Título: A aventura da reportagem
Autor: Gilberto
Dimenstein, Ricardo Kotscho
Este
material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998,
não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado
por: Eduardo Nascimento; Rafael
Péricles; Luana Suassuna; Paloma Gomes
Adaptado
em: Outubro de 2023.
Padrão
vigente a partir de março de 2022.
Referência:
DIMESNTEIN, Gilberto; KOTSCHO, Ricardo. A Aventura da Reportagem. 3. ed.
São Paulo: Summus, 1990.
P.Capa
P.
P.
Dados da Catalogação na Publicação (CIP)
Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Dimenstein, Gilberto, 1957- A aventura da reportagem / Gilberto Dimenstein, Ricardo
Kotsho. – São Paulo : Summus, 1990. – (Novas buscas em comunicação ; v. 38) ISBN
85-323-0073-1 1. Imprensa
e política – Brasil 2. Jornalismo – Brasil 3. Reporteres e reportagens –
Brasil I. Kotscho, Ricardo.II. Título. III. Série.
CDD-070.430981 90-1677
-079.81 |
Índices para catálogo sistemático:
1.
Brasil : Imprensa e política 079.81
2.
Brasil : Reportagens : Jornalismo 070.430981
3.
Brasil : Repórteres e reportagens : Jornalismo
070.430981
P.
A AVENTURA DA REPORTAGEM
Copyright © 1990
by Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho
Capa de:
Edmundo França
Proibida a reprodução total ou parcial deste
livro, por qualquer meio e sistema, sem o prévio consentimento da Editora.
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Impresso no Brasil
P.
NOVAS BUSCAS EM COMUNICAÇÃO
O extraordinário progresso
experimentado pelas técnicas de comunicação de 1970 para cá representa para a
Humanidade uma conquista e um desafio. Conquista, na medida em que propicia possibilidades
de difusão de conhecimentos e de informações numa escala antes inimaginável.
Desafio, na medida em que o avanço tecnológico impõe uma séria revisão e
reestruturação dos pressupostos teóricos de tudo que se entende por
comunicação.
Em outras palavras, não basta
o progresso das telecomunicações, o emprego de métodos ultra-sofisticados de
armazenagem e reprodução de conhecimentos. É preciso repensar cada setor, cada
modalidade, mas analisando e potencializando a comunicação como um processo
total. E, em tudo, a dicotomia, teoria e prática, está presente. Impossível
analisar, avançar, aproveitar as tecnologias, os recursos, sem levar em conta
sua ética, sua operacionalidade, o benefício para todas as pessoas em todos os
setores profissionais. E, também, o benefício na própria vida doméstica e no
lazer.
O jornalismo, o rádio, a
televisão, as relações públicas, o cinema, a edição — enfim, todas e cada uma
das modalidades de comunicação —, estão a exigir instrumentos teóricos e
práticos, consolidados neste velho e sempre novo recurso que é o livro, para
que se possa chegar a um consenso, ou, pelo menos, para se ter uma base sobre a
qual discutir, firmar ou rever conceitos. Novas Buscas em Comunicação visa trazer para o público — que já
se habituou a ver na Summus uma editora de renovação, de formação e de debate —
textos sobre todos os campos da Comunicação, para que o leitor ainda no curso
universitário, o profissional que já passou pela Faculdade e o público em geral
possam ter balizas para debate, aprimoramento profissional e, sobretudo,
informação.
P.
ÍNDICE
I
—
APRESENTAÇÃO
P.
III
—
No olho da rua
7. Cai o governo, morre o papa
13. Com Lula, a aventura humana
IV
—
Os Autores
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Que me desculpem Vinícius de Moraes, os editores e os redatores, mas
repórter é fundamental. É certamente a única função pela qual vale a pena ser
jornalista. Jornalista não fica rico, a não ser um punhado de iluminados.
Jornalista não fica famoso, a não ser um outro (ou o mesmo) punhado e assim
mesmo no círculo restrito que freqüenta ou no qual é lido.
Jornalismo, por isso, só vale a pena pela sensação de se poder ser
testemunha ocular da história de seu tempo. E a história ocorre sempre na rua,
nunca numa redação de jornal. É claro que estou tomando “rua” num sentido bem
amplo. Rua pode ser a rua propriamente dita, mas pode ser também um estádio de
futebol, a favela da Rocinha, o palanque de um comício, o gabinete de uma
autoridade, as selvas de El Salvador, os campos petrolíferos do Oriente Médio.
Só não pode ser a redação de um jornal.
Por isso, é um privilégio ser repórter. Não se trata de menosprezo à
função dos companheiros editores e redatores. Até porque jornalismo é um
trabalho de equipe, em que um bom editor
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valoriza ainda mais uma boa reportagem, um bom
redator pode melhorar o texto de um repórter e assim por diante. Ocorre que,
como em todas as profissões, também no jornalismo há talentos específicos. Há
gente que só se sente bem colocando, numa página de jornal, revista ou no vídeo
da TV, uma reportagem. Como há gente que se sente asfixiada se tiver que ficar
muito tempo trancada em uma redação.
Suponho que os dois autores
deste livro têm em comum comigo essa mesma sensação de asfixia. Por isso, os
três trocamos funções de chefia pela aventura da reportagem. Essa escolha pode
ser conseqüência das seguintes alternativas, que deixo à escolha do leitor
a)
Somos três idiotas;
b)
A reportagem deve ter algum especial fascínio;
c)
As duas anteriores são válidas.
Provavelmente a alternativa “c”
é a mais correta. Afinal, reportagem é uma coisa paradoxal, por se tratar, ao
mesmo tempo, da mais fácil e da mais difícil maneira de viver a vida. Fácil porque,
no fundo, reportagem é apenas a técnica de contar boas histórias. Todos sabem
contar histórias. Se bem alfabetizado, pode-se até contá-las em português
correto e pronto: está-se fazendo uma reportagem, até sem o saber.
Difícil porque o repórter
persegue esse ser chamado verdade, quase sempre inatingível ou inexistente ou
tão repleto de rostos diferentes que se corre permanentemente o risco de não
conseguir captá-los todos e passá-los todos para o leitor/ouvinte/telespectador.
Há alguns anos, em uma palestra em São Paulo, Carl Bernstein, o repórter do Washington Post que, com Bob Woodward,
desvendou o caso Watergate e levou o presidente Richard Nixon à renúncia,
definiu jornalismo assim: “A melhor versão da verdade possível de se obter”.
É isso. Parte já do
pressuposto de que a verdade inteira é inalcançável porque fala em “melhor
versão da verdade”. E acrescenta a essência do ofício de repórter no “possível
de se obter”. Um exemplo simples mostra como a definição é adequada.
Suponha que você está numa
ponte sobre uma rodovia qualquer. De repente, um carro passa para a pista
contrária e bate
P.11
de frente num caminhão. Morre o motorista do
carro. Qual é a verdade? O motorista atravessou a pista e, logo, foi o culpado.
Mas a função do repórter é ir atrás das causas, e estas não ficam visíveis nem
mesmo no exemplo simples usado.
O motorista pode ter perdido a
direção porque dormiu, porque estava bêbado, porque sofreu um colapso e morreu
no ato, porque quebrou a barra da direção. Ou seja, mesmo que você seja
testemunha ocular de um fato, nem por isso fica seguro de que sabe de tudo a
respeito dele. Ora, jornalistas quase nunca são testemunhas oculares de fatos
menos corriqueiros. Em geral, eles se passam nas sombras dos gabinetes, no
escurinho dos palácios, nos fundos dos morros e favelas e assim por diante.
Logo, resgatar a “melhor versão possível da verdade’’ é uma tarefa ingrata.
Para executá-la, sejamos
francos, exige-se muito mais transpiração do que inspiração. Mais esforço
físico do que intelectual. Exige que se gaste a ponta do dedo telefonando para
todas as pessoas que possam dar ao menos um fragmento de informação. Exige que
se gaste a bunda nos sofás das ante-salas de autoridades ou “otôridades”, na
espera de que elas atendam o repórter e lhe dêem mais um pedacinho de informação.
Exige que se gastem as pernas e as solas dos sapatos andando atrás de
passeatas, comícios ou fugindo da polícia.
Exige ainda gastar a vista
lendo livros, revistas, jornais, documentos, relatórios, certidões, o diabo,
atrás de detalhes ou confirmações ou, no mínimo, como ponto de partida para se
iniciar um trabalho com um mínimo de informações prévias. Gasta-se a vista
também no simples exercício de olhar com olhos de ver. Tem muita gente que olha
e não vê detalhes que acabam compondo pedaços por vezes vitais de uma
reportagem.
No prefácio do livro de
Ricardo Kotscho Explode um Novo Brasil
— Diário da Campanha das Diretas, o deputado Ulysses Guimarães escreveu:
“Como é que o Ricardo viu aquele jovem frenético, registrou a originalidade
daquele dístico, enxergou aquela mulher chorando, ouviu daquele velho as
histórias de outros comícios e outros personagens?”.
Pois é, a história às vezes
passa diante do nariz e dos olhos da gente e a gente nem vê ou ao menos não vê
todos os detalhes
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que a compõem. Ricardo Kotscho, aliás,
especializou-se em contar as histórias dos anônimos, das pessoas e dos lugares
que raramente entram nos jornais, rádios e televisões. E é inacreditável a
quantidade de boas histórias que os anônimos são capazes de fornecer a quem
sabe contá-las.
Já Gilberto Dimenstein
preferiu investir a maior parte do seu tempo na investigação dos porões do
poder. E deles drenou água podre de monte, tema preferencial de suas
reportagens.
Só por esses dois exemplos,
percebe-se que reportagem não é uma coisa única, feita de uma só face. Cada vez
mais o mundo e, dentro dele, o mundo do jornalismo exige especialização, e
houve um tempo em que se supôs que o repórter — estigmatizado como
“especialista em assuntos gerais” — estava com seus dias contados. Bobagem. No
limite, não há jornal, telejornal ou radiojornal se não houver ao menos um
repórter na ponta da linha. Melhor ainda (para os repórteres): pode haver
jornal, telejornal e radiojornal sem editores, redatores, produtores. Pode sair
feio, mal feito, errado — mas sai se houver alguém disposto a contar uma
história.
Mas jornais, telejornais e radiojornais
poderão ser bem feitos e melhores se as novas gerações de repórteres se
livrarem de um vício da grande maioria dos repórteres de hoje e de ontem.
Trata-se da suposição de que para manter uma fonte (e o repórter depende muito
delas) é preciso agradá-la no texto das histórias que o repórter conta. Não vou
ao extremo de dizer que acariciar a fonte não ajuda a mantê-la. Mas pode ajudar
também a agredir a verdade ou ao menos uma das faces da verdade e, no limite, o
repórter de verdade vai sucumbir à angústia de sentir que está falhando.
É mais razoável e civilizado
preservar as fontes pela reprodução fiel e bem-intencionada do que elas dizem
ou pensam. Se o presidente da República disser que transformou o país em um
paraíso, você deve escrever o que ele disse mas, em seguida, deve acrescentar
os números e os fatos que demonstram que ele está enganado. Se o presidente da
República for civilizado, pode até não gostar, mas vai respeitar o repórter que
assim agir. Se não for civilizado, vai odiar o repórter. Mas, em princípio, o
repórter
P.13
nasceu para ser odiado pelo presidente da
República. Afinal, o presidente (qualquer presidente em qualquer país) tem uma
imensa parafernália de meios para dizer a sua verdade. O repórter tem apenas o
que já se disse antes: a disposição para transpirar muito em busca da verdade
fugidia e um mínimo de inspiração para contar bem a sua história.
Repórteres são ou não seres
idiotas? São, mas as vezes conseguem até ser felizes na sua estranha maneira de
viver a vida.
P.14
P.15
P.16
P.17
Experiente jornalista, o
deputado federal pelo PDS, Amaral Netto, notabilizou-se durante o regime
militar pelo convívio com oficiais das Forças Armadas — era visto como
porta-voz informal. Nos dias de tédio, ele fazia uma curiosa brincadeira no Congresso.
De manhã, na agitada sala do cafezinho, contava a algum parlamentar, pedindo
sigilo absoluto, uma notícia “secreta”. E falava com riqueza de detalhes, dava
nomes e diálogos. No final da tarde, ele voltava para a mesma sala do cafezinho
e, invariavelmente, ficava satisfeito.
A “informação” que ele
transmitira de manhã ganhava vida própria, enriquecida de diálogos,
personagens, análises. Era normal alguém, pedindo sigilo, relatar-lhe com ares
de verdade inapelável o boato inventado horas antes, agora amplificado com outros
“fatos”. “Nunca falhou”, lembra o deputado, discípulo e depois rival do
falecido jornalista Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara e um dos mais
ruidosos líderes que o Brasil já conheceu. Amaral Netto constatava que não eram
ludibriados apenas parlamentares, mas jornalistas. Ele lia nos jornais
“notícias”, baseadas em “assessores” ou “fontes bem informadas”, nascidas de
sua brincadeira.
P.18
Os boatos contaminam todas as
esferas da administração em Brasília. Basta um leve indício para que surja o
boato, encaixado numa situação verossímil. Decisões importantes são geralmente
articuladas em segredo. Então, sempre há alguém se apresentando como
bem-informado, contando detalhes sobre encontros sigilosos. Se esse alguém for
assessor próximo de quem manda, há boa chance de publicação do boato nos
jornais.
Foi publicado com estardalhaço,
em janeiro de 1990, que Collor tinha viajado ao Rio a fim de se encontrar com o
professor Mário Henrique Simonsen, que seria convidado para ocupar o Ministério
da Economia. Chegou a ser reproduzido diálogo entre ambos. Só que não houve
nenhum encontro e muito menos convite, embora tenha sido anunciado em off (o nome do informante não pode
aparecer) pelo deputado estadual de Alagoas, Cleto Falcão, amigo íntimo de
Collor. Teoricamente, Falcão era uma fonte de primeira linha. Além disso, o encontro
era verossímil. Mário Henrique Simonsen estava na lista dos cotados para o
Ministério da Economia. Junta-se um indício — Collor efetivamente foi ao Rio —
com uma situação possível. São ingredientes mais que suficientes para um sólido
boato. Irritados com o erro, os editores estamparam o nome de Cleto Falcão como
responsável pela “barriga” (notícia errada). O estrago já estava feito. Mesmo
porque a responsabilidade do off
é de quem publica, não de quem produz a informação falsa.
Esse é um detalhe das armadilhas
diárias que devem ser evitadas pelos jornalistas que fazem a cobertura do
poder. Não raro os profissionais, até mesmo os mais experientes, sucumbem às
mentiras, contra-informações, deturpações e boatos. A informação é uma arma na
guerra da sobrevivência política. Quem sabe mais pode mais. Ou perde menos.
Quem ilude mais também ganha mais — pelo menos temporariamente. O sonho dos
homens que me-
P.19
xem com o poder é serem considerados impecáveis
e infalíveis diante da opinião pública. Não apenas por vaidade, mas pela
necessidade de sobrevivência — sem um mínimo de apoio ninguém se sustenta em
seu cargo, deixando de ser ministro ou perdendo a reeleição a uma vaga no
Congresso.
Mentir ou enganar um repórter
não é uma apenas questão ética — mas um ingrediente habitual da vida pública,
marcada por intermináveis conflitos, intrigas, esperteza e calculismo. Por ser
o principal foco de notícias, usina das mais importantes manchetes nacionais,
Brasília também é estímulo constante para que os jornais veiculem
desinformação. Nem sempre o jornalista está preparado ou disposto a enfrentar a
batalha da informação correta e precisa — e este é um quadro que se agrava
drasticamente caso o dono do veículo de comunicação não quiser ou não puder
manter independência.
A premissa básica e óbvia para
o jornalista independente é a existência de veículos de comunicação dispostos a
enfrentar os humores oficiais. O repórter sente-se estimulado a fazer
escavações, contestando versões agradáveis ao governo, quando está convencido
da disposição da empresa para colocar as notícias acima das conveniências
políticas.
Muitas empresas, entretanto,
dependem de verbas oficiais ou temem, por vários motivos, o raio coercitivo dos
governos, mantendo-se na defensiva. O repórter precisa acreditar que tudo o que
souber e estiver fundamentado será publicado e não sofrerá represálias, como a
perda de emprego. Nada mais freqüente do que os governantes pedirem a “cabeça”
de repórteres, irritados com esta ou aquela notícia.
Existe o batido chavão dos
homens públicos de que apreciam a “crítica construtiva”, ressaltando a
importância da imprensa. Em termos de sinceridade é algo parecido aos
empresários, que, em seus discursos enaltecendo a economia de mercado,
trombeteiam que a concorrência é “saudável” — desde que, evidente, não implique
queda na venda de seus produtos. Compara-se também ao princípio alardeado no
esporte de que o importante é competir, não vencer. Ninguém gosta de perder, o
monopólio é o sonho íntimo da maioria dos empresários e nenhum governante
P.20
fica feliz quando lê nos jornais uma crítica,
por mais correta que seja.
Quando as “críticas
construtivas” se intensificam, o presidente, governador, ministro, deputado ou
senador tem o hábito de acusar um complô, no qual o jornal teria
“inconfessáveis interesses” — há, entretanto, casos em que a imprensa serviu a
interesses político-partidários, adotando campanhas para destruir presidentes.
Durante o regime militar justificava-se a censura de imprensa com o “perigo
comunista” — ou seja, a “esquerda” comandaria as redações e, por conseqüência,
teria nas mãos o poder da informação para tentar derrubar o regime, que se
auto- intitulava “democrático”.
Em agosto de 1990, o
presidente Fernando Collor decidiu processar a Folha de S. Paulo, através de seu ministro da Justiça, Bernardo
Cabral. Ele estava irritado com a série de reportagens sobre a contratação, sem
concorrência, de agências de publicidade para a produção da propaganda oficial.
As empresas escolhidas eram as mesmas que trabalharam para Collor na disputa
presidencial, no ano anterior. Se o jornal dependesse de verba oficial teria de
recuar ou seria estrangulado.
A Folha serve como exemplo do tiroteio a que a imprensa crítica é
submetida pela suspeita de complôs. Durante a disputa presidencial de 1989,
Collor assegurava que o jornal era comandado pelo PT. O candidato do PT, Luis
Inácio Lula da Silva, processou o jornal, acusando-o de deturpar suas
afirmações a fim de prejudicá-lo. O candidato do PDT, Leonel Brizola, irritado
com algumas reportagens, asseverava que a Folha estava a serviço do candidato do PDS, Paulo Maluf, que,
por sua vez, alegava estar sendo “perseguido injustamente” pelo jornal.
Por trás desses ataques existe
uma deliberada tentativa de neutralizar as revelações ou críticas
desqualificando quem as produz e publica. No regime democrático, não se dispõe
de instrumentos tão “eficientes” como a censura. E o relacionamento entre
imprensa e poder exige mecanismos mais sutis para controlar o ímpeto
investigativo.
P.21
O ex-ministro Antônio Carlos
Magalhães, ex-jornalista, é um dos gênios de sobrevivência política. Tem a
confiança dos homens do poder desde Juscelino Kubitschek, passando pelos
governantes militares, até chegar a José Sarney e Fernando Collor. Depositário
de valiosos segredos, ele é autor de uma frase polêmica sobre a arte de buscar
notícias: “Há dois tipos de jornalistas: os que gostam de dinheiro e os que
gostam de informação. Nunca se deve dar dinheiro aos que querem informação. E
nem informação aos que querem dinheiro”.
Não é uma imagem dignificante
do jornalista, por pressupor a possibilidade do suborno — se não servir a
informação, o dinheiro resolve. A frase de ACM, como é conhecido o ex-ministro,
exagera, mas tem ingredientes de verdade. Favores e informação são, de fato,
instrumentos para tentar neutralizar o jornalismo independente. Quando cheguei
a Brasília, em 1983, fiquei impressionado com o alto número de jornalistas que
trabalhavam no Congresso e ministérios e, ao mesmo tempo, nos jornais. Era
comum um repórter fazer a cobertura do Congresso, onde também era funcionário.
Na sucessão de Figueiredo,
Paulo Maluf foi guindado à condição de inimigo público número um pela imprensa.
Mas seu vice, o deputado Flavio Marcílio, do Ceará, era poupado no noticiário
que saía de Brasília. Marcílio era presidente da Câmara e controlava uma assessoria de imprensa com dezenas de
profissionais que ocupavam função de destaque na reportagem política dos
principais veículos de comunicação do país.
Em 1985, a Folha de S. Paulo publicou, durante
quinze dias consecutivos, uma série de reportagens sobre esse relacionamento
entre imprensa e poder, divulgando o nome dos profissionais com duplo emprego.
A própria redação da Folha em
Brasília era atingida pelo duplo emprego, incompatível com a postura
independente assumida pelo jornal. Não significava que, necessariamente, quem
tivesse emprego no Congresso e trabalhasse co-
P.22
mo repórter deturparia informações, mas a
tendência de refrear um comportamento investigativo é inevitável.
A série de reportagens apurou
que o Congresso tinha contratado pelo menos 250 jornalistas, muitos deles sem
concurso, patrocinando dolorosa discussão na categoria. O resultado foi
saudável: as redações de sucursais dificultaram o duplo emprego, buscando
aumentar salários para exigir exclusividade. O jornalismo de Brasília é, hoje,
o mais competitivo do país, por concentrar sucursais dos mais importantes
veículos de comunicação — a competição significa batalha diária pela notícia
exclusiva, ou seja, o furo.
Essa batalha incentiva o outro
mecanismo de “suborno” apontado por Antônio Carlos Magalhães: a informação. As
autoridades e seus assessores se dispõem a dar notícia em on (assumindo a autoria) ou off — mas, geralmente, estabelecem um
preço. Um ministro não tende a dar informação a um jornalista que divulga
críticas sobre suas decisões — ele é até capaz de passar a dar notícia apenas
na tentativa de ganhar sua complacência. Isso é o que se chama de “fontismo”:
relacionamento promíscuo entre o repórter e a fonte.
O jornalismo independente e,
portanto, com credibilidade, significa atritos com o poder — logo, com as
fontes. Atritos implicam boicote. Os repórteres não recebem sequer as
informações mais ingênuas, como a data e o local onde o ministro vai-se reunir
com empresários ou parlamentares. Mas os editores exigem de seus comandados
boas notícias. É preciso, então, um malabarismo para que não se fique tão
distante das fontes a ponto de perder a informação — e nem tão próximo que
signifique deixar de publicá-la.
A busca desse equilíbrio exige
a procura de novos e variados canais de obtenção de dados, único mecanismo para
não cair
P.23
nas armadilhas. O esforço compensa: o
jornalismo e os jornalistas servis ganham o curto prazo, dão aqui e ali um furo
sem maior importância, mas, a médio prazo, sofrem desgaste em sua credibilidade.
E por um simples motivo: os governantes passam, voltam para casa, mas o
jornalista e o leitor ficam. Quem quiser ser jornalista e ambicionar agrados do
poder e, ao mesmo tempo, o respeito profissional, é bom ir logo procurando
outra atividade.
Ser jornalista em Brasília é
ser um aprendiz diário de como evitar armadilhas. Errando, aprendi que falta de
cautela e pressa, temperadas com pitadas de arrogância, são o caminho mais
rápido para se escrever bobagens. Quem acha que já está vacinado contra as malandragens
não aprendeu nada. Não existe receita e nem este texto pretende ser uma espécie
de manual de sobrevivência na selva. E apenas o relato baseado no fragmento de
uma experiência individual, capaz de introduzir o estudante ou o simples
interessado em jornalismo nos labirintos do relacionamento entre imprensa e
poder, a partir da minha vivência em Brasília.
Estou convencido, porém, de
uma regra básica: o jornalista que perdeu a curiosidade, e não tem a humildade
de se admitir capaz de levar uma rasteira do imprevisível, é uma presa fácil na
guerra da informação. E parecido a andar de bicicleta. Quando se pára de
pedalar, a velocidade se reduz a zero. Alguns jornalistas desfrutam de mais
vantagens na batalha da notícia por trabalharem em jornais mais importantes ou,
pelo tempo de profissão, terem cultivado mais contatos, mas sabem que se
deixarem de pedalar, a bicicleta da informação pára. O “foca” (iniciante)
comete tantos erros com seu deslumbramento apressado como o veterano que se
imagina acima das surpresas, dominado pelo tédio de quem já viu “tudo”.
O ex-governador de Minas,
Magalhães Pinto, ex-chanceler e um dos principais dirigentes do movimento
militar de 1964, é tido como um dos mestres do conhecimento do jogo político.
Ele costumava dizer que a política é como uma nuvem, devido à maleabilidade de
suas formas. Um de seus conselhos, que serve aos jornalistas, é estar sempre
atento ao “fato novo”, ou seja, ao imprevisível.
P.24
Os jornalistas políticos riram
quando Paulo Maluf resolveu disputar o governo de São Paulo, na década de 70,
pela via indireta — isso porque o candidato do Palácio do Planalto era o
ex-governador Laudo Natel. Até o primeiro semestre de 1984, poucos imaginavam
que o regime militar perdesse, no Colégio Eleitoral, seu suposto domínio, o
poder para o PMDB. A cúpula do PT estava convencida de que a “revolucionária” e
“radical” Luiza Erundina jamais ganharia a prefeitura de São Paulo. Além de
mulher, nordestina: parecia algo fora do perfil desejado do paulistano. Era
tratada com indiferença, mesmo durante a campanha, por militantes petistas, que
gostariam de ver como candidato Plínio de Arruda Sampaio, derrotado na
convenção do partido.
O fato novo surpreende
inclusive seus beneficiários. A vitória do PMDB, através de Tancredo Neves, era
inesperada até o começo de 1984 porque o PDS dispunha de maioria no Colégio
Eleitoral. Ninguém poderia prever que José Sarney, que imaginava dedicar-se à
literatura em seu mandato como vice-presidente, chegasse por vias tortas ao
Palácio do Planalto.
A indiferença também ocorreu
quando um governador alagoano, sem partido, sem apoio de trabalhadores ou
empresários, decidiu disputar a Presidência da República. Collor venceu,
transformando-se em “fato novo”. Nem ele imaginava, de início, tal desfecho:
sua estratégia era gabaritar-se, a partir da eleição, para disputar no ano
seguinte (1990) uma vaga ao Senado pelo Rio de Janeiro. Supunha-se menos ainda
que, uma vez sentado na cadeira mais nobre do Palácio do Planalto, ele fosse
desIanchar um plano com medidas que a “direita” temia que o PT aplicasse se
fosse vitorioso.
Saí de São Paulo em 1983 para
cobrir a sucessão do presidente João Figueiredo em Brasília, atraído pelos
mistérios da engenharia do poder — ou seja, as peças que engrenam as decisões.
P.25
Logo
nos
primeiros dias assistia, na ala reservada à imprensa, a uma monótona sessão do
Senado, preenchida por sonolentos discursos de velhos senadores de ar paternal
e ingênuo. Não era a imagem tradicional do político: vivo e de inexcedível esperteza.
Comentei com um veterano jornalista, que já cobria o Congresso desde os tempos
em que a capital era no Rio de Janeiro, que estava sentado a meu lado: “Como
esses senadores têm cara de bobos’’. Sorrindo, complacente, ele aconselhou: “Já
que você vai trabalhar em Brasília, é melhor que saiba de uma coisa: o mais
bobo deles conserta um relógio no escuro. E com luvas de box”.
Achei graça do comentário, mas
tratei de não esquecê-lo. Tive a chance de acompanhar ao vivo, freqüentando os
cenários de decisão, como o Palácio do Planalto, o Congresso e os ministérios,
um período efervescente: o fim do regime militar, marcado pela campanha das
eleições diretas a presidente e a vitória de Tancredo Neves no Colégio
Eleitoral e sua morte, passando pela “Nova República’’ e a Constituinte, até
chegar ao “Brasil Novo”, de Fernando Collor. Passados apenas sete anos, foram
quatro monumentais choques na economia. Trocou-se três vezes de moeda e, em seu
rastro, uma penca de ministros e presidentes do Banco Central. O imprevisível era — como é — matéria-prima
abundante.
Fui conhecendo cada vez mais
personagens capazes de consertar relógios no escuro e descobrindo que ser bobo,
em Brasília, é se achar mais esperto do que os outros. E, ao contrário do que
se aprende em casa em sermões paternais, mentir não é “coisa feia”, nem “Deus
castiga” os mentirosos. Os políticos costumam repetir um velho ditado: “Em
política, o que vale é a versão e não os fatos”. A autoria desta frase é
atribuída a um dos principais líderes políticos mineiros, já falecido, José
Maria Alckimin. Comenta-se que, certa vez, ele teria se encontrado com o
ex-ministro da Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema,
P.26
que o acusou de plágio: “Eu inventei a frase e
todos dizem que é sua” — reclamaria Capanema. Veio a resposta genial: “Você
tinha mesmo razão. O importante é a versão e não os fatos”.
Uma das frases mais citadas em
incontáveis artigos e análises, é atribuída ao célebre general Charles De Gaulle, líder da resistência francesa contra os
nazistas e depois presidente da França: “O Brasil não é um país sério”. Mais
tarde ficou comprovado, através de testemunhas, que o general jamais externou
tal opinião. Inútil — a versão tornou-se fato. A história é repleta de exemplos
de deturpações. Os jornais e, por consequência, os leitores, acabam sendo as
maiores vítimas.
O falecido general Golbery do
Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI), já extinto,
costumava dizer que analisava com atenção as mentiras políticas que circulavam
pelo país: “Por trás de uma mentira há sempre muitas verdades”. Importante não
era, no caso, saber se a notícia estava certa ou não — mas descobrir quem e por
quê tinha interesse naquela informação. Ai era possível encontrar uma valiosa
verdade, capaz de desvendar algum plano.
Informação é poder.
Coincidência ou não, os chefes do SNI exerceram papel relevante durante o
regime militar. Golbery foi figura de destaque nos governos Castello Branco,
Ernesto Geisel e João Figueiredo, apontado como cérebro da distensão política.
Dois chefes do SNI tornaram-se presidentes: Emílio Médici e João Figueiredo.
Por ironia da história, Golbery deixou o Gabinete Civil na gestão Figueiredo,
num embate justamente com o SNI, então dirigido por Octávio Medeiros,
pretendente à Presidência da República. “Criei um monstro”, desabafou Golbery,
que exigiu, sem sucesso, uma investigação mais profunda sobre a explosão de
duas bombas no RioCentro, onde ocorria um show patrocinado em 1981 pela “esquerda”, em
comemoração ao 1.º de Maio.
P.27
Num acidente de trabalho, as bombas
explodiram no carro onde estavam militares ligados à comunidade de informações,
segmento que se mostrava incomodado com a abertura política. Golbery estava
convencido de que o pavio das bombas passava pelo alto escalão do governo,
envolvendo Octávio Medeiros e seu poderoso chefe da Agência Central do SNl, Newton Cruz. Ambos seriam atingidos, não
diretamente pela demissão de Golbery, mas por uma bomba lançada tempos depois,
que teve efeito devastador em suas carreiras: a morte do jornalista Alexandre
Von Baumgarten.
Baumgarten mantinha estreitos
laços com integrantes da comunidade de informações, de quem se aproveitava
financeiramente. Obtinha recursos para a revista O Cruzeiro, da qual foi diretor. Ele foi assassinado quando
passeava de barco no Rio de Janeiro. Foi entregue dossiê para a revista Veja, no qual Baumgarten escrevera
que sua morte estava sendo planejada pela alta cúpula do SNI, citando
nominalmente Medeiros e Newton Cruz.
O dossiê mudou os rumos da sucessão presidencial, tirando qualquer chance de
Medeiros. Quem vazou o dossiê sabia avaliar seus efeitos.
O episódio da sucessão de
Figueiredo é ilustrativo das dificuldades da cobertura política, repleta de
intrigas entre os ministros, o que estimulava os mais variados tipos de balões
de ensaio. Boa parte da imprensa imaginava que o candidato escolhido pelo
presidente sairia vitorioso no Colégio Eleitoral — a escolha era feita pelos
integrantes do Congresso, num processo indireto criado pelos militares para
impedir que a oposição chegasse ao Palácio do Planalto.
A chave da sucessão, portanto,
estaria em descobrir quem balançava o coração do presidente, a ser beneficiado
com a máquina oficial. Inicialmente as suspeitas recaíram sobre Medeiros,
depois detonado pelo dossiê. Desfilaram pelas especulações nomes como Mário
Andreazza, ex-ministro do Interior, Aureliano Chaves, Marco Maciel, Costa
Cavalcanti, Rubem Ludwig, Jarbas
Passarinho etc.
Cada assessoria espalhava pela imprensa
supostas evidências de que Figueiredo tinha como predileto seu candidato. No
final, surgiram sólidos indícios de que o presidente queria reeleger-se, daí
não apontar nenhum nome. Acabou dando Paulo Maluf na
P.28
disputa dentro
do PDS, o partido
de sustentação do governo. MaIuf disputou com
Tancredo que, em sua vitória, teve a ajuda de ministros de Figueiredo, entre
eles o influente Leitão de Abreu, chefe do Gabinete Civil. Foi um período rico
de intrigas dentro do governo, já que alguns ministros como Delfim Netto e
Abi-Ackel apostaram em Paulo Maluf, enquanto o então vice-presidente Aureliano
Chaves rompia com Figueiredo e, ao liderar uma dissidência no PDS, viabilizou a
vitória do Tancredo Neves.
Os conflitos surgidos na
equipe de Figueiredo relacionados à eleição repetem-se na maioria dos governos,
em maior ou menor escala. Não há governo em que os ministros não se desentendam
entre si — ou ministros que não se choquem com seus auxiliares. A briga é uma
ótima chance para o jornalista obter preciosas e verdadeiras informações sobre
os bastidores do governo e falhas dos ministros ou do presidente. Quanto mais
brigas, mais informações e vazamentos. Os repórteres ficam atentos para saber
quem está brigando com quem, a fim de obter inconfidências ou documentos.
Durante a gestão José Sarney,
os jornalistas atentos aos bastidores obtinham farto material. O chefe do SNI,
Ivan Mendes, chegou a articular um esquema especial de vigilância em torno do
ministro do Planejamento, Aníbal Teixeira, por suspeita de corrupção — tempos
depois, devido a uma série de reportagens da Folha de S. Paulo, Aníbal Teixeira, já fora do cargo, foi
indiciado por corrupção pela Polícia Federal. O então ministro, sabendo da
vigilância, não falava mais nada de importante nos telefones de seu ministério,
imaginando-os “grampeados”, como, de fato, estavam.
Investigado pela CPI da
Corrupção, formada no Senado para apurar irregularidades no governo Sarney,
Aníbal mostrou até onde podem ir as divergências.. Já longe do Ministério, ele
apon-
P.29
tou “negociatas”, supostamente articuladas no
Palácio do Planalto, mais precisamente pelo genro do presidente, Jorge Murad.
Entraram no tiroteio contra o governo vários ex-ministros: Bresser Pereira,
Dilson Funaro, João Sayad e Marco Maciel. Funaro deixou o Ministério da Fazenda
apontando corrupção no governo, mas sem dar nomes, num procedimento idêntico ao
de Bresser Pereira. Em off,
eles citavam o consultor-geral da República e depois ministro da Justiça, Saulo
Ramos.
Em seu depoimento na CPI da
Corrupção, Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda, disse que havia “corruptos”
próximos ao presidente Sarney. Os senadores pediram nomes e ele não deu,
criando um tumulto na sessão. Parlamentares ligados ao governo consideraram
irresponsável fazer acusações sem nomes e provas. Na intimidade, Bresser
afirmava ter “certeza” de que Saulo Ramos era beneficiário de negócios feitos
pelo governo. “Não posso provar, mas é verdade”, repetia.
Havia, realmente, motivos para a irritação de
Bresser e Funaro contra Saulo Ramos, homem de absoluta confiança de Sarney, que
participou de ambas as “frituras”, espalhando pela imprensa indicações de que o
presidente gostaria de mudar seus ministros. A fritura consistia em ir
“queimando” o ministro até que, sem forças, pedisse demissão. A imprensa
descobria o processo antes mesmo do fritado. Os repórteres com acesso a
assessores do Palácio do Planalto acompanhavam cada lance do desgaste. No caso
de Funaro, que transformou em bandeira a moratória da dívida externa, o sinal
mais nítido de fritura veio quando Sarney determinou a criação de uma comissão
para negociar com os banqueiros internacionais.
O primeiro a ser “fritado” por
Sarney foi Francisco Dornelles, ministro da Fazenda indicado por Tancredo
Neves. O assessor de imprensa do Palácio do Planalto, Fernando Cesar Mesquita,
manifestou por várias vezes, em conversas reservadas com jornalista, restrições
à política econômica de Dornelles. Como Fernando Cesar era íntimo do presidente
e passava, calculadamente, recados, sabia-se que estava em andamento a
derrubada do ministro. Rodeado por repórteres em seu gabinete no Palácio do
Planalto, Fernando Cesar assistia ao Jornal Nacional, na TV Globo,
P.30
quando apareceu
uma entrevista de Dornelles. “Esse sujeito é uma besta”, disse o assessor. Num
estilo mais polido, esta frase foi reproduzida nas colunas de jornal. Até que o
ministro pediu demissão, sentindo-se desprestigiado.
Se as brigas dentro do governo
ajudam na garimpagem de boas informações, elas também são campo fértil para deslizes
dos jornalistas. A rede de intrigas acaba gerando fantasias e “notícias”
destinadas apenas a atrapalhar a vida dos adversários. Delfim Netto ouviu
dezenas de boatos de que iria cair durante o governo Figueiredo — saiu, como se
sabe, no último dia de mandato. Os boatos ocorriam com mais freqüência nas
sextas-feiras, dia em que Brasília está mais vazia e com menos notícias. Quanto
mais vazia a cidade, mais chance de boatos. Os períodos de recesso, carentes de
notícia, são propícios para as chamadas “cascatas”, especulações travestidas de
informação.
Uma guerra de bastidores
dentro do governo Collor, mostrou o campo movediço para os jornalistas, vítimas
das intrigas e, em especial, das informações em off. O governo lançou, em julho de 1990, um programa de
recuperação das estradas federais batizado de S.O.S. Rodovias, inaugurando
efervescente polêmica. As empreiteiras seriam contratadas, de acordo com
decreto elaborado pelo então secretário dos Transportes, Marcelo Ribeiro, sem
licitação.
Quando o decreto saiu no Diário Oficial, logo de manhã
começaram os telefonemas de jornalistas e parlamentares comentando que a
dispensa de licitação era absurda e seria uma fonte inesgotável de suspeita —
Marcelo Ribeiro exercia cargo de direção numa empreiteira antes de se tornar
secretário. De resto, fora indicado pelo empresário Paulo Cesar Cavalcanti
Farias, tesoureiro da campanha de Collor, duto por onde escoavam recursos de origem
suspeita.
P.31
O ministro da Infra-estrutura, Ozires Silva,
superior de Ribeiro, foi ao Palácio do Planalto e, em audiência com Collor,
pediu e conseguiu a revogação do decreto. Mas, em off, o porta-voz da Presidência, Cláudio Humberto Rosa e Silva,
disse a repórteres que Ozires Silva fora ao Palácio do Planalto pedir não a
revogação do decreto, mas sua manutenção — alguns jornais sustentaram essa
versão, que isentava de qualquer responsabilidade Collor e Marcelo Ribeiro.
Dias depois, Ozires Silva
voltou ao Palácio para pedir a demissão de Ribeiro, mas não a conseguiu
imediatamente. Collor queria deixar o assunto esfriar no noticiário, oferecendo
uma saída honrosa ao secretário, que pediria demissão. Mas o porta-voz Cláudio
Humberto insistia, em off, que
o episódio estava superado e Ribeiro prestigiado — essa versão aparecia nas
colunas e nas reportagens da imprensa. Foi montada uma encenação para dar
aparência de que tudo estava bem. Do Palácio do Planalto saíam especulações de
que Ozires poderia cair e não o secretário dos Transportes. Especulações também
publicadas e estimuladas por Paulo Cesar Cavalcanti Farias.
Publicamente, Ozires e Ribeiro
negavam qualquer desentendimento. “É um episódio superado”, diziam. Na frente
das câmaras, eles se abraçavam, distribuindo sorrisos. O resultado é que no
início de agosto Ribeiro pediu mesmo demissão e, mais uma vez, a vítima foi
parte da imprensa, que confiou demais e checou de menos. O fato é que, logo
depois de Ozires pedir sua “cabeça”, Ribeiro confidenciava a amigos que sairia
do governo “inapelavelmente”.
O episódio S.O.S. Rodovias
traz mais ensinamentos sobre o jogo da informação. O decreto de dispensa da
licitação foi baseado num parecer do jurista Hely Lopes Meirelles, apresentado
como resposta à consulta do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem
(DNER). O parecer foi produzido depois que a consultoria jurídica do Ministério
da Infra-estrutura negou aprovação à dispensa de concorrência.
Decidi investigar o parecer
porque o dirigente do DNER, José Amorin, depois indicado para o lugar de
Marcelo Ribeiro, disse-me em on
não ter feito nenhuma consulta ao jurista. Telefonei
P.32
para este, que mesmo adoentado, se dispôs a dar
informações. Perguntei-Ihe detalhes sobre o parecer e, em determinado momento,
ele revelou que o estudo fora encomendado por empreiteiras “interessadas na
obra”. Fiquei espantado com a revelação, mas supus ter entendido mal. Perguntei de novo e
veio a confirmação. Cheguei a dizer como iria redigir a informação, e não houve
nenhum reparo. Aproveitei para tentar saber o nome das empreiteiras
“interessadas” e Meirelles alegou “memória fraca”.
A Folha estampou a revelação, atribuída ao jurista, aumentando a
polêmica. Logo no dia
seguinte, Ozires foi ao Palácio pedir a demissão de Ribeiro. Neste mesmo dia,
de manhã, fontes confiáveis informaram ao jornal que Ribeiro estava preparando
um modo de apresentar o parecer como encomenda do Geipot, órgão de planejamento
subordinado à Secretaria dos Transportes. Ribeiro obteve de Meirelles uma carta
onde afirmava não ter dito o que, efetivamente, disse. Ao mesmo tempo, foi
divulgado pela imprensa um ofício do Geipot encomendando o texto. Recebi, de um
assessor de Ozires Silva, a informação de que o ofício tinha data retroativa.
Entrei em contato com a
direção do Geipot, que se comprometeu a mostrar todos os documentos, em
especial a nota de empenho que autorizava o pagamento. O Geipot não mostrou
nenhum documento, apesar da promessa. Para complicar, semanas depois do
episódio, morreria o jurista Hely Lopes MeirelIes, tornando ainda mais difícil
a obtenção de detalhes sobre o nebuloso decreto de dispensa de concorrência.
Há diferentes modalidades de
manipulação. Não se pode colocar no mesmo saco a defesa esfarrapada de
funcionários corruptos ou desleixados, responsáveis pelo desvio ou má aplicação
dos recursos, e uma declaração sinuosa de um político sobre suas pretensões,
quando negacear faz parte da essência do jogo. O fol-
P.33
clore político
é recheado de
histórias
e lendas enaltecendo, no fundo, a capacidade de
ludibriar — e, portanto, de manipular a informação.
Jânio Quadros notabilizou-se
pela paixão de encenações grandiloqüentes, a fim de obter dividendos
eleitorais. Nos comícios, ele tirava do bolso um sanduíche de mortadela, algo
que não comeria em sua casa. Espalhava imitações de caspa nos ombros do paletó.
Sempre buscando o papel de vítima, inventava doenças. No seu último mandato de
prefeito, ele estava no carro acompanhado de seu antigo amigo, o deputado
Roberto Cardoso Alves, dirigindo-se a uma solenidade. À saída do carro, Jânio
pediu ao amigo que lhe desse o braço para se apoiar. Cardoso Alves estranhou. O
prefeito parecia bem de saúde, não precisava de ajuda para andar. Jânio
explicou: “O povo adora sentir pena dos governantes”.
A condição de vítima é
apreciada pelos políticos brasileiros por render simpatias populares. Quando
Jânio renunciou, acusou “forças poderosas” de se unirem para derrotá-lo e
manter privilégios. Durante sua campanha, Collor também apreciava o roteiro do
perseguido e, ao final dos comícios, esbravejava “Não me deixem só”.
A cena mais dramática e famosa
foi protagonizada por Getúlio Vargas, que vinha sofrendo um violento cerco a
seu governo em 1954, intensificado depois de um atentado contra o jornalista e
líder da UDN, Carlos Lacerda, no qual morreu um oficial da Aeronáutica — Lacerda
teve ferimentos leves. O atentado foi tramado por um auxiliar de Getúlio,
Gregorio Fortunato.
O apoio a Getúlio caía
vertiginosamente, o que favoreceu perda de sustentação na cúpula das Forças
Armadas. Getúlio Vargas suicidou-se deixando carta-testamento, um dos textos
mais importantes da história do Brasil, acusando um monumental complô. No
rastro da carta-testamento, deixou uma infinidade de discípulos, dos quais o
mais conhecido da atualidade é o ex-governador Leonel Brizola. O ex-governador
também gosta de se assemelhar com o seu ídolo político e, freqüentemente, se
apresenta como perseguido dos “opressores”, patrocinados pelo “capital
estrangeiro”.
P.34
Inventar inimigos é um
conhecido truque para angariar apoio popular. Os ditadores argentinos conseguiram
reunir as massas quando invadiram as ilhas Malvinas, pertencentes à
Grã-Bretanha, transformando os ingleses em inimigos. O ditador cubano Fidel
Castro manipula com maestria a ameaça “imperialista”, a fim de auxiliar sua
condição de líder. Os militares brasileiros viam comunistas escondidos em todos
os cantos, justificando-se pelo fato do não-restabelecimento da democracia.
Estabelecida a democracia, ficou nítido que os comunistas eram um monstro de
papel.
Em política, são incontáveis
os truques, renovados a cada dia. Conta o folclore que o falecido presidente
Tancredo Neves, considerado um dos gênios da manipulação política, encontrou-se
no aeroporto de Brasília com o ex-governador e ex-chanceler Magalhães Pinto,
seu rival durante o regime militar — ambos tinham interesses divergentes em
Minas Gerais. Extremamente polidos, eles se cumprimentaram, elogiaram-se
mutuamente. Tancredo perguntou: “Para onde você vai?”. Magalhães, sem titubear,
respondeu: “Vou ao Rio de Janeiro”.
Eles se despediram. Tancredo,
sorrindo, comentou com o jornalista João Emílio Falcão, que o acompanhara ao
aeroporto: “O Magalhães disse que iria para o Rio para eu pensar que ele vai
para Belo Horizonte. Mas acho que ele vai para o Rio mesmo”.
As lendas mineiras atribuem
também a Tancredo um “fato” saboroso. Eleito governador, começaram as
inevitáveis brigas para a escolha do secretariado. O deputado Juarez Batista
sonhava em tornar-se secretário da Agricultura, certamente imaginando vôos mais
altos no futuro. O deputado disse a jornalistas, em off, que Tancredo já o sondara para o cargo. A “notícia”
circulou pelos jornais e o deputado entrou nas costumeiras listas de
“secretariáveis”. Oficialmente, Juarez mantinha-se numa posição dúbia, dando a
entender ter sido possível a tal sondagem. Quando o boato cresceu, o deputado
pediu audiência ao governador eleito: “Dr. Tancredo, a imprensa está falando no
meu nome para secretário. Meus eleitores estão curiosos. O que digo a eles?”.
“Olha Juarez, diz que você foi mesmo
convidado e não aceitou”, respondeu Tancredo.
P.35
Esse caso foi divulgado pelos jornais. Mais tarde descobriu-se que fora espalhado por
inimigos de Juarez Batista, estes também de olho na secretaria e querendo
desmoralizar o adversário. Esse mesmo roteiro já teve como personagens outros
políticos mineiros, como José Maria Alckimin e Juscelino Kubitschek.
Estudar história serve como
mais uma arma do arsenal para se enfrentar o dia-a-dia da cobertura política.
Os leitores ficariam espantados se pudessem constatar que não poucos repórteres
atuando no Congresso são desprovidos de conhecimentos básicos sobre a história
recente do Brasil. Tal carência coloca-os ainda mais vulneráveis diante da
sofisticação do jogo político, já que é fundamental conhecer a biografia dos
personagens e a evolução de idéias e instituições.
A lenda sobre o caso Juarez
Batista não se limita ao humor. Um dos momentos mais propícios ao lançamento de
“balões de ensaio” é durante a época de escolha e substituição de auxiliares de
presidentes ou governadores. A imprensa dá espaço às mais variadas especulações
sobre os ministeriáveis ou Secretariáveis. Fazem-se profundas análises a
respeito das cotações de cada um, dissertam-se sobre as forças políticas ou
atributos técnicos dos pretendentes. É comum que as “cotações” sejam vazadas
por assessores próximos do presidente ou do governador para medir a reação em
torno dos nomes.
Tancredo Neves tinha o hábito
de criar confusão para a escolha de seus auxiliares. Eleito presidente, viajou
à Europa e aos Estados Unidos. Antes, porém, espalhou através de seus amigos os
nomes dos possíveis ministeriáveis. Ele confidenciaria que se tratava de uma
estratégia para medir as reações políticas. “Vamos deixar as ondas baterem e
depois analisar a espuma”, justificava.
Os pretendentes ao cargo
conhecem as regras do jogo. É normal que eles se auto-candidatem para algum
cargo executivo, uti-
P.36
Iizando os jornais. Basta uma nota
numa
coluna prestigiada da imprensa para o nome entrar na cobiçada lista de
cotações. De repente, o candidato “bicão” ganha adeptos, arregimenta aliados e
passa, efetivamente, a entrar nas especulações do presidente.
O deputado Roberto Cardoso
Alves sonhava em ser ministro da Agricultura de Tancredo Neves. Apareceu nas
cotações, apenas da imprensa. Ele dizia em off, para jornalistas, apoiado por seus amigos próximos ao
presidente eleito, ter chance — mas não tinha. Tancredo Neves, seguindo a
lógica de sua costura, unindo retalhos das forças que o apoiaram, achava
Cardoso “inadequado” por ser proprietário de fazendas, o que irritaria as
esquerdas.
A assessoria do presidente Fernando Collor
fez vazar, logo depois de sua vitória nas urnas, o balão de ensaio chamado José
Serra. Ele tinha interesse, de fato, em colocar Serra, parlamentar do PSDB, em
seu governo — e deixou o nome flutuando. Houve resultados: importantes
empresários paulistas aderiram à idéia, patrocinando a indicação. Mas uma ala
do PSDB, notadamente o senador Mário Covas, disse que não, ameaçou até mesmo
sair do partido, alegando que acabara de subir no palanque do candidato do PT,
Luis Inácio Lula da Silva. A incoerência, segundo ele, mancharia sua imagem.
Acabou, como todos sabem, dando Zélia Cardoso de Mello.
Houve tantas especulações em
torno de quem seria ministro de Collor que se produziu uma cena tão insólita
quanto engraçada. Em fevereiro de 1990, chegou ao “Bolo de Noiva”, o prédio
anexo ao Itamaraty onde o presidente preparava seu plano de governo, o
ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Eliseu Alves.
Era um dos cotados para assumir o Ministério da Agricultura. Sua presença, ali,
já acompanhado de assessores, para conversar com Collor movimentou os
repórteres — certamente estava escolhido. Se alguém lhe perguntasse, ele
negaria, mas tinha certeza de que fora indicado para o cargo. Ele fora chamado
pelo embaixador Marcos Coimbra, depois feito secretário-geral da Presidência,
e, imediatamente, tomou um avião de Belo Horizonte, onde estava.
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Dirigiu-se para a sala de Marcos Coimbra e, para sua surpresa, descobriu que não havia
nenhuma audiência marcada com o presidente — e nem Coimbra sabia quem o
convidara para ir ao “Bolo de Noiva”. Era um trote. Uma voz se apresentara como
sendo a do embaixador e ele simplesmente acreditou. Esse mesmo trote foi
passado no deputado Alysson Paulinelli que, desconfiado, checou e evitou o
vexame.
O ex-presidente da OAB,
Bernardo Cabral, passou por situação parecida. Cauteloso, Tancredo fazia
convites indiretos para, numa eventualidade, poder voltar atrás. Ele fez saber
ao então governador do Amazonas, Gilberto Mestrinho, seu aliado na campanha
presidencial, que estava firmemente propenso a escolher Bernardo Cabral para o
Ministério da Reforma Agrária.
Foi uma cotação alta. Tão alta
que Adolfo Bloch, dono
da rede Manchete, preparou em Brasília um solene jantar com os “futuros”
ministros da chamada “Nova República”. Via-se, sentado à cabeceira de uma
imensa mesa, Bernardo Cabral. Mas, ao contrário dos demais, não parecia feliz.
Estava carrancudo, visivelmente deprimido. Horas antes do jantar houve mudança
de rota. Fora escolhido para seu lugar o advogado Nelson Ribeiro. Em
compensação, Cabral foi escolhido, cinco anos depois dessa cena constrangedora,
ministro da Justiça.
A manipulação é tão comum na
cobertura da área econômica do governo quanto ouvir declarações de que a
inflação vai cair. O economista José Serra gosta de repetir um antigo
ensinamento de profissão: “É importante estudar economia, no mínimo para não
ser enganado pelos economistas”. Os ministros acreditam que, por “patriotismo”,
não podem ser totalmente transparentes
— o que, até certo ponto, é correto.
O ex-ministro da Fazenda,
Mailson da Nóbrega, se recusava sistematicamente a fazer projeções sobre a taxa
de inflação, ape-
P.38
sar de ter em
mãos índices seguros sobre qual seria o índice ao final do mês. “A previsão se
transforma em piso mínimo dos preços”, argumentava. Ou seja, se o ministro fala
que a inflação do próximo mês será 20%, os empresários reajustam seus preços
com base na estimativa oficial. O ministro se torna um estimulador da inflação,
que deve, como missão primeira, combater. Por isso a vocação de ministros da
área econômica de esbanjarem otimismo em público.
A inflação tem inegáveis
ingredientes psicológicos. Os empresários suspeitam por algum motivo de que os
preços vão subir. Para se prevenirem contra perdas, sobem o preço de seus
produtos — e, aí, a inflação sobe mesmo. Muitos ministros ficam irritados ao
ler previsões sombrias nos jornais, culpando a imprensa pelas expectativas
pessimistas e, portanto, pelo crescimento da crise. Essa acusação não é
integralmente errada. A questão é que se os governos não gastassem mais do que
recebem, emitindo moeda, a inflação teria
bem
menos motivos para subir.
Mas o otimismo exacerbado
também faz mal. Durante o Plano Cruzado, o país vivenciou uma extraordinária
euforia. Os índices de aprovação do presidente Sarney ultrapassaram os 90%, de
acordo com pesquisas de opinião. O salário aumentava, o crescimento da economia
era vertiginoso, mas os preços estavam congelados.
Boa parte da imprensa se
encantou com a euforia, deixando de dar ênfase a discussões de bastidores
indicando que o sonho iria logo acabar e viria o pesadelo de quem esbanjou
demais. Terminadas as eleições de novembro, quando se elegeram governadores e
parlamentares federais, a inflação retornou em alta velocidade. Algo que talvez
fosse evitado se o governo realizasse como deveria os devidos reajustes no
plano. O mais importante trabalho jornalístico sobre os bastidores do Plano
Cruzado foi escrito em livro por Carlos Alberto Sardenberg, na época assessor
de imprensa do ministro do Planejamento, João Sayad. Ali, ele conta com riqueza de detalhes que os
técnicos vislumbravam a crise futura devido à falta de ajustes, como o
descongelamento paulatino dos preços.
Os congelamentos serviram para
criar graves problemas às equipes econômicas — entre eles o de irradiar boatos.
Basta um
P.39
leve sinal,
uma tênue suspeita, surgem boatos de congelamento de preços. Apavorados, os
empresários correm para reajustar seus produtos à espera da medida — e, como é
óbvio, a inflação sobe. De pouco adiantam as negativas das autoridades, porque
a regra do jogo manda que nunca se devem confirmar antecipadamente medidas
drásticas.
Também é verdade que o contato
de décadas e mais décadas com a subida contínua de preços tornou o brasileiro
mais propenso a acreditar sempre no pior. Tal sentimento foi estimulado por
três sucessivos fracassos evidenciados desde a gestão de Figueiredo, chegando à
chamada “Nova República”, através dos planos Cruzado, Bresser e Verão, que
impuseram congelamento. Depois do alívio temporário, o ritmo da carestia
voltava a pleno vapor.
Quando assumiu o Ministério da
Fazenda, Mailson da Nóbrega pegou a economia tumultuada. Passou a maior parte
do tempo de suas entrevistas atacando o congelamento, classificando-o de
ineficaz. Tanto falou que acabou convencendo. O próprio Ministério espalhou o
boato de que se o presidente Sarney tentasse um choque, Mailson pediria
demissão.
Conversava freqüentemente com
o ministro Mailson e sempre ele enfatizava que o choque seria um desastre. Não
parecia dissimulado, olhava fixo no olho, passando a impressão de extrema
sinceridade. Eu saía dos encontros impressionado, duvidando das informações que
recebia de outras fontes, de que viria mesmo o congelamento. Mas desde que
Mailson entrou no Ministério, deslanchou a preparação em segredo do
congelamento, que seria, no seu entender, a única saída para tirar a inflação
de um patamar elevado.
O despiste faz parte da regra
do jogo. Os assessores de Bresser Pereira divulgavam pelos bastidores
documentos aos jornalistas indicando, através de números, por que um
congelamento daria errado. Eu mesmo recebia esses documentos. Eram números
convincentes. Mas veio o choque e um assessor que liberava esses documentos me
chamou em sua sala e, num rasgo de sinceridade, confirmou a contra-informação.
Mostrou, então, todos os números com os quais a equipe econômica trabalhava.
P.40
A ministra Zélia Cardoso de Mello seguiu o mesmo
roteiro. Negou o quanto pôde que seria decretado congelamento de preços.
Conseguiu até mesmo convencer alguns repórteres, que se dispunham a fazer vazar
informações de assessores para embaralhar convicções. Veio mesmo o
congelamento, apresentado com o pomposo nome de prefixação zero. “A sociedade
rejeita esse tipo de mecanismo. Nunca pensamos em aplicá-lo. É invenção da
imprensa”, repetia Zélia. Também era “invenção da imprensa” a decretação de
feriado bancário, preparatório para o choque, nos últimos dias do governo
Sarney.
Dias antes do choque, a
ministra Zélia deu entrevista coletiva e os repórteres queriam saber se haveria
mexida nas aplicações financeiras. Foi-lhe perguntado onde deixava seu
dinheiro. A resposta foi rápida e direta: “No over”. Muita gente raciocinou que o over, aplicação por um dia realizada pelos bancos, estava
garantido. Não estava. Evidente que se a ministra viesse a público dizendo que
mexeria no over, na poupança e
conta-corrente os bancos não suportariam a corrida e faliriam.
Não é fácil manter segredos
como esses por muito tempo, por envolverem poderosos interesses. Os jornais
percebem estranhas movimentações e ficam de antenas ligadas. Para se aplicar um
choque é preciso chamar cada vez mais gente a fim de detalhar os decretos,
portarias, projetos. Os assessores têm namoradas, esposas, filhos, amigos, e
são capazes de inconfidências. Pelas salas de reuniões passam secretárias e
contínuos. De resto, depois que se inventou a máquina xerox, manter segredos
tornou-se ainda mais difícil. É atribuída a Golbery a suposição de que sempre
alguém tem um grande amigo, numa cadeia interminável de confiança — portanto, o
sigilo mais cedo ou mais tarde acaba se desfazendo.
Existe uma ilustrativa
história entronizada na lenda política. Um correligionário aproximou-se de
Tancredo Neves, a fim de contar uma inconfidência, ressalvando: “Dr. Tancredo,
vou-lhe contar um segredo mas, pelo amor de Deus, não conte para mais ninguém”.
Tancredo ponderou: “Meu filho, é melhor não contar. Se você, que é dono do
segredo não consegue guardá-lo, imagine eu”.
P.41
O governo Collor conseguiu
entrar na história do despiste aos jornalistas. Quando foi eleito, ele apressou
seu plano econômico contra a inflação, que ultrapassava os 80% ao mês. A imprensa
tentava descobrir os detalhes do plano numa feroz disputa pelo furo. A cada dia
saíam especulações sobre as prováveis medidas, dividindo-as em três categorias:
idéias totalmente aceitas,
parcialmente aceitas ou em estudo. Para o futuro governo era vital que se
mantivesse o segredo. Num jogo de contra-informação, espalhavam-se pistas
erradas, muitas delas publicadas pela imprensa. Um lance, em particular, foi
contundente.
Recrudesceram notícias sobre o
que viria no Plano Collor. Zélia Cardoso de Mello, ainda não escolhida
oficialmente ministra, mostrou-se abatida diante dos repórteres. Chegou a dizer
que não seria indicada para o Ministério devido ao vazamento de importantes
informações, o que atestaria incompetência para guardar segredos. O sinal parecia
nítido: acertara-se em cheio nas descobertas das informações sobre o pacote.
Esse abatimento, porém, foi programado com o próprio Collor, a fim de dar a
impressão de que aquelas notícias estavam corretas.
Conclusão: ninguém publicou
que o governo iria confiscar as cadernetas de poupança, os saldos em
conta-corrente, as aplicações no overnight.
Se essa notícia fosse estampada, a correria aos bancos seria inevitável. O
despiste funcionou plenamente, embora se diga que um grupo seleto sabia do que
viria e sacou dinheiro na boca do caixa, o que motivou uma investigação
comandada pelo senador Jamil Haddad, do PSB do Rio de Janeiro. Há suspeitas de
que um seleto grupo de amigos de Collor, reforçando a máxima atribuída a
Golbery, sabia da essência do pacote, e salvou suas economias. Tal assunto
rende versões, fofocas e desconfianças — boatos ou não, comprovou-se através de
documentos que o governador de Alagoas, Moacir Andrade, amigo de Collor, tirou
uma boa quantia de um banco.
P.42
Brasília é uma cidade propícia
à rápida propagação de versões, fofocas e boatos. A escala social é demarcada a
partir de uma linha divisória: quem manda ou quem não manda. E, em seguida,
quem manda pouco ou quem manda muito. A informação é uma das formas de ostentar
posição privilegiada. Presume-se que quanto mais poder alguém desfruta, mais
informações tem. É esperado que o presidente tenha mais dados do que o ministro
da Economia, que, por sua vez, deve dispor de mais informações do que seus
assessores.
E um dos motivos que faziam do
chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) um ser quase mitológico,
admirado e temido por seu suposto incomparável grau de manipulação, sobretudo
por ter o hábito de escutar, grampear telefones, abrir cartas indevidamente ou
captar mensagens de telex. O chefe do SNI estava em invejável posição na escala
social de Brasília. A busca de aparentar prestígio impulsiona algumas pessoas a
se mostrarem bem informadas e aí é preciso mostrar que se está “por dentro” dos
detalhes da Corte.
Qualquer jornalista de
Brasília conhece dezenas de fofocas sobre a vida privada dos governantes,
marcadas por lances de aventura e arrebatamento. Quando a ministra Zélia
Cardoso de Mello anunciou que estava apaixonada, sem, porém, revelar o nome,
acendeu a curiosidade do país. Não faltaram, em Brasília, fontes “confiáveis”,
jurando saber quem era o namorado misterioso. E davam detalhes sobre os
encontros sigilosos, as tramóias armadas pelos namorados para fugir da
imprensa. Vazou-se por colunas da imprensa que a paixão da ministra chamava-se
Bernardo Cabral, ministro da Justiça. A suspeita surgiu depois que ambos foram
vistos jantando num restaurante em Nova York. Casado, Cabral via-se forçado a
dar constrangedoras explicações a seus amigos e familiares.
A vida particular de Collor
também despertou um vendaval de fofocas — isso porque ele passou sua
adolescência em Brasília, onde teve namoradas e amigos. Não era um adolescente
reca-
P.43
tado: ao contrário, adorava farras e festas. E
suas predileções notórias serviram como usina de “informações” sobre
particularidades sexuais do adolescente Collor. Os comentários vinham
salpicados por insinuações sobre drogas, vazadas sutilmente pela imprensa
durante a campanha eleitoral.
Fisgados pelas insinuações,
assessores do PDT e PT buscavam, sigilosamente, provas que mostrassem
envolvimento com drogas do então candidato do PRN, para utilizar durante a
campanha. Era uma das bombas imaginadas para tentar detonar o crescimento de
Collor nas pesquisas de opinião pública. O PDT, de Leonel Brizola, conseguiu
apenas mostrar um vídeo exibindo que Collor foi padrinho de casamento de um
empresário de Alagoas, preso por consumo e tráfico de drogas — o que, a rigor,
nada indica. Ninguém pode ser culpado pelas suas amizades.
Collor tinha pleno conhecimento
de todas essas insinuações, considerando-as negativas para sua imagem. Pouco
tempo depois de assumir a Presidência, ele lançou uma campanha de combate às
drogas. Nas suas corridas dominicais, ostentava na camiseta slogans contra o vício. Os repórteres
sabiam o que estava por trás, mas não se podia fazer uma notícia calcada numa
suspeita.
A maior vítima da invasão de
vida privada não foi Collor, mas seu rival, Luis Inácio Lula da Silva. A assessoria de Collor estava espantada com
a queda nas pesquisas no segundo turno eleitoral. A equipe “collorida” decidiu
levar ao vídeo um contundente depoimento de uma ex-companheira de Lula. Mirian
Cordeiro contou detalhes de sua vida íntima com o candidato do PT, afirmando
que fora forçada, sem sucesso, a fazer um aborto. O depoimento indignou as
pessoas mais esclarecidas, que o consideraram de “baixo nível”, mas, a julgar
pelo crescimento da candidatura do PRN, teve efeito positivo.
O jornalismo sério não deve
invadir a vida privada. A rigor, é irrelevante saber se o ministro é
homossexual, se o chanceler tem caso com suas secretárias ou se o presidente
namora atrizes de televisão. A vida particular, entretanto, ganha importância
caso o namoro do presidente com a atriz interfira na administração pública. Ou
porque ele esqueça seus afazeres ou por empregar parentes e amigos de sua
amante. Foi o caso do ex-presidente João
P.44
Figueiredo, que mantinha encontros, desde os
tempos em que era chefe do SNI, com uma jovem — esse relacionamento tinha como
comprovação fitas gravadas. Por conta desse namoro, ela ganhou um emprego no
SNI, apesar de não ter qualificação. Tempos depois, o affair veio à tona: Edine Macedo, a ex‑amante, processou
Figueiredo, exigindo pensão para o filho.
É difícil, entretanto,
delimitar com precisão onde acaba e começa a vida particular de um homem
público. E notório que o ex-presidente Jânio Quadros cultivou por anos e anos
uma paixão etílica — ou seja, o prazer pela bebida. A imprensa sempre
escancarou esse prazer. No caso, é relevante, já que uma pessoa tomada pelo
álcool é capaz de agir longe do bom senso. Não são poucos analistas que viram
na renúncia de Jânio Quadros à Presidência o efeito de possíveis bebedeiras.
Até hoje, aliás, ele não explicou direito por que deixou o governo.
O problema é que, muitas
vezes, a atividade das pessoas na horizontal é capaz de explicar o que fazem na
vertical. O relacionamento pessoal dos homens públicos é, em várias ocasiões,
capaz de desvendar enigmas políticos ou administrativos, como promoções ou
ferozes inimizades passadas. O problema também é que dificilmente se consegue
provar contatos travados em alcovas. Nessa área é ainda mais difícil
diferenciar o que é informação e pura intriga, capaz de levar uma suposta
notícia a provocar estragos irreparáveis numa família, vazada com objetivos
inconfessáveis, motivados pelas brigas do poder.
Em junho de 1989, publiquei na
Folha uma série de reportagens
sobre desvios de recursos no Ministério das Relações Exteriores, depois
transformada em livro intitulado Conexão
Cabo Frio. As falcatruas eram cometidas pela Fundação Visconde de Cabo
Frio, subordinada ao Ministério, envolvendo a cúpula da diplomacia brasileira.
Sentia-me diante de um hermético quebra-cabeça — as peças pareciam não se
encaixar. Eu era municiado de dados e documentos por uma fonte que não se
identificava, temia que o telefone estivesse grampeado. Nem ele sabia como
encaixar as peças.
Passadas várias semanas de
investigação, esbarrei na vida pessoal de personagens da reportagem, descobrindo
detalhes explo-
P.45
sivos. Essas descobertas, confirmadas por
fontes confiáveis, mas impossíveis de serem provadas, davam nexo a partes
nebulosas da “Conexão Cabo Frio” — era então possível levantar pelo menos
suspeitas sobre por que determinada pessoa conseguira ocupar determinada
posição. Nada escrevi nas reportagens nem no livro, embora me sentisse
sonegando dados que supunha relevantes.
Reportagens que implicam
abalos em carreiras são pântanos de contra‑informação, deixando seus
autores próximos de risco de processos por calúnia, injúria ou difamação.
Quando a primeira reportagem é publicada, os desafetos da pessoa apontada por
deslizes telefonam para o jornal, dando pistas, a fim de se vingarem. Recebi
cartas anônimas, durante a investigação sobre o caso Cabo Frio, que serviríam
de matéria-prima para emocionantes obras de ficção, a maioria delas movidas a
pura intriga e invencionice. O repórter corre sério risco de se tornar vítima
de manipulações e, quem sabe, de processos na Justiça.
Os jornalistas que se envolvem
nesse tipo de cobertura, onde os personagens são obrigados a usar o segredo a
fim de não serem presos ou processados, tendem a obter um número considerável
de dados impublicáveis, apesar do convencimento de sua veracidade. A prova é
indispensável. Sempre saí insatisfeito de minhas reportagens sobre corrupção
por não ter angariado documentos ou testemunhos oficiais capazes de esgotar a
investigação.
Ao transformar em livro alguns
desses trabalhos, como Conexão Cabo
Frio e A República dos Padrinhos queria aprofundar o papel de cada
personagem, detalhando seu perfil psicológico, agora livre da pressão do
tempo, ou seja, do “fechamento” diário de cada edição do jornal, e do espaço
reduzido das matérias. Os textos publicados durante os meses de investigação
se prestavam como matéria‑prima para uma nova escultura, adaptando-se à
linguagem do livro‑reportagem. Tinha mais tempo disponível para conversar
com as fontes, aproveitando certo distanciamento dos fatos, o que me propiciaria
mais frieza e clareza na evolução das descobertas.
O livro-reportagem aperfeiçoa
a linguagem jornalística, vítima da pressa, ingrediente inexorável na apuração
e publicação
P.46
diária ou mesmo semanal das notícias. Mesmo
assim, os livros amenizavam, mas não eliminavam a minha insatisfação, já que
perduravam informações não publicáveis pela falta de confirmação, só possível
se o personagem confessasse culpa.
Esse limite chegou ao extremo
numa reportagem que realizei sobre o assassinato de crianças no Brasil, por
grupos de extermínio, como “justiceiros” ou “esquadrões da morte”. Iniciada na
Folha, a investigação
transformou-se num livro intitulado A
Guerra dos Meninos, lançado em abril de 1990. Os grupos de extermínio
têm vinculações diretas ou indiretas com a polícia, o que lhes garante
cobertura e impunidade. As testemunhas de assassinatos têm medo de falar. Com
razão: a represália é mais do que previsível. A “queima de arquivo”, ou seja,
eliminar quem fizer inconfidências, é algo corriqueiro nesse ambiente devastado
pela violência. Não pude publicar o envolvimento de vários policiais ou de
assassinos porque as testemunhas não assumiram a acusação.
Realizada em viagens por
várias cidades brasileiras, a investigação para a produção de A Guerra dos Meninos deu-me mais uma
lição. Ao embrenhar-me nos ambientes contaminados por uma guerra civil não
declarada, percebi como estava distante da realidade brasileira, acostumado aos
gabinetes refrigerados de Brasília e às intrigas da Corte. Não é um mal apenas
de Brasília, apelidada de “ilha da fantasia”.
O distanciamento da realidade
ataca todos os jornalistas que, forçados pela setorização, acabam criando
viseiras na cabeça. O setorismo é um dos vícios da capital federal. Repórteres
dedicam-se a coberturas localizadas, passando seus dias de trabalho nos prédios
da Câmara dos Deputados, do Senado, do Palácio do Planalto, do Ministério da
Economia ou Banco Central, tendendo a perder a noção do conjunto. De resto,
estão ainda mais vulneráveis ao fontismo, já que dependem dos humores de
assessores que fazem a triagem de quem merece ou não receber informações em on ou off.
Quando tinha funções
executivas na direção da sucursal de Brasília, tentei acabar com o chamado
“setorismo”. Foi uma vitória parcial. É impossível extingui-lo, já que se
precisa estar
P.47
sempre em determinados prédios. Do contrário, o
jornal vai deixar de dar informações valiosas. O repórter precisa também ter
um conhecimento mínimo dos assessores, ministros, parlamentares. O rodízio periódico
é uma saída que, apesar de insatisfatória, aproxima-se do meio-termo.
A corrupção também passa pela
rota do boato e da intriga. Brasília é cenário de abundantes e sofisticadas
negociatas. São conhecidas dezenas e mais dezenas de modalidades de como usar
os recursos públicos para enriquecimento ilícito — entre elas, a venda de
informação. Saber que o governo vai desvalorizar a moeda pode enriquecer o
depositário da informação do dia para noite. Se tiver dados mostrando a
descoberta de novos poços, vai fazer um bom negócio aquele que comprar ações
da Petrobrás. Não faltam concorrências fraudadas e distribuição de propinas
para a compra de produtos ou escolha de fornecedores pelo governo. Não menos
sabido é que empresários, principalmente empreiteiras, colaboram em campanhas
políticas aguardando retorno do investimento.
Em tom de ironia, o
ex-ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen chegou a propor a criação
do Fundo Nacional de Corrupção para ajudar o país. O orçamento da União
preveria uma verba destinada apenas a pagar comissões. Quando um funcionário
público propusesse uma obra ou projeto desnecessário e suspeito, o responsável
pelo “Fundo” lhe perguntaria: “Quanto você vai ganhar nessa obra?”. Assim,
seria paga a comissão e o país ficaria livre da obra, o que sairia mais em
conta para os cofres públicos.
O ex-ministro do Planejamento,
Aníbal Teixeira, gostava de contar uma piada que ilustra bem como a corrupção,
de tão corriqueira, se incorporou ao folclore nacional. Deus e o Diabo decidiram
fazer uma ponte entre o céu e o inferno, num prazo de
P.48
trinta dias. Cada qual faria um
trecho. No prazo marcado, Deus não cumpriu sua parte e o Diabo perguntou,
perplexo: “O que aconteceu?”. A resposta de Deus: “Não consegui encontrar no
céu nenhum empreiteiro”.
Diante deste tipo
de reportagem, o repórter tem de tomar uma cautela básica e óbvia. É
obrigatório tentar ouvir sempre o acusado, a fim de lhe garantir o direito de
resposta. É fácil manchar a honra de uma pessoa. Suponha-se que alguém publique
insinuações, sem fundamento, de que determinado ministro comete estelionato,
sem ouvir sua versão. No dia seguinte, ele dá sua resposta, mas já em
desvantagem, pois vai ter que rebater uma afirmação apresentada como
verdadeira.
Quando se tenta
demolir um adversário, a acusação de “ladrão” é das mais eficazes. O estigma
de “corrupto” acompanha Paulo Maluf, a tal ponto, que “malufar” era, em tom de
brincadeira, empregado como sinônimo de roubar. O fato, entretanto, é que
jamais foram apresentadas provas de que o ex-deputado se apropriou de recursos
públicos — não significa que não tenha cometido ou sustentado falcatruas. Seu
sucessor no governo de São Paulo, Franco Montoro, prometeu uma devassa e nada
comprovou. Mesmo assim o estigma acompanhou Maluf em suas campanhas
eleitorais, influindo nas sucessivas derrotas nas duas disputas presidenciais,
na tentativa de reeleição para governador e, depois, prefeito de São Paulo.
A última eleição
indireta para presidente serviu como mais um exemplo da força das versões e do
poder devastador das suspeitas de corrupção. A maioria dos jornais e, em
especial, dos jornalistas, entusiasmou-se com a candidatura Tancredo Neves —
ele era visto como uma reação ao regime militar. A principal acusação contra
Maluf, largamente difundida, era de que estava “comprando” os delegados do
Colégio Eleitoral, oferecendo-lhes vantagens e cargos no seu governo. Essa
troca era rigorosamente verdadeira. Mas Tancredo Neves agia do mesmo jeito,
barganhando favores, ministérios, embaixadas, diretorias de bancos, estatais.
Chegou ao ponto de oferecer um único cargo a mais de cinco pretendentes. Mas o
grosso da imprensa fechou os olhos. Maluf fazia negociatas, Tancredo, “costura
política”.
P.49
A comprovação de desvios de
recursos e corrupção é dos trabalhos jornalísticos mais delicados. Se um
político ou ministro for flagrado numa mentira ou contradição, sua carreira
pode até sofrer abalos, mas não termina. Provado que desviou recursos para seu
enriquecimento, ele pode até não ser punido pela polícia ou julgado pela
Justiça, mas sua carreira estará seriamente comprometida. Por isso as
falcatruas são, em geral, sofisticadas, e seus mentores não costumam deixar
rastros.
Suponha-se que um funcionário
público auxilie na aprovação de uma obra desnecessária. O dinheiro clandestino
recebido pela “ajuda” não será depositado em sua conta-corrente, mas será usado
como fachada um parente ou amigo. Ou até mesmo, como é freqüente, o depósito
vai para conta no exterior. Quem pagou a propina não confessa, pois também
estaria incorrendo em crime. Denunciar a obra supostamente desnecessária
significa entrar numa discussão não penal, mas administrativa, e os acusados
sempre disporão de bons argumentos técnicos para justificar um desperdício
com dinheiro público, capaz até mesmo de embaralhar a convicção dos
jornalistas. Os picaretas costumam ser muito convincentes e fluentes.
É um nítido absurdo dispensar
de licitação a escolha de empreiteiras, como ocorreu no projeto S.O.S.
Rodovias, com o custo calculado em US$ 500 milhões — as suspeitas são tão
inevitáveis como imediatas. Mas o então secretário dos Transportes, Marcelo
Ribeiro, sustentou a medida, alegando que as estradas brasileiras estavam em
péssima condição, provocando inclusive mortes, o que é verdade. Assim, as
obras de melhoria eram urgentes — foi a base da argumentação do parecer de Hely
Lopes Meirelles.
O encadeamento dos fatos
provoca, por si só, as suspeitas. Antes de assumir a secretaria dos
Transportes, Marcelo Ribeiro era diretor de uma empreiteira, a Tratex. Chegou
ao cargo pelas mãos do caixa da campanha à Presidência, o empresário Paulo
Cesar Cavalcanti Farias, que arrecadava dinheiro às escondidas
P.50
durante a campanha. Detalhe: Paulo Cesar é um
ilustre integrante da “lista negra’’ do Banco Central, apontado como envolvido
em fraudes com incentivos fiscais.
O ilícito da dispensa de
licitação estaria de fato comprovado se documentos ou testemunhas indicassem
que as empreiteiras deram dinheiro para a campanha e, agora, estavam cobrando,
através de obras como a melhoria das estradas federais. Nada fácil — mesmo
porque dinheiro em campanha ia para fundos ao portador, que não exigem
identificação.
Quem acompanha os bastidores
do poder sabe que as empreiteiras fazem acertos antecipados, fraudando
concorrências. Reúnem-se as empresas e distribuem as obras públicas que vão
realizar pelo país — a partir daí, estabelecem os preços que vão apresentar nas
licitações. Tarefa árdua provar esse acerto, proibido por lei. Mas a imprensa
tem conseguido superar as dificuldades.
Uma das reportagens de maior
impacto sobre negociatas de empreiteiras foi feita pelo jornalista Jânio de
Freitas, na Folha de S. Paulo,
em 1987. Ele recebeu informação de que empresas se acertaram para a construção
da ferrovia Norte-Sul, em 1986. Antecipou o resultado publicando-o na seção de
classificados do jornal. Quando saiu o resultado oficial, conferindo com a
informação obtida, o jornal estampou a fraude na primeira página, gerando a
anulação da concorrência. Desde então, tem sido comum denúncias de fraudes de
concorrências públicas, com a publicação prévia dos resultados.
Nas reportagens de corrupção,
a melhor saída é municiar-se de documentos — eles não precisam ser publicados,
mas serão o escudo do repórter em caso de investidas dos envolvidos em irregularidades.
Mesmo com documentos cristalinos, porém, os envolvidos reagem, numa tática —
correta, aliás — de embaralhar a discussão e dar margem aos advogados de defesa,
que costumam desencavar argumentos convincentes para mostrar que o negócio
realizado era regular ou legal.
Daí ser imprescindível o
repórter manter uma azeitada agenda com nomes de especialistas em
Contabilidade, Direito e Economia, capazes de ajudá-lo a enfrentar os
articulados argumentos
P.51
da defesa do envolvido em falcatruas. Nenhum
jornalista pode ter profundos conhecimentos sobre áreas tão diferentes como legislação
do mercado financeiro, das concorrências públicas, passando pelos truques de
contabilidade.
A série de reportagens sobre
os desvios no Ministério do Planejamento, ocupado por Aníbal Teixeira,
batizada de “A lista da fisiologia”, transformada depois no livro A República dos Padrinhos, foi
essencialmente apoiada em documentos — a começar pela lista de favores feitos
a parlamentares favoráveis ao mandato de cinco anos do presidente. Eram
transferidos recursos a fundo perdido (sem volta) para prefeituras, governos
estaduais, municipais e entidades de assistência privada. A lista era oficial,
extraída dos computadores do Ministério do Planejamento.
No decorrer da investigação,
obtive documentos mostrando que um primo de Aníbal Teixeira beneficiava-se da
liberação dos recursos. Ele propunha obras às cidades interessadas nos recursos
a fundo perdido. O prefeito interessado deveria contratar a sua empresa de
projetos, para ter o dinheiro em mãos. Documentos mostraram que o tal primo
era funcionário público, lotado no gabinete de Aníbal. Obtive sua ficha
funcional. Mas Aníbal Teixeira insistia que seu primo nunca trabalhara no Ministério.
Em 1990, descobri documentos
que mostravam desfalques feitos na Vasp, a partir de seu escritório de
Brasília. O então gerente financeiro do escritório, Donizete dos Santos,
recebia pagamentos e, ao invés de mandá-los imediatamente para a matriz em São
Paulo, depositava-os em contas particulares, rendendo juros e correção
monetária. Depois de várias semanas, Donizete mandava o dinheiro à matriz. Os
documentos eram cristalinos. Donizete foi indiciado pela polícia por
estelionato, mas continuou alegando inocência.
Assim foi com o caso do rombo
no Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), dirigido pelo ex-deputado
Gustavo Faria, do Rio de Janeiro. Coletei pilhas de documentos mostrando que o
deputado patrocinou a aplicação lesiva dos recursos do IPC, que administra a
pensão dos deputados e senadores. Tais documentos serviram para que auditorias
do Congresso e do Tribunal
P.52
de Contas da União também apontassem
irregularidades. Formou-se uma comissão de deputados para apreciar as acusações
e chegaram à conclusão de que Gustavo Faria era responsável pelos desvios,
sugerindo a cassação de seu mandato por falta de decoro parlamentar. Antes da
cassação, ele renunciou, mas continuou alegando que era vítima de uma
conspiração.
A tarefa do jornalista é
distinguir entre as versões e os fatos reais, separar denúncias de calúnias,
notícias de invencionices. Não existe um único jornalista, por mais experiente,
que não tenha escorregado em “plantações” — informações falsas destinadas a
gerar efeitos favoráveis ou negativos a pessoas ou grupos.
Os jornalistas que foram
espectadores privilegiados dos bastidores do governo também se atrapalham com
a multiplicidade de versões. Assessor de imprensa do presidente Arthur da Costa
e Silva, o jornalista Carlos Chagas produziu uma das reportagens mais
importantes sobre brigas durante o regime militar. Na condição de assessor,
ele acompanhou em profundidade a guerra nos quartéis pela sucessão de Arthur da
Costa e Silva, que sofreu um derrame e ficou paralisado. Chagas admite que,
apesar de estar no centro dos acontecimentos, sua reportagem, depois transformada
em livro, era uma visão parcial — imagine-se, então, a dificuldade de quem está
distante dos bastidores, obrigado a consumir informações através de terceiros,
muitos deles com interesses em jogo, ou apenas amigos das testemunhas dos
fatos.
Uma modalidade te off é utilizada para reduzir a
taxa de desnorteamento do jornalista. A fonte pede mais do que a omissão de seu
nome. Exige, como condição para a conversa, que o assunto não seja publicado.
Ela está, portanto, partilhando um segredo. Se, de um lado, o jornalista está
sonegando dados aos leitores, de outro, obtém dados que o ajudam a se orientar
no ti-
P.53
roteio das contra-informações. A fonte pode
revelar a estratégia final de um presidente, que, se publicada, o atrapalharia.
Sabendo até onde o presidente quer chegar, torna-se mais difícil cair em
armadilhas e plantações, conseqüência do jogo de esconde-esconde da política.
Quando Ernesto Geisel
tornou-se presidente, ele começou a preparar as condições para escolha de seu
sucessor. No caso, João Figueiredo, seu chefe do SNI. Geisel e seu chefe do
Gabinete Civil, Golbery do Couto e Silva, aprenderam a lição depois da derrota
na sucessão de Castello Branco, quando acabou dando Costa e Silva. A avaliação
de Golbery é de que eles não prepararam o sucessor de Castello e abriram espaço
às articulações dos adversários.
O repórter que soubesse que
Figueiredo era o objetivo de Geisel teria mais condições de entender os
labirintos da política de abertura, marcada por idas e vindas ligadas por uma
lógica. Há um velho ditado, sempre citado pelo senador e ex‑ministro do
Planejamento, Roberto Campos, segundo o qual quem não sabe para onde vai, os
ventos nunca ajudam.
As fontes capazes de dar
orientações não sobre táticas mas estratégias, ou seja, os objetivos finais,
são as melhores, cultivadas com extremo zelo pelo jornalista, a fim de manter
sua confiança. O princípio da confiança é decisivo para se manter qualquer
fonte de valor. Alguém que passa informações, resguardando- se no off para evitar constrangimentos e
punições, supõe que o jornalista saberá manter segredo. Do contrário, vai
preferir o silêncio ou outro repórter para liberar inconfidências.
Os erros não são provocados
apenas por plantações. A tomada de uma decisão exige várias fases de consulta
dentro do Executivo. O processo passa por várias instâncias, recebendo sugestões
e críticas de assessores e ministros de diferentes áreas. Cada um deles terá um
fragmento da informação, capaz de ser eliminado na reta final da tomada de
decisão. É normal que a imprensa receba estudos preliminares sobre projetos,
divulgando-os com ênfase e, depois, se constate que eram apenas um rascunho.
Em Brasília há assessores de
terceiro ou segundo escalão com acesso a fragmentos das decisões, por
acompanhar apenas um
P.54
trecho da evolução de um projeto de
governo. Os repórteres são municiados com dados parciais, e ao aprofundarem a
checagem desvendam contradições. Os ministros têm o costume de trabalhar com
diferentes hipóteses, prevendo diferentes opções, resultando uma multiplicação
de estudos.
Na preparação do
plano Collor, sua equipe trabalhou com um leque de opções, baseado nas mais
diversas premissas. Para cada premissa, uma saída diversa. Os repórteres
ficavam — e com razão — desnorteados, já que vazavam medidas contraditórias entre
si. O resultado é um tiroteio de pistas furadas.
A administração
pública federal é um universo amplo. Natural que mesmo assessores íntimos do
presidente estejam desinformados e induzam repórteres a erro. Em 1986 a Folha realizou um de seus mais
importantes trabalhos de investigação jornalística, com ampla repercussão
nacional e internacional. A sucursal do Rio de Janeiro recebeu a pista de que
foram construídos profundos buracos na inacessível Base Aérea de Cachimbo, no
sul do Pará. Mais repórteres — eu entre eles — engajando-se na pista dos
buracos misteriosos, obtiveram a revelação de que esses buracos se prestavam a
testes nucleares.
A decisão de
publicar a reportagem foi tensa, administrada pessoalmente pelo diretor de
Redação, Otávio Frias, que reuniu em sua sala os envolvidos no levantamento de
dados. Havia certeza na informação, checada em fontes as mais diversas. Mas a
reportagem implicava sérias conseqüências e um erro comprometeria a
credibilidade do jornal. O então secretário de Redação, Carlos Eduardo Lins da
Silva, telefonou da sala para o porta-voz do presidente José Sarney, Fernando
Cesar Mesquita, de quem era amigo. O assessor desestimulou a publicação,
advertindo que o jornal corria o risco de publicar informação mentirosa.
O governo negou
sistematicamente a existência dos buracos da Base Aérea de Cachimbo. O
presidente Sarney chegava a ironizar, dizendo que o jornal deveria mudar o
nome, chamando-se “Falha” de S. Paulo. A confirmação veio, porém, tempos
depois, quando o governo revelou que na Base de Cachimbo havia locais
apropriados para tratamento de artefatos nucleares. A confirmação oficial
surgiu depois do desastre do vazamento de césio em
P.55
Goiânia, que atingiu a população da cidade.
Anunciou-se que uma das alternativas seria mesmo Cachimbo, para abrigar o
material radiativo.
Na busca de maior segurança,
os jornalistas procuram sempre que possível apresentar os nomes dos
responsáveis pela informação. Tentam, assim, transferir para quem deu a
informação a eventual responsabilidade pelo erro. O noticiário político é impregnado
pelo off, mecanismo pelo qual
se atribui a informação a uma fonte não identificada. É um instrumento valioso,
já que, sem aparecer, a fonte pode fornecer uma notícia ou dica ao repórter,
evitando punição ou qualquer constrangimento.
Não fica bem um funcionário
criticar seu superior, apontando uma falha — se a crítica fosse assumida
publicamente ele perderia o cargo. Militares são proibidos de fazer
pronunciamentos políticos, mas, desde que em off, se dispõem a falar. É hábito um homem público indagar ao
repórter: “Você quer uma declaração ou informação?”. Também é comum essa frase
ser acrescentada com uma advertência: “Se você publicar dizendo que fui eu quem
falou, desminto”. O problema é que o off
dá um imenso espaço para “balões de ensaio” e “plantações”. Isso porque a fonte
está protegida pelo anonimato e a culpa pelo erro cai nas costas do repórter e
do jornal. O repórter torna-se um joguete das intrigas.
No entanto, divulgar o nome de
quem fornece a informação ou faz a afirmação não garante notícia correta. É
rotineiro homens públicos não usarem as palavras precisas e, ao vê-las publicadas,
voltarem atrás. Não menos rotineiro é uma autoridade fazer uma afirmação sem
perceber sua conseqüência, depositando a culpa na “deturpação” da imprensa —
por conta disso, repórteres sentem-se mais à vontade levando gravador às
entrevistas. O problema é que esse instrumento, apesar de auxiliar na reprodução
fiel das frases, inibe o entrevistado, dificultando a obtenção de
inconfidências — até mesmo redigir o que se está ouvindo serve como fator de
inibição.
Há abundantes exemplos de
homens públicos que escorregaram nas palavras e depois ficaram irritados com a
imprensa. O presidente João Figueiredo, ex-integrante da cavalaria, passou a
vida em quartéis e palácios. Logo no início do seu mandato es
P.56
tava numa solenidade, rodeado por populares. Um
repórter perguntou-lhe o que achava desse contato e ele respondeu, para o
desespero de seus assessores: “Prefiro o cheiro de cavalo”. Indagaram do
presidente da Fiesp, Mário Amato, sua opinião sobre a então ministra do
Trabalho, Dorothea Werneck. Rápido, respondeu: “Apesar de ser mulher, é
inteligente’’.
Presidentes, ministros,
parlamentares, governadores já produziram toneladas de papel impresso e horas
de gravações em vídeo com afirmações erradas ou mentirosas, todas apresentadas
com objetividade. Homens públicos acusados de falcatruas ou incompetências
raramente admitem as falhas e, na maioria das vezes, culpam uma suposta
conspiração de inimigos ou má-fé da imprensa.
A maioria dos chefes militares
jurou que não havia tortura a presos políticos no Brasil; ministros negaram, às
vésperas do congelamento de preços, olhos fixos na câmara de televisão, que não
haveria congelamento. O presidente Fernando Collor jurou que jamais mexeria na
caderneta de poupança. Ele chegou a dizer, em debate na TV durante a campanha,
que não tinha condições de ter um aparelho de som igual ao de seu oponente, o
candidato do PT, Luis Inácio Lula da Silva.
Nos períodos eleitorais, os
ânimos se acirram. Os candidatos não poupam sequer a vida pessoal de seus
inimigos políticos. Chamam os oponentes de corruptos, incompetentes — muitas
vezes sem provas ou sequer indícios. Apesar de impresso o nome do responsável
pela informação, não se podem classificar de verdadeiras as afirmações.
As falsificações fazem parte
da lógica do poder e são justificadas como razões de Estado, sobrevivência
política e até mesmo “patriotismo’’. O jornal, quando publica uma declaração,
mesmo se assumida pelo seu autor, acaba servindo como avalista, caso não a
apresente criticamente. O leitor passa a desconfiar também de quem veicula a
informação errada. E este é um dos motivos para a baixa taxa de credibilidade
da imprensa, atestada em várias pesquisas de opinião pública.
Eleição é tempo de promessas e
os candidatos têm plena consciência de que não podem ser realistas, precisam
acenar com uma
P.57
situação melhor imediatamente.
Precisam convencer seus ouvintes de que, se eleitos, o país vai mudar, os
salários subirão, haverá menos desemprego, mais escolas, mais saúde etc.
Muitos desses candidatos apresentam saídas fáceis, a fim de serem compreendidos:
Luis Inácio Lula da Silva, durante sua campanha a presidente, dizia nos
palanques que tudo melhoraria caso não se pagasse mais a dívida externa. Mas
os economistas do PT, como Aloísio Mercadante, sabiam que o problema da dívida
externa era apenas um aspecto da crise brasileira.
Numa conversa em off, Aloísio comentou, justificando a
necessidade eleitoral de ostentar uma bandeira de simples entendimento,
embora de solução simplista: “Precisamos canalizar o descontentamento e a
frustração do povo para uma bandeira. Não adianta fazer um discurso complexo”.
O combate aos “marajás”, os funcionários públicos cercados de generosas
regalias, foi o grande achado de Collor. Era uma bandeira simples de imediata
absorção popular. Qualquer pessoa de bom senso sabe que combater um punhado
de funcionários públicos avantajados não resolveria nada. Numa conversa em off com jornalistas, logo no início
da disputa presidencial, foi-lhe perguntado sobre sua estratégia eleitoral, já
que seriam exigidas respostas para outros problemas nacionais. “Dou uma rápida
pincelada e volto para os marajás”, respondeu sem titubear.
Tempo de eleição
também é tempo de tensão nas redações de jornais como a Folha, preocupados em produzir um noticiário íntegro. O
entusiasmo ou ojeriza por esse ou aquele candidato tende a provocar estragos na
capacidade de encarar com um mínimo de frieza e imparcialidade a disputa.
Coloca-se, por cima da missão de informar bem, a missão de “salvar” o país.
Impossível, porém,
que o jornalista se mantenha impassível diante da paixão do jogo político,
cultivando a distância de um computador. Não se pode impedir que o jornalista,
como cidadão, tenha suas preferências. Mas o engajamento na campanha,
utilizando o espaço do jornal, coloca-se no nível das modalidades de “suborno”
apresentadas pelo ex-ministro Antônio Carlos Magalhães. O resultado, apesar das
intenções diferentes, é que o leitor pode deglutir uma informação falsa ou
deturpada.
P.58
A universal arte de ludibriar,
que acompanha pela história da humanidade o jogo político, tornou-se no Brasil
mais sofisticada, aumentando as armadilhas da imprensa. Os candidatos mais
modernos já não se baseiam apenas na intuição, mas em pesquisas sobre as
preferências do eleitorado. As promessas vão variando de acordo com a
oscilação dessas preferências, captadas pelos levantamentos. Isso significa que
a convicção de determinado candidato dura enquanto dura a sensibilidade da
opinião pública para determinado problema.
Fernando Collor sabia desde o
início que o tema da moralidade tinha ampla aceitação, reforçando os ataques
aos marajás. Tinha números mostrando que havia rejeição aos políticos. Nos seus
discursos, enfatizava não ter ligações com partidos e se apresentava como
alguém fora da política tradicional, apesar de seu passado como prefeito,
deputado e governador — uma trajetória meteórica sempre à sombra de quem tinha
poder, passando da Arena ao PDS e PMDB, até chegar ao obscuro PRN.
Na campanha, os candidatos
apresentam mirabolantes planos, mas não sabem dizer de onde vai sair o
dinheiro e nem quanto tempo demorariam para ser executados. O senador Mário Covas
prometeu durante a campanha presidencial acabar com o analfabetismo em cinco
anos, prazo do mandato. Como há um estoque de 20 milhões de analfabetos, além
da massa que surge anualmente, estimando-se gastos, número de professores e
escolas disponíveis, era impossível a realização de tal meta.
Esse tipo de comportamento não
é concebível na esfera privada. Se alguém vai construir uma casa, dificilmente
deixará de calcular quanto custa o material, quantos operários vai precisar —
e, claro, se tudo isso é sustentado por seu salário ou economias. Ninguém
razoável compra um produto sem examiná-lo com atenção. Imagine-se um vendedor
anunciando as excelências de um produto sem, entretanto, querer mostrá-lo ao
comprador. Mas o que se vê com freqüência nos meios de comunicação, em especial
nas televisões, é a reprodução das propostas de governo sem
P.59
qualquer consideração crítica. Vale
dizer que o vendedor não precisa mostrar o produto ao consumidor-eleitor ou
consumidor-cidadão.
O jogo de esconde-esconde
prossegue com o candidato eleito. Aqueles que ocupam cargos executivos tentam
mostrar suprema eficiência, manipulando números e informações — e, com
freqüência, conseguem fazer passar à opinião pública que este ou aquele plano é
excepcional. É comum a divulgação de mirabolantes projetos sem a especificação
dos custos ou com as despesas subestimadas. Sucessivos governos têm apresentado
fantásticos e definitivos projetos para resolver a seca do Nordeste — e o Nordeste,
como se sabe, continua preso pela indigência.
Os governos gastam
fortunas em publicidade porque não conseguem transformar toda a imprensa num
depositário servil de press-releases
(informação oficial distribuída por governos ou empresas.) Mas seu sonho
dourado é serem aplaudidos pela imprensa independente, o que lhes daria um
passaporte para a credibilidade. Ao final de qualquer mandato é possível,
porém, constatar facilmente que muitas promessas ficaram apenas no papel ou nos
discursos de palanque. Outras foram executadas, mas não atingiram seu objetivo
plenamente. Há ainda aquelas que foram mal realizadas por descaso ou
incompetência. A propaganda oficial visa mostrar apenas as excelências,
escondendo os fracassos.
Daí a constatação
óbvia de que o jornalismo independente significa permanente incômodo, sempre
enfrentando atritos com quem manipula a informação, esteja esse manipulador no
governo ou na oposição. Quando o poder e a imprensa se dão muito bem, o leitor
se dá mal.
Brasília,
agosto de 1990
P.60
P.61
(Do Golpe de 64 à Campanha Lula)
Ricardo Kotscho
P.62
P.63
Nem sempre isso é possível,
mas ontem mesmo cheguei em casa contente.
Depois de algum tempo de
paradeira no chamado “Brasil Novo”, sem poder fazer o de que mais gosto —
reportagem —, fui avisado pelo chefe que o jornal topou minha proposta de
reabrirmos o Caso Boquira — um dos maiores escândalos deste país, denunciado
no JB, pela primeira vez, em
1976.
Trata-se de uma emblemática
reportagem sobre mortes, corrupção e falência das instituições, envolvendo um
padre safado, advogados vendidos, juízes coniventes e políticos sem escrúpulos.
Até aí, nada de muito
original. Por quase quatro décadas, no entanto, esta nada santa aliança
permitiu que nos domínios de humildes lavradores expulsos de suas terras no
oeste da Bahia fosse perpetrado um inominável assalto às riquezas nacionais.
A bandalheira era tamanha que
foi tema até de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Congresso Nacional.
Na época, fins dos anos 70, dizia-se que com o que se roubou daria para pagar
a dívida externa brasileira, então montada em módicos US$ 18
P.64
bilhões, apenas. O assunto era tão escabroso
que todo mundo achou melhor esquecer.
Foi assim: a pretexto de
construir uma nova igreja num vilarejo chamado Vila dos Macacos, depois
Assunção e, finalmente, Boquira, a 650 quilômetros de Salvador, um certo padre
Macário fez com que os lavradores assinassem papéis em branco, que mais tarde
usaria para tomar suas terras, instalar uma mineradora e vendê-la à Penarroya,
multinacional do grupo Rotschild, o lendário barão francês.
Além de sonegar impostos,
registrando apenas a extração de chumbo e zinco, minerais menos nobres, a
multinacional dedicava-se placidamente ao contrabando de ouro e prata,
carregando para fora do país fortunas em aviões que decolavam de uma pista
clandestina construída junto ao túmulo de Joaquim “Macuco”, o antigo dono
daquelas terras, que “morreu apaixonado, pedindo justiça”, como conta seu
filho, Manuel Cursino dos Santos.
Herdeiro de um tesouro, Manuel
sobrevive hoje vendendo frutas e doces numa banquinha no centro de São Paulo,
e foi por um desses acasos da vida de repórter que a história veio parar nas
minhas mãos. Num almoço de domingo na casa de meu irmão, o fotógrafo Ronaldo
Kotscho, seu vizinho, o repórter Murilo Carvalho, entregou-me de bandeja o Caso
Boquira.
Murilo já tinha feito matérias
sobre Boquira, e foi achado no final de 1989 por Manuel, que não se conformava
com o silêncio da imprensa, depois de tantos anos de injustiça, impunidade, omissão.
Naquela época, eu estava envolvido até o pescoço com a campanha de Lula, de
quem era assessor de imprensa, e o Murilo tinha outros projetos profissionais,
sem nenhum jornal para escrever.
Só no final de maio de 90, o
drama de Manuel, em busca de um repórter, e o meu, em busca de uma reportagem,
acabariam se cruzando. Contei tudo isso quando cheguei em casa naquela noite,
mas a família não se entusiasmou muito. Carolina, a filha mais nova, está com
14 anos, idade em que comecei a trabalhar em jornal, e já não alimenta tantas
ilusões de que descobrir e revelar uma história dessas possa mudar a ordem
natural das coisas nessa terra de ninguém chamada Brasil.
P.65
Como quem diz “e
daí?”, ela me olha com cara de quem não acredita em mais nada, antes mesmo de
tentar e, igualzinho minha mãe sempre dizia quando eu estava começando,
Carolina limita-se a repetir num muxoxo: “Pra que você vai se meter nisso?”.
Mariana, a mais
velha, que tem 17 anos, vai na mesma toada, sem ver muita graça em querer
cavoucar um caso aparentemente perdido.
“Será que vale a
pena?”, começo a pensar, sentindo o lombo castigado de tanto tomar porrada,
vendo minha calvície crescendo a cada manhã em que me olho no espelho e
constatando que, bem feitas as contas, nas histórias que escrevi os bandidos
quase sempre acabam ganhando.
Estranho destino,
esse meu. Filho de bem sucedidos imigrantes, criado numa casa com motorista,
mordomo, babá e professora particular, gostava mesmo era de brincar com os
moleques da rua e os filhos dos empregados. Com 12 anos, quando meu pai morreu,
depois de gastar tudo que tinha com o tratamento do câncer, descobri que não
tínhamos mais nada: meu primeiro contato com o jornalismo foi trabalhando como
empregado numa banca de jornal.
Lia, de graça,
todos os jornais. Naquele tempo, começo dos anos 60, toda hora chegava jornal
novo na banca. Era como cheiro de pão quente na hora da fome. O cheiro — nunca
vou esquecer do cheiro dos vespertinos. Tinham cheiro de coisa nova, quente.
Nunca sobrava tempo para ler gibi — e poderia ler todos, de graça. Gostava
mesmo era de jornal, coisa de paixão mesmo, assim como uma bola nova de futebol
todo dia.
“Pra que você vai
se meter nisso?”, desgostou-se minha mãe, filha de jornalista, no dia em que
lhe contei, com a maior alegria do mundo, que tinha arrumado um emprego, o
primeiro de ver-
P.66
dade, na Folha Santamarense, jornal de bairro de São Paulo, que fecharia
pouco tempo depois.
A velha tinha
trauma de jornal. Quase não havia convivido com o pai, que morreu numa redação
de Saarbrücken, no sul da Alemanha, perto da fronteira com a França, e não
queria perder, já viúva, o filho mais velho. Foi tudo muito rápido e, quando
fui ver, já estava na redação do “Estadão”, o jornal mais importante e
respeitado do país, naqueles anos 60, que jogaram o Brasil da Brasília de JK,
da Bossa Nova, do Cinema Novo, do Pelé e do Garrincha no fundo do poço do AI-5
dos milicos, abrindo o caminho para o Barão de Rotschild fazer um dos melhores
negócios da sua vida com a mineradora do padre Macário.
Minha aventura na
chamada grande imprensa, como todas as boas aventuras, começou por acaso. No
início de 1967, o “Estadão”, ainda nos tempos do Dr. Julinho, parecia uma
grande repartição pública. Repórteres e redatores, em sua maioria, tinham
outras ocupações e, como se dizia, exerciam o jornalismo nas horas vagas, mais
por hobby ou necessidade do que
por vocação. Uma exceção à regra era um tal de Clóvis Rossi, um grandalhão de
20 e poucos anos, ex-jogador de basquete e diplomata frustrado, que por um
acaso foi parar na chefia de reportagem do maior jornal do país.
Pois este
irresponsável, talvez por falta de opção, teve a ousadia de me mandar fazer a
cobertura de uma grande tragédia, a de Caraguatatuba, onde mais de 400 pessoas
morreram soterradas sob as terras da Serra do Mar que deslizaram sobre a
cidade. Quando cheguei lá, encontrei um outro repórter, Luiz Roberto de Souza
Queiroz, na época um grande nome do jornal, que tinha ido por conta própria.
Sem tempo para
muita conversa, acabamos fazendo uma divisão natural de trabalho: o Bebeto,
como é chamado até hoje no “Estadão”, onde continua trabalhando, dedicou-se à
cobertura da parte oficial — prejuízos, providências de autoridades, números
de mortos e feridos — e eu fui contar as histórias dos sobreviventes, aquela
gente anônima que só entra nas estatísticas.
P. 67
Sem saber, estava
começando ali minha grande aventura. Naquela época, como até hoje, os
jornalões eram divididos em departamentos estanques — política, economia,
polícia, variedades, esportes e tal. Cada vez mais, os jornais foram montando
editorias especializadas, de tal forma que as notícias e reportagens tinham que
se encaixar numa delas, sob o risco de não saírem em lugar nenhum. Da mesma forma,
os profissionais foram-se especializando nas diferentes áreas, procurando
garantir um espaço na grande floresta loteada — mais ou menos como aconteceu na
Medicina, em que a especialização foi tanta que o doente primeiro precisava
fazer seu próprio diagnóstico para saber qual médico deveria procurar. Assim
como na Medicina, também no Jornalismo acabaria sobrando uma terra de ninguém
— o pronto-socorro, a clínica geral, aquele terreno nebuloso em que as circunstâncias
se antepõem à especialização e alguém tem que tomar uma providência.
Na
compartimentação dos jornais e dos hospitais — duas atividades com mais coisas
em comum do que se possa imaginar — sempre se viveu uma luta surda entre a
burocracia estabelecida, formada pela grande maioria, e um punhado de
sonhadores, poetas e malucos que encontravam ali, no limite da vida e da morte,
um terreno fértil para refazer a vida, arriscar novas formas de cura e de
caminhar, gente que não se conformava com o preestabeleci- do, a rotina, a
impotência diante do destino.
Num desses
fins-de-semana sem nenhuma esperança de pintar alguma coisa capaz de fazer do
trabalho algo que não fosse chata obrigação de principiante, mandaram-me cobrir
uma visita do presidente Costa e Silva a São Paulo. Como o “Estadão” não sai às
segundas-feiras, seria bobagem cobrir simplesmente o que ele fez ou deixou de
fazer. Os outros jornais dariam isso antes da gente e fiquei pensando no
ridículo de escrever coisa velha,
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já sabida, enquanto andava pelo
Horto Florestal naquela manhã de domingo. O presidente — o todo-poderoso
general-presidente — estava ali. Ninguém podia chegar perto do palácio e os
repórteres todos ficavam conversando uns com os outros, tentando descobrir
que diabo de notícia podia sair dali. Como era um homem velho, meio doente,
provavelmente ele estava apenas dormindo, o que, convenhamos, não dá nenhuma
boa manchete, o objetivo de qualquer repórter.
Meio por
necessidade de fazer algo diferente, meio por sacação, já que a imprensa sempre
se ocupava dos mesmos personagens, civis ou militares, oficiais sempre, fui
falar com o povo que estava no Horto Florestal. A melhor história era a de um
velho pipoqueiro e resolvi centrar a matéria nele. Publicaram, gostaram, e a
partir daí virei o “repórter do pipoqueiro”, uma forma sutil de me esculhambar,
assim como quem diz: esse é o cara que nós temos para escrever sobre coisas sem
importância. Chamava-se a isso de side
story, história paralela, um canto que achei para não bater de frente
com os outros repórteres, todos preocupados com o “sério”, o “importante”, o
“oficial” das histórias. Isso valia tanto para visitas de presidentes e rainhas
como para jogos de futebol ou tragédias: enquanto todo mundo corria para um lado,
em cima dos protagonistas das matérias, eu caminhava para o lado oposto,
pegando o lado dos coadjuvantes, dos figurantes, dos anônimos que só ajudam a
compor o cenário. Em resumo: enquanto todos cobriam o palco, eu ficava pela
platéia, dando uma espiada nos bastidores.
Fernando Paixão,
jovem e competente editor da Ática, apesar de ter quase a minha idade, me
perguntou ainda outro dia durante um almoço num restaurante japonês — numa
mesa de sushi que tinha até um yuppie japonês, coisa que não existia naquele
tempo, nem aqui nem no Japão —, de onde tirei esse “estilo” de escrever. Contei
a ele, e não tenho vergonha de contar aos milhares de jornalistas e estudantes
de Jornalismo nas palestras que faço por tudo quanto é lugar — antes, durante e
depois do AI-5 que marcaria a minha geração — que isso não foi uma escolha
consciente, mas mera conseqüência de um tempo. É como acontece todo ano nas
festas juninas nas pequenas cidades do inte-
P. 69
rior: de repente, conforme a moda,
está todo mundo vendendo a mesma coisa e, para garantir seu público na praça, é
preciso que você ofereça alguma coisa diferente. Claro, não descobri isso depois
de fazer uma pesquisa de mercado nem pelo gosto de pintar a casa de azul numa
rua em que todas as casas são pintadas de branco.
Seria preciso recuar
alguns anos para saber como essa história começou, porque qualquer história
para ser boa tem que ser contada como foi desde o começo. Vou tentar lembrar.
Meus pais vieram para o Brasil depois que a guerra acabou com a Europa no fim
dos anos 40. Quase nasci no navio, que era de bandeira francesa, e aí se
completaria a confusão de nacionalidades de onde fui parido. Meu pai, filho de
russos e bisneto de italianos, nasceu na Romênia e foi criado na Iugoslávia,
numa região de mineiros briguentos, boêmios e bons de copo chamada Montenegro.
Já a mãe, filha de alemães, foi nascer em Pils, na Checoslováquia, a região da
melhor cerveja do mundo, e foi pequena com os pais de volta para a Alemanha,
onde sobreviveu às duas guerras mundiais e conheceu meu pai. Se tivesse
nascido no navio, hoje eu seria francês e ficaria mais difícil explicar ao
Fernando Paixão que só fui aprender português com sete anos, na escola, porque
em casa só se falava alemão por causa da minha avó materna, que não sabia falar
outra língua.
Aprendi, portanto,
a falar e a escrever português no primário, na escola Nossa Senhora de
Lourdes, um reduto de filhinhos de papai no Jardim América. O quintal da minha
casa, na rua Taiarana, dava fundos para a escola. Uma das poucas lembranças que
tenho de meu pai foi a surra de cinta que levei no dia em que pulei o muro,
antes da aula acabar, depois de uma briga que arrumei porque me chamavam de
“Alemão” ou de “Cabeção”, por razões mais do que justas, mas que me ofendiam.
Engenheiro civil,
o velho Nikolaus trabalhou em muitas obras importantes, como a refinaria de
Cubatão, ganhou bom dinheiro, mas vivia sempre longe de casa, para desgosto da
minha velha, que já tinha passado a experiência de ser filha de jornalista,
quer dizer, crescer sem pai. Embora fosse o que se pode chamar
P. 70
de homem rico, o pai sempre gostou
mais de conviver com os peões de obra do que com gente do seu meio social,
empreiteiros, gente do governo, a elite brasileira da época, enfim.
Depois que perdeu
tudo, quando deixou de ser alto executivo de uma empresa de construção para
tocar sua própria firma em sociedade com um amigo, e ficou doente de câncer no
meio do caminho, fomos morar numa chácara que ele tinha comprado em Cotia.
Passamos, então, a conviver com o Brasil real, o Brasil da gente que trabalha
de manhã para comer de noite, mas sempre tem um prato para dividir com quem
está com fome. Para ir à escola, no Alto de Pinheiros, ser aluno do Colégio
Santa Cruz, outro reduto da elite paulistana, eu tinha que andar quatro quilômetros
a pé, pegar ônibus e trem, mas o velho não deixava por menos. Tinha que estudar
na melhor escola e ser o melhor aluno, coisa que nunca fui. Só terminei o
ginasial no Santa Cruz graças à ajuda de um padrinho, tio-avô da minha mãe, e à
bolsa de estudos que os padres me deram.
A esta altura, já
conhecia os dois lados da moeda, a vida boa da burguesia dos tempos em que meu
pai era um profissional liberal bem sucedido, e a vida dura do povo que
descobri quando ele ficou na pior, morreu e nós tivemos que batalhar a sobrevivência.
Nós, que digo, é minha mãe, que sem falar português direito foi trabalhar como
telexista da DKW-Vemag (mais tarde, incorporada pela Volkswagen), meu irmão,
dois anos mais novo, que não gostava de estudar (mais tarde, fotógrafo dos
bons) e minha vó, que de tão esclerosada a gente não sabia se ria ou se
chorava com ela (era apaixonada pelo Cid Moreira e só gostava de cigarro sem
filtro).
De Pinheiros fomos
para Santo Amaro, graças a uma indenização de guerra que a vó recebeu e deu
para comprar novamente uma casa própria. A esta altura, de tanto ouvir as
histórias
P. 71
do meu avô em casa, já queria
deixar de ser jornaleiro para ser jornalista. Catei alguns contos e poemas, que
tinha escrito para impressionar menininhas da vizinhança, sem nenhum sucesso,
e, no começo de 1964, fui batalhar um emprego na Folha Santamarense, um jornal de bairro recém-lançado. Como não
tinham ninguém, o falecido Treme e o Fausto Eduardo, que faziam o jornal
sozinhos, me aceitaram na hora. Só que para poder ser repórter tinha que vender
anúncios. O jornal não durou muito e o Fausto foi para a Gazeta de Santo Amaro, o mais forte e
antigo da região. A indicação do Fausto não bastou. O Armando, dono do jornal,
me deu um teste dos mais cavilosos. “Traduz esse negócio para o português”,
ordenou, entregando-me o manuscrito da “Coluna do Marin”, um advogado de Santo
Amaro que mais tarde se tornaria cupincha de Paulo Maluf e chegaria a
governador de São Paulo, no começo dos anos 80. “Traduzi” e lá fiquei quase
três anos, enquanto o Brasil se afundava na ditadura, fazendo de tudo na
redação, da reportagem à revisão, vendendo anúncios nas horas vagas, até que um
dia, meu único primo no Brasil foi vender Enciclopédia Britânica na Editora
Abril. Já tinha me acostumado a receber o salário até em sapatos, porque
alguns anunciantes pagavam o jornal em espécie, quando este primo, o Klaus,
telefonou dizendo que tinha arrumado um emprego para mim na Realidade, a maior revista de
reportagem já produzida no país até hoje.
Pensei que o primo
tinha tomado umas cervejas a mais mas fui lá, na acanhada redação da rua João
Adolfo, levando o biIhetinho assinado pelo Luiz Fernando Mercadante, uma das estrelas
da revista, que tinha comprado uma coleção da Britânica. Era uma segunda-feira,
bem cedo, e só havia uma alma viva lá, o Milton Severiano da Silva, que bem
mais tarde ficaria sabendo ser o famoso “Miltainho”, dono de um dos melhores
textos deste país. Pois o tal do “Miltainho” me olhou bem (eu tinha 18 anos,
estava com a cabeça raspada de calouro da primeira turma da Escola de
Comunicação da USP e da Faculdade de Economia do Mackenzie), olhou para o
simpático “abre- portas” do Mercadante e foi definitivo: “Aqui, meu filho, trabalham
os melhores repórteres do país. Se você quiser vir
P. 72
para cá, tem que trabalhar antes
num jornal, fazer grandes reportagens e depois...”
Antes de terminar
a frase, o “Miltainho” começou a escrever um outro bilhete, endereçado a
Aloísio de Toledo Cesar, subchefe de reportagem do “Estadão”, que ficava
pertinho da Abril, na Major Quedinho. O “Estadão”, já naquela época, sentia uma
falta danada de repórteres e o Aloísio, antes de terminar de ouvir minha
história, me deu uma pauta e me mandou para a rua, onde estou até hoje. Em
fevereiro de 1967, o grande personagem da cidade era o chefe do trânsito, um
certo coronel Fontenelle, que tinha virado São Paulo de pernas para o ar. Os
repórteres do “Estadão” eram todos bem mais velhos, chegavam à redação depois
do almoço e o coronel começava a aprontar cedo.
Como as notícias
não tinham hora para acontecer, e eu só saía do jornal para comer e dormir, os
assuntos mais quentes foram caindo na minha mão. A tragédia de Caraguatatuba
foi a primeira, mas logo em seguida veio a morte do ex-presidente Castello
Branco, num acidente de avião no Ceará, e aí não parou mais. Em Fortaleza, na
cobertura da morte de Castello, tive a oportunidade de concorrer com Rolf
Kuntz e Sandro Vaia, dois repórteres especiais do Jornal da Tarde, que tinha a melhor equipe de profissionais
daquele tempo e, embora pertencesse à mesma empresa, era nossa principal
concorrente.
A Realidade estava agonizando, ferida
de morte pela ditadura do AI-5 de dezembro de 1968, quando vi a censura de
perto pela primeira vez: oficiais do Exército, empunhando metralhadoras,
querendo falar com “o responsável”. O chefe da redação era Oliveiros Ferreira,
um professor da USP, doutor em Ciência Política, que abominava tanto aqueles
repórteres temerários chefiados pelo ex-jogador de basquete Rossi quanto a
estupidez dos militares avançando sobre a Nação até chegar à sua mesa.
Oliveiros, me lembro, ficou num silêncio patético, mas o “Bebeto”, que era
assumidamente um homem de direita a favor do golpe, resolveu reagir, querendo
chutar e xingar os invasores armados.
Meu ídolo naquele
tempo era Moacir Franco, a gente ganhava um belo salário, a maioria dos
repórteres não era de esquerda nem de direita e o maior sonho, depois de
comprar um carro, era
P. 73
viajar para a Europa — saber de
perto como era o mundo, aquele que meus pais deixaram para viver a aventura
brasileira. Além das peripécias do coronel do trânsito, minha experiência
política e profissional se resumia a essas tragédias de enchentes, secas, acidentes,
festivais de música na TV Record, vestibulares, movimento estudantil, greves.
Quase ninguém era filiado a partido político, poucos sabiam onde ficava o
sindicato e essa violência do dia 13 de dezembro, na nossa cara, acabou sendo
um despertar de consciência. Ao contrário do que muitos imaginavam, até os
donos do jornal, que jornalista era tudo comunista, nós éramos uns alienados.
O que me formou
profissionalmente naquela redação não foi a ideologia, mas o caráter de algumas
pessoas. No começo, como estagiário, eu tinha tanto medo de escrever para o
“Estadão” que fazia um rascunho antes, até o dia em que me pegaram em
flagrante, manuscrevendo o texto, e me jogaram direto na máquina de escrever.
Só havia uma vaga na redação, vários candidatos, um deles cunhado do chefe
Rossi, e eu achava que não teria a menor chance. Pois esse tal de Rossi, que
formou toda uma geração de repórteres, redatores e editores, teve o desplante
de dispensar o cunhado dele, bom profissional que faria carreira em outras
empresas, e me contratar seis meses depois daquela segunda-feira que começou
na Realidade e teminou no
“Estadão”, onde fiquei 11 anos.
A censura já havia
acabado em 1976. Por muitos anos, sete ou oito nem me lembro mais, nos
habituamos com a presença diária dos censores nas oficinas do jornal, mas
continuamos trabalhando como se eles não existissem. Nossa função era escrever
e a deles, cortar — cada um no seu papel. É verdade que muitos repórteres
abandonavam a pauta no meio do caminho, já sabendo que aquela matéria não
passaria pela censura; outros iam até o fim e desciam até a oficina para
defender pessoalmente seu texto, tentar salvar
P. 74
pelo menos uma parte. Quando
terminei de escrever o texto da série de reportagens sobre mordomias, a
primeira denúncia contra os privilégios e abusos praticados pelos
“superfuncionários” do regime militar, após dois meses de trabalho, um colega
foi em casa, deu uma olhada e parou na segunda lauda: “E você acha que o jornal
vai publicar isso”?
Mesmo sem a
censura prévia fisicamente instalada no jornal, ela permanecia na cabeça de
muitos profissionais. A matéria seria publicada, na íntegra, e me daria o
Prêmio Esso, graças à dedicação e ajuda da rede de sucursais e correspondentes
montada no jornal pelo Raul Martins Bastos. No mesmo ano, 1976, outra matéria
minha chegaria às finais do Esso — a denúncia da tortura e morte do operário
Manoel Fiel Filho nas celas do DOI-CODI, poucos meses após o assassinato, nas
mesmas circunstâncias, do jornalista Vladimir Herzog. Tinha chegado ao jornal
uma vaga informação sobre um “novo caso Herzog”. O Rossi mandou ir atrás da
história. Na fábrica onde Fiel Filho trabalhava, todo mundo tinha medo de
falar, mas consegui pelo menos seu endereço. A casa estava fechada, os vizinhos
não sabiam de nada. Numa padaria próxima, informaram-me que a família tinha
parentes num outro bairro. Sem muitas esperanças, já fim de tarde, mandei-me
para lá e comecei a assuntar num boteco, enquanto tomava uma cerveja. Aí passa
na rua um sujeito com cara de padre, que eu já conhecia de algum lugar. Os
padres, naquele tempo, costumavam ser bem informados, principalmente sobre as
violências praticadas pelo Estado. Não custava arriscar: apresentei-me, ele me
reconheceu e, falando baixinho, contou que estava acabando de sair da casa da
irmã da viúva do operário. Voltamos para lá e levantei a história toda, que
saiu na edição do dia seguinte com grande destaque — e assinada. Assinar este
tipo de matéria, naqueles anos 70, não era bem um motivo de satisfação
profissional, mas de preocupação. Vários colegas tinham sido presos e
torturados antes da morte do “Vlado” Herzog. Minha mulher estava grávida da
segunda filha, a barra pesou. Um colega que cobria a área do II Exército — nos
dias seguintes, o presidente Geisel destituiu o comandante Ednardo D’Ávila
Mello — me transmitiu vários recados as-
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sustadores, recomendando que seria
melhor eu tirar o time de campo porque “os homens” estavam putos comigo.
Fazer o quê? Mudar
de ramo, voltar a trabalhar no esporte (Rossi e eu já tínhamos ficado
“exilados” alguns anos na editoria de Esportes), pedir desculpas por ter
escrito o que aconteceu? Repórter é como goleiro: se não tiver sorte, dança.
Caiu do céu um convite para ser correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha Federal. Dorrit Harazim, chefe dos
correspondentes internacionais do JB
e José Roberto Guzzo, então redator-chefe da Veja, nem precisaram gastar muitos argumentos na conversa que
tivemos no café do hotel Eldorado, na avenida São Luiz. Saí de lado convencido
de que estava na hora de mudar de vida, fazer uma coisa nova e comuniquei a
decisão à mulher, avisando que iríamos embora para a Alemanha com a mesma
tranqüilidade de quem convida a família para passar um fim de semana na praia. As
crianças eram pequenas, a mulher não falava uma palavra de alemão, estávamos
começando a construir nossa casa no Butantã, mas não pensamos duas vezes. Antes
de ir embora, ainda passei um mês no vale do Jequitinhonha, um antigo projeto
para contar como era a vida na região mais pobre do país, conhecida como o
“Vale da Fome”. Já tinha feito tudo que queria no “Estadão”. Faltava essa
reportagem, que foi publicada durante uma semana inteira, enquanto a gente
arrumava as coisas para a viagem.
Tudo certo, precisava
fazer o exame médico na sede do JB, no
Rio, mas fui reprovado. Parece brincadeira: descobriram que eu tinha hérnia e o
médico falou que, se não operasse, não poderia ser contratado pelo jornal.
Assim, recém-operado, arrastando a perna e sem poder carregar peso, aportamos
em Bonn no outono alemão de 1977. A Alemanha estava abalada por uma sucessão
de atos terroristas. Antes que pudesse instalar a família num hotel — estavam
todos lotados — O William Waack, que era correspondente do “Estadão”, me passou
uma pauta enviada pela Dorrit. Tinha que mandar matéria naquele dia mesmo: um
avião da Lufthansa fora seqüestrado. Sem conhecer a cidade, sem saber por onde
começar, preocupado em alojar a família nalguma pensão pelo menos, com a ajuda
do William deu para cumprir a pauta e ainda descolar outras matérias.
P. 76
Em poucas semanas,
mesmo com o pau comendo — quase todo dia linha prisão e morte de terroristas,
novos seqüestros, o diabo —, deu para organizar um esquema de trabalho como se
estivesse no Brasil. A primeira bronca que recebi foi por estar escrevendo
demais. É que, por incrível que pareça, é muito mais fácil ser correspondente
internacional num país onde tudo funciona do que repórter de geral no Brasil.
Para começar, prestar informações corretas é uma obrigação dos homens públicos,
não um favor que fazem ao repórter. Duas ou três vezes por semana, ministros de
todas as áreas — em momentos de crise, o próprio primeiro-ministro, que era o
Helmut Schmidt — vão ao centro de imprensa para atender a todos os jornalistas,
alemães ou estrangeiros. Se não dão respostas consideradas satisfatórias,
comprometem-se a, ainda no mesmo dia, apresentar as informações solicitadas
pelos repórteres. Tudo é organizado para que a sociedade tenha acesso à informação
— e isso facilita a vida dos profissionais.
Um mês depois,
consegui alugar uma boa casa e, quando fui ver, já me sentia como se tivesse
sempre trabalhado na Alemanha, um repórter de geral em plena Bonn
convulsionada pelo terrorismo. Instalei minha pequena redação no sótão da
casa, com telex e tudo. O jornal fornecia todos os meios para se fazer um bom
trabalho e o aproveitamento do material era excelente. Nenhum jornal cuida com
mais carinho da edição das matérias do que o JB — seja uma reportagem sobre o árido tema do Acordo Nuclear
Brasil-Alemanha, sobre o carnaval em Colônia ou a história das velhinhas
contrabandistas que levavam quinquilharias ocidentais debaixo das saias para
Berlim Oriental.
Tinha ido de Bonn
para Berlim Ocidental fazer um frila para uma nova revista que estava sendo
lançada no Brasil (nem me lembro o nome, mas era alguma coisa como Repórter Três, uma
P.77
tentativa logo frustrada de
reeditar a velha Realidade). O
pessoal da revista me ligou para casa e pediu uma matéria/perfil sobre Luiz
Travassos, um dos principais líderes do movimento estudantil no Brasil de 68,
que estava exilado na Alemanha Federal. 1968, “o ano que não terminou”, como
escreveu o grande Zuenir Ventura sobre uma das épocas mais ricas da nossa
geração, estava completando dez anos. Como não sei dizer não, topei na hora e
peguei o trem, sem avisar o jornal, e levaria uma tremenda bronca na volta, que
seria ainda maior se não tivesse descolado a história das velhinhas
contrabandistas.
Quase todos os
repórteres que conheço fazem frilas para complementar o salário, mas não era
meu caso (os correspondentes internacionais, pelo menos naquela época, ganhavam
para viver decentemente apenas com o trabalho no jornal). Topei porque gostava
do Travassos, de quem me considerava amigo, tantas as matérias que fiz com ele
na época brava das manifestações estudantis que ele liderava a partir do
quartel-general da rua Maria Antonia.
O conhecimento
profundo do personagem me dispensou de fazer uma coisa hoje muito em desuso nas
redações tupiniquins: ler, antes de sair para fazer a matéria, tudo sobre a
pessoa a ser perfilada, não só para saber de quem se trata, como para evitar
contar novamente uma história já sabida. Não foi difícil localizar Travassos
num cortição de Berlim, pois uma providência primária de qualquer repórter é
saber pelo menos para onde está indo, com o mínimo de risco de se perder.
Difícil foi não revelar espanto ao ver a figura esquelética, amargurada de
Travassos, sem nenhum sinal do líder combativo que arrastava multidões no
Brasil de 1968. Mas ele deve ter percebido meu susto e, sem que lhe fizesse
pergunta, foi desfiando as lembranças e o sofrimento do exílio — certamente, o
sentimento mais doloroso de qualquer pessoa em qualquer época, dor tão grande
que acabou antecipando o meu desejo de voltar ao Brasil, já que ninguém estava
me obrigando a ficar fora.
Fim de tarde,
trabalho garantido, peguei o trem de volta e comecei a puxar papo com umas
velhinhas que estavam na cabine e acharam fantástico conversar com um jovem
brasileiro que
P. 78
falava alemão correntemente. Mais
uma vez, o velho anjo da guarda estava do meu lado. Sem nenhum esforço, elas
foram contando a viagem toda, umas seis ou sete horas, como era a vida do
“lado de lá”, que eu ainda não conhecia. A história era boa demais: os alemães
orientais estavam encantados com a televisão ocidental que captavam do “lado
de lá” — não com os programas em si, mas com os anúncios, oferecendo produtos
que eles nem imaginavam existir. Como lá não havia esses produtos à venda, isso
gerou uma danada insatisfação social e o meio que o governo oriental encontrou
de resolver o problema foi destruir os equipamentos de quem sintonizava a TV
ocidental. Aí entram as velhinhas: como havia uma lei permitindo o livre
trânsito, entre as duas Alemanhas, de pessoas com mais de 65 anos, elas
aproveitavam a mordomia para contrabandear bugigangas eletrônicas que os
brasileiros vão comprar no Paraguai, e, principalmente peças para antenas destruídas
pela polícia.
A febre do consumo
já estava latente naquela época, mas o Muro só seria derrubado muitos anos
depois, da noite para o dia. Muitas vezes, o repórter consegue antecipar o
futuro assim, meio sem querer, conversando com pessoas comuns que costumam saber
mais da alma do povo do que o mais tirano dos governantes. O pessoal do
“Caderno B” caprichou na ilustração e meu único trabalho nesse caso foi ter
sacado que o papo das velhinhas rendia matéria, com a ajuda da memória que,
naquele tempo, era muito boa (se eu puxasse um caderno de anotações, elas certamente
ficariam com medo de abrir o jogo e sofrer represálias).
Antes de ser
correspondente em Bonn, raramente parava na editoria internacional dos jornais.
Meus conhecimentos históricos, geográficos e políticos eram precários. Mas,
como falava bem alemão, pude arriscar o que geralmente os correspondentes não
fazem: descolar personagens, cenas, tendências, histórias da vida real que
ficam de fora da cobertura das agências internacionais.
P. 79
Concorrer com
elas, logo vi, era inútil e redundante. Fora do noticiário oficial do
dia-a-dia, restam duas opções: ou você vira comentarista e “analisa” os
acontecimentos, dando alguns palpites, ou você vai à luta como repórter e
garimpa boas histórias para contar. Sem vocação para palpiteiro e sem formação
cultural suficiente para perpetrar teses e pensatas, tão ao gosto do jornalismo
nativo que prefere os gabinetes às ruas, a reportagem acabou, mais uma vez,
sendo uma saída natural.
Alguns teóricos
chamam a isso de “reportagem humana” ou “matéria leve”, categorias secundárias
do “alto jornalismo”, como se pudessem existir reportagens desumanas e o texto
tenha que ser, necessariamente, duro, pesado, complicado, para parecer profundo,
definitivo. Confunde-se muito na nossa terra cara feia com seriedade. Mesmo na
Alemanha, é possível escrever com bom humor e fazer da leitura de um texto
algo agradável, não um maçante exercício de erudição. Tive certeza disso no meu
retorno ao Brasil: as matérias lembradas eram aquelas que me tinham dado mais
prazer ao fazê-las.
Quando estão em
outro país, os jornalistas, seja qual for sua origem, parecem-se muito com
diplomatas. Freqüentam sempre os mesmos círculos, quer dizer, o poder, esquecendo-se
que fora dos gabinetes existe um povo, absolutamente sempre original, fonte
inesgotável de boas matérias. Um encontro de cúpula para discutir bomba de
nêutrons pode ser importantíssimo para os destinos da humanidade. Se não formos
capazes, porém, de trazer a discussão para o dia-a-dia do homem comum, será
que ele vai perder seu precioso tempo na praia de domingo para ler um tijolaço
sobre o assunto, recheado de declarações de autoridades e especialistas?
Aprendi a não me preocupar quando tropeço num assunto muito complicado: se eu
não entendo, o leitor também não vai entender e será melhor buscar um atalho
para contar algo de seu interesse. Jornal tem espaço para todo mundo. Se todo
mundo se preocupasse com os mesmos temas e escrevesse do mesmo jeito, ficaria
muito chato.
P. 80
Melhor é deixar a
vida fluir e ficar sempre atento, mesmo quando se está de folga. Certa vez, me
deram três dias de folga e resolvi ir de carro com a família para Portugal, que
não conhecia. Com aquela história de que na Europa tudo é perto, pensei que
daria um belo passeio. Só que estava começando a temporada de verão, parecia
que todos os europeus do Norte estavam descendo juntos para as praias do Sul e
levamos três dias só para chegar a Lisboa. Que dizer ao jornal? Resolvi
“caçar” alguma matéria para fazer e assim justificar minha ausência prolongada
da base em Bonn. E fui atrás do Miguel Urbano Rodrigues, jornalista português
com quem trabalhei muitos anos no “Estadão” e que tinha voltado para a
terrinha, com a “Revolução dos Cravos”.
“O governo está
caindo... Você quer assunto melhor do que esse?”, acalmou-me o Miguel. No dia
seguinte, mandei pau, contando a crise do gabinete Mario Soares e prevendo sua
queda. Mas os dias se passaram, e o governo não caía. Dessa vez, pensei, dancei.
Pois não é que, no sexto ou sétimo dia, o governo caiu mesmo e pude comemorar
minha incrível capacidade de antecipar fatos, com exclusividade? Bendito
Miguel, que assim me garantiu mais alguns dias de folga. Resolvemos voltar por
outro caminho, a Riviera Francesa, entrando depois pela Itália. Mulher pelada
nas praias, todo mundo em festa permanente e, de repente, acho que a gente
estava em Nápoles, ruas desertas em pleno dia de semana, silêncio, tristeza.
Que será? Nos quiosques, manchetes garrafais anunciavam a morte do papa Paulo
VI. Liguei para o jornal, sugeri seguir para Roma e ajudar o Araújo Neto,
eterno correspondente do JB na
Itália. Quem atendeu disse que não poderia decidir sobre isso e me recomendou
voltar para Bonn. Fui correndo ao telex assim que cheguei em casa e já tinha
um recado da Dorrit: siga imediatamente para Roma e ajude o Araújo na cobertura
do papa.
Modéstia à parte,
com a ajuda de um cardeal brasileiro que nos passava informações em off sobre a sucessão papal, Araújo e
eu demos um banho nos vaticanólogos italianos. De novo, o ve-
P. 81
lho esquema: Araújo ficou com o
lado mais oficial e eu fiquei solto nas ruas e nos bastidores para contar
histórias. Assim que saiu a fumacinha com o nome de João Paulo I, mandei-me
para um vilarejo perto de Veneza, Canale D’Agordo, onde o novo papa tinha
nascido, para contar quem era essa figura. Um irmão dele, com um monte de
filhos, velho boêmio, contou tudo sobre a família e revelou uma estranha
premonição: “meu irmão é um sujeito muito bom, pacato, nasceu para ser padre,
mas acho que não vai agüentar essa política do Vaticano...”
Semanas depois,
telex passado, fui abrir uma cervejinha, já tarde da noite em Bonn. Toca o
telefone: “Te manda para a Itália. O papa morreu”. “Sei... Morreu de novo?
Quem tá falando?”
Tinha morrido João
Paulo I, não era trote. A esta altura, já morrendo de saudades do Brasil,
estava desmontando a casa para voltar e este pequeno imprevisto obrigou-me a
levar a família toda para a Itália, ficar esperando de novo a fumacinha sair
do Vaticano para poder voltar. Mariana, a filha mais velha, comemorou como se
fosse um gol do Brasil quando anunciaram a eleição de João Paulo II, que está
lá até hoje.
O Brasil
fervilhava com a volta dos exilados, o processo de abertura política, os
últimos exteriores da ditadura. Não queria perder esse trem. Em São Bernardo
do Campo aparecia um tal de Lula, desafiando o regime e comandando dezenas de
milhares de operários em greves e assembléias que prenunciavam um novo tempo.
Na Isto É do Mino Carta, fui
reencontrar Clóvis Rossi e Raul Martins Bastos, os mesmos que me tinham dado
toda força quando comecei na grande imprensa. Respirava-se liberdade. A
empolgação era tanta que, em meio a um dos copiosos jantares no velho Giovanni,
o Mino resolveu que estava na hora de fazermos um jornal. Poucas semanas
depois, estava nas bancas o Jornal da
República, fantástica experiência, que durou pouco tempo, mas valeu por
toda uma vida de repórter. A sorte continuava ajudando.
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Logo no primeiro
número, demos um furo de estourar a boca do balão. Mino tinha me mandado
entrevistar Garrincha, que estava internado, esquecido numa pequena clínica do
interior do Estado do Rio. No final do papo, garantindo que estava bom,
Garrincha me disse que, no domingo, iria participar de um jogo de veteranos em
Presidente Prudente, no interior paulista. Pensei: ou ele endoidou de vez ou
essa é a grande matéria do ano. Todo mundo dando Garrincha como condenado e o
homem falando que ia jogar. Foi. Solano José, o fotógrafo, e eu fomos junto
com ele no ônibus dos veteranos, mais de 10 horas de viagem. Cobrimos o jogo
sozinhos, com telefoto e tudo — transmitida da casa do prefeito —, e lá estava
o manchetão no n. º 1 do novo jornal.
Quem lê essas
histórias contadas assim, muitos anos depois, tomando uma cervejinha na varanda
do sítio, e só lutando contra o vento, que ameaça levar as laudas já escritas
embora, pode imaginar que tudo sempre dá certo quando se tem sorte e vontade
de contar uma história — porque repórter, no fundo, é isso, um contador de
histórias da vida presente. Nem sempre. Poucas semanas depois do “furo” do
Garrincha voltando a jogar bola, o Mino Carta me mandou numa segunda-feira a
Nova York, para acompanhar o Brizola na volta ao Brasil, marcada para a
quarta-feira da mesma semana, depois de 15 anos de exílio.
Já foi uma batalha
conseguir o visto assim em cima da hora — era feriado americano na segunda e
tive que ir a Brasília implorar uma ajuda na embaixada dos EUA — e eu só teria
24 horas para contar 15 anos de exílio antes que o homem embarcasse de volta.
Como já o conhecia da Alemanha — ele participou de um congresso da
Internacional Socialista em Hamburgo, onde mais o ajudei com informações do que
entrevistei, pois o Brizola tinha ficado muito tempo enfurnado no interior do
Uruguai fui muito bem tratado, deu para fazer uma bela matéria, que rendeu toda
a última página. Até aí, tudo bem, só faltava pegar o avião de volta.
P. 83
O roteiro do
retorno do Brizola era um negócio maluco: de Nova York, ele ia para Assunção,
no Paraguai; de lá, pegaria outro avião até o Uruguai e, finalmente, retornaria
ao Brasil, entrando pela fronteira gaúcha. Só que o avião fazia uma escala em
Washington — e, ali, eu daria, junto com alguns colegas, parentes e
correligionários do Brizola, a maior mancada profissional da minha vida. Como
todo mundo desceu, desci também, sem reparar que o Brizola tinha ficado, porque
sua mulher, dona Neuza, não estava passando bem. Eram mais de 30 pessoas,
entre jornalistas, familiares e amigos, acompanhando a volta dele ao Brasil. E
lá ficamos todos, esperando a chamada para embarcar, que nunca vinha.
“Larga mão de ser
caipira. Você acha que o avião vai embora sem a gente?’’, censurou-me um
colega, ao perceber que eu já estava me impacientando com a demora. Afinal,
tinha viajado tanto só para estar com o homem no avião — e não estava. Não deu
outra: quando finalmente resolvi perguntar o que estava acontecendo,
informaram-me candidamente que nosso vôo já havia partido. Se fosse um
jatinho, ainda vá lá, mas como era um Jumbo da Braniff, ficava meio difícil
pedir para o avião voltar. Bem que o Brizola ainda tentou, explicando ao
comandante do que se tratava. Até sua filha, Neuzinha, tinha ficado para trás.
Lá ficamos nós no
aeroporto de Washington: sem roupa, que seguiu no avião, sem dinheiro, que já
tinha acabado e, pior, sem o Brizola, que voltava solitário para seu Rio Grande
do Sul. Ricardo Giraldez, o fotógrafo que me acompanhava, fazia sua primeira
viagem como enviado especial ao exterior e entrou, literalmente, em desespero.
Ainda tentei dar uma de colega mais velho, mais experiente: “essas coisas
acontecem com os melhores jornalistas...” — mas não teve jeito. O Giraldez
tinha certeza de que seríamos demitidos.
“Se o problema é
esse, velho, só tem um jeito: antes do Mino falar qualquer coisa, a gente já
vai logo pedindo demissão para evitar o vexame”, tentei consolá-lo. Só
conseguimos chegar no Brasil dois dias depois do Brizola — todos os vôos
estavam lotados — e fomos direto para a redação. Quem não esperou a gente
falar foi o Mino.
“Muito bem, senhor
Kotscho (quando ele ficava puto cha-
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mava a gente assim, de senhor e
pelo sobrenome), diante do que aconteceu não vou demiti-lo nem quero que o
senhor se demita. Na próxima semana, volta o Miguel Arraes e o senhor está escalado
para a cobertura. Mas não vai a Paris para voltar com ele, porque pode perder o
avião de novo. Vai direto para o Crato e espera o Arraes chegar lá. E vai de
ônibus, senhor Kotscho.”
Foi a maior
esculhambação que levei na vida, mas foi elegante, e valeu: nunca mais perdi
um avião, e pude fazer no Crato, a região do sertão cearense onde Arraes
nasceu e sua família ainda vivia, uma das mais emocionantes e gratificantes
coberturas da minha carreira. O fotógrafo João Bittar e eu viajamos umas 12
horas de ônibus do Recife até o Crato. De tão apavorado, não descia nem para ir
ao banheiro nas intermináveis e incontáveis paradas ao longo da estrada. Se
perdesse o ônibus, depois daquela de Washington, também já seria demais. Quando
chegamos lá, já tinha um batalhão de jornalistas e não sobrava muita novidade
para contar. Resolvi, então, num raro acesso de inteligência, reunir as
lembranças da família Arraes, a começar pela sua mãe, que já era bem velhinha,
mas muito lúcida, e escrever uma reportagem em forma de carta ao Arraes, como
se eu fosse da família.
Mino abriu a carta
na última página — a página nobre de reportagem — e para sorte minha o JR foi parar na mão do Arraes na
escala do Rio (ele saiu direto do jato que o trouxe de Paris para o jatinho
que o levaria ao Crato). Ao chegar em casa, quis saber quem era o repórter com
nome de japonês, levou-me para o quarto de sua mãe e deu um depoimento de lavar
a alma depois da tragédia de Washington. Perdi o Brizola, mas ganhei o Arraes —
e aprendi que a vida é assim mesmo, um jogo, nada como um dia depois do outro.
Todo mundo fazia
de tudo no JR, da pauta à
edição, e trabalhava-se de manhã cedo até tarde da noite. Não existia
autocensura. A alegria de se trabalhar numa redação dessas, po-
P. 85
rém, tinha seu preço: a linha
editorial, nem digo progressista, mas independente, afugentava anunciantes. Era
precário o esquema de impressão e distribuição do jornal, entregue aos Diários
Associados já na sua fase agonizante. Desta forma, a utopia de um jornal de
jornalistas durou pouco e, com o fim da experiência, no começo de 1980, Cláudio
Abramo, que tinha sido secretário de redação do JR, recomendou ao Otávio Frias, dono da Folha, a contratação de alguns dos seus profissionais, entre
eles o Rossi e eu.
A Folha, sob a direção de Abramo,
tornara-se no final dos anos 70 uma espécie de porta-voz da emergente sociedade
civil, abrindo suas páginas aos que empurravam o processo de abertura política
contra os resquícios do autoritarismo. Era, basicamente, um “jornal de autor”,
quer dizer, seus profissionais tinham autonomia plena para escrever e se responsabilizavam
por isso, já que a maioria das matérias era assinada. A diversidade de estilos
e enfoques da realidade brasileira podia dar ao jornal uma aparência de “saco
de gatos”, mas isso era, na verdade, apenas o reflexo das perplexidades
nacionais, entre o fim da ditadura e o início de um novo ciclo, que ninguém
ainda imaginava como seria.
Ao contrário dos
seus concorrentes, que pareciam anestesiados pela liberdade recém-conquistada,
a Folha investiria fundo na
reportagem, dando aos seus profissionais todos os recursos para executarem um
vigoroso trabalho de resgate da realidade nacional. Alguns temas, no entanto,
ainda eram considerados tabus. Um deles era o do conflito de terras no norte do
país, que a cada ano matava mais gente, mas merecia apenas breves registros no
estilo “boletim de ocorrência” nos nossos jornalões. Batalhei bastante tempo
por esta pauta até que, talvez vencido pelo cansaço da minha aporrinhação, o
Boris Casoy autorizou a viagem até o sul do Pará, na região conhecida por “Bico
do Papagaio”, o coração dos conflitos.
Saímos do pátio da
Folha, o fotógrafo Ubirajara
Dettmar (hoje fotógrafo oficial da Presidência da República, vejam que chique),
o motorista Sebastião Ferreira e eu, numa velha Caravan, com destino a
Conceição do Araguaia, no Pará. O dinheiro que nos deram, mesmo dormindo quase
sempre em casas de
P. 86
amigos e paróquias, só deu para
chegar a Conceição, e o jornal não queria mandar mais porque a verba do mês
tinha acabado. Assim, só nos restava uma saída, expliquei ao Boris: vender o
carro do jornal para a gente poder voltar. Dias depois, chegou a ordem de
pagamento e pudemos seguir em frente na nossa aventura, a mais perigosa e
cansativa com que já topei pela frente.
Os grandes
fazendeiros, que mais tarde criariam a UDR, seus pistoleiros e toda a
parafernália policial e jurídica colocada pelos militares a serviço do
latifúndio não gostavam de jornalistas. Donos da vida e da morte, consideravam
nossa presença uma invasão dos seus domínios. Com nossa Caravan pintada de
amarelo e “Reportagem” escrito bem grande nas portas abaixo do logotipo do
jornal, era impossível passar despercebido. Perdemos a conta de quantas vezes
nos ameaçaram sutilmente de morte, se não puxássemos logo o carro. Mas o maior
medo não foi nem provocado por homens armados. O primeiro grande susto foi numa
noite em que chovia muito na Transamazônica e eu achava melhor parar. Parar
onde? Ferreira cismou de seguir em frente, sem enxergar nada, e eu, de
co-piloto, só ia avisando das armadilhas do caminho. “Pára, que não tem mais
ponte”, berrei a poucos metros da margem de um rio, onde antes da chuva havia
uma ponte. O jeito era passar por dentro do rio antes que alguma onça nos carregasse
com carro e tudo, mas era primeiro preciso ver a fundura. Descalço, calças
arregaçadas, encarreguei-me da missão, dei o sinal de OK e, quando o Ferreira
apontou os faróis para onde estava, vi uma imensa cobra capaz de engolir dois
Dettmar. Pouco adiante, achamos uma pousada que estava lotada. O dono resolveu
quebrar um galho diante dos nossos apelos e nos instalou num quarto onde os
hóspedes não tinham voltado ainda naquela noite. A gente já estava dormindo
quando os donos do quarto apareceram, furiosos, batendo com o revólver na
porta. Fingi-me de morto. Ferreira teve o estalo: “Dettmar, pega a arma”. A
gente não tinha arma nenhuma, mas os caras desistiram. Para chegar a um antigo
quilombo, na viagem de volta, tivemos que atravessar o Tocantins numa
precaríssima canoa, num lugar onde o rio tem mais de 800 metros de largura e
muita correnteza. Com toda tralha fotográfica do Dettmar, a canoa só ficava
dois dedos pa-
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ra fora da água e qualquer descuido
poderia ser o último. Só dessa viagem ficamos com histórias para contar por
muito tempo. Entramos na redação vitoriosos, correndo para o abraço, já que
tínhamos feito tudo previsto na pauta, e muito mais, recolhendo material
suficiente para encher mais de dez páginas de reportagens. Tudo no papel, levei
o material com fotos para o Bóris, que só deu uma espiada na primeira lauda.
“Aqui, ó, que vou
publicar isso”, comunicou-me o chefe, dando uma banana. Faltava, segundo o
Bóris, ouvir o governo. Bem que tentei. Como esta era uma área de segurança
nacional, o máximo que consegui foi deixar um questionário por escrito no
Palácio do Planalto, em cujo bunker
funcionava um certo Getat — Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins, o
órgão do Conselho de Segurança Nacional responsável pela área do “Bico do
Papagaio”. Passaram-se semanas e nada deles responderem. Vai assim mesmo,
pensei, azar deles. Não foi. O pacote de matérias dormiu mais de oito meses em
alguma gaveta do jornal, até que o Otávio Frias Filho, então apenas o filho do
Frias velho, perguntou ao Dettmar por que não fazíamos mais “aquelas
reportagens”. O Dettmar, então, contou a história toda e, no dia seguinte,
começou a publicação da série de reportagens, por ordem da direção.
Mais tarde
transformada em livro, editado pela Brasiliense, a história do Massacre de Posseiros acabou sendo
publicada também na França e na Itália. Foi até engraçado. Na mesma época da
publicação da série na Folha, o
jornal me mandou cobrir um quebra-quebra em Salvador, e todo dia saíam matérias
assinadas minhas da Bahia e do Pará ou do Maranhão, o que me dava um certo
sentimento de onipresença, mas os leitores não devem ter entendido nada.
Justiça lhe seja
feita, a não ser nesse episódio, o Bóris deu toda retaguarda para quem queria
fazer reportagem e respeitava o texto de cada um. O movimento popular
encontrava espaço no jornal e foi nas andanças pela periferia, em contato com
líderes comunitários e religiosos, a maioria ligados ao PT (o movimento dos
operários do ABC já tinha se tornado um partido), que descobri em gestação
alguma coisa vaga, forte, crescente. Era ainda
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um movimento meio difuso, que
misturava no mesmo ato público, marcado para a praça Charles Muller, no
Pacaembu, em fins de 1983, manifestações de solidariedade ao povo da Nicarágua
e por eleições diretas no Brasil.
Uma tarde,
voltando da chácara onde ainda moram minha mãe e meu irmão, em Cotia, fiquei
pensando se aquilo não poderia ser a grande bandeira que faltava à Folha para se firmar como o jornal da
redemocratização do país. Na segunda-feira, logo cedo, botei as idéias no papel
e levei ao Adilson Laranjeira, como sugestão de pauta. O Adilson explicou que
não poderia decidir sozinho e prometeu levar a proposta à reunião que tinha
todos os dias, no começo da tarde, com o Frias. A partir daí, por ordem do dono
do jornal, que leu a sugestão em voz alta, a Folha resolveu bancar aquilo que em pouco tempo se tornaria o
maior movimento de massas da história política do país, a Campanha das Diretas.
Tínhamos todo o
espaço do mundo, podíamos viajar para onde fosse, o importante era manter o
assunto todo dia no jornal. Pela primeira vez, senti-me participante, e não
apenas testemunha profissional. Como só a Folha cobria todos os comícios, os apresentadores começaram a
anunciar a presença do repórter do jornal junto com a dos líderes políticos. No
avião, entre uma cidade e outra, conversando com Ulysses Guimarães, Lula,
Brizola, não me limitava a fazer matérias mas a dar palpites e, junto com eles,
pude ver o povo tomando conta das praças e ruas do Brasil. O jornal era
disputado, literalmente, a tapas. Em Rio Branco, num domingo, o governador do
Acre deu ordens ao chefe da Casa Militar para “requisitar” um exemplar da Folha, onde fosse, para o Dr.
Ulysses. Matérias das Diretas publicadas na Folha eram multiplicadas em xerox. Se tivesse que largar a profissão
naqueles dias, já teria valido a pena.
P.89
A Emenda das
Diretas acabaria sendo derrotada, contra a vontade nacional, por um grupo de
parlamentares que apoiaram a ditadura, deram sustentação a Sarney e agora dão a
Collor, conhecido por “centrão”, a turma do “é dando que se recebe”, sempre os
mesmos. Chorei de raiva naquela noite, xinguei deputados que se esconderam na
hora da votação e ainda armamos uma briga com a direção do jornal. Eles queriam
que a gente mandasse a última matéria até as 23 horas, mas a votação estava
apenas começando e era impossível escrever qualquer coisa sem saber o resultado
— afinal, estava sendo decidido ali o destino do país.
Por azar nosso, a
votação acabou de madrugada, deu um crepe nas comunicações e acho que só passamos
a última matéria lá pelas três da manhã. Poderíamos ir todos para a rua, mas
ninguém estava preocupado com isso. O país todo tinha sido derrotado, que
importância tinha nosso emprego? Não deu outra: mesmo sendo o último jornal a
chegar às bancas, a Folha foi o
primeiro a se esgotar em todo o país. O concorrente “Estadão”, que fechou no
horário de costume com a impagável manchete “Faltam votos para a aprovação das
diretas”, teve um monumental encalhe. A direção da Folha ainda tentou rodar uma segunda edição, mas não foi
possível porque o pessoal das oficinas já não podia ser convocado e os
caminhões estavam longe nas estradas.
Enquanto Tancredo
era “eleito” pelo Colégio Eleitoral, o jornal dava início à implantação do
chamado “Projeto Folha”, com a substituição de Bóris Casoy por Otávio Frias
Filho. Em poucos meses, quase toda a redação foi mudada — e o seria várias
vezes nos anos seguintes — e, no lugar do “jornal de autor” foi criado o
“jornal do manual”, com a padronização dos textos num estilo semelhante ao de
boletins de ocorrência ou formulários do imposto de renda. A nova postura
editorial, no entanto, não afetou o estrondoso sucesso de marketing da cobertura das Diretas, a
marca registrada do jornal. A empresa investiu pesado numa área em que era fraca,
o departamento comercial. Promoções, grandes campanhas publicitárias criadas
por algumas das mais competentes agências do país, a Folha foi ampliando seu mercado, mas era outro jornal. Resolvi
aceitar um convite feito pela turma do Globo Rural para trabalhar em televisão.
P.90
É mais ou menos
como você pegar um violeiro já beirando os 40 e colocar para cantar numa ópera.
Apesar de todo apoio que recebi do Humberto Pereira e sua equipe, talvez a
melhor do jornalismo de televisão, e do salário, o dobro do que ganhava no
jornal, poucas semanas e algumas viagens bastaram para me mostrar como eram
diferentes esses dois mundos. Seria preciso começar tudo de novo. Lá encontrei
o Zé Hamilton Ribeiro, o melhor repórter da minha geração, veterano de redações
de jornais e revistas (ele era um dos papas da reportagem quando fui tentar
emprego na Realidade). O Zé se
deu muito bem com o novo veículo e isso poderia servir de estímulo para mim,
mas, ao final de três meses de experiência, decidi que era melhor voltar ao
jornal, pois o que gosto mesmo é de escrever e, na TV, esta é uma atividade,
digamos, acessória.
Como tinha saído
de licença, voltei a fazer o mesmo de antes na Folha. Tudo tinha mudado, porém: em vez de passar dois ou três
dias levantando uma matéria para esgotar o assunto, a ordem agora era fazer
duas ou três matérias por dia. Horários rigidamente controlados — às vezes,
tinha que escrever sobre um evento antes que começasse ou sobre um jogo de
futebol antes que terminasse — e espaços milimetricamente limitados, já não se
dava muita importância à qualidade do texto ou da informação, mas apenas ao
cumprimento das normas industriais do manual. Num seminário promovido pelo
jornal, no auditório do jornal, para um grupo de recém-formados em Jornalismo,
fiz todas as críticas que costumava fazer ao “Projeto Folha” na redação, e um
deles me perguntou: “Falando essas coisas, você não tem medo de ser demitido?”.
Nunca tinha
pensado nisso e fiquei triste ao constatar que um jovem, antes mesmo de começar,
já alimentava essas preocupações. Disse-lhe que sempre falei e escrevi o que
pensava e nunca fiquei um dia desempregado. Ao contrário, sempre procurei sair
das empresas antes que saíssem comigo. Um dia, ao voltar da cobertura da Copa
do México, em 1986, junto com o Carlos
P.91
Brickmann, que já estava na Folha da Tarde, cheguei de manhã na
redação, fiquei olhando as pessoas — não conhecia mais quase ninguém — e
descobri que tinha encerrado o ciclo da Folha
— certamente, o mais rico da minha carreira, tanto do ponto de vista
pessoal como profissional. Por mais uma dessas felizes coincidências do
destino, o Augusto Nunes, que tinha sido meu “foca” no “Estadão”, estava saindo
da Editora Abril para assumir a direção do JB em São Paulo, e fomos juntos para lá.
Embora fosse uma
sucursal, o Augusto trabalhava em pique de matriz, batalhando espaços e
animando a tropa. Por essa época, muita gente dizia que para saber o que se
passava em São Paulo era preciso ler um jornal do Rio — no caso, o JB. Emplacamos belas reportagens,
furos e manchetes — como a Califórnia Paulista, a febre dos rodeios, a
construção do submarino nuclear nas instalações secretas de Iperó, as
inconfidências do general Figueiredo num jantar com empresários, a explosão da
música sertaneja —, temas que os concorrentes só descobriram meses e até anos
depois.
Estava ali
sossegado, tocando meu barquinho sem fazer alarde, quando o velho amigo Lula me
chamou, no final de 1988, para trabalhar com ele na campanha presidencial.
“Nunca fui assessor, não sei como faz isso”, tentei explicar a ele, mas o Lula
cortou logo: “Não enche o saco, eu também nunca fui candidato a presidente da
República...”. E lá embarquei eu na mais fantástica aventura humana que um
jornalista brasileiro poderia querer na vida. Cruzamos esse país várias vezes
durante todo o ano de 1989, primeiro em aviões de carreira e no final num
jatinho sem banheiro, o que levou o Chico Buarque, durante uma viagem de Maceió
para São Paulo, a improvisar um pinico numa garrafa plástica de água mineral.
Vimos o Brasil ficar de pé, de novo, mas, como na Campanha das Diretas, só
chegamos perto. Faltou pouco.
P.92
Ninguém deveria
dar um tostão furado se nos visse, no começo da campanha, acordando de
madrugada para falar com a turma que entra cedo na fábrica — a origem do PT e
ainda hoje sua principal razão de ser. Poucos eram os repórteres que se
dispunham a acompanhar a maratona, que compensava a absoluta falta de recursos
materiais com o esforço físico. Ao ver o resultado desse trabalho nos meios de
comunicação, dava até vontade de desistir: ou não saía nada ou vinha pau puro
em cima das administrações petistas.
De tão pobre que
era a campanha, às vezes achava mesmo melhor que a imprensa não a cobrisse
porque, como diz o Joãozinho Trinta, pobre não gosta de pobreza. Mas era
impossível não se empolgar ao ver o Lula se multiplicando em muitos, atendendo
cada etapa da agenda como se fosse a única ou a última da longa corrida de
obstáculos. Quase sempre junto com a mulher, Marisa, e dois ou três
companheiros, Lula gastava a garganta para pregar, basicamente, sempre a mesma
coisa: a luta por justiça social, por uma mais humana distribuição de renda
para que todos possam ter as mesmas oportunidades de uma vida digna. Enquanto os
outros candidatos prometiam, eles próprios, levar o povo ao paraíso e
transformar água em vinho, Lula propunha a luta de todos para o resgate da
cidadania e da soberania nacional.
O candidato do establishment era apontado como um
fenômeno de marketing. Com três
programas seguidos, de uma hora, em cadeia nacional de rádio e televisão, com
todos os recursos do mundo e o apoio descarado dos principais veículos de
comunicação do país, até eu. Mesmo assim, quando faltava uma semana para as
eleições e as projeções indicavam a irreversível ascensão de Lula, que o
levaria à vitória se um fato novo não acontecesse, Collor jogou para o espaço
todos os seus marqueteiros, dispensou os estrategistas e comunicólogos, chamou
o irmão com seus “encanadores” e partiu para a ignorância.
Em qualquer país
civilizado, quem assim age, sem respeitar mais nada, no desespero, acaba
topando com um Watergate pela cara e, se não vai para a cadeia, ao menos não
fica no governo. Aqui, Ferreira Netto vira candidato ao Senado pelo PRN e o responsável
pela Justiça Eleitoral, Francisco Rezek, vai para o Minis-
P.93
tério do candidato vitorioso.
Aquela que foi a mais bela das aventuras acabou se transformando, em mim, na
mais funda amargura, não pelo resultado eleitoral em si e pela forma como foi
alcançado, mas pelo comportamento da imprensa durante e depois da campanha —
implacável com os candidatos populares e servil diante do poder econômico e
político que se mantém desde Cabral.
Está certo, seria
surpreendente se assim não fosse. Para quem começou a trabalhar em 1964, quando
todos aplaudiram o golpe militar contra um governo legitimamente eleito, nada
mais parece capaz de surpreender ou indignar. Mas sou de um tempo em que os
jornalistas acreditavam na utopia. Sonhavam que, com seu trabalho, poderiam
mudar o mundo, criar uma sociedade melhor para se viver. Fica difícil mudar
depois de velho. Por isso, não vejo a hora de voltar a ser correspondente no
exterior. Lá fora, pelo menos, não tenho nada a ver com o que acontece, posso
me limitar a contar o que se passa, com a maior neutralidade do mundo. Num país
como o nosso, com tantos contrastes e injustiças, fica mesmo difícil não chorar
e rir junto com o povo que luta por sua libertação contra uma das elites mais
retrógradas, arbitrárias e desumanas que esse mundo já criou. A vida, aprendi,
é feita de ciclos e, com a campanha do Lula, mais um deles se fechou. Está na
hora de recomeçar, em algum outro lugar do mundo, de preferência onde possa dar
um final feliz às minhas histórias, porque a vida, afinal, apesar de todo gosto
pela aventura, é uma só, e a utopia não tem endereço fixo.
Numa profissão
como essa, se a gente perder a capacidade de sonhar e ser um agente da utopia,
é melhor mudar de ramo. A cada dia, a cada semana, tenho mais provas disso.
Estava voltando de Minas, onde fui participar de um seminário de “marketing político” (no Brasil, em
dois tempos, basta você participar de uma única aventura, como foi a da
campanha do Lula, que
P.94
já vira logo “especialista”), já
vencendo o prazo para entregar este texto, quando aconteceu mais uma. No Pontal
do Paranapanema, a 800 e tantos quilômetros de São Paulo — li no avião —, umas
três mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças sem-terra, tinham invadido
uma fazenda e a Polícia Militar, a pedido da Justiça, estava ameaçando tirá-las
de lá na porrada.
“Quem está no
Pontal do Paranapanema?”, perguntei, assim que cheguei no jornal, e fiquei
sabendo que ninguém tinha ido. A invasão já durava uma semana, os outros jornais
estavam dando primeira página com a história, e a gente cobrindo tudo por
telefone. Não tinha mais lugar no avião para Presidente Prudente, o aeroporto
mais próximo do local do confronto. Já eram mais de três da tarde quando
pegamos a estrada, o Faustino, fotógrafo, e o Isaías, piloto dos bons. Chegamos
lá já de madrugada, dormimos umas três horas numa espelunca e caímos de
páraquedas no meio da guerra, mais de mil homens da PM cercando a área.
Sonado, morrendo
de frio, sentindo-me o próprio Raul Solnado, aquele comediante português que
fez muito sucesso no Brasil contando histórias semelhantes, procurei saber quem
mandava do “lado de cá”, o da polícia. Encaminharam-me a um mal-encarado
capitão, cheio de autoridade, que já foi logo avisando que não podia dar
entrevistas. Expliquei-lhe que não estava interessado em entrevistas àquela
altura do campeonato, mas apenas queria saber por onde entrava na fazenda
ocupada para conversar com a turma do “lado de lá”, quer dizer, os sem-terra.
Nos jornais que li no caminho, já sabia tudo sobre o que a PM ia fazer, o que o
juiz achava, a opinião do delegado e do governo do Estado, só não sabia o que
estava acontecendo no acampamento — era o que faltava contar, imaginei,
chegando com uma semana de atraso.
O juiz tinha dado
prazo até o meio-dia para o pessoal deixar a área “pacificamente”. Já tinha
chegado polícia da capital e de outras regiões, cavalaria, tropa de choque e
tudo, para tomar as providências de praxe caso a ordem não fosse cumprida. Mas
assim que o dia amanheceu, quando a gente estava entrando na fazenda ocupada,
já tinha nego saindo com suas tranqueiras. Numa assembléia, pouco antes, eles
decidiram que não havia con-
P.95
dições de resistência — seria um
suicídio coletivo de fazer inveja ao Jim Jones. Comecei a fazer a matéria ali
mesmo no portão, com os primeiros sem-terra que estavam debandando e fui
falando com quem encontrava pelo caminho (a gente nunca pode esperar a hora
certa de começar a fazer a matéria, o negócio é não arriscar). Os líderes da ocupação,
com todos os motivos do mundo, pois tinha até repórter passando informações
para a polícia, estavam putos com a imprensa em geral e não queriam papo. Sem
pressa, fui-me enturmando numa barraca quando começou a chover é descobrindo
aos poucos o que estava acontecendo. Não demorou, pintou um peão com cara de
bravo e interpelou o “Zumbi”, um dos líderes com quem estava puxando conversa:
“E esse aí quem é?”. O “Zumbi” tentou acalmá-lo, mas não teve jeito: “Esse aí
tem cara de fazendeiro, cuidado com ele”, disparou, apontando para mim.
Se ter um sítio de
seis alqueires que só me dá prejuízo há dez anos é ser fazendeiro, ele não
deixava de ter razão. A chuva apertou, mas o pessoal ia desmontando as
barracas. Os caminhões dos fazendeiros da UDR, gentilmente servidos à Polícia e
à Justiça para transportar os invasores, encalhavam na estrada de barro. Mesmo
assim, quase todo mundo já tinha debandado quando venceu o prazo fatídico do
meio-dia. Ficaram para trás os mais fracos, os mais velhos, os que tinham mulher
e crianças para carregar. A polícia não quis nem saber. Como já estavam havia
dias prontos para atacar — os oficiais alojados num confortável hotel da CESP
(Centrais Elétricas de São Paulo) e o restante da tropa nos alojamentos dos
canteiros de obras da Camargo Correia, a empreiteira de Sebastião Camargo, o
homem mais rico do país, que tem muitas léguas de terras na região — eles não
quiseram nem saber: avançaram sobre as poucas barracas ainda de pé e os raros
retardatários como se estivessem resgatando a terra brasileira tomada por
inimigos estrangeiros. Para completar a cena grotesca, atrabiliária e
absolutamente desnecessária, ainda hastearam a Bandeira Nacional.
Umas poucas
famílias, que não tinham para onde ir, os deserdados do lumpezinato rural que grassa
pelo país, ficaram mesmo pela beira da estrada, tentando remontar suas barracas
co-
P.96
bertas de plástico preto, o adereço
certo para este espetáculo fúnebre do trabalhador rural sem terra no Pontal do
Paranapanema, Corri para o hotel — a gente vive sempre correndo contra o
relógio, embora eu nunca tenha usado esse importante instrumento de trabalho e,
até hoje, não tenha uma agenda — e fui estrear minha “marmita”, o apelido
carinhoso do computador portátil Tandy, a última palavra do jornalismo cibernético.
Não sabia nem onde ligar aquela porra, mas acabei conseguindo parir a matéria
com a ajuda da minha amiga Júlia, enviada especial do concorrente O Globo (espero que Roberto Marinho
não saiba disso).
Tudo pronto,
preparei-me garbosamente para transmitir minha primeira matéria diretamente de
computador para computador, via telefone. Na primeira tentativa, nada. Na
segunda, nada. “O nosso computador está pifado”, comunicou-me Gilberto, o
chefão da informática da sucursal do JB
em São Paulo. “Manda direto para o Rio”. Demorou um pouco para explicar à
telefonista da CESP que eu precisava falar com o computador do Rio. Quando o
computador atende, dá um sinal igual ao de ocupado, e ela desligava. Para
resumir a história, acabei levando mais tempo para fazer a matéria chegar ao
destino do que nos heróicos tempos da cobertura da morte do presidente Castello
Branco em Fortaleza, no Ceará de 1967, quando os textos seguiam por telegrama,
via Western, e as fotos por um mastodôntico aparelho de rádio (Faustino levou
três horas para transmitir suas fotos, quer dizer, telefotos, porque vivemos
num país que ainda não conseguiu se entender nem com a telefonia, quanto mais
com a informática). Pela primeira vez, ao fazer a primeira refeição do dia, já
lá pela meia-noite, sujo, fedido, molhado, humilhado por ter escrito mais uma
história trágica de final absolutamente infeliz, achei que tinha passado minha
hora, reportagem é coisa para pessoas mais jovens, de preferência absolutamente
insensíveis. Bobagem. No dia seguinte, ainda quebrados, pegamos a estrada de
novo, mas antes passamos pelo acampamento da beira da estrada para deixar um
pouco de comida para aquela gente que passou a noite na chuva, gemendo sob um
frio europeu — a única coisa de útil que pudemos fazer depois que tudo acabou e
a história já estava impressa no jornal. Na estrada, ainda cruzamos com as
P.97
tropas, bem agasalhadas, voltando
para seus quartéis em ônibus gentilmente cedidos pela Viação Andorinha. Vale a
pena?
Valeu, mas quero
mais, antes de ir-me embora para Porangaba escrever livros para crianças, meu
projeto para a velhice que vem chegando (no Brasil, repórter com mais de 40 já
é ancião). Ando obcecado ultimamente por histórias com final feliz — e o jeito
é esse, partir para longe ou para a ficção, na esperança de que um dia ela se
torne real, aqui mesmo no Brasil, a terra da utopia dos meus pais. Quase meio
século depois, quem diria, a utopia da sociedade ideal do ano 2.000 ressurge no
ponto que eles deixaram, arrasado pela guerra. Quero acompanhar de perto esta
aventura, quem sabe minha última, bem ali onde esta história começou.
Porangaba,
inverno de 1990
P.98
P.99
Nascido em 28 de
agosto de 1956, em São Paulo, Gilberto Dimenstein, diretor da sucursal da Folha de S. Paulo em Brasília, é
reconhecido na imprensa como um dos principais jornalistas investigativos do
país, autor de reportagens com repercussão nacional e internacional. Ganhou
vários prêmios de jornalismo nos últimos anos, entre eles dois prêmios Esso e
dois prêmios Libero Badaró de Imprensa, em 1989 e 1990. Suas reportagens
transformaram-se em best-sellers como
A República dos Padrinhos e A Guerra dos Meninos, além de O Complô que elegeu Tancredo, este
realizado em conjunto com outros jornalistas. O livro-reportagem Conexão Cabo Frio permaneceu por oito
meses na lista dos mais vendidos de Brasília. Iniciou sua carreira em 1977, na
revista Shalom e, até se mudar
para a Folha, passou pelo O Globo, Jornal do Brasil, Correio
Brasiliense, revistas Veja
e Visão.
Ricardo Kotscho
nasceu no dia 16 de março de 1948 em São Paulo e é repórter da sucursal
paulista do Jornal do Brasil. É
um dos mais importantes jornalistas de sua geração, ganhador de três prêmios
Esso e dois Vladimir Herzog. Começou sua carreira na Folha Santamarense, em 1964, passando pela Gazeta de Santo Amaro, O Estado de S. Paulo,
Jornal do Brasil, Isto É, Jornal da República, Folha de S. Paulo, TV Globo.
Foi assessor de imprensa da campanha presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva,
em 1989. É autor de 13 livros, entre os quais destacam-se O Massacre dos Posseiros, Explode um Novo
Brasil, Uma Ferida de Ouro na Selva, Essa Escola chamada Vida, A Prática da
Reportagem e Cuba, que Linda és
Cuba.
P.100
P.101
NOVAS BUSCAS EM COMUNICAÇÃO
VOLUMES PUBLICADOS
1.
Comunicação:
Teoria e Política — José Marques de Meio.
2.
Releasemania
— uma contribuição para o estudo do release no Brasil — Gerson Moreira Lima.
3.
A
Informação no Rádio — os grupos de poder e a determinação dos conteúdos — Gisela Swetlana Ortriwano.
4.
Política
e Imaginário nos Meios de Comunicação para Massas no Brasil — Ciro Marcondes (organizador).
5.
Marketing
Político Governamental — um roteiro para campanhas políticas e estratégias de
comunicação — Francisco Gaudêncio Torquato do Rego.
6.
Muito
Além do Jardim Botânico — Carlos Eduardo Lins da Silva.
7.
Diagramação
— o planejamento visual gráfico na comunicação impressa — Rafael Souza Silva.
8.
Mídia: O
segundo Deus — Tony Schwartz.
9.
Relações
Públicas no Modo de Produção Capitalista — Cicilia Krohling
Peruzzo.
10. Comunicação de Massa sem Massa — Sérgio Caparelli.
11. Comunicação Empresarial/Comunicação
Institucional — Francisco Gaudêmio Torquato do
Rego.
12. O Processo de Relações Públicas — Hebe Wey.
13. Subsídios para uma Teoria da
Comunicação de Massa — Luiz Beltrão e Newton de Oliveira
Quirino.
14. Técnica de Reportagem — notas sobre a
narrativa jornalística — Muniz Sodré e Maria Helena
Ferrari.
15. O Papel do Jornal — uma releitura — Alberto Dines.
16. Novas Tecnologias de Comunicação —
impactos políticos, culturais e socio- econômicos — Anamaria Fadul (coordenadora).
17. Planejamento de Relações Públicas na
Comunicação Integrada — Margarida Maria Krohling Kunsch.
18. Do outro Lado do Muro — propaganda para
quem paga a conta — Plinio Cabral.
19. Do Jornalismo Político à Indústria
Cultural — Gisela Taschner Goldenstein.
20. Projeto Gráfico — teoria e prática da
diagramação — Antonio Celso Collaro.
21. A Retórica das Multinacionais — a
legitimação das organizações pela palavra — Tereza Lúcia Halliday.
22. Jornalismo Empresarial — teoria e
prática — Francisco Gaudêncio Torquato do Rego.
23. O Jornalismo na Nova República — Organização: Cremilda Medina.
24. Notícia: Um Produto à Venda —
jornalismo na sociedade urbana e industrial — Cremilda Medina.
P. 102
25. Estratégias Eleitorais — marketing
político — Carlos Augusto Manhanelli.
26. Imprensa e Liberdade — os princípios
constitucionais e a nova legislação — Freitas Nobre.
27. Atos Retóricos — mensagens estratégicas
de políticos e igrejas — Tereza Lúcia Halliday.
28. As Telenovelas da Globo — produção e
exportação — José Marques de Melo.
29. Atrás das Câmeras — relações entre
cultura, Estado e televisão — Laurindo Lalo Leal Filho.
30. Uma Nova Ordem Audiovisual —
comunicação e novas tecnologias — Cândido José Mendes de
Almeida.
31. Estrutura da Informação Radiofônica — Emilio Prado.
32. Jomal-Laboratório — do exercício
escolar ao compromisso com o público leitor — Dirceu
Fernandes Lopes.
33. A Imagem nas Mãos — o
vídeo popular no Brasil — Luiz Fernando Santoro.
34. Espanha: Sociedade e Comunicação de
Massa — José Marques de Melo.
35. Propaganda Institucional — usos e
funções da propaganda em relações públicas — J. B. Pinho.
36. On Camera — o curso de produção de
filme e vídeo da BBC — Harris Watts.
37. Mais do que Palavras — uma introdução à
teoria da comunicação — R. Dimbleby e Graeme Burton.
38. A Aventura da Reportagem — Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho.
39. O Adiantado da Hora — a influência
americana sobre o jornalismo brasileiro — Carlos Eduardo
Lins da Silva.
40. Consumidor versus Propaganda
— Gino Giacomini Filho.
41. Complexo de Clark Kent — são
super-homens os jornalistas? — Geraldinho Vieira.
42. Propaganda Subliminar Multimídia — Flávio Calazans.
43. O Mundo dos Jornalistas — Isabel Travancas.
44. Pragmática do Jornalismo — buscas
práticas para uma teoria da ação jornalística — Manuel
Carlos Chaparro.
45. A Bola no Ar — o rádio esportivo em São
Paulo — Edileuza Soares.
46. Relações Públicas — Função Política — Roberto Porto Simões.
47. Espreme que sai Sangue — um estudo do
sensacionalismo na imprensa — Danilo Angrimani.
48. O Século Dourado — a comunicação
eletrônica nos EUA — Sebastião Carlos de Moraes
Squirra.
49. Comunicação Dirigida na Empresa — Cleusa G. Gimenez Cesca.
50. Informação Eletrônica e Novas
Tecnologias — María-José Recorder, Emest Abadai e Lluís
Codina.
51. É Pagar para Ver — a TV por assinatura
em foco — Luiz Guilherme Duarte.
52. O Estilo Magazine: O texto em revista — Sérgio Vilas Boas.
53. O Poder das Marcas — J. B. Pinho.
54. Jornalismo, Ética e Liberdade — Francisco José C. Karam.
55. A Melhor TV do Mundo — Laurindo Lalo Leal Filho.
56. Relações Públicas e Modernidade — novos
paradigmas em comunicação organizacional — Margarida Maria
Krohling Kunsch.
57. Radiojomalismo — Paul Chantler e Sim Harris.
58. Jornalismo Diante das Câmeras — um guia
para repórteres e apresentadores de telejornais — Ivor
Yorke.
59. A Rede — como nossas vidas serão
transformadas pelos novos meios de comunicação — Juan Luis
Cebrián.
60. Transmarketing — estratégias avançadas
de relações públicas no campo do marketing — Waldir
Gutierrez Fortes.
61. Publicidade e Vendas na Internet —
técnicas e estratégias — J. B. Pinho.
62. Produção de rádio — um guia abrangente
da produção radiofônica — Robert McLeish.
P.103
-------------------------------------------------- dobre aqui
-----------------------------------------------
ISR 40-2146/83
UP AC CENTRAL
DR/São Paulo
CARTA RESPOSTA
NÃO É NECESSÁRIO SELAR
O selo será pago por
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P.104
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Internet: http://www.summus.com.br e-mail: summus@summus.com.br
P. Contracapa
Como bem acentua
Clóvis Rossi na apresentação deste livro, a reportagem não é uma coisa única,
feita de uma só face. Cada vez mais o mundo do jornalismo exige especialização
e o repórter é uma figura fundamental, ao contrário do que se poderia supor.
Isto porque (e ainda parafraseando Rossi) a história ocorre na rua e não em uma
redação de jornal. E rua aqui deve ser entendida no sentido mais amplo do
termo: das favelas às ante-salas do poder, das passeatas aos gabinetes dos
políticos.
É desta rua que
Gilberto Dimenstein e Ricardo Kotscho — dois dos mais importantes repórteres
brasileiros — partiram para esta aventura. Não se trata de apresentar um
“manual do bom jornalismo” porque para eles não existem fórmulas prontas. Mas
de demonstrar que por trás do talento individual de cada jornalista podem
existir princípios e técnicas que permitem chegar ao que Carl Bernstein (do
“caso Watergate”) chamou de “a melhor versão da verdade”. Dimenstein e Kotscho
se complementam na cobertura das duas faces da história: a do poder e a do
contra-poder. Neste livro você conhecerá os bastidores da reportagem, o modo de
produção e de funcionamento destes dois trabalhos aparentemente díspares mas
que possuem em comum a seriedade, a busca incansável desta “verdade”, a
criatividade e, sobretudo, um profissionalismo acima de qualquer suspeita.