordenação do percurso
de busca. Este simulacro de reconstituição da foria equivale à <parada da
parada> e, portanto, à retomada do programa (narrativo ou melódico) do
sujeito respeitando todas as suas etapas de execução. Com a valorização do
percurso melódico, ou seja, do caminho que leva ao objeto, constatamos um
significativo deslocamento do foco de pertinência descritiva que passa a
considerar mais as oscilações de tessitura que a evolução horizontal da
melodia.
Portanto, complementando o que dissemos acima, o comprometimento
fundamental do cancionista com os valores emissivos manifesta-se, na forma
extensa, pela escolha do andamento desacelerado da melodia e pela
restauração do percurso que vincula o sujeito ao objeto. Tal escolha já é em si
uma valorização do programa melódico, cuja função precípua é refazer, em
simulacro, a continuidade fórica e recuperar para o sujeito a duração perdida.
Do mesmo modo, ao optar pela desaceleração e, consequentemente, pela
expansão melódica sob o modo da extensão, o sujeito enunciativo reproduz
internamente as forças emissivas (gradações), que confirmam a duração, e as
forças remissivas (os saltos), portadoras de descontinuidades, que impõem
desvios inesperados (excessivamente velozes) ao encaminhamento melódico.
Em se tratando de extensão, a
P.279
expansão se no desenvolvimento do percurso e, nesse sentido, estender
significa aumentar cada vez mais.
Considerando que tanto as variações de andamento (velocidade/
duração) como as variações missivas (emissiva/remissiva) são selecionadas
e articuladas pelo mesmo sujeito de enunciação, de acordo com a dinâmica
que ele deseja imprimir em sua obra, estudar as etapas gerativas de
confirmação ou negação dessas seleções profundas constitui o objetivo
primeiro de uma descrição semiótica. Isso, porém, não é suficiente. Se, de um
lado, o sujeito faz da canção um instrumento de controle do tempo - ou de
submissão de seu fluxo à escala humana de outro, o sujeito sofre a atuação
de um tempo contínuo refratário à <parada> enunciativa e às categorizações
da gramática, por mais dinâmicas que essas se apresentem.
Vimos que, na canção, este último tempo manifesta-se no
funcionamento instável da fala que tem por parâmetro de eficácia a
celeridade. As entonações, com suas evoluções micro-tonais, estabelecem
um modo operatório que permite todo e qualquer tipo de oscilação melódica,
assim como a foria constitui um simulacro do tempo, inexorável e
inapreensível, bem certo, mas potencialmente apto para estabelecer todos os
elos sintáxicos necessários à enunciação.
Se as composições selecionam apenas uma pequena parcela desse
vasto material fórico e entoativo para construir seus respectivos sentidos, o
ruído desprezado ou afastado como ameaça antagonista acaba retomando na
condição de objeto toda vez que a sintaxe da canção se estereotipa e
desacelera excessivamente as produções.
Ao concebermos o ato de composição (ou de execução vocal) como
um programa de conquista da duração - espaço de conjunção entre sujeito e
objeto - tivemos oportunidade de examinar o processo desencadeado pela
negação das funções utilitárias da fala em nome da conservação da
sonoridade e, conseqüentemente, da perpetuação do momento estético.
Verificamos, então, que as repetições, as gradações, as ordenações, numa
palavra as ritualizações melódicas e lingüísticas representavam basicamente
um processo de desaceleração das práticas comunicativas, cujas letras e
entonações estavam comprometidas apenas com o pensamento abstrato.
Entretanto, constatamos também que essa mesma desaceleração que
dá identidade à canção, destacando-a das práticas verbais de bre-
P.280
ve duração, pode se tomar excessiva a ponto de desmotivar o próprio sujeito
enunciativo (enunciador ou enunciatário) por falta de participação das forças
antagonistas que asseguram o efeito de progresso melódico e narrativo.
O cancionista volta-se então ao tempo denegado e às entonações
instáveis e contínuas, tentando incorporar sua velocidade no ato de
composição-execução. Impede, com esse gesto, que a canção se encerre
numa gramática pré-determinada e adquira a monotonia dos processos
estereotipados. Ao mesmo tempo, a integração da continuidade fórica, sem
muito auxílio das leis convencionais de demarcação e segmentação da
melodia, embora restabeleçam o “grão da voz” em sua dubiedade vital entre o
canto e a fala, provoca a estranha sensação de que por mais que o
cancionista se aplique em transportar o tempo sob o domínio de suas leis, são
as próprias flutuações instáveis do tempo que se manifestam através do
cancionista:
Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta
Chico Buarque
P.281
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A TUA PRESENÇA, MORENA: Caetano Veloso, 1971.
ABOIO: Caetano Veloso, 1993.
ÁGUAS DE MARÇO: Tom Jobim, 1974.
Al, QUE SAUDADES DA AMÉLIA: Ataulfo Alves/Mário Lago, 1941.
AQUARELA DO BRASIL: Ary Barroso, 1939.
AVE MARIA NO MORRO: Herivelto Martins, 1942.
BELEZA PURA: Caetano Veloso, 1979.
BOAS FESTAS: Assis Valente, 1933.
BRILHO DE BELEZA : Nego Tenga, 1990.
CAROLINA: Chico Buarque, 1967.
CHOVE LÁ FORA: Tito Madi, 1957.
CLARICE: Caetano Veloso, 1968.
COISAS DO MUNDO, MINHA NEGA: Paulinho da Viola, 1969.
CONVERSA DE BOTEQUIM: Vadico/Noel Rosa, 1935.
DETALHES: Erasmo Carlos/Roberto Carlos, 1971.
É PROIBIDO PROIBIR: Caetano Veloso, 1968.
ESSES MOÇOS, POBRES MOÇOS: Lupicínio Rodrigues, 1948.
ESTRANGEIRO: Caetano Veloso, 1990.
EU DISSE ADEUS: Erasmo Carlos/Roberto Carlos, 1969.
EU E A BRISA: Jonny Alf, 1967.
EU QUERO UM SAMBA: Haroldo Barbosa/Janet de Almeida, 1945.
P.290
EU SEI QUE VOU TE AMAR: Tom Jobim/Vinícius de Morais, 1958.
EU TE AMO: Tom Jobim/Chico Buarque, 1980.
FELICIDADE: Lupicínio Rodrigues, 1947.
FORA DA ORDEM: Caetano Veloso, 1991.
FORÇA ESTRANHA: Caetano Veloso, 1979.
GAROTA DE IPANEMA: Tom Jobim/Vinicius de Morais, 1962.
HAITI: Caetano Veloso/Gilberto Gil, 1993.
INSENSATEZ: Tom Jobim/Vinícius de Morais, 1961.
JOÃO NINGUÉM: Noel Rosa, 1935.
LOUCO: Wilson Batista/Henrique Almeida, 1946.
MANHÃ DE CARNAVAL: Antonio Maria/Luis Bonfá, 1959.
MANIA DE VOCÊ: Roberto de Carvalho/Rita Lee, 1979.
MARINA: Dorival Caymmi, 1947.
ME CHAMA: Lobão, 1984.
MENINO DO RIO: Caetano Veloso, 1979.
MINHA VOZ, MINHA VIDA: Caetano Veloso, 1982.
NÃO IDENTIFICADO: Caetano Veloso, 1968.
NERVOS DE AÇO: Lupicínio Rodrigues, 1947.
NO TABULEIRO DA BAIANA: Ari Barroso, 1936.
O QUE É QUE A BAIANA TEM?: Dorival Caymmi, 1939.
OCEANO: Djavan, 1989.
OLE OLÁ: Chico Buarque, 1966.
OVELHA NEGRA: Rita Lee, 1975.
PELO TELEFONE: Donga/Mauro de Almeida, 1917.
POIS É...: Ataulfo Alves, 1955.
POR CAUSA DE VOCÊ, MENINA: Jorge Ben Jor, 1963.
PRECISO APRENDER A SER SÓ: Paulo S. Vale/Marcos Vale, 1965.
QUEIXA: Caetano Veloso, 1982.
RANCHO FUNDO: Ary Barroso/Lamartine Babo, 1931.
RONDA: Paulo Vanzolini, 1953.
SAMPA: Caetano Veloso, 1978.
SINA: Djavan, 1982.
SONHOS: Peninha, 1982.
TEMPO DE ESTIO: Caetano Veloso, 1978.
TORRE DE BABEL: Lupicínio Rodrigues, 1963.
TRAVESSIA: Milton Nascimento/Fernando Brandt, 1967.
P.291
TRÊS APITOS: Noel Rosa, 1933.
TROPICÁLIA: Caetano Veloso, 1968.
ÚLTIMO DESEJO: Noel Rosa, 1937.
VINGANÇA: Lupicínio Rodrigues, 1951.
VOLTA: Lupicínio Rodrigues, 1957.
W BRASIL: Jorge Ben Jor, 1991.
P.292
tulo Semiótica da canção. Melodia e letra
Projeto Gráfico Monica Seincman
Diagramação Monica Seincman
Revisão Luiz Tatit
Formato 14 x 21 cm
Tipologia Times New Roman (10,5/12,5)
Papel Cartão Royal 250g (capa)
Off set 75g (miolo)
Número de páginas 292
Tiragem 500
Impressão Gráfica e Editora Vida e Consciência
P. ORELHA DA CONTRACAPA
pretende oferecer condições teóricas para uma análise interna desse tipo de
texto e para a sua inserção no quadro geral do sentido erigido por nossa
cultura.
Apesar do tom conceitual adotado - o trabalho em sua origem foi uma
tese de livre-docência os seis capítulos desta obra versam sobre os
conteúdos emocionais que, na canção, transitam da melodia para a letra, e
vice-versa, e sugerem maneiras de abordá-los num modelo coerente.
p.Contracapa
Este trabalho reúne critérios para um estudo sistemático da canção
brasileira a partir do encontro da melodia com a letra. Estes dois
componentes, compatibilizados por uma rie de processos de composição,
exigem do pesquisador a construção de um lugar teórico, mais abstrato, onde
suas especificidades possam ser avaliadas por uma abordagem homogênea.
O esforço de apresentação de um modelo descritivo completa-se com
um levantamento exaustivo de exemplos do cancioneiro popular para ilustrar
as noções obtidas e com a realização de análises integrais de algumas
canções.
As investigações sobre a temporalidade empreendidas por alguns
setores avançados da semiótica contemporânea (com destaque para o
pensamento de Claude Zilberberg) oferecem os principais fundamentos para
a formulação do modelo aqui proposto.
P. NOTAS
NOTA 1, Introdução: Cf. Tatit, 1982, 1986a, 1986b, 1989, 1990 e 1995.
[Voltar]
NOTA 2, Introdução: Estamos nos referindo particularmente ao último
livro de Greimas, em colaboração com J. Fontanille (1991), e aos trabalhos de
Cl. Zilberberg que constam desta Bibliografia. [Voltar]
NOTA 3, Introdução: Embora soe como designação imprecisa,
adotamos “letra” como a forma mais direta - e consagrada pelo uso - de se
referir ao componente lingüístico da canção popular. [Voltar]
NOTA 1, CAP. I: Campos, 1974: 313-331. [Voltar]
NOTA 2, CAP. I: Ibid., p. 317. [Voltar]
NOTA 3, CAP. I: Zilberberg, 1988a: 4. [Voltar]
NOTA 4, CAP. I: Zilb., 1985d: 365. Tradução livre do autor. (T. 1. a.)
[Voltar]
NOTA 5, CAP. I: A escolha de uma noção tão geral como “gramática” -
empregada em quase todos os estudos lingüísticos em nível conceptual,
descritivo, explicativo, comparativo, histórico, normativo e até mesmo na
condição de subcategoria de modelos mais amplos - tem a função de
introduzir uma incógnita, no sentido matemático do termo, que talvez possa
ser retirada tão logo encontremos uma boa definição para o lugar teórico
visado por este trabalho. Como ponto de partida, porém, queremos destacar
duas acepções tradicionais de gramática que podem ser úteis à compreensão
do que vem a seguir: a. conjunto de leis que nos permite apreender e
compreender uma linguagem; b. integração entre as dimensões sintáxica e
morfológica. Neste último caso, interessa-nos, sobretudo, a elasticidade e as
determinações mútuas entre essas dimensões, independentemente do
caráter lingüístico que está em sua origem. Assim, gramática pode ter boa
margem de correspondência com “extensionalidade". [Voltar]
NOTA 6, CAP. I: Cf. Zilb., 1988a: 135-155. [Voltar]
NOTA 7, CAP. I: Ibid., p. 135. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 8, CAP I: Cf. Zilb., 1990a: 41. [Voltar]
NOTA 9, CAP I: Cf. Zilb., 1988a: 70. [Voltar]
NOTA 10, CAP I: Ibid., p. 69. [Voltar]
NOTA 11, CAP I: Ibid., p. 70. [Voltar]
NOTA 12, CAP I: Ibid., p. 102. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 13, CAP I: Cf. entrada “extense/intense”, in Greimas & Courtés,
1986: 82. [Voltar]
NOTA 14, CAP I: Valéry, 1974: 833, citado por Zilb. (1988a: 70). (T. 1.
a.) [Voltar]
NOTA 15, CAP I: Zilb., 1988a: 135. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 16, CAP I: Ibid., p. 120. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 17, CAP I: Webern, 1984. [Voltar]
NOTA 18, CAP I: Ibid., p. 34. [Voltar]
NOTA 19, CAP I: Ibid., p. 24. [Voltar]
NOTA 20, CAP I: Ibid., p. 25. [Voltar]
NOTA 21, CAP I: Ibid., p. 83. [Voltar]
NOTA 22, CAP I: Ibid., p. 54. [Voltar]
NOTA 23, CAP I: Ibid., p. 106. [Voltar]
NOTA 24, CAP I: Oportuno mencionar, sobre a relação entre
pensamento estrutural e pensamento serial, o consagrado trabalho de
Umberto Eco (1971: 302-321). [Voltar]
NOTA 25, CAP I: Webern, op. cit., p. 54. [Voltar]
NOTA 26, CAP I: Ibid., p. 35. [Voltar]
NOTA 27, CAP I: Ibid., p. 36. [Voltar]
NOTA 28, CAP I: Ibid., p. 85. [Voltar]
NOTA 29, CAP I: Ibid., p. 55. [Voltar]
NOTA 30, CAP I: Cf. Zilb., 1988a: 117. [Voltar]
NOTA 31, CAP I: Cf. Zilb., 1990a: 46. [Voltar]
NOTA 32, CAP I: Para a finalidade deste capítulo, a medida extensa
pode ser compreendida como o trabalho realizado apenas no violão.
Veremos, mais adiante, que elementos extensos na própria linha do canto.
[Voltar]
NOTA 33, CAP I: Cf. Tatit, 1984: 30-33. [Voltar]
NOTA 34, CAP I: Ibid., p. 32. [Voltar]
NOTA 35, CAP I: Ibid., p. 32. [Voltar]
NOTA 36, CAP I: Ibid. [Voltar]
CAP. II
NOTA 1, CAP II: Greimas, 1966. [Voltar]
NOTA 2, CAP II: Greimas, 1970. [Voltar]
NOTA 3, CAP II: Greimas, 1974: 25. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 4, CAP II: Cf. Lopes, 1989-90. [Voltar]
NOTA 5, CAP II: Cf. Zilberberg, 1990a, 42. Analisaremos
meticulosamente este tema no próximo capítulo. [Voltar]
NOTA 6, CAP II: “Le désespoir”, in Fontanille, 1980; “De la colère”, in
Greimas, 1983; “Parcours passionnels de l’indifférence”, in Marsciani, 1984;
“A propos de l’avarice” e “La Jalousie”, in Greimas & Fontanille, 1991. [Voltar]
NOTA 7, CAP II: Cf. Greimas/Fontanille, 1991: 21-110. [Voltar]
NOTA 8, CAP II: Zilb., 1988a, 104. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 9, CAP II: Cf. Lopes, op. cit., p. 156. [Voltar]
NOTA 10, CAP II: Cf. Greimas/Fontanille, op. cit., p. 24. [Voltar]
NOTA 11, CAP II: Cf. Zilb., 1988a, 108. [Voltar]
NOTA 12, CAP II: Cf. Zilb., 1988a, 108. [Voltar]
NOTA 13, CAP II: Cf. Lopes, op. cit., p. 156. [Voltar]
NOTA 14, CAP II: Ibid, pp. 156-157. [Voltar]
NOTA 15, CAP II: Ibid, p. 154. [Voltar]
NOTA 16, CAP II: Basta pensarmos, no plano da economia de
mercado, que a maior velocidade de produção impõe a identidade na
serialização da mercadoria afastando, com isso, a necessidade de mediação
de novos processos para se atingir novos produtos. [Voltar]
NOTA 17, CAP II: Talvez não seja ocioso lembrar que a idéia de
narratividade no plano da expressão reflete uma busca de homogeneidade
metodológica do ponto de vista descritivo, assim como, na glossemática,
falava-se em sílabas de conteúdo. [Voltar]
NOTA 18, CAP II: Cf. Tatit, 1986a, 1986b e 1989. Embora esses
trabalhos anteriores viessem operando com esses conceitos, seu estatuto
teórico só será definido no capítulo que vem a seguir. [Voltar]
NOTA 19, CAP II: Greimas/Fontanille, op. cit., p. 36. [Voltar]
CAP.III
NOTA 1, CAP III: Saussure, 1971: 28. [Voltar]
NOTA 2, CAP III: Ibid., p. 62. [Voltar]
NOTA 3, CAP III: Zilberberg, 1988a: 68. [Voltar]
NOTA 4, CAP III: Saussure, op. cit., p. 62 [Voltar]
NOTA 5, CAP III: Ibid., p. 64. [Voltar]
NOTA 6, CAP III: Ibid., p. 71. [Voltar]
NOTA 7, CAP III: Hjelmslev, 1985: 159. [Voltar]
NOTA 8, CAP III: Saussure, op. cit., p. 66.S [Voltar]
NOTA 9, CAP III: Zilb., 1990a: 42. [Voltar]
NOTA 10, CAP III: Hjelmslev, 1985: 170. [Voltar]
NOTA 11, CAP III: Ibid., p.169. [Voltar]
NOTA 12, CAP III: Ibid., pp.170-171. [Voltar]
NOTA 13, CAP III: Zilb., 1985b: 24. [Voltar]
NOTA 14, CAP III: Hjelmslev, op. cit., p. 165. [Voltar]
NOTA 15, CAP III: Zilb., 1988a: 72. [Voltar]
NOTA 16, CAP III: Hjelmslev, 1991: 112. [Voltar]
NOTA 17, CAP III: Zilb., 1990a. [Voltar]
NOTA 18, CAP III: Saussure, 1971: 70. [Voltar]
NOTA 19, CAP III: Zilb., 1988a: 10. [Voltar]
NOTA 20, CAP III: Ibid., p. 179. [Voltar]
NOTA 21, CAP III: Hjelmslev, 1985: 165. [Voltar]
NOTA 22, CAP III: Lopes, 1989/90: 155. [Voltar]
NOTA 23, CAP III: Zilb., 1985a: 26. [Voltar]
NOTA 24, CAP III: Zilb., 1988a: 202. [Voltar]
NOTA 25, CAP III: Zilb., 1990a: 42. [Voltar]
NOTA 26, CAP III: Ibid., p. 44. [Voltar]
NOTA 27, CAP III: Ibid., p. 41. [Voltar]
NOTA 28, CAP III: Zilb., 1988a: 100. [Voltar]
NOTA 29, CAP III: Zilb., 1990a: 43. [Voltar]
NOTA 30, CAP III: Ibid., p. 44. [Voltar]
NOTA 31, CAP III: Ibid., p. 42. [Voltar]
NOTA 32, CAP III: Cf. Lopes, op. cit. [Voltar]
NOTA 33, CAP III: A respeito disso, Zilberberg chega a dizer que a
música sugere a articulação do nível figural que acompanha e rege o nível
figurativo (Cf. 1990a: 39). [Voltar]
NOTA 34, CAP III: Cf. Greimas/Fontanille, op. cit., 34. [Voltar]
NOTA 35, CAP III: Cf. Zilb., 1986: 53; id., 1988a: 201. [Voltar]
NOTA 36, CAP III: Cf. Greimas/Fontanille, op. cit., p. 30. [Voltar]
NOTA 37, CAP III: Ibid., p. 34. [Voltar]
NOTA 38, CAP III: Ibid., p. 33. [Voltar]
NOTA 39, CAP III: A expressão “segunda parte” pertence ao jargão dos
cancionistas, principalmente os da fase pré-Bossa-Nova. Era comum o
compositor, depois de produzir um bom refrão, sair em busca de um parceiro
para “completar” o seu trabalho com uma segunda parte. [Voltar]
NOTA 40, CAP III: Cf. Tatit, 1986a: 47. [Voltar]
NOTA 41, CAP III: Cf. Zilb., 1990a: 44. [Voltar]
NOTA 42, CAP III: Cf. Zilb., 1992a: 89. [Voltar]
NOTA 43, CAP III: Ibid., p. 39. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 44, CAP III: Ibid., p. 36. Grifos do original. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 45, CAP III: Essa afinidade estava implícita na conceituação
de Zilberberg considerada à p. 72 deste capítulo. [Voltar]
NOTA 46, CAP III: Evidente que tal “verticalidade” é por analogia à
escrita ou qualquer tradução gráfica do som. Trata-se, na verdade, das
variações de altura decorrentes do número de oscilações da onda de
frequência mais baixa (som fundamental) por segundo: quanto maior a
frequência, mais agudo é o som correspondente; quanto mais baixa, mais
grave o som musical” (Andrade, 1989: 18). [Voltar]
NOTA 47, CAP III: Zilb., 1992: 35. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 48, CAP III: As noções de “conjunto” e “disjunto”, no sentido
empregado, foram tomadas de Joaquín Zamacois que difere os intervalos
conjuntos dos intervalos disjuntos. Aproveitaremos mais à frente, ainda deste
autor, a noção de “graus imediatos” (Cf. Zamacois, 1970: 62). A expressão
“movimento conjunto” aparece também em Ernst Toch (1985: 81). [Voltar]
NOTA 49, CAP III: A síncope caracteriza o desaparecimento de
fonemas no interior de uma palavra durante o seu processo de evolução
histórica. [Voltar]
NOTA 50, CAP III: Toch, 1985: 81. [Voltar]
NOTA 51, CAP III: Ibid., p.79. [Voltar]
NOTA 52, CAP III: Essa questão deve ser apreciada em oposição à
aceleração cuja tendência é a incorporação dos intervalos na estrutura dos
motivos, privilegiando sempre a progressão horizontal. [Voltar]
NOTA 53, CAP III: “Transposição” aqui tem um sentido exclusivamente
melódico retratando, apenas, as mudanças bruscas de registro de tessitura.
Nada tem a ver, portanto, com a transposição harmônica, fartamente utilizada
tanto na música erudita como na música popular, nem com a transposição
técnica realizada por músicos que precisam converter as notas emitidas por
seus instrumentos (em casos de trompa, clarinete, oboé, etc) para chegar aos
tons escritos na partitura. [Voltar]
NOTA 54, CAP III: A expressão é de Zilberberg quando se refere à
parada provocada pelo tempo remissivo (cf. 1988a: 102). [Voltar]
NOTA 55, CAP III: A noção de “parada”, como veremos a seguir,
pertence ao nível tensivo e se caracteriza como forma profunda da disjunção
[Voltar]
CAP.IV
NOTA 1, CAP IV: In: Zinna, 1986: 57. (T. 1. a) [Voltar]
NOTA 2, CAP IV: Cf. Greimas/Fontanille, 1991: 21. [Voltar]
NOTA 3, CAP IV: Ibid., p. 35. [Voltar]
NOTA 4, CAP IV: Zilberberg, 1988a: 100-101. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 5, CAP IV: O modelo gerativo de Zilberberg que, em suas
próprias palavras, “instala a tensividade, ou a junção, como prévia de toda
disjunção, de toda esquizia” (T. 1. a.), é apresentado na entrada
“transvaluation” do segundo dicionário de Semiótica de Greimas & Courtés
(1986: 242). [Voltar]
NOTA 6, CAP IV: Cf. Greimas/Courtés, op. cit., p. 234. [Voltar]
NOTA 7, CAP IV: Zilb., op. cit., pp. 122-123. [Voltar]
NOTA 8, CAP IV: Cf. Zilb., 1990a: 42. [Voltar]
NOTA 9, CAP IV: Cf. Zilb., 1988a: 14 e 86. [Voltar]
NOTA 10, CAP IV: Zilberberg refere-se a Saussure como o autor que
teve a decisão premonitória de “considerar a «implosão» e a «explosão»
como «tensões geradoras» de valores fóricos e de valores escalares. (T. 1.
a.). Cf. Zilb., 1988a: 38. [Voltar]
NOTA 11, CAP IV: Cf Zilb., 1988a: 121-122; 1989: 21; cf. ainda
Greimas/Courtés, op. cit, pp. 98-100. [Voltar]
NOTA 12, CAP IV: Greimas/Courtés, op. cit., p. 100. [Voltar]
NOTA 13, CAP IV: Zilb., 1989: 22. [Voltar]
NOTA 14, CAP IV: Ainda não podemos, nesta fase, fazer economia de
um desses conceitos. Embora a introdução do nível missivo tenha sido a
razão principal desse trabalho decisivo de Zilberberg, o termo “aspectual”
permanece em seus artigos posteriores e, evidentemente, tira proveito de
uma tradição lingüística que o torna muito mais aceitável no domínio
semiótico. [Voltar]
NOTA 15, CAP IV: Cf. Greimas/Fontanille, op. cit., p. 245. [Voltar]
NOTA 16, CAP IV: Zilb., 1988a: 104. citamos, aliás, o trecho final
deste parágrafo à p. 42. [Voltar]
NOTA 17, CAP IV: A concepção de um nível tensivo, fórico,
pressuposto pelo nível missivo assegura a presença constante de uma
tensividade - razão primeira das faltas e das esperas - que nada mais é que
uma junção primordial entre sujeito e objeto, na forma que examinamos no
capítulo II, ou, arriscando um certo preciosismo, entre sujeito e o valor do
valor do objeto. [Voltar]
NOTA 18, CAP IV: Zilb., 1992a: 35. [Voltar]
NOTA 19, CAP IV: A “chronopoíèse” e a “chronotrophie” encontram-se
em Zilb., 1988a: 104. [Voltar]
NOTA 20, CAP IV: Ibid., p. 106. [Voltar]
NOTA 21, CAP IV: Bachelard, 1988a: 52. [Voltar]
NOTA 22, CAP IV: Greimas/Courtés, s.d.: 365. [Voltar]
NOTA 23, CAP IV: Cf. Arrivé & Coquet, 1987: 313. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 24, CAP IV: Ibid., pp. 313-314. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 25, CAP IV: Ibid., p. 314. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 26, CAP IV: Não cabe aqui transcrever os outros registros de
classificação dessas modalidades que aparecem no texto do autor [Voltar]
NOTA 27, CAP IV: Essa idéia, na verdade, representa apenas uma das
faces dos “destinos do outro” previstos pelo “regime transcendente do
polêmico”. A face complementar instaura a função de anti-sujeito: - o outro é
aquilo ou aquele que me pára: anti-ego. Essas formulações aparecem na
versão mais completa (a segunda) desse artigo de Zilberberg que ora
comentamos (cf. Zilb., 1986a: 251). Em geral, temos nos reportado à última
versão incorporada no seu livro de 1988, mas há, ainda, uma primeira versão,
de 1984, lançada sob o título “Immanence et transcendance du polemique”.
[Voltar]
NOTA 28, CAP IV: Não podemos deixar de lembrar que programa
narrativo e anti-programa são conceitos operacionais adotados pela descrição
sem qualquer comprometimento prévio com os pontos de vista criados no
texto. Em geral, aplicamos a noção de programa ao enfoque seguido pelo EU
narrativo. No caso de Eu disse adeus, por haver duplicação do actante em
primeira pessoa, ora sujeito do /querer/ ora sujeito do /dever/, estamos
atribuindo a noção de programa à força expansiva do /querer/. [Voltar]
NOTA 29, CAP IV: Zilberberg considera que a ética é um caso de
partição do sujeito, estabelecendo, de um lado, um sujeito ativo, portador de
valores morais e, de outro, um sujeito passivo disposto a obedecer às ordens
do primeiro. [Voltar]
NOTA 30, CAP IV: Zilberberg diz que “Do ponto de vista temporal, o
tempo atribui tanto aos actantes do enunciado como aos da enunciação a
extensão do campo concedido. Como se pensar ou agir se resumisse, até
certo ponto, em fazer o circuito do proprietário, sem contar o detalhe de
que as dimensões da propriedade ou da apropriação estão na dependência
do tempo" (1992: 89). (Grifos do original, T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 31, CAP IV: Isso lembra um pouco a noção de “nostalgia” que
surge, em Greimas, como a reconstrução da experiência no futuro, por meio
da lembrança, da reflexão ou do comentário, numa prática de reparação das
imperfeições e dos conteúdos disfóricos, projetando sobre um outro tempo o
que poderia ter sido a comunhão perfeita e primordial entre sujeito e objeto:
“A nostalgia incidindo sobre o futuro comporta conotações eufóricas... é
realmente uma nostalgia da perfeição” (1987: 17). [Voltar]
NOTA 32, CAP IV: Do ponto de vista subjetal, preserva-se o efeito
especular na medida em que o sujeito (EU) é, ao mesmo tempo, o destinador
do apelo e o destinatário de seus possíveis benefícios. A volta do outro sujeito
(TU) significa o reatamento das relações com uma instância que tem o poder
de aplacar as inquietações vividas pelo primeiro sujeito. [Voltar]
NOTA 33, CAP IV: Cf. Greimas/Courtés, s.d.: 118. [Voltar]
NOTA 34, CAP IV: Para um estudo da relação entre “atenção” e
“surpresa”, recomendamos, além dos apontamentos de Paul Valéry sobre o
tempo (Valéry, 1973: 1263-1370), o artigo “Pour une poétique de l’attention”,
de Cl. Zilberberg (1990b), com destaque para a página 145. [Voltar]
NOTA 35, CAP IV: conseguimos superar o estado de surpresa
quando recompomos a sucessão dos acontecimentos que nos passou
despercebida e que, por isso, provocou a sensação de inesperado, (cf. Zilb.,
1990b: 145). [Voltar]
NOTA 36, CAP IV: Vale lembrar, mais uma vez, que o destinador é o
trans-sujeito da relação subjetal, responsável por tudo aquilo que “inspirao
sujeito a realizar o seu percurso narrativo. Nesse sentido, o muito
sugestivas as funções atribuídas ao canto da brisa (cf. p. 130 acima e Zilb.,
1986a: 251). [Voltar]
NOTA 37, CAP IV: Cf. Zilb., 1988a: 112. [Voltar]
NOTA 38, CAP IV: A primeira cobertura do elemento remissivo,
conforme já verificamos, não se apresentou em forma de disjunção entre
sujeito e objeto. Ao contrário, a descontinuidade - o salto - foi tomada como
agilização do movimento conjuntivo: “E de repente eu me vi assim
completamente seu”. [Voltar]
NOTA 39, CAP IV: Embora as denominações atribuídas às expressões
modais (como NECESSIDADE, IMPOSSIBILIDADE, por exemplo) sejam
arbitrárias e, portanto, passíveis de alteração, suas motivações semânticas
realçam a complementaridade entre o / dever ser/ e o /poder ser/(cf. Greimas
& Courtés, s.d.: 337):
Podemos, portanto, operar com qualquer uma dessas categorias sem
grandes mudanças de resultado. [Voltar]
NOTA 40, CAP IV: Saussure, 1971:68. [Voltar]
NOTA 41, CAP IV: Ibid., p. 71. [Voltar]
NOTA 42, CAP IV: Ibid. [Voltar]
NOTA 43, CAP IV: Estamos cientes de que a variação de andamento é
totalmente relativa tanto na música erudita como na popular. Para não
desviarmos muito de nossos propósitos, diremos apenas que, no caso da
canção, a menos que ela própria exiba uma variação interna de velocidade,
possibilitando uma definição por contraste, a referência - imprecisa, mas
admissível dentro de uma faixa mínima de tolerância - é a velocidade média
da fala, nem lenta demais a ponto de entediar o ouvinte nem rápida demais a
ponto de confundi-lo na apreensão. Com tal margem de possibilidade de
oscilação, talvez estejamos sendo mais rigorosos que a tentativa de precisão,
jamais suficientemente persuasiva, do metrônomo. [Voltar]
NOTA 44, CAP IV: A “transposição” stricto sensu caracteriza-se por um
forte contraste de exploração de campo de tessitura numa ordem extensa,
geralmente, entre a primeira e a segunda parte da canção. Nesse caso,
embora a passagem de uma parte à outra lembre a oposição típica da
transposição, o fato de termos um ponto de partida inicial também na região
mais aguda (cf. melodia que cobre “Quantas noites não durmo...”) atenua
consideravelmente o contraste. [Voltar]
NOTA 45, CAP IV: Cf. Toch, 1985: 81. [Voltar]
NOTA 46, CAP IV: Cabe aqui uma importante observação de
Zilberberg - para quem o nível missivo corresponde ao nível aspectual - sobre
um dos enfoques que distingue a abordagem semiótica da abordagem
lingüística: “os linguistas começam pelo aspecto sem se preocuparem com o
correspondente extensional que garante as distinções que eles reconhecem
nas línguas. Nós fazemos a escolha inversa: partimos da extensão e
chegamos ao aspecto e esta programação satisfaz à homogeneidade”
(1992a: 64) (T. 1. a.). [Voltar]
NOTA 47, CAP IV: Essa reflexão decorre diretamente de alguns
princípios epistemológicos de Zilberberg cuja síntese pode ser expressa no
seguinte trecho: “O momento explosivo, distensivo, será portanto o do
restabelecimento do sujeito, ou seja, o da desaceleração imanente e da
reconstituição correlativa da duração. A velocidade estonteante se reduz e
permite que a cadência justa retome o controle” (1992b: 104). (T. 1. a.)
[Voltar]
NOTA 48, CAP IV: Cabe lembrar que “segunda parte” é tudo que se
opõe ao refrão, independentemente da aparição cronológica do material
melódico. Em Sonhos, a noção de segunda parte pode se referir ao
desenvolvimento melódico que cobre as duas primeiras estrofes. [Voltar]
CAP.V
NOTA 1, CAP V: Cf. Cap. III, p. 86. [Voltar]
NOTA 2, CAP V: Zilberberg, 1988a: 112. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 3, CAP V: Além da primeira gravação de Caetano, uma
versão do próprio autor e outra, mais recente, de Gilberto Gil. [Voltar]
NOTA 4, CAP V: Zilb., 1990b: 147. [Voltar]
NOTA 5, CAP V: Zilb., 1988a: 111. [Voltar]
NOTA 6, CAP V: Evidente que essa transformação precoce deve ser
compreendida como um simulacro de realização do desejo do sujeito. [Voltar]
NOTA 7, CAP V: Cf. Zilberberg, 1988a: 128. [Voltar]
CAP.VI
NOTA 1, CAP VI: Cf. Cap. I, nota nº 1. [Voltar]
NOTA 2, CAP VI: Wisnik afirma à queima-roupa que “João Gilberto é a
superação da oposição entre o profundo e o superficial” (1989: 52) e explica,
em nota, que o intérprete “trabalha sobre um repertório tonal popular ‘comum’,
mas através de uma rede precisa de nuances mínimas em múltiplos níveis
(entoativos, rítmicos, timbrísticos, harmônicos, contraponto voz/instrumento),
que supõem uma leitura vertical dos bastidores da canção” (p. 209).
Zilberberg, por sua vez, costuma associar as conquistas da semiótica de hoje
com a intuição dos grandes poetas modernos que - a exemplo do que
ocorre com a música de maneira geral - oferecem elementos para uma
“escuta do figural”, dos recursos responsáveis pela geração do sentido: “Essa
consonância entre alguns desenvolvimentos da semiótica e as palavras dos
maiores poetas faz, provavelmente, com que a poesia moderna seja como
uma retomada, um a recuperação do figural a partir do figurativo.” (1992a, 69,
n. 87). E figural”, para Zilberberg, é exatamente o princípio que indica a
presença dos dados profundos no domínio da manifestação figurativa: “os
valores, o tempo, o espaço, a actancialidade estão sempre, sempre aí” (In:
Greimas & Courtés, 1986, 98). No âmbito da canção, João Gilberto é o artista
que mais se aplica em desvendar os seus fundamentos a cada realização
interpretativa. [Voltar]
NOTA 3, CAP VI: Greimas In: ARRIVÉ/COQUET, 1987: 320 [Voltar]
NOTA 4, CAP VI: Cf. Saussure, 1971: 131. [Voltar]
NOTA 5, CAP VI: A concepção valeriana de ritmo sempre evidenciou
as propriedades de previsão típicas da sintaxe: “Ritmo serve para designar a
percepção de uma pluralidade de ocorrências sucessivas como dependentes
enquanto que resultado ou produção sucessiva de uma relação entre a
duração de cada um, de maneira que haja criação de uma previsão
instantânea (o ritmo é apreendido) ou reprodução dessas ocorrências por
motores”. (Cf. Valéry, 1973: 1349-). (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 6, CAP VI: Cf. Hjelmslev, 1975, 57. [Voltar]
NOTA 7, CAP VI: Isso não está muito claro em Hjelmslev quando ele
define “sentido” simplesmente como o “fator comum” entre as línguas.
Entretanto, sua definição de “fator comum” parece legitimar nossa
interpretação: “...esse fator comum é uma grandeza que se define pela
função que a une ao princípio de estrutura da língua e a todos os fatores que
fazem com que as línguas se distingam umas das outras” (op. cit., 55-56).
[Voltar]
NOTA 8, CAP VI: Robins, 1981: 118. [Voltar]
NOTA 9, CAP VI: Lopes, 1976: 136. [Voltar]
NOTA 10, CAP VI: Ibid., 156. [Voltar]
NOTA 11, CAP VI: No sentido utilizado por P. Valéry em seu célebre
trabalho “Poesia e pensamento abstrato” (1991:201-218). [Voltar]
NOTA 12, CAP VI: Saussure, 1971: 137, 138. [Voltar]
NOTA 13, CAP VI: Destacamos, nessa linha, as publicações de
Eleonora Cavalcante Albano {Da fala à linguagem tocando de ouvido} cuja
obra de 1986 veio assinada com outro sobrenome, Eleonora Motta Maia {No
reino da fala). [Voltar]
NOTA 14, CAP VI: Além do trabalho bastante completo de Navarro
Tomás sobre a entonação espanhola (1966), remetemos o leitor às obras que
trazem uma panorâmica das pesquisas realizadas nesse campo: Bolinger,
1972; Léon, 1971 e Léon & Martin, 1969. Trabalhos mais recentes, com o
mesmo peso, não chegaram ao nosso conhecimento. [Voltar]
NOTA 15, CAP VI: Cf. Valéry, 1991:213. [Voltar]
NOTA 16, CAP VI: Cf. Greimas, 1972. [Voltar]
NOTA 17, CAP VI: Ibid, 16. [Voltar]
NOTA 18, CAP VI: Ibid, 15. [Voltar]
NOTA 19, CAP VI: Ibid, 17. [Voltar]
NOTA 20, CAP VI: Cf. Zilberberg, 1985a e 1990a. [Voltar]
NOTA 21, CAP VI: “Critérios poéticos”, no sentido aqui empregado,
referem-se apenas aos parâmetros utilizados para a análise do plano da
expressão da poesia. Raramente, as letras de canção recebem tratamento
especial no nível de seus fonemas e prosodemas. [Voltar]
NOTA 22, CAP VI: Cf. Wisnik, 1989. [Voltar]
NOTA 23, CAP VI: Cf. Attali, 1977: 48. [Voltar]
NOTA 24, CAP VI: Ibid, 44. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 25, CAP VI: Cf. Fontanille, 1993. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 26, CAP VI: Cf. Attali, op. cit., 54. [Voltar]
NOTA 27, CAP VI: Ibid, 47-48. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 28, CAP VI: As implicações decorrentes da obra de Attali são,
acima de tudo, de ordem sociopolítica. [Voltar]
NOTA 29, CAP VI: Com algumas adaptações, essas noções retomam
um texto clássico de Greimas (1970:43). [Voltar]
NOTA 30, CAP VI: Cf. Wisnik, op. cit., 24. [Voltar]
NOTA 31, CAP VI: Ibid [Voltar]
NOTA 32, CAP VI: Zilberberg desenvolve essa idéia em seu artigo
dedicado à “atenção”: “A atenção situa-se, assim, a montante da narratividade
por ser ela própria definida por uma tensão narrativa, por uma instabilidade,
uma oscilação entre duas faltas: um tempo excessivo que a obriga a
confessar que o objeto lhe escapa, ou, de outra parte, uma duração de tal
modo interminável que, nesse caso, é o sujeito que se escapa. (1990b: 140).
(T.l.a.) [Voltar]
NOTA 33, CAP VI: Wisnik, op. cit., 40. [Voltar]
NOTA 34, CAP VI: Ibid, 53 [Voltar]
NOTA 35, CAP VI: Ibid, 28. [Voltar]
NOTA 36, CAP VI: Ibid, 26-27. [Voltar]
NOTA 37, CAP VI: No sentido, comentado, de J. Attali: “Portanto, o
jogo da música é semelhante ao do poder: monopolizar o direito à violência,
provocar a angústia para, em seguida, trazer segurança, a desordem para
propor a ordem, criar o problema que se pode resolver”(Op. cit., 50). (T. 1. a.)
[Voltar]
NOTA 38, CAP VI: Wisnik, op. cit., 28. [Voltar]
NOTA 39, CAP VI: Cabe mencionar aqui uma das intuições temporais
de Valéry: “o mundo vale pelos extremos e dura pelos medianos.
vale pelos radicais e dura pelos moderados.” (1974, 1368). (T. 1. a.)
[Voltar]
NOTA 40, CAP VI: Wisnik, op. cit., 70. [Voltar]
NOTA 41, CAP VI: Ibid, 36. [Voltar]
NOTA 42, CAP VI: A imagem da recuperação do percurso pode ser
transportada para o campo espacial sem perder seus elementos essenciais.
J. Chailley, ao demonstrar a relatividade da dissonância desse mesmo
intervalo no contexto harmônico do acorde, faz uso da seguinte aproximação:
“Assim, o intervalo de quinta diminuta, dissonante quando tomado
isoladamente, torna-se consonante quando integrado pelos outros elementos
do acorde. Esse fenômeno é fácil de compreender e não faltariam as
comparações. Suponhamos duas cores que se chocam violentamente se
estão em presença apenas uma da outra: dissonância. Mas suponhamos que
o pintor coloque entre elas todos os tons de transição, o efeito de choque
desaparecerá para ceder lugar a uma impressão harmoniosa. O mesmo
acontece na música.” (1977, 46. Grifo nosso). (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 43, CAP VI: Op. cit., 101. [Voltar]
NOTA 44, CAP VI: Ibid, 132. [Voltar]
NOTA 45, CAP VI: Ibid. [Voltar]
NOTA 46, CAP VI: O trabalho de criação, não apenas dos chamados
compositores do código como Bach, Beethoven ou Brahms, mas também -
ou, talvez, principalmente - dos que se serviam do código para suas
aventuras musicais (Mozart, Debussy, Wagner...), pode ser interpretado como
o cumprimento de uma missão suprema, expressa no estabelecimento
gradativo dos complexos itinerários que conduzem às regiões inexploradas do
universo das alturas. [Voltar]
NOTA 47, CAP VI: Op. cit., 108. [Voltar]
NOTA 48, CAP VI: Wisnik destaca a presença desses recursos na
música do passado: “...a tradição evolutiva da tonalidade criou justamente um
compromisso tenso entre cada detalhe da obra e o todo, envolvendo os
elementos horizontais e verticais da linguagem numa trama reflexiva, de
muitos ‘acontecimentos’, e muitas vezes à beira da polifonia explicita” (Op.
cit., 110). [Voltar]
NOTA 49, CAP VI: O tom e o pulso, matriz das alturas e das durações,
tomados como “variáveis de uma mesma seqüência de progressão vibratória”
- a equivalência entre uma altura e seus batimentos rítmicos internos pode ser
estampada com o auxílio de um sampler que traduz um som gravado em
várias velocidades —, constituem um fio condutor (ou “monolito negro”) que
acompanha todo o raciocínio do autor de O som e o sentido, na condição de
forma invariável da substância sonora (Cf. Op. cit., p. 18-19 e 188-189).
[Voltar]
NOTA 50, CAP VI: Ibid., 191. [Voltar]
NOTA 51, CAP VI: Quase todos os nossos textos sobre a canção
abordaram esse tema. O maior levantamento, no entanto, encontra-se em Por
uma semiótica da canção, de 1982. [Voltar]
NOTA 52, CAP VI: Referimo-nos especificamente aos trabalhos
compilados sob o títulos “Théorie Poétique et Esthétique”, In: Valéry, 1957: 1
153-1415 e “Temps”, In: Valéry, 1973: 1263-1370. [Voltar]
NOTA 53, CAP VI: Estamos denominando “isotopia de segundo grau” a
iteração sêmica de ‘andamento temporal’ que se forma ao longo do texto
desses autores à margem de suas respectivas isotopias principais. [Voltar]
NOTA 54, CAP VI: Valéry, 1957: 1414. (T. 1. a.) [Voltar]
NOTA 55, CAP VI: Valéry, 1991: 203 [Voltar]
NOTA 56, CAP VI: Ibid. [Voltar]
NOTA 57, CAP VI: Ibid, 208-209. [Voltar]
NOTA 58, CAP VI: “Forma”, para Valéry, corresponde ao plano da
expressão, incluindo a substância de expressão (“...o físico, o sensivel...”), da
semiótica hjelmsleviana. [Voltar]
NOTA 59, CAP VI: Ibid, 209. Na mesma linha de reflexão, páginas à
frente, Valéry acrescenta: “A linguagem que acabou de me servir para
exprimir meu propósito, meu desejo, meu comando, minha opinião, e essa
linguagem que preencheu sua função desvanece-se assim que chega. Emiti-a
para que perecesse, para que se transformasse radicalmente em outra coisa
nos seus espíritos; e saberei que fui compreendido através desse fato
extraordinário, o de que meu discurso não existe mais: está inteiramente
substituído por seu sentido..." (Ibid, 212-213) [Voltar]
NOTA 60, CAP VI: Ibid., 212. [Voltar]
NOTA 61, CAP VI: A propósito disso ainda mais um parágrafo de
Valéry que merece ser citado: “Quando o homem que anda atingiu seu
objetivo (...), quando atingiu o lugar, o livro, a fruta, o objeto que lhe causava
desejo e cujo desejo tirou-o de seu repouso, no mesmo instante essa posse
anula definitivamente todo o seu ato; o efeito devora a causa, o fim absorveu
o meio; e qualquer que tenha sido o ato, permanece apenas o resultado.”
(Ibid.) [Voltar]
NOTA 62, CAP VI: Cf. o texto “Conditions d’une sémiotique du monde
naturel” (Greimas, 1970, 49-91). [Voltar]
NOTA 63, CAP VI: Valéry, 1991: 212. [Voltar]
NOTA 64, CAP VI: Valéry observa que assim como a dança se serve
dos mesmos “órgãos”, dos mesmos “ossos” e dos mesmos “músculos”
utilizados nos movimentos utilitários, a poesia também se serve das mesmas
“palavras”, da mesma “sintaxe”, das mesmas “formas” e dos mesmos “sons”
da prosa, que, nos dois casos, na versão estética, os elementos são
“coordenados” e “excitados” diferentemente (Ibid.). [Voltar]
NOTA 65, CAP VI: Ibid., 213. [Voltar]
NOTA 66, CAP VI: Valéry constata em sua “Primeira aula do curso de
poética” que “A observância dos ritmos, das rimas, da melodia verbal
confunde os movimentos diretos do meu pensamento e então já não posso
mais dizer o que eu quero...” (Valéry, 1957: 1356). (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 67, CAP VI: Ibid., 1350. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 68, CAP VI: Essa seqüência relatada, da letra à melodia, só tem
valor operacional como modelo descritivo. Na prática de composição popular,
o mais freqüente é a melodia surgir como ponto de partida, definindo um
critério musical para a escolha das palavras (de acordo com seus acentos) e
do próprio tema geral. [Voltar]
NOTA 69, CAP VI: Valéry, 1957: 1449. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 70, CAP VI: Ibid. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 71, CAP VI: Valéry, 1973, 1273. [Voltar]
NOTA 72, CAP VI: Id., 1957, 1449. [Voltar]
NOTA 73, CAP VI: Zilb., 1992a, 89. [Voltar]
NOTA 74, CAP VI: Valéry, 1973, 1369. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 75, CAP VI: Zilb., 1992a, 90. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 76, CAP VI: Cf. Zilberberg, 1992a, 67-71. O risco está no fato
de retirarmos o conceito do quadro de análise pictórica conduzido por Wõlfflin,
onde este autor opõe “liberdade” a “regra” para caracterizar, respectivamente,
o estilo barroco e o estilo da Renascença. Entretanto, Zilberberg generaliza o
conceito, fundando-o como “constante concêntrica” do espaço modal (p. 68).
[Voltar]
NOTA 77, CAP VI: Zilb., 1992a, 68. (T.l.a.) [Voltar]
NOTA 78, CAP VI: E ordenação, no ideário tropicalista II, corresponde
à remoção dos distúrbios psíquicos e sociais que recalcam as potencialidades
brasileiras, diante de um mundo que não tem qualquer interesse pelo
desenvolvimento repentino de uma (enorme) nação da América do Sul.
Pensar o Brasil equivale, no fundo, a uma auto-análise (daí a necessidade de
um tempo de terapia) e à metabolização das demandas internacionais no
quadro específico do reconhecimento dos próprios valores. [Voltar]
NOTA 79, CAP VI: Se o papel desta canção no disco Tropicália II é o
de radicalizar a duração que está na base desse novo projeto de Caetano e
Gil, a noção de “aboio” - definida como a passagem das interjeições,
utilizadas pelos boiadeiros que conduzem o gado, para um nível de canto
musicalmente estabilizado - confirma essa estratégia geral, na medida em
que a fala deixa de ser fala em nome de uma duração pura que se fixa nas
vogais. Mário de Andrade diz que “o aboio é certamente uma das formas mais
elevadas e determinantes da doutrina spenceriana da música ter derivado da
linguagem oral. Segundo verifica Spencer, a fala excitada, a fala organizada
sob a influência das comoções intensas, os jeitos de alegria, e espanto, de
horror, os chamados que quando não correspondidos, se repetem mais
intensos e mais agudos, são manifestações de canto e atingem muitas
vezes verdadeiros sons determinados e musicais. (Andrade, 1989:2) [Voltar]
NOTA 80, CAP VI: Barthes, 1984: 218. [Voltar]
NOTA 81, CAP VI: Ibid, 219. [Voltar]
NOTA 82, CAP VI: Ibid.. [Voltar]
NOTA 83, CAP VI: Cf. Tatit, 1986a: 14-15. [Voltar]
NOTA 84, CAP VI: Cf. especialmente a canção que lhe o título.
[Voltar]
NOTA 85, CAP VI: Em nenhum momento estaremos comparando o
mérito das duas interpretações que são, cada qual em seu estilo,
absolutamente definitivas. Estamos apenas tentando identificar
procedimentos que refletem o projeto radical de João Gilberto. [Voltar]
NOTA 86, CAP VI: Cf. análise desta canção em Tatit (O cancionista).
[Voltar]
NOTA 87, CAP VI: No Brasil de hoje, ao lado dos artistas que
personificam as leis vigentes do mercado de consumo musical, produzindo
exclusivamente para atender suas solicitações de momento, convivem
importantes criadores em fase “pré-mercado” e grandes nomes em fase “pós-
mercado”. Ambas as fases ostentam boa independência de produção mas
com uma diferença decisiva: enquanto esses últimos são dignamente
remunerados, os da fase pré-mercado obtêm, no máximo, o suficiente para a
sobrevivência. Ambas, ainda, caracterizam-se por um certo “namoro” com os
produtos de consumo. Os primeiros programam algumas obras de ocasião na
esperança de encontrar uma porta aberta para o sucesso de massa. Os
últimos, que passaram pelo mercado, tentam reviver, de tempos cm
tempos, o amplo reconhecimento popular. Caetano Veloso e João Gilberto
são dois dos maiores cancionistas brasileiros de todos os tempos que,
evidentemente, pertencem à fase pós- mercado: produzem apenas o que
querem. Entretanto, se Caetano jamais deixou de assinalar sua presença no
mercado de consumo - trabalhando, evidentemente, para isso -, João Gilberto
radicaliza sua experiência pós-mercado, desprezando qualquer gesto que
tenha como objetivo a conquista de um público maior. Considerando
encerrado o capitulo “consumo”, o ponto de liberdade do pai da Bossa-Nova
abre-se para um profundo comentário sobre a linguagem da canção popular
brasileira. [Voltar]
NOTA 88, CAP VI: Sugerimos que os próximos exemplos sejam
ouvidos e comparados na versão de Caetano Veloso (LP Muito, Philips, 1978)
e de João Gilberto (LP João, Philips, 1991). [Voltar]
NOTA 89, CAP VI: Note-se que esse expediente, embora destaque o
acento natural da palavra, não contribui para a apreensão da celeridade na
medida em que reforça a ordenação gradativa típica da duração. [Voltar]