Título: Teoria da norma jurídica

Autor: Norberto Bobbio

Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

Adaptado por: Janine

Revisado por: Sidney Soares Trindade. 

Adaptado em: junho de 2022.  

Padrão vigente a partir de março de 2022. 

 

Referência: BOBBIONorberto. As prescrições e o direito. In: BOBBIONorbertoTeoria Geral do Direito. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003. cap. 4. p.102-145

 

 

           

 


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Sumário

 

Capítulo IV.. 4

As Prescrições e o Direito. 4

27. O PROBLEMA DA IMPERATIVIDADE DO DIREITO.. 4

28. IMPERATIVOS POSITIVOS E NEGATIVOS.. 8

29. COMANDOS E IMPERATIVOS IMPESSOAIS.. 11

30. O DIREITO COMO NORMA TÉCNICA.. 14

31. OS DESTINATÁRIOS DA NORMA JURÍDICA.. 18

32. IMPERATIVOS E PERMISSÕES.. 24

33. RELAÇÃO ENTRE IMPERATIVOS E PERMISSÕES.. 27

34. IMPERATIVOS E REGRAS FINAIS.. 31

35. IMPERATIVOS E JUÍZOS HIPOTÉTICOS.. 34

36. IMPERATIVOS E JUÍZOS DE VALOR.. 39

 

 

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Norberto Bobbio

 

Teoria da Norma Jurídica

 

Tradução

 

Fernando Pavan Baptista Ariani Bueno Sudatti

 

Apresentação

 

Alaôr Caffé Alves


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selhos é geralmente atribuído aos órgãos públicos, o poder de mover instâncias (poder de petição) é geralmente atribuído aos particulares. E entenda-se: o conselho tem a função de dar um conteúdo à deliberação, a instância tem apenas a de provocá-la. Se concebermos o comando como instituidor de uma rela­ção entre um poder e um dever (um direito e uma obrigação), no conselho falta sobretudo o dever e, na instância, sobretudo o poder. No conselho, o que sobressai, em relação ao coman­do, é a ausência da obrigação de segui-lo; na instância, o que sobressai sempre em comparação ao comando é a ausência do direito de obter aquilo que se pede.

Uma última observação. Como distinguimos os conselhos das exortações com base na diferença entre apelos a dados de fato, raciocínios, informações e apelos a sentimentos, também assim nas espécies de instâncias se podem distinguir aquelas que se inspiram em um modelo de tipo informativo e as que se inspiram em um modelo de tipo emotivo: estas últimas são as invocações ou súplicas. A diferença entre um pedido para se obter uma permissão de caça e um pedido de graça está nos diversos argumentos que são usados: lá, claramente de situa­ções de fato, aqui, argumentos de tipo retórico-persuasivo. A primeira é um composto prescritivo-descritivo, a segunda um composto prescritivo-emotivo.


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Capítulo IV

As Prescrições e o Direito

 

Sumário: 27. O problema da imperatividade do direito - 28. Imperativos positivos e negativos - 29. Coman­dos e imperativos impessoais - 30. O direito como norma técnica - 31. Os destinatários da norma jurídica - 32. Imperativos e permissões - 33. Relação entre imperativos e permissões - 34. Imperativos e regras fi­nais - 35. Imperativos e juízos hipotéticos - 36. Impe­rativos e juízos de valor.

 

27. O PROBLEMA DA IMPERATIVIDADE DO DIREITO

 

Que as proposições que compõem um ordenamento jurídi­co pertençam à esfera da linguagem prescritiva, é velha doutri­na, conhecida pelo nome de teoria da imperatividade do direi­to, ou das normas jurídicas como comandos (ou imperativos). Citemos também nós, duas passagens de escola: a de Cícero

 


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que diz legem esse aeternum quiddam, quod universum mun- dum regeret, imperandi prohibendique sapientia... aut cogentis aut vetantis... ad iubendum et ad deterrendum idônea” [A lei é algo de eterno, que rege todas as nações, com sabedoria para ordenar e proibir... capaz de prescrever e dissuadir] (De Legi- bus, II c., par. 8); e a de Modestino que diz: “legis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire”[A essência da lei é esta: ordenar, vetar, permitir, punir] (D.l. 7, De Legibus 1,3). Pode-se acrescentar que é também a doutrina mais comum entre os juristas, a que constitui, não obstante a crítica que lhe foi feita, a comunis opinio. Ao lado da teoria imperativista, segundo a qual todas as normas jurídicas são imperativos, onde a imperatividade é elevada ao caráter constitutivo do direito, foram sustentadas doutrinas mistas, segundo as quais apenas uma parte das proposições que compõem um ordena­mento jurídico são imperativas, e doutrinas negativas, segundo as quais as proposições que compõem um ordenamento jurídi­co não são imperativas. Examinaremos, neste capítulo, estas diversas teorias e suas diversas formulações e buscaremos, do exame crítico, tirar as nossas conclusões.

A formulação clássica da doutrina imperativista exclusiva, a que todos os sucessivos seguidores fazem referência, se encon­tra formulada na obra do jurista alemão Augusto Thon, Norma giuridica e diritto soggetivo (1878), [Nota 6] uma das três grandes obras de teoria geral do direito que, no decênio entre 1870 a 1880, assentaram as bases de grande parte das doutrinas sustentadas e das discussões surgidas entre os juristas continentais em torno dos conceitos fundamentais da ciência jurídica. As outras duas são: Lo scopo dei diritto [O Objetivo do Direito] de R. Von Ihering (1877) e Le norme e Ia loro violazione [As Normas e as suas Violações] de K. Binding (os primeiros dois volumes são respectivamente de 1872 e 1877). Desde a primeira parte do livro, Thon expõe claramente seu pensamento com estas pala­vras: “por meio do direito, o ordenamento jurídico...tende a


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dar a todos aqueles que estão sujeitos a suas prescrições um impulso em direção a um determinado comportamento, con­sista este comportamento em uma ação ou em uma omissão. Este impulso é exercitado por meio de preceitos de conteúdo ora positivo ora negativo” (p. 12). As palavras que sublinhamos podem ser consideradas como uma ilustração da definição, outras vezes dada, das proposições prescritivas como proposi­ções que têm por objetivo a modificação do comportamento alheio. A formulação sintética da doutrina, lê-se um pouco mais adiante, com estas palavras, usualmente citadas: “Todo o direito de uma sociedade não passa de um complexo de impe­rativos, os quais estão uns aos outros tão estreitamente ligados, que a desobediência de um constitui frequentemente o pressu­posto do que é por outro comandado” (p. 16). E de se ressaltar que, embora a teoria imperativista caminhe pari passo (para a maior parte dos seus partidários), com a teoria estatualista, segundo a qual só constituem normas jurídicas aquelas ema­nadas pelo Estado, e com a coacionista, segundo a qual a ca­racterística das normas jurídicas é a coercibilidade ou a coação, e, assim, a crise da primeira tenha sido uma manifestação da crise da segunda e da terceira (devido à emergência e a impo­sição da teoria da pluralidade dos ordenamentos jurídicos), Thon, entretanto, não é estatualista nem coacionista. Por um lado, ele reconhece que possam existir ordenamentos jurídicos diversos dos estatais; por outro, é veemente adversário daque­les que, como, por exemplo Ihering, consideram a coação um elemento indispensável para distinguir a norma jurídica da não jurídica. A teoria imperativista nasce, na moderna teoria geral do direito, livre de compromissos com aquelas outras teorias, como a teoria estatualista e a coativista, o que será depois uma das razões da sua decadência.

Para dar uma idéia do sucesso da teoria imperativista tam­bém na Itália, me limito a citar um jurista e um filósofo do di­reito que, por terem autoridade reconhecida, podem ser consi­derados uma válida expressão da difusão da doutrina. Frances- co Carnelutti, na sua Teoria generale dei diritto [Teoria Geral


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do Direito] (2a ed., Roma, 1946) escreve: “Com a fórmula da imperatividade deseja-se denotar que o comando é o elemento indefectível do ordenamento jurídico ou, em outras palavras, o simples ou primeiro produto do direito; já afirmou-se que se o ordenamento fosse um organismo, o comando representaria a célula” (pp. 67-68). Quanto à definição de “comando”, Car- nelutti pertence à corrente dos que vêem uma relação de inter­dependência entre comando e sanção (ver a teoria exposta no tópico 20). Para ele, o comando é “a ameaça de uma sanção a quem pratica uma determinada conduta” (p. 35). Nas Lezioni di filosofia dei diritto [Lições de Filosofia do Direito], de Giorgio Del Vecchio (11a ed., Roma, 1953) lemos: “Importantíssimo e essencial caráter da norma jurídica é a imperatividade. Não podemos conceber uma norma que não tenha caráter imperati­vo, a não ser sob condições determinadas. O comando (positi­vo ou negativo) é um elemento integrante do conceito de di­reito, porque este... põe sempre, frente a frente dois sujeitos, atribuindo a um uma faculdade ou pretensão, e impondo ao outro um dever ou uma obrigação correspondente. Impor um dever significa precisamente imperar”(p. 230). Com base nesta definição, o autor exclui da esfera do direito sejam as “afirma­ções ou observações de fato”, isto é, o que nós chamamos de proposições descritivas, sejam as formas atenuadas de imposi­ção, como os conselhos e as exortações.

Pode ser interessante obeservar que, dos três habituais re­quisitos da norma jurídica: a imperatividade, a estatualidade e a coatividade, enquanto Thon, como vimos, acolhe apenas o primeiro, Del Vecchio acolhe, junto ao primeiro, também o segundo, mas não o terceiro, e, Carnelutti acolhe todos os três. Para Del Vecchio, a norma jurídica, além da característica da imperatividade, deve ter também a da estatualidade. Embora possuindo um ponto de partida comum, as três teorias se dife­renciam ao longo do caminho: o que para nós é, mais uma vez, uma prova da complexidade dos problemas e da plurali­dade dos pontos de vista e, ao mesmo tempo, um convite a uma certa cautela crítica frente a toda teoria.


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28. IMPERATIVOS POSITIVOS E NEGATIVOS

 

Os imperativos se distinguem, como veremos melhor no úl­timo capítulo, em imperativos positivos e negativos, ou seja, em comandos de fazer e em comandos de não fazer (estes úl­timos são chamados habitualmente de “proibições”). Um exemplo dos primeiros: “O usufrutuário deve restituir as coisas que constituem objeto de seu direito, ao término do usufruto...” (art. 1.001 do Código Civil italiano); um exemplo dos segun­dos: “O proprietário não pode praticar atos que tenham por objetivo unicamente causar dano ou moléstia aos outros” (art. 833 do Código Civil italiano).

Ainda, partindo da tese de que as normas jurídicas são im­perativos, a primeira pergunta que os teóricos do direito se colocam é a seguinte: o direito se compõe de imperativos de ambas as espécies? A pergunta, para dizer a verdade, parece um pouco gratuita, porque bastariam os dois exemplos citados acima para responder que em um ordenamento jurídico se encontram tanto imperativos positivos quanto negativos. No entanto, há quem não só se fez a pergunta, mas que a respon­deu, sustentando que a característica do direito, em relação à moral, é de ser constituído apenas por imperativos negativos. Entende-se que a pergunta adquiria sentido pelo fato de se dirigir não a esta ou àquela norma jurídica em particular, mas ao direito no seu conjunto, ou seja, tratava-se de uma pergunta do tipo: existe um critério geral para distinguir as normas jurídi­cas das morais? Já vimos alguns destes critérios e encontrare­mos outros. Pode-se dizer que não há critério de classificação das normas que não tenha sido utilizado para tentar resolver o maior desafio da filosofia do direito, ou seja, a distinção entre direito e moral. Um destes critérios é justamente o que permite distinguir os imperativos em comandos e proibições. Alguns jusnaturalistas, e citamos particularmente Christianus Thoma- sius - a quem por longa data se pretendeu atribuir, nada me­nos, do que a origem da filosofia do direito moderna - afirma­ram, precisamente, que a distinção fundamental entre direito e


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moral está em: a moral comanda e o direito proíbe, e portanto a característica do direito é, assim, a de ser constituído por im­perativos, porém apenas por imperativos negativos. Para Tho- masius, o princípio regulador da moral (do honestum) era: “Quod uis ut alii sibi faciant, tute tibi facies” [O que desejas que os outros a si façam, faze tu mesmo a ti]-, do decorum (que era o aspecto social da moral): “Quod uis ut alii faciant, tu ipsis facies” [O que desejas que os outros façam, faze tu mesmo]; do direito, ao contrário: “Quod tibi non uis fieri, alteri ne faceris” [Não faças ao outro o que não desejas que façam a ti], Para ele, isto queria dizer que o direito era em relação à moral menos comprometedor, porque enquanto a moral nos obriga a fazer qualquer coisa aos outros, daí a máxima: “Ama ao próximo como a ti mesmo”, o direito nos obriga, simplesmente, a abs­ter-se de fazer o mal, daí a máxima: Neminem laedere [Não lesar a ninguém]. Thomasius dizia também, para assinalar esta diferença entre a obrigatoriedade positiva da moral e a negati­va do direito, que as regras de direito impedem o mal maior (isto é, a guerra) e promovem o bem menor (a paz externa), enquanto as relativas à honestidade impedem o mal menor, porque a sua transgressão só acarreta dano a quem a transgri- de, mas promovem o bem maior, porque tornam o homem o mais sábio possível. Brevemente, digamos que desta doutrina se poderia tirar a conclusão de que a moralidade consiste no preceito de fazer o bem e o direito de abster-se de fazer o mal.

Esta distinção de Thomasius é inaceitável. Preceitos positivos e negativos se misturam na moral e no direito. E ainda Thoma­sius foi criticado, propriamente devido a esta sua distinção, por Leibniz, que ressaltou que não se poderia, a não ser a custo de diminuir o valor, reduzir o direito à obrigatoriedade negativa: ao contrário, dizia ele, não fazer mal aos outros só pelo temor de receber o mal não é obra de justiça, mas apenas de prudência. Em defesa de sua tese, Leibniz aduzia substancialmente dois argumentos: 1) os governantes de um Estado são tidos como justos não quando se limitam a não fazer o mal aos seus cida­dãos, mas quando se empenham em fazer o bem (Leibniz tinha


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uma concepção não negativa, mas positiva da função do Esta­do); 2) nenhum de nós se satisfaz quando os outros não nos causam dano, mas pretendemos, em caso de necessidade, ser ajudados, e quando nos lamentamos de ser abandonados em nossa miséria, nos lamentamos com justiça, do que resulta a justiça ser, para Leibniz, mais do que simplesmente não fazer o mal, fazer com que os outros não possam lamentar-se de nós, quando em um caso análogo nos lamentamos dos outros. Como contraprova desta sua concepção, Leibniz relegava a máxima negativa do neminem laedere [não lesar a ninguém] ao primeiro estágio das relações sociais, que ele chamava de ius proprietatis [direito do que é próprio], Era o estágio em que o dever que compete a cada um dos associados é o negativo, de não invadir a propriedade alheia, e atribuía ao estágio superior, que ele chamava de ius societatis [direito do social], a máxima positiva do suum cuique tribuere [atribuir a cada um o que é seu],

Se desejamos compreender a doutrina de Thomasius, é pre­ciso reconduzir-se à doutrina jusnaturalista da passagem do estado de natureza para o estado civil. O estado de natureza é o estado em que os homens vivem com uma liberdade desen­freada. Para sair do estado de natureza e entrar no civil, os homens deveríam impor restrições à primitiva liberdade. Estas limitações consistiam originariamente em comandos negativos, dos quais o primeiro e fundamental era o de não intervir na esfera de liberdade alheia. Concebendo o surgimento do esta­do civil como uma limitação recíproca de liberdade, o direito seria naturalmente configurado como um conjunto de obriga­ções negativas. O ponto frágil desta doutrina é que a função do direito não é apenas a de tornar possível a coexistência de li­berdade externa (e para isso, bastariam, na verdade, as obriga­ções negativas), mas também a de tornar possível a recíproca cooperação entre os homens que convivem em grupo: e para a realização desta segunda função são necessárias também obri­gações positivas. Pode-se dizer, concluindo, que a teoria do direito como conjunto de proibições nascia de uma concepção muito restrita da função do direito e do Estado.


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29. COMANDOS E IMPERATIVOS IMPESSOAIS

 

Sempre no âmbito da teoria imperativista do direito, houve quem, embora admitindo que se possa falar em imperativos jurídicos, negou que as normas jurídicas, apenas pelo fato de serem imperativos, fossem também comandos. Até agora a teoria imperativista do direito e a afirmação de que as normas jurídicas são comandos prosseguiram pari passo: inclusive até agora foi considerado como proprium da teoria imperativista a tese de que as normas jurídicas são comandos. A doutrina que examinamos neste tópico, ao contrário, introduz uma nova distinção entre comandos e imperativos jurídicos, segundo a qual as normas jurídicas pertenceríam à segunda categoria e não à primeira.

Esta tese foi sustentada pelo jurista sueco Karl Olivecrona em um livro de 1939 intitulado Law as Fact [Direito como Fato], e repetida, com uma variação objetivando precisão, em um ensaio posterior, republicado em italiano em 1954 na re­vista Jus (pp. 451-468). Olivecrona parte de uma definição restrita de comando afirmando que “um comando pressupõe uma pessoa que comanda e uma outra a quem o comando é endereçado” (p. 35). Ora, na lei, segundo ele, falta a pessoa que comanda (tanto que, desejando encontrá-la a todo custo, os juristas personificaram o Estado). Observemos como se emana uma lei em um Estado Constitucional: primeiro uma comissão elabora um projeto, depois o ministro o submete ao parlamento, e finalmente o parlamento por simples maioria o aprova. Qual entre todas essas pessoas se pode dizer que tenha expresso um comando? A teoria de Olivecrona se propõe como uma teoria realista do direito, isto é, como uma teoria que bus­ca limpar o terreno de todas as tradicionais ficções que impedi­ram de considerar o fenômeno jurídico na sua concretude: e uma destas ficções estaria na identificação da lei com o co­mando, que originou a teoria imperativista do direito.

Exposta a parte crítica, o nosso autor, na parte construtiva, afirma que “mesmo não sendo comandos reais, as normas


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jurídicas... são dadas na forma imperativa”, o que significa, para ele, que não são dadas na forma descritiva. Mas isto não significa, mais uma vez, recair nos braços da teoria imperati­vista? Ele responde que não, sustentando que há proposições imperativas que não são confundíveis com comandos. Quais são? Conservando a definição de comando como imperativo que implica em uma relação pessoal, os imperativos que não se confundem com comandos são aqueles que “funcionam inde­pendentemente de uma pessoa que comanda” (p. 43). Chama esses imperativos de independentes, e a essa categoria consig­na as normas jurídicas (e, para dar um outro exemplo, os dez mandamentos). Além disso, os imperativos independentes se distinguem dos comandos por duas outras razões: porque não se voltam a uma pessoa determinada enquanto não dizem: “Você deve fazer isto”, mas “Esta ação deve ser realizada”; e porque são redutíveis à forma de asserção, como quando uma norma do tipo “Não se deve roubar” é expressa na forma equivalente: “E um fato que não se deve roubar”, ou então, “O nosso (seu) dever é o de não roubar”.

Retomando alguns anos depois o mesmo pensamento, Oli­vecrona, no segundo ensaio citado, insiste na diferença entre comandos e proposições imperativas, considerando os coman­dos como uma espécie particular de imperativos, e como a espécie onde não se podem incluir as normas jurídicas, as quais, mais uma vez, são caracterizadas em relação aos co­mandos propriamente ditos, sobretudo pela ausência de um sujeito ativo determinado, e são chamadas, com um nome mais apropriado, não mais de imperativos independentes mas de imperativos impessoais”. Reproduzo aqui a passagem deci­siva: “Por um lado está consolidado que a lei tem caráter impe­rativo; e por outro, que não contém comandos em sentido próprio. Como conseqüência, a lei pertence à categoria que aqui definimos como imperativo impessoal.” (p. 460).

A teoria de Olivecrona é uma das tantas tentativas que fo­ram feitas, no domínio da teoria geral do direito, de encontrar o traço característico da norma jurídica em relação aos outros


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tipos de normas prescindindo da consideração de fim ou de conteúdo, ou seja, de um elemento formal. As doutrinas mais comuns são aquelas que, para encontrar este traço característi­co em um elemento formal, fundaram-se, ora na pluralidade dos destinatários da norma, distinguindo as normas jurídicas como imperativos gerais (isto é, voltados a uma generalidade de pessoas) dos imperativos individuais, ora na tipicidade da ação ordenada, distinguindo as normas jurídicas como impera­tivos abstratos (isto é, reguladoras de uma ação-tipo) dos impe­rativos concretos. A novidade da doutrina de Olivecrona está no fato de que, embora não tendo abandonado a via formal, buscou caracterizar a norma jurídica não mais no sujeito passi­vo ou na ação-objeto, mas no sujeito ativo.

Consideramos que também a teoria de Olivecrona, como toda tentativa precedente de encontrar o traço característico das normas jurídicas em um elemento formal, esteja fadada ao insucesso. E isto por duas razões: 1) o ordenamento jurídico é um conjunto complexo de regras e como tal é composto de regras de diversos tipos: toda teoria reducionista, que julga poder identificar a norma jurídica com um só tipo de imperati­vos, é unilateral e está destinada a empobrecer arbitrariamente a riqueza da experiência jurídica; 2) quando também se conse­gue fixar um tipo de imperativo que, se não exclusivo, ao me­nos possa ser considerado como prevalecente no direito, é bem difícil que este tipo de imperativo não se encontre em outras esferas normativas diversas da jurídica. Penso que esses dois argumentos podem ser aplicados à doutrina dos imperativos impessoais: por um lado, parece muito difícil demonstrar que todos os imperativos jurídicos são impessoais, e bastaria citar a sentença de um pretor (que é certamente um imperativo jurídi­co, embora se refira a uma pessoa determinada) ou a ordem de um prefeito, se propriamente não se deseja recorrer ao caso limite de uma ordem imposta por um rei absolutista ou déspo­ta; por outro lado, embora admitido que todos os imperativos jurídicos são impessoais, não se pode negar que imperativos impessoais existam em outros sistemas normativos, e bastaria


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recordar os dez mandamentos, citados inclusive pelo próprio Olivecrona, e as denominadas normas sociais em que a impes­soalidade é ainda mais evidente do que nas leis emanadas de um parlamento.

 

30. O DIREITO COMO NORMA TÉCNICA

Podemos ainda considerar como um outro exemplo de teo­ria imperativista exclusiva, mesmo se sob o signo de uma parti­cular acepção de “imperativos”, a doutrina de Adolfo Ravà, segundo a qual o direito é um conjunto de imperativos, mas de imperativos da espécie que Kant (ver tópico 23) chamava de “normas técnicas”. Ravà sustentou esta tese, muito conhecida na ciência jurídica italiana, em um livro de 1911, intitulado precisamente II diritto come norma técnica [O Direito como Norma Técnica], depois republicado no volume Diritto e Stato nella morale idealistica [Direito e Estado na Moral Idealista] (Pádua, Cedam, 1950).

Tomando como ponto de partida a distinção kantiana entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos, Ravà sus­tenta que as normas jurídicas pertencem aos segundos e não aos primeiros, em outras palavras, que o esquema da norma jurídica não é do tipo: “Você deve X” mas do tipo: “Se você quiser Y, deve X”. Os argumentos adotados por Ravà para sustentar a sua tese são principalmente três: 1) as normas jurí­dicas atribuem não só obrigações, mas também direitos subjeti­vos: agora, quer se entenda por “direito subjetivo” uma facul­dade juridicamente protegida de fazer ou não fazer, quer se entenda uma pretensão a se obter o adimplemento de uma obrigação por outros, a figura do direito subjetivo é incompatí­vel com uma norma ética; de fato, a norma ética, que impõe categoricamente uma ação como boa em si mesma, estabelece apenas obrigações (não importa se positivas ou negativas), mas não faculdades (“um lícito moral - diz Ravà - é tão absurdo quanto um lícito lógico”, p. 26); e em segundo lugar, quando eu estou determinado a agir apenas pela pretensão dos demais,

 

 

 

 

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significa que a ação obrigatória não é boa em si mesma e não foi, portanto, colocada por uma norma categórica (“se verda­deiramente a norma jurídica ordenasse ações boas em si mes­mas - assim se exprime Ravà a este propósito - como seria admissível depois deixar para uma outra pessoa decidir se elas são obrigatórias ou não?”, p. 27); 2) o direito é coercitivo: uma conduta em que é lícito impor com a força, não pode ser boa em si mesma, porque quando um comando é acompanhado de uma sanção eu posso sempre escolher desobedecer o co­mando e submeter-me a pena, como se a norma fosse assim formulada: “Se você não deseja ser punido, deve cumprir a ação prescrita”; enquanto quando a ação é boa em si mesma, uma escolha deste gênero é impossível (“Se a norma jurídica - assim se lê no livro de Ravà - ordena em certos casos o uso da força, isto só pode ser um meio em direção a um fim; ou seja, entra no conceito de utilidade e não de moral, de técnica e não de ética”, p. 29); 3) em todo ordenamento jurídico, há muitas normas, como aquelas que estabelecem os prazos, as quais ordenam manifestamente meios para atingir um fim, e não uma ação boa em si mesma, e exatamente por este caráter técnico, constituem aquele aspecto de elaboração de um orde­namento denominado tecnicismo jurídico. “O caráter instru­mental dos prazos é tão evidente, que só uma observação muito superficial pode tê-lo deixado escapar” (p. 31).

Destes argumentos Ravà tira a conclusão de que as normas jurídicas não impõem ações boas em si mesmas e portanto categóricas, mas ações que são boas para atingir certos fins, e logo hipotéticas. Qual é o fim a que as normas jurídicas ten­dem? Pode-se responder em linhas gerais que este fim é a con­servação da sociedade, daí a seguinte definição: “O direito é um conjunto de normas que prescrevem a conduta que é ne­cessário ser adotada pelos componentes da sociedade a fim de que a própria sociedade possa existir” (p. 36). Posto este fim, toda norma jurídica pode ser convertida na seguinte fórmula de imperativo hipotético: “Se você quer viver em sociedade, deve se comportar do modo que é condição do viver social”.

 


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Creio que para tornar plausível a doutrina de Ravà, é preci­so distinguir dois planos diversos sob os quais ela se coloca: 1) o plano do ordenamento jurídico no seu complexo, enquanto distinto de um ordenamento moral; 2) o plano das normas singulares que compõem um ordenamento jurídico.

No que se refere ao primeiro plano, a doutrina de Ravà sig­nifica que o ordenamento jurídico no seu complexo é um ins­trumento para atingir um certo objetivo (a paz social). Este modo de considerar o direito é semelhante ao proposto por Kelsen quando ele define o direito como uma técnica de or­ganização social. Se o direito no seu complexo é uma técnica, pode-se bem dizer que as normas que o compõem são nor­mas técnicas, isto é, normas que estabelecem ações não boas em si mesmas, mas boas para atingir aquele determinado fim a que todo o direito é endereçado. Porém, aqui é lícita uma objeção: se o direito em seu complexo é um ordenamento normativo técnico, não se distingue mais de modo algum de ordenamentos normativos como o do jogo e o das regras so­ciais. Para todos estes ordenamentos, pode-se dizer, como para o ordenamento jurídico, que são ordenamentos normati­vos instrumentais. Resta observar se não é possível introduzir uma ulterior especificação, tendo presente a distinção, feita por Kant, entre regras instrumentais de um fim real (ou nor­mas pragmáticas) e regras instrumentais de um fim possível (ou normas técnicas em sentido estrito) (ver tópico 23). Pare­ce agora que se pode dizer, que o fim do direito, posto em confronto com o fim do regulamento de um jogo, é um fim real, isto é, um fim do qual eu não posso subtrair-me e em que a atuação não é livre, mas obrigatória, do que resultaria que o ordenamento jurídico no seu complexo não é composto por normas técnicas em sentido estrito, mas sobretudo por normas pragmáticas, o que importaria na modificação da fórmula proposta por Ravà, a qual não seria mais: “Se você quer viver em sociedade, deve se comportar do modo que as normas jurídicas prescrevem”, mas, segundo a fórmula das normas pragmáticas por nós proposta: “Dado que você deve


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viver em sociedade, deve comportar-se do modo que as nor­mas jurídicas prescrevem”.

Quanto ao segundo plano, o das normas jurídicas singular­mente tomadas, sustentar que elas são normas técnicas significa outra coisa. Não significa mais que elas objetivam atingir um certo fim (a paz social), mas que elas deixam aberta uma alter­nativa ou entre seguir o preceito e não atingir o objetivo a que é voltado aquele particular preceito, e que pode ser praticar um ato, contrair matrimônio, transmitir os próprios bens a outros, e assim por diante, ou então entre seguir o preceito e ir de encon­tro a um objetivo que não se desejava atingir, como por exem­plo, uma reparação, um ressarcimento de danos, uma multa, uma pena detentiva. Em outras palavras, quando se faz referên­cia às normas singulares, dizer que elas são técnicas, isto é, ins­trumentais, não significa nada além disto: toda norma jurídica é caracterizada pelo fato de que à sua transgressão segue uma conseqüência desagradável, o que se denomina comumente sanção. Aqui, teoria do direito como norma técnica e teoria da sanção como caráter constitutivo do direito vêm a se conjugar. Já vimos que uma norma sancionada pode ser convertida na proposição alternativa: “Ou você faz X ou lhe sucederá Y”; mas uma proposição alternativa é sempre reduzível a uma proposi­ção hipotética negando a primeira parte da alternativa: “Se você não fizer X, lhe sucederá Y”, o que implica que uma norma san­cionada é sempre reduzível a uma norma técnica, na qual a ação prevista como meio é regulada pela norma primária, e a ação posta como fim é regulada pela norma secundária.

Deve-se acrescentar que há duas formulações típicas das normas jurídicas como normas técnicas segundo os dois diversos modos típicos com que o legislador, em todo ordenamento jurí­dico, faz operar a sanção. Se nós definirmos a sanção como uma conseqüência desagradável imputada pelo legislador a todo aquele que transgride a norma primária, o objetivo de atribuir uma conseqüência desagradável ao trangressor pode ser atin­gido de dois modos: 1) fazendo de modo que violando a nor­ma não se alcance o fim a que se propunha; 2) fazendo de


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modo que violando a norma se alcance um fim oposto àquele que se propunha. Exemplos do primeiro modo são as normas mais propriamente chamadas de técnicas, isto é, aquelas que estabelecem a modalidade para o cumprimento de um ato juridicamente válido (como grande parte das normas sobre contratos e testamentos): em todos esses casos se não sigo a modalidade prescrita, não atinjo o fim de realizar um ato juridi­camente válido, e a sanção consiste precisamente no desapare­cimento do fim. Exemplos do segundo modo são as normas cuja transgressão implica a atribuição de uma pena ao trans­gressor: neste caso a transgressão (por exemplo, a prática de um delito, como o furto) me leva a atingir um objetivo diverso daquele que me propunha (ao invés de um grande lucro, a reclusão). Em ambos os casos o destinatário da norma é posto diante de uma alternativa. No primeiro caso: “Ou você faz X, ou não obterá Y”, onde Y é o fim desejado. Enquanto redutí- veis a proposições alternativas, ambos os tipos de normas são redutíveis a proposições hipotéticas com estas duas diversas formulações: “Se você não fizer X, não obterá Y”, “Se você não fizer X, obterá Y”. Estas proposições hipotéticas são redutí­veis por sua vez a normas técnicas, cuja formulação é, para o primeiro tipo: Se você quer Y, deve X”, para o segundo modo: “Se você não quer Y, deve X”.

 

31. OS DESTINATÁRIOS DA NORMA JURÍDICA

 

Partindo da teoria imperativista do direito, vimos que no âmbito dos defensores da teoria exclusiva, segundo os quais todas as normas jurídicas são imperativos, foram propostas distinções ou especificações com as quais procurou-se indivi­dualizar, no genus dos imperativos, alguns tipos específicos de imperativos que foram considerados mais idôneos para carac­terizar a forma particular dos imperativos jurídicos. Esta especi­ficação foi buscada ora na distinção entre imperativos positivos e negativos, ora entre imperativos pessoais e impessoais, ou ainda entre imperativos categóricos e hipotéticos, com referên-


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cia ou aos diversos tipos de ação regulada (no primeiro caso ação positiva ou negativa, no terceiro, incondicionada ou condi­cionada), ou então ao sujeito ativo (no segundo caso). Resta dizer algumas palavras sobre a controvérsia, nascida no seio da teoria imperativista, relativa ao sujeito passivo, conhecida como a controvérsia sobre os destinatários da norma jurídica.

Se a norma jurídica é um imperativo e por “imperativo” se entende uma proposição cuja função é a de determinar o com­portamento alheio, não há dúvida de que a norma jurídica se dirige a alguém. Mas a quem? Pode-se tirar da indicação dos destinatários um elemento determinante da norma jurídica? A disputa sobre os destinatários é velha, e também um pouco gasta, entre os juristas: quem desejasse ter uma idéia das prin­cipais teorias sustentadas quando esta disputa era viva, recorria ao livro de G. Battaglini, Le norme dei diritto penale e i loro destinatari [As Normas de Direito Penal e seus Destinatários] (Roma, 1910). Por mais que hoje a discussão sobre os desti­natários esteja um tanto exaurida, não me sentiría inclinado à solução negativa de Romano, [Nota7] segundo a qual o ordenamento jurídico não tem destinatários, e portanto o antigo problema dos destinatários permaneceu sem solução, pelo simples fato que não existe: o equívoco, segundo Romano, consiste em ter configurado como destinatários aqueles para quem a lei pro­duz, direta ou indiretamente, as conseqüências, enquanto para uma lei produzir efeitos jurídicos a certas pessoas, não é abso­lutamente necessário que a elas se dirija. Mas, a alguém a nor­ma deve se dirigir, para que seja uma norma, um imperativo, isto é, uma proposição cujo efeito é a modificação do compor­tamento alheio. Como se poderia imaginar uma norma sem sujeito passivo, se podemos falar em norma apenas quando nos referimos a uma proposição voltada para determinar o comportamento alheio? O problema não é se a norma jurídica tem destinatários, mas quem seriam eles.


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O problema dos destinatários, não digo que nasceu, mas certamente se tornou agudo quando um jurista da autoridade de Ihering, em polêmica com o que havia afirmado Binding poucos anos antes, sustenta que os destinatários das normas jurídicas não são os cidadãos, mas os órgãos jurídicos encarre­gados de exercitar o poder coatiuo. Ihering partia de uma rígida doutrina estatualista e coacionista do direito, com base na qual definia o direito como “o complexo das normas coativas váli­das em um Estado”. [Nota8] Disso concluía que as normas jurídicas propriamente ditas, isto é, as que constituíam um ordenamento normativo fundado na coação, eram aquelas dirigidas aos ór­gãos judiciários, e em geral a todos os órgãos do Estado encar­regados de fazer valer a força, cuja atuação é o único elemento que distingue um ordenamento jurídico de um não jurídico. O que distinguia, segundo Ihering, uma norma jurídica não era sua eficácia externa por parte do povo, mas sua eficácia interna por parte do Estado; todas as proposições normativas emitidas pelo Estado mas não reforçadas pela sanção, não eram, para ele, normas jurídicas. E assim, o que fazia transformar em jurí­dica uma proposição normativa era o fato dos juizes disporem do poder e do dever de fazê-la respeitar. Os exemplos de nor­mas que podem melhor servir para esclarecer a tese de Ihering são aquelas extraídas da legislação penal, como por exemplo o art. 575 do Código Penal italiano: “Quem ocasionar a morte de um homem é punido com reclusão não inferior a vinte e um anos”; é manifestamente voltada não aos cidadãos, mas aos juizes, tanto que de Bilding em diante, se costuma dizer que o ato ilícito não é o ato contrário à lei penal, mas o oposto, é aquele que realiza o tipo previsto. O art. 575 citado institui não mais uma obrigação de não matar, mas pura e simplesmente uma obrigação de punir, e tal obrigação obviamente se dirige não aos cidadãos, mas aos juizes.


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A tese de Ihering foi sustentada intermitentemente sobretudo pelos autores que acentuavam o elemento da coação como ele­mento constitutivo do direito. Basta-nos recordar o mais renomado filósofo do direito de sua época, Kelsen, que afrontando o problema da distinção entre a norma primária, dirigida aos sú­ditos, como por exemplo, “Não se deve roubar”, e a norma se­cundária, dirigida aos órgãos do Estado, como por exemplo: “Quem rouba deverá ser punido com reclusão”, sustenta que a norma primária, isto é, aquela que institui um ordenamento como ordenamento, é a norma que habitualmente é chamada de secundária, e se expressa assim: “A norma que determina a conduta que evita a coação (conduta que o ordenamento jurídi­co tem como fim) tem o significado de norma jurídica apenas quando se pressupõe que com ela deve-se expressar, de forma abreviada por comodidade de exposição, o que só a proposição jurídica enuncia de modo correto e completo, isto é, que na condição de conduta contrária deve seguir-se um ato coativo como conseqüência. Esta é a norma jurídica em sua forma pri­mária. A norma que ordena o comportamento que evita a san­ção pode valer quando muito como norma jurídica secundária”. [Nota 9]

Em meados do século XX, Allorio rebateu energicamente, ao menos em relação ao ordenamento estatal (embora Allorio não julgue que o ordenamento estatal seja o único ordena­mento jurídico possível), o conceito de que os destinatários sejam apenas os órgãos do Estado, pelo contrário, faz desta característica o critério distintivo dos ordenamentos paritários e dos ordenamentos autoritários, escrevendo “poder reconhecer (no ordenamento estatal) a existência de uma definida caracte­rização... do conteúdo de todas as normas jurídicas, no sentido em que, no âmbito de tais ordenamentos, qualquer norma que não seja dirigida aos órgãos do Estado, não encontra cidada­nia”. A quem lhe objeta que as normas são duas, aquelas que impõem aos súditos um certo comportamento e as que im­põem aos órgãos do Estado intervir no caso em que o com-


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portamento não seja efetuado, ele responde que restaria sem­pre ainda por explicar “porque o dever do particular não pode­ria nunca existir por si só”. [Nota 10]

A última frase de Allorio expressa o núcleo de verdade da teoria que, no ordenamento jurídico tomado como ordena­mento coativo, considera como norma jurídica apenas aquelas voltadas aos órgãos encarregados de fazer valer o poder coativo. Este núcleo de verdade pode ser resumido assim: posto o orde­namento jurídico como ordenamento coativo, ele pode consistir exclusivamente em normas voltadas aos órgãos do Estado; em outras palavras, pode-se muito bem imaginar um ordenamento jurídico em que não haja outras normas além daquelas que se costuma chamar de secundárias, o que significa que as normas voltadas aos súditos, ou seja, as normas primárias, não são ne­cessárias. Por outro lado, um ordenamento constituído apenas por normas primárias não poderia ser considerado um ordena­mento jurídico, se por ordenamento jurídico entende-se um or­denamento com a eficácia reforçada através da sanção que im­plica o cumprimento das normas dirigidas aos juizes.

Que nesta afirmação haja um núcleo de verdade não signifi­ca que a tese de Ihering seja aceitável sem reservas. Julgo que à doutrina dos órgãos estatais como únicos destinatários pos­sam ser feitas algumas objeções; 1) é possível um ordenamento jurídico composto de normas voltadas apenas aos órgãos judi­ciais; mas de fato, mesmo os ordenamentos jurídicos estatais compreendem normas voltadas tanto aos juizes quanto aos cidadãos; se deixarmos de lado por um momento as leis penais (que, como diz a própria palavra, são leis que cominam penas) e lançarmos o olhar aos artigos do Código Civil, não faremos muito esforço para topar com normas voltadas aos cidadãos, isto é, normas primárias que estabelecem não um tipo de san­ção, mas um tipo de comportamento, cuja violação implica (mas não necessariamente) uma sanção; 2) dizer que estas


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normas existem, mas que não são normas jurídicas, significa sustentar que a juridicidade de uma norma depende do fato do comportamento contrário do previsto implicar as consequências atribuídas pela norma secundária, enquanto nós julgamos que a juridicidade de uma norma singular (como veremos melhor no capítulo seguinte) identifica-se com a sua validade, isto é, depende exclusivamente do fato de pertencer a um ordena­mento jurídico, o que importa simplesmente ter sido ela criada por quem, no sistema, tinha o poder de produzir normas jurídi­cas, e não há dúvida de que as normas primárias possam go­zar, do mesmo modo que as secundárias, desta característica; 3) as normas secundárias não são normas últimas, porque são frequentemente seguidas de normas que chamaremos de terciá­rias, isto é, de normas que atribuem uma sanção à transgressão da norma secundária; se respondéssemos que neste caso a norma jurídica fosse a terciária e não mais a secundária (na função de primária), arriscaríamos ter que retomar sempre mais atrás e acabaríamos obrigados a sustentar que a única norma jurídica do sistema seria a norma fundamental; tanto vale, en­tão, começar a reconhecer como jurídicas as primeiras normas com as quais cruzamos e que são as normas primárias; se de fato sustentarmos que as normas primárias não são jurídicas porque se limitam a fixar o pressuposto para a entrada em vi­gor de uma outra norma, é provável que seremos obrigados a não parar nas normas secundárias, e a concluir que a única norma jurídica seria a norma fundamental porque a sua trans­gressão não reenvia a nenhuma outra norma do sistema; 4) se é verdade que o ordenamento jurídico é um ordenamento normativo com eficácia reforçada (como veremos no capítulo seguinte), isto não exclui que ele conte também com a eficácia simples, vale dizer, com a adesão às normas voltadas aos cida­dãos, e que portanto, aquelas normas que por serem voltadas aos cidadãos são ditas primárias tenham a sua razão de ser no sistema, e na realidade, todo sistema jurídico, mesmo que não as apresente explicitamente (como num Código Penal), as pressupõe e conta com a sua eficácia.


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32. IMPERATIVOS E PERMISSÕES

 

Até aqui, examinamos as teorias exclusivas. Teorias mistas são aquelas que admitem que em todo ordenamento jurídico existem os imperativos, mas negam que todas as proposições que compõem um sistema jurídico são imperativas ou reduzíveis a imperativos. A mais velha das teorias mistas é aquela que con­sidera, ao lado das normas imperativas, as chamadas normas permissivas, ou então, ao lado das normas que impõem deveres, as normas que atribuem faculdades (ou permissões).

Observamos antes de mais nada que, assim como houve quem, frente à distinção entre imperativos positivos e negati­vos, acreditou poder afirmar que as normas jurídicas são todas imperativos negativos, também, frente a esta nova distinção capital entre normas imperativas e permissivas, houve quem sustentou que a essência do direito é o permitir e não mais o comandar, e que nesta propriedade está a diferença entre o direito e a moral. Trata-se da conhecida tese de Fichte, que no seu tratado de direito natural de inspiração kantiana (Linea- menti di diritto naturale [Lineamentos do Direito Natural], 1796) abordou a diferença entre direito e moral nos seguintes termos: a lei moral comanda categoricamente aquilo que se deve fazer, a lei jurídica permite aquilo que se pode fazer: de um lado, a lei moral não se limita a fazer com que se cumpra aquilo que ela deseja, mas o impõe; de outro, a lei jurídica nunca ordena que se exercite um direito. Esta tese de Fichte pode ser considerada uma teoria exclusiva no sentido oposto à teoria exclusiva imperativista: enquanto esta afirma que todas as normas jurídicas são imperativos, aquela afirma que ne­nhuma norma jurídica é um imperativo. E uma espécie de exa­cerbação da teoria mista que coloca ao lado das normas impe­rativas também as permissivas, e, como todas as teorias extre­mas, não é sustentável. Basta observar que a atribuição de um direito (subjetivo) e a imposição de um dever são momentos correlativos do mesmo processo: uma norma que impõe um dever a uma pessoa atribui ao mesmo tempo a outra pessoa o


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direito de exigir o cumprimento, assim como uma norma que atribui um direito impõe ao mesmo tempo aos outros o dever de respeitar o livre exercício ou de permitir-lhe a execução. Em outras palavras, direito e dever são as duas faces da relação jurídica, uma não pode existir sem a outra. Dizer que o direito permite e não comanda significa observar o fenômeno jurídico de um só ponto de vista, e logo não dar-se conta de que o di­reito permite apenas quando, ao mesmo tempo, comanda.

Prescindindo da teoria permissiva exclusiva, acreditamos que também a teoria permissiva parcial, isto é, a que critica a teoria da imperatividade apoiando-se na presença das normas permissivas (e aqui entendemos por “normas permissivas” em sentido estrito aquelas que atribuem faculdades, isto é, deter­minam as esferas de licitude junto às esferas do comando e da proibição), não adquire sentido.

Não temos nada a objetar sobre o fato de que em todo orde­namento jurídico há normas permissivas ao lado das imperati­vas. Basta abrir um Código para confirmá-lo: “Tornada exeqüível a sentença que declara a morte presumida, o cônjuge pode contrair novo matrimônio” (art. 65 do Código Civil italiano); “Pode-se eleger domicílio especial para determinados atos ou negócios” (art. 47 do Código Civil italiano). A pergunta que nos colocamos é outra: a presença de normas permissivas pode ser considerada um argumento contra a imperatividade do direito? O problema se desloca da mera constatação da exis­tência de normas permissivas para sua função. Agora, a função das normas permissivas é a de eliminar um imperativo em de­terminadas circunstâncias ou com referência a determinadas pessoas, e portanto, as normas permissivas pressupõem as normas imperativas. Se não se partisse do pressuposto da im­peratividade, não haveria necessidade, em determinadas cir­cunstâncias e em relação a determinadas pessoas, de eliminar um imperativo, isto é, de permitir. Quando não se pressupõe um sistema normativo imperativo, as ações permitidas são aquelas que não reclamam nenhuma norma para serem reco­nhecidas, no momento em que vale o postulado: “tudo aquilo

 

 

 

 

 

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que não é proibido ou comandado é permitido”. Onde inter­vém normas permissivas, é sinal que existe um sistema norma­tivo imperativo que tolera em determinados casos exceções e, portanto, o postulado de que se parte é o oposto do prece­dente, ou seja: “Tudo é proibido ou comandado, exceto o que é expressamente permitido”. Se nós nos referirmos aos exem­plos citados acima, será fácil constatar que a norma permissiva do art. 65 tem razão de ser, enquanto a regra normativa pres­suposta é a proibição de contrair um segundo matrimônio des­de que um dos cônjuges esteja vivo; assim também a norma permissiva do art. 47 pressupõe a proibição geral de haver vários domicílios.

Objetivando agora introduzir algumas ulteriores distinções, façamos ainda duas observações. Antes de mais nada, pode-se distinguir as normas permissivas com base no fato de que eli­minamos um imperativo precedente no tempo, que neste caso funcionam como normas ab-rogantes, ou então um imperativo contemporâneo, que neste caso funcionam como normas der- rogantes. Um exemplo de norma permissiva ab-rogante: “As pessoas a quem foi imposto ou que obtiveram a alteração do sobrenome, com base nos artigos 2o, 3o e 4o da Lei n° 1.055, de 13 de julho de 1939, podem reobter o sobrenome que pos­suíam anteriormente” (Decreto-Lei italiano de 19 de outubro de 1944, art. 2o). Um exemplo de norma permissiva derrogató- ria: “Não pode contrair matrimônio a mulher, senão depois de passados trezentos dias, etc. (esta é a parte imperativa da nor­ma). A proibição cessa no dia em que a mulher deu à luz” (esta é a parte permissiva que derroga a proibição em uma determi­nada circunstância) (art. 89, Código Civil italiano).

Em segundo lugar, as normas permissivas podem ser distin­tas, assim como as imperativas, em positivas e negativas: as pri­meiras são aquelas que permitem fazer, as segundas, que per­mitem não fazer. Como veremos melhor no último capítulo, dedicado sobretudo à classificação das normas, as normas per­missivas positivas são aquelas que negam um imperativo negati­vo (ou proibição); as normas permissivas negativas são aquelas

 


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que negam um imperativo positivo (ou comando). As ações pre­vistas pelas primeiras chamam-se mais estritamente permitidas; as ações previstas pelas segundas chamam-se mais propriamente facultativas: que a caça em certa zona seja permitida significa que não é proibida, que uma matéria do curriculum dos estudos seja facultativa significa que não é obrigatória. Exemplo de nor­ma permissiva positiva: “Se o marido transferiu o seu domicílio ao exterior, a mulher pode estabelecer no território do Estado o próprio domicílio” (art. 45 do Código Civil italiano [Nota 11]): esta nor­ma atribui uma permissão de fazer como exclusão de uma obri­gação de não fazer. Exemplo de norma permissiva negativa: “Salvo quando é disposto por hipoteca legal, o marido não está obrigado a prestar caução pelo dote que recebe, se não foi obri­gado no ato da constituição do dote.” (art. 186 do Código Civil italiano [Nota 12]): esta norma atribui uma permissão de não fazer como exclusão de uma obrigação de fazer.

 

33. RELAÇÃO ENTRE IMPERATIVOS E PERMISSÕES

Vimos, no tópico precedente, que as normas permissivas são necessárias onde está pressuposto um sistema de imperati­vos que apresentam, em determinadas circunstâncias ou por determinadas pessoas, uma ab-rogação ou uma derrogação. Agora acrescentamos que onde não é pressuposto um sistema de imperativos, a situação de permissão resulta da ausência de norma, no sentido que é permitido ou lícito tudo aquilo que não é proibido nem comandado. Imperativos e permissões estão entre si em relação de negação recíproca: as normas im­perativas limitam a situação originária de licitude de fato ou natural; as normas permissivas limitam, por sua vez, as situa­ções de obrigatoriedade produzidas por normas imperativas ou negativas. Pode-se descrever a evolução de um sistema nor­mativo do seguinte modo.


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Partamos da hipótese (hipótese, entenda-se, de todo abs­trata) de uma condição humana em que não haja ainda um sistema normativo. Esta situação pode ser definida com a fór­mula: tudo é lícito; e representada simbolicamente

assim:

 

1

     Esfera do lícito

 

Esta hipótese é aquela do estado de natureza no significado hobbesiano, ou então de um estado em que não existem leis civis, e portanto não existem deveres, mas apenas direitos, e todo indivíduo tem por sua conta um direito sobre toda coisa (ius in omniaf A passagem do estado de natureza para o esta­do civil advém através da limitação da esfera primitiva de lici- tude natural (caracterizada pela ausência de normas imperati­vas), e esta limitação é o efeito da criação, por parte do sumo poder, de normas imperativas, primeiro negativas e depois positivas (segundo a progressão examinada no tópico 27). A situação que se vem a criar pode ser representada simbolica­mente assim:

 

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esfera do proibido

esfera do lícito

esfera do comandado

 

Imaginando que a esfera do proibido e a do comandado se estendam em detrimento da esfera do lícito, podemos apre­sentar a hipótese (também esta de todo abstrata) de uma situa­ção em que a esfera do lícito venha completamente a desapa­recer, dando lugar àquela situação limite em que todo com­portamento seja proibido ou comandado e nenhum seja lícito, e que pode ser representada do seguinte modo:

 

3 tudo é obrigatório

 

Esta hipótese é a do Estado totalitário, ou seja, o Estado em que todo ato do cidadão é regulado por normas imperativas. A


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hipótese do Estado totalitário é diametralmente oposta a do estado de natureza: uma representa o ideal do estado completamente realizado, que suprimiu toda liberdade natural; a outra representa a hipótese da anarquia, isto é, da total ausência do Estado. E inútil repetir que a realidade histórica não conhece situações correspondentes nem a uma nem a outra hipótese.

Assim como não é possível um Estado que seja tão onipotente e invasor a ponto de regular todo comportamento dos cidadãos, também não é possível uma condição humana em que não haja um núcleo de normas imperativas que delimitem a esfera de liberdade de cada um. A realidade histórica conhece apenas situações em que a esfera do lícito convive com a do obrigatório e, no caso, as diversas situações se diferenciam segundo a diversa extensão das duas esferas. Chamamos de Estado liberal aquele que deixa a máxima extensão à esfera da licitude em confronto com a da imperatividade, e de Estado não-liberal aquele em que a esfera da imperatividade se esten­de em detrimento da referente à licitude.

Partimos da hipótese do estado de natureza e chegamos através de sucessivas limitações operadas por normas imperati- | vas à hipótese oposta, a do Estado totalitário. Mas dado que em termos de hipótese abstrata a escolha do ponto de partida é indiferente, podemos configurar o caminho inverso. Podemos assim considerar como hipótese inicial aquela de uma socieda­de em que tudo seja imperativamente regulado:

 

44

tudo é obrigatório

 

Com a introdução sucessiva de normas permissivas que ab- rogam e derrogam, as normas imperativas passam a formar uma esfera de licitude compreendida entre as obrigações posi­tivas e as obrigações negativas, dando origem à seguinte figura:

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esfera do proibido

esfera do lícito

esfera do comandado

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Esta figura difere da segunda pelo fato de que a esfera do lí­cito é representada pelo lícito natural, isto é, pelo que é lícito devido à ausência de norma; aqui, ao invés, a esfera do lícito é o resultado de uma limitação dos imperativos introduzida por normas permissivas. As duas situações diversas, representadas pelas figuras (2) e (5) podem ser formuladas do seguinte modo, a primeira: Tudo é permitido exceto o que é proibido (ou co­mandado); a segunda: Tudo é proibido (ou comandado) ex­ceto o que é permitido.

Tenhamos presente estas duas fórmulas: elas foram tomadas para designar dois tipos de Estado, ambos correspondentes a situações históricas e portanto distantes dos dois extremos da anarquia e do Estado totalitário. A primeira fórmula designa o Estado de liberdade, ou seja, o Estado que parte do pressu­posto da liberdade natural (“Tudo é permitido”), mas admite que a liberdade natural possa ser limitada através de normas imperativas mais ou menos amplas segundo às circunstâncias (“exceto aquilo que é proibido”). A segunda fórmula designa o Estado socialista, ou seja, aquele Estado que parte do pressu­posto da não-liberdade do indivíduo enquanto indivíduo que é parte de um todo (a sociedade) que o transcende (“Tudo é proibido), salvo a introdução, caso a caso mediante normas permissivas, de esferas particulares e bem delimitadas de licitu­de (“exceto o que é permitido [Nota13] ”). Consideremos, por exemplo, o instituto da propriedade: em um Estado liberal a propriedade individual é considerada como um direito natural, isto é, como um direito preexistente à formação do Estado, e a tarefa do Estado é a de delimitar a extensão através de uma regulamen­tação imperativa; em uma Estado socialista, ao contrário, a propriedade individual é de início proibida, salvo se for reco­nhecida em determinados casos através de normas permissivas. Sombart, a quem se deve esta caracterização do Estado liberal


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e do Estado socialista, concluía que no primeiro a esfera de permissão prevalece sobre a da obrigação, no segundo, vice- versa, a esfera de obrigação prevalece sobre a da permissão.

Como toda redução à fórmula simples de uma situação complexa, também esta dúplice caracterização é de se aceitar com muita cautela. Talvez estaríamos mais perto da realidade, se disséssemos que em todo Estado há situações correspon­dentes à primeira fórmula, em que o pressuposto é a liberdade natural, e situações correspondentes à segunda fórmula, em que o pressuposto é a ausência de liberdade, e que, além do mais, podem-se distinguir Estados em que prevalecem as pri­meiras e outros em que prevalecem as segundas. Esta diferença de situações corresponde, a grosso modo, às tradicionais dis­tinções entre a esfera do direito privado e a do direito público. Quando lemos o Código Civil, o lemos tendo em mente que tudo o que não é por ele prescrito é permitido; quando lemos o texto de uma Constituição, temos em mente o outro pressu­posto, que tudo que não é por ela expressamente autorizado, é proibido. Diriamos, em outras palavras, que na esfera da regu­lamentação da autonomia privada, vale o postulado que tudo é permitido exceto o que é proibido, enquanto na esfera da re­gulamentação dos órgãos públicos, vale o postulado oposto, tudo é proibido exceto o que é expressamente permitido. A distinção não tem valor puramente teórico: no caso de lacuna, se um sistema de imperativos é regido pelo primeiro postulado, disto deriva que o comportamento não previsto deve ser consi­derado permitido; se é regido pelo segundo, o comportamento não previsto deve ser considerado proibido.

 

34. IMPERATIVOS E REGRAS FINAIS

Entre as teorias mistas, é de se lembrar, por completude, aquela sustentada por Brunetti, ainda que ele não coloque a sua doutrina entre as doutrinas mistas, mas a denomine uma teoria integral da norma jurídica. Brunetti, depois de ter critica-

 

 

 

 

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do a teoria negativa (que veremos no próximo tópico), critica também a tese segundo a qual todas as normas de um sistema jurídico são imperativas. Só que ele não segue a via das outras doutrinas mistas, ou seja, a de considerar, ao lado das normas imperativas, as normas permissivas. A via que ele segue consi­dera como não imperativas um tipo de normas jurídicas que ele chama de regras finais. [Nota 14]

Por “regras finais” Brunetti entende a mesma coisa que os imperativos hipotéticos ou normas técnicas de Kant, vale di­zer, aquelas regras que, como ele declara, não exprimem uma necessidade absoluta, mas apenas final ou teleológica, ou, usando as palavras de sempre, não impõem uma ação como boa em si mesma, mas como boa para atingir um certo fim: “Se você quiser chegar cedo, dever caminhar rapida­mente”. Mas será talvez esta teoria uma repetição daquela de Ravà, de que falamos no tópico 29? [Nota *] O próprio Brunetti es­clarece a diferença: a teoria de Ravà tem como meta a defini­ção do direito no seu complexo; a sua teoria das regras finais tem como objetivo caracterizar certas normas jurídicas em confronto com algumas outras. Brunetti acrescenta à defini­ção tradicional de normas técnicas o seguinte: as normas técnicas (ou regras finais) não são imperativos. Portanto, se em um ordenamento jurídico é possível encontrar regras fi­nais, isto nos leva a afirmar que nem todas as regras que compõem um ordenamento são imperativos.

As regras finais não se confundem com imperativos, segun­do Brunetti, porque não limitam a minha liberdade de agir, a partir do momento que eu sou livre para escolher o fim que elas me propõem. Elas estabelecem um dever que, para distin- guir-se dos deveres que resultam dos imperativos propriamente ditos, pode-se chamar de dever livre. A diferença entre coman­dos e regras finais se revelaria, segundo Brunetti, sobretudo nos


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confrontos de suas repetidas execuções: frente a um comando, ser livre significa ter a possibilidade de violá-lo; frente a uma regra final, ser livre significa ter a possibilidade de não fazer o que ela prescreve sem por isso violá-la. Tomemos um exemplo típico de regra final: a que prescreve a modalidade do testa­mento holográfico. Para Brunetti, esta regra não é um coman­do, seja porque não impõe fazer o testamento holográfico, mas me deixa perfeitamente livre para fazê-lo ou não fazê-lo, seja porque não a seguindo (isto é, não fazendo o testamento holo­gráfico) não a violo, logo não realizo um ato ilícito. Brunetti aplica esta sua doutrina das regras finais à explicação da rela­ção obrigatória: ao direito do credor não correspondería, como sustenta a doutrina tradicional, o dever do devedor, mas o de­ver do Estado de satisfazer o interesse do credor. Este dever do Estado deriva de um verdadeiro imperativo voltado aos órgãos judiciários. Mas deste dever do Estado nascem duas regras finais, uma voltada ao devedor: “Se você não quiser que o Estado intervenha, etc., deve executar a prestação”, outra ao credor: “Se você quiser que o Estado intervenha, etc, deve mover a ação”.

Julgamos que também a teoria de Brunetti não consegue afetar a doutrina da imperatividade do direito. Já expusemos, aliás, no tópico 23, as razões pelas quais pensamos que as normas técnicas, que se encontram em um ordenamento jurídi­co, sejam verdadeiros imperativos. A questão, da forma que propõe Brunetti, é meramente uma questão de palavras: se nós tomarmos o termo “imperativo” como sinônimo de “coman­do”, e entendermos por “comandos” apenas os “imperativos categóricos”, as regras finais, que não são em nada diversas dos imperativos hipotéticos, não poderão ser chamadas nem de imperativos, nem de comandos. Mas se acolhermos uma acepção mais ampla de imperativos e a tornarmos um sinôni­mo de proposição prescritiva, (como sem dúvida entendia Thon) e entendermos por “proposição prescritiva”, como fize­mos até aqui, uma proposição cuja função seja a de dirigir uma ação alheia, não há dúvida de que as regras finais poderão ser


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chamadas de imperativos, porque, embora subordinadas à escolha dos fins, dirigem a ação na execução dos meios.

Além disso, os argumentos adotados por Brunetti para dis­tinguir as regras finais dos imperativos não são muito convin­centes. Ele fala de dever livre contraposto a dever necessário. Ora, a expressão “dever livre” é uma contradictio in adiecto: na realidade o que é livre, nas regras finais, é o fim, mas o fim, precisamente porque é livre, não é devido; o que é devido é o meio, mas precisamente pelo fato de ser devido; uma vez es­colhido o fim, ele deixa de ser livre. Quanto à característica relativa à execução, o que Brunetti diz acerca das regras finais deriva de uma confusão entre a norma que prescreve os meios, que é prescritiva, e a norma referente aos fins, que ou não existe ou é permissiva: se eu não faço testamento, certamente não violo a norma que estabelece a modalidade para fazer testamento, não apenas porque esta norma não é imperativa, mas porque o meu comportamento deixa a esfera dos com­portamentos regulados por ela; em outras palavras, porque a norma que surge em questão relativamente à minha decisão de fazer testamento não é a norma imperativa que prescreve as suas modalidades, mas é a permissiva, que admite também a licitude de não fazer testamento. Uma vez tomada a decisão de fazer testamento, não sou mais de forma alguma livre para não fazer o que a regra final prescreve: ou, se quiser, sou livre, mas fazendo isto, violo a norma, não diversamente do que sucede com qualquer outra norma que Brunetti chamaria de imperativa.

 

35. IMPERATIVOS E JUÍZOS HIPOTÉTICOS

 

E agora, tratemos das teorias negativas, isto é, as teorias que negam que as normas jurídicas sejam imperativos. A primeira e mais radical formulação das teorias negativas nos remonta a Zitelmànn, que quis responder com sua crítica aos entusiasmos imperativistas de Thon. Segundo este autor, toda proposição jurídica pode se resolver na fórmula: “Se...você deve”. Ora,

 

 

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diz ele, uma proposição deste gênero tem o caráter de uma asserção, isto é, de um juízo, em particular de um juízo hipoté­tico, ou seja, é “uma asserção sobre uma relação já existente”. E um juízo, segundo os ditames da lógica clássica, não é um comando.

A tese da norma jurídica como juízo hipotético foi acolhida, embora com argumentos diversos, por Kelsen e agora a doutrina antimperativista se identificará freqüentemente com a doutrina kelseniana. Contra o imperativismo, Kelsen desenvolveu alguns argumentos críticos, que para alguns foram decisivos, desde a sua obra mais importante, Hauptprobleme der Staatsrechtslehre [Principais Problemas da Doutrina do Direito Internacional] (1911) (2a ed. 1923, pp. 189 e ss.). O seu ponto de partida era uma definição bem mais restrita de “comando” (mais uma vez se observa quanta importância possuem nestas disputas as definições iniciais, e logo o quanto essas questões são questões de palavras: ele entendia por “comando” a expressão imediata de uma vontade voltada à modificação de uma vontade alheia, e até aqui não dizia nada de particularmente diverso daquilo que repetidamente foi dito neste curso sobre as proposições prescritivas; mas depois acrescentava - e com isto introduzia uma limitação - que era da natureza dos comandos não conter nenhuma garantia que o comportamento alheio fosse efetiva­mente modificado. Desta definição restritiva de comando con­cluía que se poderia falar em “comando” em relação aos impe­rativos morais, porque, sendo autônomos, não existe uma vontade dirigida a uma vontade alheia, mas uma só vontade divisa ou duas diversas direções da mesma vontade, mas não se poderia falar em relação às normas jurídicas que, sendo heterônomas (o Estado comanda e os súditos obedecem), têm necessidade de uma garantia de que a vontade dos súditos se adeqüe a do Estado, garantia que o comando enquanto tal (isto é, na definição restrita de Kelsen) não pode dar, e que pode ser alcançada somente através da sanção. Uma vez defi­nida a sanção, o que o Estado deseja não é mais aquele de­terminado comportamento dos súditos, mas um determinado


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comportamento dos próprios órgãos encarregados de exercitar a coação, onde o comportamento dos súditos não é mais, en­quanto lícito, o conteúdo da vontade estatal, mas, enquanto ilícito, a condição da atividade sancionadora do Estado.

A crítica às teorias imperativistas, de um lado, entendida como teoria que via nas leis um comando dirigido aos súditos, e a interdependência estabelecida entre o conceito de direito e aquele de sanção (é norma jurídica somente a sancionada), conduziam Kelsen a atribuir à norma jurídica o caráter não mais de comando, mas de juízo hipotético, voltado a estabele­cer um nexo entre uma condição (o ilícito) e uma conseqüência (a sanção), na seguinte fórmula: “Se é A, deve ser B” (onde A representa o ilícito e B a sanção). Entre outras coisas, esta re­dução da norma jurídica servia para Kelsen resolver a tradicio­nal questão da diferença entre direito e moral: as normas mo­rais, aquelas sim, são comandos; as normas jurídicas, ao con­trário, são juízos. A autonomia do direito diante da lei moral era assegurada, e assim se exprimia: “fazendo com que a nor­ma jurídica, contrariamente à doutrina tradicional, seja enten­dida não como imperativo igual à norma moral, mas como juízo hipotético que exprime a relação específica de um fato condicionante com uma conseqüência condicionada”. [Nota 15]

Por outro lado, que as normas jurídicas sejam juízos hipoté­ticos, e como tais distintas das normas morais, não significa, para Kelsen que sejam asserções ou proposições descritivas. Kelsen distingue as normas jurídicas das leis morais, mas as distingue ainda das leis científicas (as leis de que falam os físi­cos, os químicos, os biólogos, etc.). Mesmo estas últimas po­dem se transformar em juízos hipotéticos que estabelecem uma relação constante entre uma condição (a causa) e uma conse­qüência (o efeito), mas a cópula que une as duas partes do juízo é constituída pelo verbo ser, enquanto a cópula em uma norma é o verbo dever. A lei científica diz: “Se é A, é também B”; a lei jurídica: “Se é A, deve ser B”. Enquanto o nexo que


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une A e B em uma lei científica é um nexo de causalidade, no sentido de que A é a causa de B, e B é o efeito de A, o nexo que une A e B em uma lei jurídica é um nexo, como diz Kelsen, de imputação, no sentido em que a conseqüência B não é efeito da condição A, mas é imputada a A por um fato huma­no, mais precisamente por uma norma. Com as palavras do próprio Kelsen: “A conexão entre causa e efeito é indepen­dente do ato de um ser humano ou sobre-humano. Ao contrá­rio, a conexão entre um ilícito e a sanção jurídica é estabeleci­da por um ato, ou por atos humanos, por um ato que produz direito, isto é, por uma ato cujo significado é uma norma”. [Nota16]

Não estamos sublinhando a importância entre relação de causalidade e relação de imputação para a compreensão da diferença entre ordem física e ordem normativa. A importância se revela, sobretudo, quando ganhamos consciência dos erros nascentes da confusão entre as duas ordens, que Kelsen atribui à mentalidade primitiva. É próprio de uma concepção primiti­va, pré-científica do mundo, confundir a ordem física com a ordem normativa, e considerar, portanto, um fenômeno não como o efeito de um outro fenômeno, mas como uma sanção imputada ao agente por uma norma (emanação de uma von­tade superior), confusão que leva a perguntar-se frente a um fenômeno natural não: “Qual é a causa”, mas “De quem é o mérito ou de quem é a culpa?” (segundo o fenômeno seja va­lorado como útil ou desvantajoso). O que para nós importa sublinhar é que esta diferença entre relação causai e relação de imputação reintroduz a diferença entre o descritivo e o prescri- tivo que a polêmica contra o imperativismo levou muitos a crer que tivesse sido abandonada por Kelsen. Pode-se dizer que a distinção das duas relações está no fato de que a primeira não é voluntária, não depende de uma autoridade que a tenha colocado, e a segunda é voluntária, depende de uma autorida­de que a coloque; e ainda, a primeira reenvia a uma determi-


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nação necessária, a segunda a uma estatuição voluntária, e portanto a uma prescrição.

Deste modo, resulta que a diferença entre a norma jurídica e a lei natural é uma diferença essencial, no sentido em que uma e outra pertencem a duas ordens diversas (a ordem das rela­ções causais e a ordem das relações imputativas), enquanto a diferença entre a norma jurídica e a norma moral é uma pura diferença de grau no âmbito da mesma ordem normativa, no sentido em que a lei moral é uma prescrição à eficácia imedia­ta, e a lei jurídica é uma prescrição à eficácia mediata, isto é, uma prescrição cuja eficácia depende não da norma que pres­creve um comportamento, mas da norma que prescreve a con- seqüência desfavorável (a sanção) de um comportamento con­siderado como ilícito. Se o proprium da norma jurídica é, como dissemos até agora, pertencer à categoria das proposições prescritivas, a teoria de Kelsen, para quem a norma jurídica se converte em um juízo hipotético, não é uma teoria contrária à tese da norma jurídica como prescrição, porque o juízo em que se expressa a norma é sempre um juízo hipotético prescritivo e não descritivo, isto é, um juízo que na sua segunda parte con­tém uma prescrição (“... deve ser B”). Em suma, a teoria antimperativista de Kelsen não pode ser considerada uma teoria negativa no sentido em que, negando às normas jurídicas a qualificação de prescrições, faz delas asserções, mas só no sen­tido limitado, e para a tese sustentada até aqui irrelevante, que faz delas prescrições distintas das morais, mas sempre, prescri­ções, e isto é o que mais importa até o fim da nossa investiga­ção. Além disso, o próprio Kelsen parece nas obras sucessivas ter atenuado o seu antimperativismo, quando escreve: “O le­gislador usa frequentemente o futuro, afirmando que um ladrão será punido desta ou daquela maneira. Ele pressupõe então, que o problema relativo a quem seja o ladrão já esteja em al­gum lugar resolvido, na mesma ou em qualquer outra lei. A frase, “será punido”, não implica a predição de um evento fu­turo - o legislador não é um profeta -, mas um imperativo ou um comando, tomando tais termos em sentido figurado. O que

 

 

 

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entende a autoridade que cria a norma é que a sanção deve ser executada contra o ladrão, quando se verificarem as condi­ções para a sanção”. E um pouco mais adiante, desejando distinguir as normas jurídicas das proposições da ciência jurídi­ca, chama a estas últimas de proposições descritivas e precisa que “as normas jurídicas emanadas das autoridades que pro­duzem o direito são prescritivas”. [Nota 17] E é isto justamente o que nós queríamos demonstrar.

 

36. IMPERATIVOS E JUÍZOS DE VALOR

 

Uma diversa formulação da teoria antimperativista é a que define as normas jurídicas não como juízos hipotéticos, mas como juízos de valor, ou juízos de valoração ou, mais breve­mente, valorações. E uma doutrina que foi e continuou sendo seguida sobretudo entre os juristas italianos. [Nota 18] Perassi, por exemplo, fala da norma jurídica como “os cânones que valoram uma conduta do indivíduo na vida em sociedade”; [Nota 19] Giuliano define a norma jurídica como “juízos de valor, juízos sobre o comportamento (e sobre a conduta) de determinados cidadãos diante da (ou dependentemente da) verificação de determinadas situações, de determinados eventos, mais genericamente de determinados fatos”. [Nota 20] Em Giuliano, a definição da norma jurí­dica como juízo de valor tem uma nítida função polêmica con­tra o imperativismo... Ele fala explicitamente de “profunda e íntima superação da configuração imperativista do direito que está ínsito na perspectiva das normas jurídicas como juízos de


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valor jurídico e do ordenamento jurídico como um conjunto de juízos de valor jurídico”. [Nota 21]

Aqui, não nos ocupamos da questão, freqüentemente discu­tida, de se para indicar a norma jurídica, a escolha da expres­são “juízo de valor”, que na linguagem filosófica tem um signifi­cado bastante uniforme e diverso do que os juristas acima men­cionados lhe atribuem, é oportuna ou não, a ponto de gerar algumas confusões. Aqui, nos limitamos a perguntar se aquela definição implica uma negação do significado prescritivo das normas jurídicas, isto é, se realmente pode-se considerar a teo­ria das normas como juízos de valor uma doutrina resolutiva nos confrontos com a doutrina imperativista, entendida no seu sentido mais amplo (isto é, como teoria que considera as nor­mas jurídicas não como comandos em sentido estrito, mas como proposições pertencentes à linguagem prescritiva, distinta da descritiva). Quando os autores acima lembrados dizem que a norma é a valoração de certos fatos, querem dizer que a norma jurídica qualifica certos fatos como jurídicos, isto é, coli­ga a certos fatos certas consequências, chamadas de conseqüências jurídicas. Mas quais são essas conseqüências jurídicas, diversas, por exemplo, das conseqüências naturais? A mais importante e mais frequente destas conseqüências jurídicas é o surgimento de uma obrigação, ou no indivíduo da sociedade, quando se trata de uma norma primária, ou na pessoa dos juizes, quando se trata de uma norma secundária. Em outras palavras, quando se diz que um fato é valorado por uma nor­ma, nada se diz além disso: o fato é a condição para o surgi­mento de uma obrigação. Mas a obrigação reenvia a uma pres­crição. Por isso, dizer que certos fatos têm certas conseqüências jurídicas significa reconhecer que certos comportamentos, mais do que outros, são obrigatórios enquanto são prescritos; que por exemplo, certos comportamentos que sem a norma seriam lícitos, são ao contrário proibidos, ou outros determinados


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comportamentos que sem aquela norma seriam proibidos, se tornam lícitos; quer dizer, em suma, refere-se a uma modifica­ção de comportamentos, àquela modificação de comporta­mentos que é o objetivo a que tende uma prescrição qualquer. Não se nota, de fato, como uma norma poderia atribuir certas conseqüências, se não fosse, no caso dessas consequências serem obrigatórias, uma prescrição que tenda a influir sobre o comportamento alheio. A tarefa de uma norma não é a de descrever as conseqüências que derivam de certos fatos, mas de colocá-las em ação.

Além disso, o significado prescritivo da norma jurídica re­sulta, que se note bem, do mesmo texto de Perassi onde se lê: “As valorações do direito são voltadas, definitivamente, a con­formar a conduta dos indivíduos para com os outros, a certas exigências de equilíbrio social”, [Nota 22] o que demonstra que a fun­ção prescritiva da norma, de qualquer modo comprimida, aca­ba por emergir, e que definitivamente a consideração da nor­ma como um juízo de valoração representa uma mudança de nome a que não corresponde uma mudança de significado. A contraprova disto se vê na conclusão a que chega o último autor que acolhe a definição de norma como juízo de valor, Allorio, que julga que esta definição não é “incompatível com a concepção que se costuma chamar de imperativa do direito”. Ele, entre outras coisas, escreve: “Da mesma definição da nor­ma jurídica como valoração ou juízo decorre...., com um modo diferente de expressão, sem inconvenientes de qualquer espé­cie para investigação do jurista, a mesma realidade, a idéia da norma como preceito, que reclama observação”. [Nota 23] Que a teoria da norma como juízo de valor não tenha retirado o peso da definição tradicional da norma como imperativo, e, depois de uma longa volta tenha retornado ao ponto de partida do impe- rativismo, parece já uma opinião corrente. Lemos, por último: “Não há antítese entre o aspecto imperativista e o valorativo do


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direito. Diria mesmo que o segundo aspecto não representa mais do que um desenvolvimento lógico do primeiro”. [Nota 24]

A conclusão que podemos tirar do exame desta teoria da norma como juízo de valor vale para todas as doutrinas que se propuseram a negar, no todo ou em parte, o imperativismo. Isto não significa que o antigo imperativismo tenha resistido incólume à prova. O antigo imperativismo partia de uma noção muito restrita da norma jurídica como comando, ou seja, como imposição do soberano (é a concepção de norma como co­mando que de Hobbes chega a Austin, e domina grande parte do positivismo jurídico estatualista do século XIX). Uma con­cepção assim restrita não poderia sobreviver aos ataques que provinham do estudo de experiências jurídicas diversas da es­tatal e de uma mais desprendida observação das fontes do direito diferentes da lei. O ordenamento internacional, com a sua produção normativa caracterizada em grande parte pelo costume, não se prestava a ser definido como um complexo de comandos, no momento em que o termo “comando” é empre­gado para indicar a norma ou a ordem imposta por uma pes­soa dotada de autoridade, e no direito internacional não há pessoas nem supremacias personificadas. Assim então, o vasto domínio da autonomia privada, dominada pela atividade ne­gociai, ou, com uma expressão mais abrangente, do chamado “direito privado”, revelou e continua a revelar um direito que surge, seja entre pessoas talvez bem definidas (como, por exemplo, em um contrato) entre as quais ocorre, porém, uma relação não de subordinação (entre o superior e o inferior), mas de coordenação (entre iguais), e portanto, também aqui, a regra que delimita os comportamentos recíprocos não pode ser chamada, a não ser por um esforço inútil, de “comando”, ou mesmo de “imperativo”.

 


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A reação ao imperativismo, até mesmo se por “imperativismo” entende-se a teoria da norma jurídica como comando, fundada (mesmo se não era sempre explicitamente reconheci­do) na identificação do direito com o direito estatal, foi uma reação justa. A reação ultrapassou a medida, porém, quando para combater a noção restrita de comando ou imperativo, acabou por crer ou por levar a crer que as normas jurídicas, além de não serem comandos, não eram nem mesmo impera­tivos no sentido mais amplo do termo, nem prescrições, mas eram juízos ou valorações pertencentes a uma linguagem diver­sa daquela a que pertenciam os comandos, à linguagem da ciência e não à normativa. Mostrando, como buscamos fazer até aqui, que as teorias mistas e as teorias negativas, embora critiquem a identificação da norma jurídica com o comando, nunca superaram o recife da pertinência da linguagem de um sistema jurídico à linguagem prescritiva, tentamos atenuar o contraste entre imperativistas e não imperativistas, fazendo ver mais o que eles têm em comum (mesmo se isto não tenha sido consciente), vale dizer, a pertinência das normas jurídicas, se­jam elas comandos propriamente ditos ou imperativos impes­soais ou imperativos hipotéticos ou normas técnicas e assim por diante, à categoria das proposições prescritivas, e não o que as divide, isto é, a proeminência dada a esta ou àquela forma de prescrição, o que levou a crer que os “comandos” do legislador estatal fossem essencialmente diversos das “prescri­ções” de um costume ou das “normas” contratuais, enquanto são species de um mesmo genus. Em outras palavras, a disputa entre imperativistas e não imperativistas é apresentada como uma disputa relativa ao genus, enquanto foi na realidade - esta é a nossa conclusão - uma disputa em relação às species, vale dizer, em relação aos vários tipos de proposições prescritivas que podem compor um sistema normativo, e não danificou a comunidade do gênero, ao qual todos os diversos tipos de normas pertencem, e que é o gênero das proposições prescriti­vas distintas das descritivas.


 

 

RETORNO 6 PÁGINA 106

 

Nota 7, página 120: Frammenti di un dizionario giuridico [Fragmentos de um Dicionário Jurídico], Milão, Giuffrè, 1947, pp. 137 e ss.

 

RETORNO 7 PÁGINA 120

 

Nota 8, página 121: Der Zweck im Recht, da 2a ed. de 1884, vol. I, p. 320. A teoria dos destinatários se encontra nas pp. 336 e ss. Desta obra existe também uma tradução italiana: Lo scopo dei diritto [O Objetivo do Direito], sob os cuidados de M. Losano, Turim, Ei- naudi, 1972.

 

RETORNO 8 PÁGINA 121

 

 

Nota 9, página 122: Teoria pura dei diritto [Teoria Pura do Direito], trad.it., Turim, Einaudi, p. 46.

 

RETORNO 9 PÁGINA 122

 

 

Nota 10, página 123: E. Allorio, “La pluralità degli ordinamenti giuridici e l’accertamento giudiziale” [“A pluralidade dos ordenamentos jurídicos e o acerto judicial”] in Riuista deli Diritto Ciuile, 1, p. 279.

 

RETORNO 10 PÁGINA 123

 

 

Nota 11, página 128: Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975.

 

RETORNO 11 PÁGINA 128

 

 

Nota 12, página 128: Idem.

 

RETORNO 12 PÁGINA 128

 

 

Nota 13, página 131: A distinção entre Estado de liberdade e Estado socialista com base nas duas for­mulações indicadas foi feita por W. Sombart, //

 

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socialismo tedesco [O Socialismo Alemão], Florença, Vallecchi, 1941, pp. 83 e ss.

 

RETORNO 13 PÁGINA 131

 

Nota 14, página 133: Ver a obra, Norme e regole finali nel diritto [Normas e Regras Finais no Direito], Turim, Utet, 1913, útil também pela exposição e crítica das principais doutrinas so­bre a norma jurídica.

 

RETORNO 14 PÁGINA 133

 

 

Nota *, página 133:  O autor se refere à teoria de Ravà no tópico 30; no 29 alude àquela de Karl Olivecrona.

RETORNO * PÁGINA 133

 

Nota 15, página 137: Teoria pura dei diritto [Teoria Pura do Direito], trad. it., Turim, Einaudi, 1952, p. 40.

 

RETORNO 15 PÁGINA 137

 

 

Nota 16, página 138: Do ensaio “Causalidade e Imputação”, publicado como apêndice à Teoria pura dei diritto [Teoria Pura do Direito], cit., p. 181.

 

RETORNO 16 PÁGINA 138

 

 

Nota 17, página 140: Teoria generale dei diritto e dello stato [Teoria Geral do Direito e do Estado], trad. it., Milão, Comunità. 1952, p. 45.

 

RETORNO 17 PÁGINA 140

 

Nota 18, página 140: Para um exame exaustivo desta doutrina, indico o estudo de E. Di Robilant, “Osservazioni sulla concezione delia norma giuridica come giudicio di valore” [Observações sobre a concepção da norma jurídica como juízo de valor”], in Riuista Trimestrale dei Diritto e Processo Ciuile, XI, 1957, pp. 1377-1443.

 

RETORNO 18 PÁGINA 140

 

Nota 19, página 140: T. Perassi, Introduzione alie scienze giuridiche [Introdução às Ciências Jurídicas], Pádua, Cedam, 1953, p. 31.

 

Página notas de rodapé

 

 

RETORNO 19 PÁGINA 140

 

Nota 20, página 140: M. Giuliano. I diritti e gli obblighi degli stati [Os Direitos e as Obrigações do Estado], I, Pádua, Cedam, 1956, p. 8.

 

RETORNO 20 PÁGINA 140

 

 

Nota 21, página 141: M. Giuliano, La cominità internazionale e il diritto [A Comunidade internacional e o Direito], Pádua, Cedam, 1950, p. 222.

 

RETORNO 21 PÁGINA 141

 

 

Nota 22, página 142: Introduzione... [Introdução...], cit., p. 43.

 

RETORNO 22 PÁGINA 142

 

 

Nota 23, página 142: La pluralità degli ordinamenti giuridici [A Pluralidade dos Ordenamentos Jurídicos], cit., p. 255.

 

RETORNO 23 PÁGINA 143

 

 

Nota 24, página 143: L. Ferri, “Norma e negozio nel quadro deH’autonomia privata” [“Norma e negócio no quadro da autonomia privada”], em Riuista Trimestrale dei Diritto e Processo Civíle, XII, 1958, p. 44.

 

RETORNO 24 PÁGINA 143