Título: Teoria da norma jurídica

Autor: Norberto Bobbio

Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

Adaptado por: José Eduardo. 

Adaptado em: junho de 2022.  

Padrão vigente a partir de março de 2022. 

 

Referência: BOBBIONorberto. As prescrições jurídicas; Classificação das normas jurídicas. In: BOBBIONorbertoTeoria geral do direito. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2003. cap. 5-6; p. 144-193.


 


 

Norberto Nobbio

 

Teoria da Norma Jurídica

 

Tradução

Fernando Pavan Baptista Ariani Bueno Sudatti

 

Apresentação

Alaôr Caffé Alves


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A reação ao imperativismo, até mesmo se por “imperativis- mo” entende-se a teoria da norma jurídica como comando, fundada (mesmo se não era sempre explicitamente reconheci­do) na identificação do direito com o direito estatal, foi uma reação justa. A reação ultrapassou a medida, porém, quando para combater a noção restrita de comando ou imperativo, acabou por crer ou por levar a crer que as normas jurídicas, além de não serem comandos, não eram nem mesmo impera­tivos no sentido mais amplo do termo, nem prescrições, mas eram juízos ou valorações pertencentes a uma linguagem diver­sa daquela a que pertenciam os comandos, à linguagem da ciência e não à normativa. Mostrando, como buscamos fazer até aqui, que as teorias mistas e as teorias negativas, embora critiquem a identificação da norma jurídica com o comando, nunca superaram o recife da pertinência da linguagem de um sistema jurídico à linguagem prescritiva, tentamos atenuar o contraste entre imperativistas e não imperativistas, fazendo ver mais o que eles têm em comum (mesmo se isto não tenha sido consciente), vale dizer, a pertinência das normas jurídicas, se­jam elas comandos propriamente ditos ou imperativos impes­soais ou imperativos hipotéticos ou normas técnicas e assim por diante, à categoria das proposições prescritivas, e não o que as divide, isto é, a proeminência dada a esta ou àquela forma de prescrição, o que levou a crer que os “comandos” do legislador estatal fossem essencialmente diversos das “prescri­ções” de um costume ou das “normas” contratuais, enquanto são species de um mesmo genus. Em outras palavras, a disputa entre imperativistas e não imperativistas é apresentada como uma disputa relativa ao genus, enquanto foi na realidade - esta é a nossa conclusão - uma disputa em relação às species, vale dizer, em relação aos vários tipos de proposições prescritivas que podem compor um sistema normativo, e não danificou a comunidade do gênero, ao qual todos os diversos tipos de normas pertencem, e que é o gênero das proposições prescriti­vas distintas das descritivas.


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Capítulo V: As Prescrições Jurídicas

 

Sumário: 37. Em busca de um critério - 38. De al­guns critérios - 39. Um novo critério: a resposta à vio­lação - 40. A sanção moral - 41. A sanção social - 42. A sanção jurídica - 43. A adesão espontânea - 44. Normas sem sanção - 45. Ordenamentos sem sanção - 46. As normas em cadeia e o processo ao in­finito.

 

37. EM BUSCA DE UM CRITÉRIO

O fato de que as normas jurídicas pertençam, enquanto proposições, à linguagem prescritiva, pode dar lugar a interes­santes considerações sobre sua natureza, sua lógica e sua fun­ção. Porém, não resolve o problema sobre o qual filósofos do direito e juristas têm se interrogado há tempos, em torno da diferença entre as normas jurídicas e outros tipos de normas. É o problema que nos colocamos neste capítulo.

A tese da qual partimos é que o problema da distinção entre normas jurídicas e outros tipos de normas chamado de “carac­terísticas diferenciais” da norma jurídica - com freqüência des-


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prezado e repelido, mas continuamente emergente - não se resolve permanecendo-se nos limites de um estudo puramente formal das proposições normativas. Para que se pudesse resolvê-lo, seria necessário que as prescrições jurídicas tivessem, enquanto prescrições, uma característica que as distinguisse de outros tipos de prescrições, em outras palavras, que as proposi­ções normativas pertencentes ao direito fossem diferentes de outras proposições normativas devido a uma característica ine­rente à sua natureza de prescrições. Tentativas de solução pu­ramente formal da característica distintiva do direito são aque­las, já examinadas e consideradas inaceitáveis por nós, dirigi­das a colher, por exemplo, o elemento característico das nor­mas jurídicas no fato de que são constituídas por imperativos negativos (enquanto a moral seria constituída por imperativos positivos), ou no fato de que são constituídas por normas técni­cas (enquanto a moral seria constituída por normas éticas), ou, ainda, no fato de que são constituídas por normas heterônomas, por imperativos impessoais, etc. (enquanto a moral é constituída por normas autônomas, por comandos pessoais, etc.); em suma, todas as doutrinas que procuram uma resposta para a pergunta: “O que é o Direito?” na forma do imperativo jurídico, como se o elemento diferencial das normas jurídicas consistisse em serem formalmente diversas das outras normas. Também a fórmula mais acolhida da norma jurídica: “Se é A, deve ser B”, pode aplicar-se a muitos outros tipos de normas. Abro uma gramática latina e leio: “Se na oração regente há um tempo principal, na dependente deve-se usar o presente do conjuntivo, etc.”. Trata-se de uma regra cuja fórmula é: “Se é A, deve ser B”. Se observarmos bem, o que caracteriza a nor­ma jurídica, segundo Kelsen, é que A representa o ilícito e B a sanção, o que é uma interpretação da fórmula advinda não da pura e simples relação formal por ela indicada, mas das coisas a que os símbolos se referem.

O mundo jurídico nos apareceu até agora muito mais arti­culado e complexo do que aparece nas várias tentativas de redução a esta ou aquela fórmula; e de outra parte, o mundo


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normativo é tão vasto, como vimos desde as primeiras páginas, que não há um tipo de prescrição relevante em um ordena­mento normativo jurídico que não se encontre em algum outro sistema normativo. Consideramos, portanto, que a tentativa de dar uma resposta ao problema da definição do direito, definin­do uma espécie de prescrição, seja verdadeiramente uma ten­tativa destinada ao fracasso.

 

38. DE ALGUNS CRITÉRIOS

Abandonado o critério puramente formal, salta aos nossos olhos a enorme quantidade de tentativas de definir o direito recorrendo a outros critérios. O campo é tão vasto que é possí­vel perder-se: trata-se, como é fácil compreender, de uma parte considerável da história da filosofia do direito e da teoria geral do direito, empenhada em uma definição do direito através da definição da norma jurídica. Não temos a pretensão de percor­rer todo este espaço, mas apenas de nos dirigir à solução que julgamos mais satisfatória, reagrupando em torno de alguns critérios fundamentais, afora os formais, um certo número de teorias típicas.

1. O critério mais seguido sempre foi o de procurar indivi­dualizar o caráter da norma jurídica através do seu conteúdo. Pertencem a esta categoria todas as teorias que afirmam como característica da norma jurídica regular sempre uma relação intersubjetiua, isto é, uma relação não entre uma pessoa e uma coisa, nem entre uma pessoa e si mesma, mas entre uma pes­soa e uma outra pessoa. Esta teoria se exprime também atri­buindo à norma jurídica o caráter (eis um dos mais conhecidos “caracteres diferenciais” da norma jurídica) da bilateralidade, diversamente da norma moral, que seria unilateral. O caráter da bilateralidade consistiria no seguinte: a norma jurídica insti­tui ao mesmo tempo um direito a um sujeito e um dever a um outro; e a relação intersubjetiva, ao constituir o conteúdo típico da norma jurídica, consistiria precisamente na relação de inter­dependência entre um direito e um dever.


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Esta doutrina nasce de uma constatação de que não se pode desconhecer o fundamento empírico: vale dizer, o direito é um regulamento das ações sociais dos homens, ou das ações do homem que vive em sociedade com os seus semelhantes. Isto explica o seu grande êxito. Pode-se objetar que um tal cri­tério sirva talvez para distinguir o direito da moral, mas não sirva igualmente bem para distinguir o direito das chamadas normas sociais, as quais tendem, como as jurídicas, a regular as relações sociais dos indivíduos e por isso, têm também como conteúdo as relações intersubjetivas.

2. Desta crítica, que revela uma insuficiência no critério do conteúdo, nasce a exigência de um novo critério, o do fim. Com base neste novo critério, se responde que o direito regula sim, como as normas sociais, relações intersubjetivas, mas não relações intersubjetivas genéricas. As relações intersubjetivas reguladas pelo direito são específicas, e a sua especificidade é dada pelo fim a que o ordenamento normativo jurídico se pro­põe no confronto com todos os outros ordenamentos normati­vos vigentes naquela determinada sociedade. E este fim é a conservação da sociedade. Nem todas as ações sociais são igualmente necessárias (alguns diriam essenciais) para a con­servação da sociedade. Essencial é a ação de restituir o débito e de ressarcir o dano causado por culpa, não essencial é o cumprimentar-se na rua ou o não cortar o peixe com a faca. Em toda sociedade vão se distinguindo, no conjunto das regras de conduta, aquelas sem as quais a sociedade não poderia subsistir e aquelas que podem modificar-se ou desaparecer sem que aquela estrutura social específica esvaneça. As regras a que se atribui a qualificação de jurídicas são as primeiras.

Também esta teoria não é isenta de uma grave objeção. As regras consideradas essenciais em uma sociedade podem ser diferentes das regras consideradas essenciais em uma outra sociedade. O que é norma social em uma sociedade pode se tornar norma jurídica em uma outra ou vice-versa. Este critério, em suma, serve para dizer que se uma certa norma em uma determinada sociedade é jurídica, é sinal de que é considerada


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como essencial à conservação da sociedade. Mas não serve ao fim a que deveria servir uma definição da norma jurídica, ou seja, o de reconhecer uma norma como jurídica no meio de outras normas. Para que servisse a este fim, seria preciso que conseguíssemos, através de uma fenomenologia histórica do direito, fixar de modo unívoco os caracteres que fazem de uma norma uma regra essencial à conservação da sociedade. Mas esta procura não pode ter sucesso por causa, exatamente, da variedade histórica das sociedades jurídicas.

3. Da insuficiência do critério do fim, somos impelidos, qua­se fatalmente, ao critério do sujeito que estabelece a norma. O critério do fim é insuficiente porque o juízo sobre para que ser­ve o fim (isto é, a conservação da sociedade) varia de tempos em tempos, de lugar para lugar. Quem decide, em cada socie­dade, o que serve e o que não serve? Responde-se: aquele ou aqueles que detêm o poder soberano. É essencial à conserva­ção da sociedade o que de acordo com o momento o poder soberano decide que seja essencial. E por isso, eis a conclusão desta nova teoria: norma jurídica é aquela que, independente­mente da forma que assuma, do conteúdo que possua, do fim a que se proponha, é estabelecida pelo poder soberano, ou seja, por aquele poder que em uma dada sociedade não é infe­rior a nenhum outro poder, mas que está em posição de domi­nar todos os outros. Uma norma é sempre uma expressão de poder. Em toda sociedade existem poderes inferiores e poderes superiores. Remontando do poder inferior ao poder superior, se chegará sempre a um poder que não tem acima de si ne­nhum outro poder: este é o poder soberano na sua definição tradicional de summa potestas superiorem non recognoscens [o poder supremo não reconhece superior]. Pois bem, normas jurídicas são aquelas estabelecidas e impostas por quem detém o poder soberano, qualquer coisa que ordenem, visto que só quem detém o poder está em posição de deeidir o que é essen­cial, e de tornar efetivas as suas decisões.

Esta resposta, claramente, é a que provém do mais autêntico positivismo jurídico, segundo o qual o soberano não apenas edita

 

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as normas essenciais para a conservação da sociedade, mas as normas estabelecidas pelo soberano tornam-se essenciais, só pelo fato de que se fazem valer também recorrendo à força.

4. A crueza da teoria positivista do direito reenvia ao seu oposto, ou seja, à teoria jusnaturalista na acepção mais ampla do termo, isto é, a todas aquelas doutrinas que buscam a es­sência do direito nos valores (ou ideais) em que o legislador se inspira. Concordamos que o direito positivo seja aquele esta­belecido e imposto pelo soberano (entendendo-se por sobera­no a pessoa ou o grupo de pessoas que detêm o poder de fazer respeitar, inclusive através da força, as regras de conduta que emanam). Mas será necessário distinguir as decisões segundo os ideais em que se inspiram, e então serão jurídicas não todas as regras, mas somente as que se inspiram em determinados valores. Em geral, dá-se ao supremo valor em que o direito se inspira o nome de justiça. Daí segue que, para uma regra ser jurídica, é preciso que seja justa, isto é, que tenda à realização de certos valores em primazia de outros.

O defeito da doutrina jusnaturalista é que as opiniões são muito divergentes sobre o que se deve entender por “justiça”. Por “justiça” entende-se, em geral, “igualdade”. Diremos, en­tão, que normas jurídicas são aquelas que tornam possível es­tabelecer relações de igualdade entre os cidadãos? Mas “igual­dade” não é um termo um pouco vago? Igualdade em relação a quê? Na história do pensamento jurídico, se conhece pelo menos quatro respostas a esta última pergunta: igualdade se­gundo o mérito, segundo a necessidade, segundo o trabalho, segundo o status. Qual destes critérios é o justo, ou seja, o que permite afirmar que uma norma é jurídica ao se sustentar que uma norma, para ser jurídica, deve ser também justa?

5. Um quinto grupo de teorias é o que se caracteriza pelo fato de procurar a natureza específica da norma jurídica no modo como é acolhida pelo destinatário, ou, em outros termos,


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na natureza da obrigação. Distinguem-se aqui, tradicional­mente, duas soluções: a primeira (que chamaremos de kantiana, porque Kant a expressou com maior clareza), é aquela se­gundo a qual a norma jurídica é a que é obedecida pelas van­tagens que dela se possam tirar, e como tal se satisfaz com uma mera adesão exterior (isto é, uma ação conforme ao dever), enquanto a norma moral deve ser obedecida por si mesma, e como tal exige uma obediência interior, que não pode ser constrangida (isto é, uma ação pelo dever); a segunda (da qual se encontra uma formulação recente na teoria geral do direito de Haesaert), leva a afirmar que se está diante de uma norma jurídica somente quando aquele a quem ela se dirige está con­vencido da sua obrigatoriedade, e age como em estado de necessidade, enquanto normas não jurídicas, como as sociais, são caracterizadas por um menor senso de dependência do sujeito passivo frente a elas, por uma obrigação não incondicionada, mas condicionada à livre escolha do fim.

A estes dois critérios pode-se apresentar a objeção recor­rente de que as normas jurídicas, por causa da sua posição intermediária entre as normas morais e as normas sociais, sem­pre que são caracterizadas cuidando-se exclusivamente de distingui-las das normas morais, são colocadas em um grupo co­mum com as normas sociais e, por outro lado, quando são caracterizadas cuidando-se exclusivamente de distingui-las das normas sociais, são colocadas em um grupo comum com as normas morais. Para confirmar isto, veja-se o primeiro critério: admitamos que a conformidade exterior da norma seja caráter distintivo da norma jurídica em relação à moral. Mas este não é um caráter comum às normas jurídicas e às sociais? Veja-se, em seguida, o segundo critério: admitamos que o sentimento de uma obrigação incondicionada (o que os juristas chamam, referindo-se ao costume, de opinio iuris ac necessitatis [opinião do direito e da necessidade]) sirva para caracterizar as normas jurídicas frente às sociais. Mas não é este um caráter comum às normas jurídicas e às morais?


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39. UM NOVO CRITÉRIO: A RESPOSTA À VIOLAÇÃO

Com a enumeração do tópico precedente, não acreditamos ter indicado todos os critérios adotados para demarcar as nor­mas jurídicas. Indicamos alguns deles, só para dar uma idéia da complexidade do problema e da variedade das opiniões. O que queremos aqui expor é: 1) os critérios citados não são exclusi­vos, mas antes integrativos uns com os outros, e portanto, toda disputa sobre a superioridade de um ou de outro é esté­ril; 2) tratando-se de dar uma definição de norma jurídica, e não mais de descobrir a essência do direito, cada um dos crité­rios não deve ser valorado como verdadeiro ou falso, mas como mais oportuno ou menos oportuno, segundo o contexto dos problemas em que nos encontramos ao dar aquela defini­ção, e as finalidades a que nos propomos com a definição.

Consideramos, por outro lado, que merece ser ilustrado com particular atenção um outro critério, de que os juristas tradicionalmente se servem, e sem a compreensão do qual o nosso horizonte seria incompleto. Trata-se do critério que se refere ao momento da resposta à violação e que, portanto, acarreta a noção de sanção.

Uma norma prescreve o que deve ser. Mas aquilo que deve ser não corresponde sempre ao que é. Se a ação real não cor­responde à ação prescrita, afirma-se que a norma foi violada. É da natureza de toda prescrição ser violada, enquanto exprime não o que é, mas o que deve ser. A violação, dá-se o nome de ilícito. O ilícito consiste em uma ação quando a norma é um imperativo negativo e em uma omissão quando a norma é um imperativo positivo. No primeiro caso, afirma-se que a norma não foi observada, no segundo, que não foi executada. Por­quanto os termos “observação” e “execução” de uma norma sejam usados indiscriminadamente para indicar o comporta­mento conforme à norma, o que se observa é uma proibição, o que se executa é um comando, daí dois modos diversos de violação, a inobservância em relação a um imperativo negati­vo, a inexecução em relação a um imperativo positivo.


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Afirma-se que a possibilidade da transgressão distingue uma norma de uma lei científica. Em outras palavras, exprime-se o mesmo conceito dizendo que a lei científica não admite exce­ções. Tanto a norma quanto a lei científica estabelecem uma relação entre uma condição e uma conseqüência. Se a conseqüência, no segundo caso, não se verifica, a lei científica deixa de ser verdadeira. Se, ao invés, não se verifica no primeiro caso, a norma continua a ser válida. Uma lei científica não ob­servada não é mais uma lei científica; uma norma ineficaz con­tinua a ser uma norma válida do sistema. Esta diferença nos põe diante dos olhos um critério de distinção entre sistema científico e sistema normativo atinente à matéria deste tópico. Em um sistema científico, no caso em que os fatos desmintam uma lei, nos orientamos no sentido da modificação da lei; em um sistema normativo, no caso em que a ação que deveria ocorrer não ocorre, nos orientamos sobretudo no sentido de modificar a ação e salvar a norma. No primeiro caso, o con­traste é sanado agindo sobre a lei e, por conseguinte, sobre o sistema; no segundo caso, agindo sobre a ação não conforme e, assim, procurando fazer com que a ação não ocorra ou, pelo menos, tentando neutralizar as suas conseqüências. A ação que é cumprida sobre a conduta não conforme para anulá-la, ou pelo menos para eliminar suas conseqüências danosas, é preci­samente aquilo que se chama de sanção. A sanção pode ser definida, por este ponto de vista, como o expediente através do qual se busca, em um sistema normativo, salvaguardar a lei da erosão das ações contrárias; é, portanto, uma conseqüência do fato de que em um sistema normativo, diferentemente do que ocorre em um sistema científico, os princípios dominam os fa­tos, ao invés dos fatos os princípios. Esta diferença, aliás, nos reconduz ao que tivemos ocasião de afirmar outras vezes, isto é, que sistema científico e sistema normativo se diferenciam pelo critério diverso, com base no qual se estabelece a perti­nência das proposições no sistema, valendo, no primeiro caso, o critério da verificação empírica, no segundo caso, o princípio da autoridade.


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Podemos definir mais brevemente a sanção como a resposta à violação. Todo sistema normativo conhece a possibilidade da violação e um conjunto de expedientes para fazer frente a esta eventualidade. Podemos dizer que todo sistema normativo implica o expediente da sanção. Mas todas as sanções são iguais? Pode haver algum interesse em estudar as respostas às violações que os diversos sistemas normativos estabelecem. Pode ocorrer que este exame nos ofereça um critério posterior de distinção entre norma jurídica e outros tipos de normas. Violação da norma e sanção como resposta à violação estão implicadas em todo sistema normativo. Trata-se de ver se exis­tem tipos diversos de resposta e se eles nos permitem uma clas­sificação satisfatória dos diversos ordenamentos normativos.

 

40. A SANÇÃO MORAL

A sanção pressupõe a violação da norma. Entra em jogo só quando é verificada uma violação. Podemos partir da hipótese de um ordenamento normativo que nunca seja violado, e conseqüentemente não tenha necessidade de recorrer à sanção. Trata-se de uma hipótese abstrata; para que um ordenamento normativo não seja nunca violado, ocorrem duas condições: ou as normas são perfeitamente adequadas às inclinações dos destinatários, ou os destinatários aderem perfeitamente às pres­crições. Há dois tipos extremos de sociedade que poderiam realizar as duas condições: uma sociedade de seres perfeita­mente racionais, isto é, uma sociedade um pouco melhor do que a real, e uma sociedade de seres perfeitamente automati­zados, sem iniciativa e sem liberdade, isto é, uma sociedade um pouco pior do que a real. Nas sociedades históricas, as normas nunca são assim tão racionais a ponto de serem obe­decidas por todos pelo seu valor intrínseco, nem os homens nunca são assim tão autônomos a ponto de obedecer às nor­mas por uma espécie de resignada passividade. Todo sistema normativo em uma sociedade real encontra resistência e rea­ções. Mas nem todas respondem à violação do mesmo modo.


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Vejamos como se pode distinguir os vários tipos de normas com base nos diversos modos em que são sancionadas.

Há um modo de definir as normas morais que se refere pre­cisamente à sanção. Afirma-se que são morais aquelas normas cuja sanção é puramente interior. Por sanção, entende-se sem­pre uma conseqüência desagradável da violação, cujo fim é prevenir a violação ou, no caso em que a violação seja verifi­cada, eliminar as conseqüências nocivas. A única conseqüência desagradável da violação de uma norma moral seria o senti­mento de culpa, um estado de incômodo, de perturbação, às vezes de angústia, que se diz, na linguagem da ética, “remorso” ou “arrependimento”. Visto que, toda norma, enquanto prevê uma sanção, pode ser formulada com um juízo hipotético: “Se você não quiser Y, deve X”, a norma moral “Não minta” pode ser formulada deste modo: “Se você não quiser se encontrar naquela situação de perturbação que se chama ‘remorso’, e que deriva do sentir-se em contradição consigo mesmo, não minta”. Deste modo, também o legislador moral apela, para obter a obediência, a um estado em que o destinatário, o quanto possível, deseja evitar. Afirma-se que a norma moral obriga em consciência: um dos significados desta expressão se esclarece tendo presente o tipo de sanção puramente interior que acompanha a norma moral. Que a norma moral obrigue em consciência pode significar, de fato, entre outras coisas, que eu responda somente frente a mim mesmo: no sentido em que, se a transgredir, não há nada, além da minha consciência, em condição de me punir. Afirma-se que eu sou responsável so­mente frente a mim mesmo pela execução da norma moral. Caso respondesse também frente aos outros, interviria um novo elemento, ou seja, a relação com os outros, relação esta denominada externa, intersubjetiva, bilateral, que me faz entrar em uma esfera normativa social ou jurídica; enquanto, se res­pondesse somente frente a mim mesmo, a resposta à eventual violação dependeria apenas de mim. Por outro lado, se eu cumprisse o meu dever só por temor aos outros, ou para dar-lhes prazer, ou para evitar que me punissem, a minha ação não


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mais seria, por isso mesmo, uma ação moral. Comumente, chamamos de “moral” aquela ação que é cumprida por ne­nhuma outra razão além da satisfação íntima que nos leva à sua adesão, ou da repugnância à insatisfação também íntima que nos causa a sua transgressão. Se não aceitamos falar em satisfação e em insatisfação íntima, nos foge qualquer elemento para identificar as normas morais, e qualquer critério para dis­tinguir as normas morais das outras. Tem sentido falar em um mundo moral de um indivíduo apenas quando atribuímos a este indivíduo uma série de ações que ele cumpre para evitar encontrar-se, não as cumprindo, em discórdia consigo mesmo. Se considerássemos que o homem age só por temor à penalização dos outros, teríamos com isto suprimido toda possibili­dade de distinguir a normatividade moral da jurídica, ou, para dizê-lo com palavras kantianas, a moralidade da legalidade. Somos livres para negar esta diferença: contudo, precisamente, podemos fazê-lo só sob a condição de negar a existência de uma sanção interior. Daí se vê que, tipos de norma e tipos de sanção são estritamente conexos.

O defeito da sanção interior é o de ser escassamente eficaz. O fim da sanção é a eficácia da norma, ou, em outras palavras, a sanção é um expediente para conseguir que as normas sejam menos violadas ou que as conseqüências da violação sejam menos graves. A sanção interior é certamente um meio inade­quado. De fato, ela age, isto é, mostra a sua funcionalidade, somente em um número limitado de indivíduos, aqueles capa­zes de provar satisfação e insatisfação íntimas. Mas são propria­mente estes os indivíduos que por hábito respeitam as normas morais. Em um indivíduo que não tenha nenhuma inclinação ao respeito das normas morais, a sanção interior não produz nenhum efeito. Para sentir-se em estado de culpa em caso de violação de uma norma, é preciso ser dotado de sensibilidade moral, precisamente daquela sensibilidade que é o melhor ter­reno sobre o qual se desenvolve a inclinação de respeitar as leis morais. A sanção interior é considerada socialmente tão pouco eficaz que as normas morais são geralmente reforçadas com


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sanções de ordem religiosa, que são sanções externas e não mais internas. Não há nenhum legislador que, para obter o respeito das normas que emana, confie exclusivamente na operatividade da sanção interior.

 

41. A SANÇÃO SOCIAL

Assim como chamamos de sanção interna aquela que infli­gimos a nós mesmos, pode-se chamar de externa aquela que nos atinge proveniente dos outros, individualmente ou en­quanto grupo social. Quando a violação de uma norma suscita uma resposta por parte dos outros com quem convivemos, a norma é externamente sancionada. A sanção externa é caracte­rística das normas sociais, isto é, de todas as normas do costu­me, da educação, da vida em sociedade em geral, que são voltadas ao fim de tornar mais fácil ou menos difícil a convi­vência. Estas normas nascem, geralmente, de um grupo social, em forma de costumes, o mesmo grupo social que responde à sua violação com diversos comportamentos que constituem as sanções.

Estes comportamentos sancionadores são de diversos graus de gravidade: parte-se da pura e simples reprovação, e chega- se até a eliminação do grupo, que pode consistir em alguma forma de isolamento no interesse próprio do grupo ou em uma verdadeira expulsão. A forma mais grave de sanção social é o linchamento, que é uma típica sanção de grupo, expressão daquela forma primitiva, espontânea e irrefletida de grupo so­cial, que é a multidão.

Não há nenhuma dúvida de que sanções deste gênero são eficazes. Grande parte da coesão de um grupo social é devida à uniformidade de comportamentos, provocada pela presença de normas com sanção externa, isto é, normas cuja execução é garantida pelas diversas respostas, mais ou menos enérgicas, que o grupo social dá em caso de violação. Afirma-se que a reação do grupo à violação das normas que garantem sua coe-


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são é um dos mais eficazes meios de controle social. A presen­ça dos outros com seus gostos, opiniões, hábitos é, na vida de cada um de nós, pesarosa, às vezes opressiva. Há muitos com­portamentos que não assumimos somente por temor do juízo que os outros farão de nós, e das conseqüências que este juízo poderá ter sobre nosso futuro. Devendo viver em meio aos outros, é natural que levemos em conta a reação que cada comportamento nosso suscita nos demais. Esta presença dos outros é tão mais intensa quanto mais o grupo é homogêneo, escassamente articulado, fechado e exclusivo. Em grupos deste gênero, a sanção social é bastante eficaz para produzir uma situação de verdadeiro conformismo, ou seja, de adesão gene­ralizada, uniforme e estática, da qual nasce o fenômeno da cristalização social característico das sociedades primitivas. Na medida em que o grupo perde homogeneidade, articula-se em subgrupos, abre-se a um intercâmbio contínuo com membros de outros grupos, e é constrangido a coexistir com outros gru­pos (não é mais exclusivo), as sanções sociais perdem eficácia, mesmo que nunca desapareçam totalmente. Não existe grupo sem um mínimo de conformismo.

O defeito das sanções sociais não é, todavia, a falta de efi­cácia, mas a falta de proporção entre violação e resposta. Sen­do a resposta confiada ao grupo impessoalmente, ou a alguns membros do grupo não definidos pessoalmente, ela não é guia­da por regras precisas. Acima de tudo, é mais fácil evitá-la do que uma sanção regulada, e confiada a aparatos estáveis do grupo. Comportamentos hipócritas são funcionalmente dirigi­dos para evitar sanções sociais; são o produto natural da exte- rioridade e da inorganicidade de tais sanções. Neste caso, as sanções sociais pecam por defeito. Em segundo lugar, precisa­mente por causa do imediatismo e da inorganicidade da rea­ção, a resposta não é sempre igual para os mesmos tipos de violação, mas depende dos humores do grupo, que são variá­veis: à mesma ação, o grupo pode reagir diversamente, por circunstâncias que não têm nada a ver com a gravidade social da ação. Enfim, a resposta pode ser desproporcional à gravi-


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dade da violação: confiada, como está, à reação imediata e não direta, ela pode exprimir sentimentos que um comporta­mento controlado e reflexivo estaria em condições de reprimir. Um exemplo típico desta desproporção é o linchamento. Con­cluindo, pode-se dizer que os defeitos da sanção social são representados pela incerteza do seu êxito, pela inconstância da sua aplicação e pela falta de medida na relação entre violação e resposta.

Esses inconvenientes dependem do fato de que este tipo de sanção não é institucionalizado, ou seja, não é regulado por normas fixas, precisas, cuja execução esteja confiada estavelmente a alguns membros do grupo, expressamente designados para isto. Pode-se dizer que: a sanção social é uma resposta à violação de regras emanadas pelo grupo; mas ela mesma, como resposta, não é, por sua vez, regulada. Conseqüentemente, é característica de grupos inorgânicos, isto é, que care­cem de organização, ou seja, daqueles grupos que, segundo a definição dada no tópico 5, não são ainda instituições. Para que se possa falar em instituição, não basta que hajam regras de comportamento que dirijam a conduta dos cidadãos: é ne­cessário uma organização, fundada sobre regras do próprio grupo, através da determinação dos fins, dos meios e dos ór­gãos do grupo. Geralmente, faz parte da organização do grupo a produção de regras secundárias para a observação e a exe­cução das regras primárias, isto é, a institucionalização das san­ções. Afirma-se que um grupo se organiza quando passa da fase da sanção incontrolada à da sanção controlada. E usual­mente denomina-se grupo jurídico, ordenamento jurídico, com uma palavra forte como “instituição”, um grupo com sanção institucionalizada.

 

42. A SANÇÃO JURÍDICA

Com o objetivo de evitar os inconvenientes da sanção inter­na, isto é, sua escassa eficácia, e os da sanção externa não institucionalizada, sobretudo a falta de proporção entre viola-


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ção e resposta, o grupo social institucionaliza a sanção, ou seja, além de regular os comportamentos dos cidadãos, regula tam­bém a reação aos comportamentos contrários. Esta sanção se distingue da moral por ser externa, isto é, por ser uma resposta de grupo, e da social por ser institucionalizada, isto é, por ser regulada, em geral, com as mesmas formas e através das mes­mas fontes de produção das regras primárias. Ela nos oferece um critério para distinguir as normas que habitualmente se denominam jurídicas das normas morais e das normas sociais. Trata-se das normas cuja violação tem por conseqüência uma resposta externa e institucionalizada. Como se queria demons­trar, o tipo de sanção serve para introduzir uma nova distinção entre os vários tipos de normas, e é uma distinção que discri­mina um tipo de norma tanto nos confrontos com as normas morais quanto com as sociais. A presença de uma sanção ex­terna e institucionalizada é uma das características daqueles grupos que constituem, segundo uma acepção que foi se tor­nando cada vez mais comum, os ordenamentos jurídicos. Po­demos, portanto, considerar este tipo de sanção como um novo critério para identificar as normas jurídicas. Diremos en­tão, com base neste critério, que “normas jurídicas” são aque­las cuja execução é garantida por uma sanção externa e institu­cionalizada. Não pretendemos elevar este critério a critério ex­clusivo. Limitamo-nos a dizer que ele serve talvez para circuns­crever melhor uma esfera de normas, que usualmente são chamadas de jurídicas, do que outros critérios. A primeira grande manifestação do que se denomina habitualmente “di­reito internacional” é o chamado direito de guerra, isto é, aquele conjunto de regras, aceitas pelos Estados como regras obrigatórias, que disciplinam a guerra como sanção, ou seja, como resposta às violações das normas reguladoras das rela­ções entre os Estados. Até que a guerra não seja controlada, pode-se dizer que os Estados vivem entre si em um estado de natureza; o Estado de comunidade jurídica internacional come­ça quando a guerra se torna uma instituição disciplinada por regras. O que nos leva a falar em instituição jurídica a propó-


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sito das associações de delinqüentes é a precisão com que são estabelecidas as penas para os transgressores, e o empenho aplicado para fazê-las executar. Uma vez que a sanção é confia­da, no caso, ao arbítrio deste ou daquele membro do grupo, sendo por isso imprevisível na sua aplicação e na sua medida, o grupo não é, também na acepção mais ampla de instituição, um grupo juridicamente organizado, nem podemos, portanto, designar como jurídicas as regras que o disciplinam. Temos tendência a fazer coincidir a juridicidade com a organização e a organização com a institucionalização da sanção. Por isto, jul­gamos poder dizer que a sanção externa e institucionalizada é uma característica distintiva das normas jurídicas.

Não há dúvida de que o principal efeito da institucionaliza­ção da sanção é a maior eficácia das normas relativas. Quando se fala em sanção institucionalizada, entende-se estas três coi­sas, ainda que elas nem sempre se encontrem simultaneamen­te: 1) para toda violação de uma regra primária, é estabelecida a relativa sanção; 2) é estabelecida, se bem que dentro de cer­tos termos, a medida da sanção; 3) são estabelecidas pessoas encarregadas de efetuar a execução. Como se vê, trata-se de limitações que tendem a disciplinar o fenômeno da sanção espontânea e imediata de grupo. Com a primeira limitação, se assegura a certeza da resposta, com a segunda, a proporcionali­dade, com a terceira, a imparcialidade. Todas as três limitações, juntas, têm como fim comum aumentar a eficácia das regras institucionais e, conseqüentemente, da instituição em seu con­junto. Atendo-nos a estes critérios, poderemos dizer que o cará­ter das normas jurídicas está no fato de serem normas, em con­fronto com as morais e sociais, com eficácia reforçada. Tanto é verdade, que as normas consideradas jurídicas por excelência são as estatais, que se distinguem de todas as outras normas reguladoras da nossa vida porque têm o máximo de eficácia.

Entende-se que, mesmo na esfera do normativo com eficá­cia reforçada, existem várias fases, e haverá sempre aquela zona fronteiriça ou de passagem em que todo critério, e por­tanto também este, parece inadequado: a realidade é sempre


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mais rica do que qualquer esquema, e fique bem claro, uma vez mais, que aqui se propõem esquemas de classificação, e não definições de essências puras. Em particular, no âmbito do esquema aqui ilustrado, pode-se introduzir uma distinção entre pelo menos duas fases diversas de eficácia reforçada, segundo o órgão encarregado de executar a sanção, seja a própria pes­soa do ofendido ou uma pessoa diferente. Se chamamos de tutela o complicado processo da sanção organizada, podemos distinguir um processo de autotutela, que tem lugar quando o titular do direito de exercitar a sanção é o mesmo titular do direito violado, e um processo de heterotutela, que tem lugar quando os dois titulares são pessoas diferentes. O processo de autotutela assegura menos a igualdade proporcional entre vio­lação e resposta, e é, portanto, substituído nos ordenamentos mais evoluídos pelo processo de heterotutela. O reconhecimento da vingança privada como sanção em certos ordena­mentos primitivos dá lugar a um instituto de autotutela; na me­dida em que se reforça o poder central em um ordenamento, a função da tutela das normas jurídicas é cada vez mais subtraída dos indivíduos e devolvida a órgãos diferentes das partes em conflito: o sistema da heterotutela substitui pouco a pouco o da autotutela. Só o sistema da heterotutela garante, além da maior eficácia, também uma maior proporção entre o dano e a repa­ração, e assim satisfaz melhor algumas exigências fundamentais de todo viver social, dentre as quais está certamente a ordem, para cuja manutenção basta a garantia de que as normas esta­belecidas se façam valer. Mas está presente também, e sobre­tudo, a igualdade de tratamento, que é melhor assegurada quando a sanção é atribuída a um órgão super partes.

 

43. A ADESÃO ESPONTÂNEA

Naturalmente, a idéia sustentada aqui, de que é útil para de­limitar o âmbito da noção de direito levar em conta o tipo de resposta que os diversos ordenamentos dão à violação das re­gras de conduta, não pode ser aceita por todos aqueles que ne-


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gam à sanção o caráter de elemento constitutivo da noção do direito, e consideram, ao invés, a sanção como um elemento secundário. Sobre o problema da sanção foram derramados rios de tinta pelos clássicos: quase se poderia distinguir os filósofos do direito do passado e do presente em duas grandes fileiras, das quais uma é aquela dos “sancionistas” e a outra a dos “não- sancionistas”. Talvez não haja problema da filosofia do direito que tenha atraído maiores e mais ferozes discussões, e que tenha sido objeto de maiores indagações e reflexões.

Aqui, nos limitamos a expor os principais argumentos que são sustentados pelos não-sancionistas, e a mostrar de que modo, segundo nós, tais argumentos podem ser superados.

O primeiro argumento é o da adesão espontânea. A sanção, afirma-se, não é elemento constitutivo do direito, porque um ordenamento jurídico conta, antes de tudo, com a adesão es­pontânea às suas regras, isto é, com a obediência não por te­mor das conseqüências desagradáveis de uma eventual viola­ção, mas por consenso, ou convenção, ou mero hábito, de qualquer forma, por motivos que não pressupõem a possível movimentação do mecanismo da sanção. O que seria de nós, observa-se, caso um ordenamento jurídico não pudesse contar de algum modo com o consenso dos seus membros? Como poderia ser eficaz, se a eficácia devesse ser obtida somente com a força? Tese semelhante se apóia na constatação de que, na grande maioria dos casos, a ação dos cidadãos é conforme às regras de conduta estabelecidas pelo ordenamento jurídico, e que os casos de violação não são a regra, mas a exceção.

Este primeiro argumento não é muito sólido. Ninguém des­conhece o fato da adesão espontânea, mas este fato não exclui um outro, de que há, historicamente, ordenamentos nos quais a adesão espontânea não parece garantia suficiente, e portan­to, compõem com outras regras os meios para corrigir a even­tual falta de adesão espontânea. Pode-se dizer que, nestes or­denamentos, certamente a adesão espontânea é necessária, mas não ainda suficiente. O problema de fundo é se, eliminada


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a adesão espontânea, a regra permanece violada, ou se há uma resposta à violação e com quais meios ela é regulada. Em outras palavras, o problema não é se a sanção é necessária sempre, mas se é necessária nos casos em que deve ser aplica­da, isto é, nos casos de violação. Um ordenamento normativo em que não houvesse nunca necessidade de recorrer à sanção e fosse sempre seguido espontaneamente, seria tão diferente dos ordenamentos históricos que costumamos chamar de jurí­dicos que ninguém ousaria ver ali realizada a idéia de direito: sinal evidente de que a adesão espontânea acompanha a for­mação e a perduração de um ordenamento jurídico, mas não o caracteriza. Kelsen justamente observa: “Se o ordenamento social não devesse mais ter no futuro o caráter de ordenamento coercitivo, se a sociedade devesse existir sem ‘direito’, então a diferença entre esta sociedade do futuro e a do presente seria incomensuravelmente maior do que a diferença entre os Esta­dos Unidos e a antiga Babilônia, ou entre a Suíça e a tribo dos Ashanti”.[nota 25] Concluindo, quem sustenta ser a sanção organizada o caráter distintivo dos ordenamentos jurídicos, não nega a eficácia das regras deste ordenamento através da simples ade­são espontânea; afirma que o ordenamento conta, em última instância, com a eficácia obtida através do aparato das sanções.

Os defensores da adesão espontânea poderiam replicar com o argumento “filosófico”, segundo o qual o homem, sendo livre por sua natureza, não pode ser constrangido, e portanto tam­bém a obediência obtida através da sanção é sempre uma obediência livre, fundada no consenso, e como tal, indistinguí­vel daquela denominada espontânea. Os que quiserem valer-se deste argumento o encontrarão exposto com a máxima clareza em uma página de Croce, que, precisamente a propósito da coação como elemento constitutivo do direito, diz: “Nenhuma ação pode jamais ser constrangida; toda ação é livre, porque o Espírito é liberdade: poderá, em um determinado caso, não se


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encontrar a ação que se havia imaginado, mas uma ação constrangida é uma coisa que não se entende, porque os dois termos são incompatíveis”.[nota 26] Admitamos ainda, nota Croce, que a inobservância seja seguida da pena: mas também a pena sempre encontra diante de si a liberdade do indivíduo: “Para evitar a pena, ou sua renovação, este poderá, livremente, ob­servar a lei; mas isto não impede que possa, também livre­mente, rebelar-se”.

Pode-se sustentar que também a obediência obtida por uma ameaça de sanção seja definitivamente fundada no con­senso, desde que se coloque de um ponto de vista tão alto (aquele que se chama geralmente ponto de vista “especulati­vo”) que não se consiga mais ver as diferenças de grau, que aliás, são as únicas diferenças que nos interessam nesta sede. Admitamos que o consenso e a força não podem se distinguir com um corte preciso, e que um mínimo de consenso seja sempre necessário, também ali onde parece que a ação é constrangida ao máximo. A distinção empírica entre adesão livre e adesão forçada permanece. A adesão forçada requer um aparato de órgãos e de funções que se sobrepõe a um certo sistema normativo, e o completa. Este aparato tem um certo objetivo, que é o de reforçar a eficácia das normas, e produz um certo efeito, que é o de obter a obediência mesmo onde o cidadão resiste. Ora, é a presença deste aparato que distingue um ordenamento de um outro, quaisquer que sejam as conseqüências que este aparato tenha sobre o modo em que se manifeste a obediência. Se a adesão dada por consen­so e a dada por força podem parecer indistinguíveis para quem olha o problema preocupado com a liberdade do Espí­rito, aparecem distintas, e muito claramente distintas, a quem se propõe o objetivo de estudar os meios com que o consenso é obtido e deles retirar elementos indicativos para caracterizar diversos tipos de ordenamentos normativos.


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44. NORMAS SEM SANÇÃO

O argumento mais comum e também mais fácil contra a teo­ria que vê na sanção um dos elementos constitutivos de um ordenamento jurídico é o que se funda na presença, em todo ordenamento jurídico, de normas não garantidas por sanção. Não há dúvida de que existem, em todo ordenamento jurídico, normas de que ninguém saberia indicar qual é a conseqüência desagradável imputada em caso de violação. Não há jurista que não possa citar um certo número delas, tanto no direito privado, quanto, e sobretudo, no direito público. No campo do direito privado toma-se, por exemplo, uma norma como o an­tigo art. 315 do Código Civil italiano: “O filho, qualquer que seja sua idade, deve honrar e respeitar os genitores”.[nota 27] No di­reito público, os exemplos são mais numerosos, tanto que em um texto constitucional, pelo menos na parte que diz respeito à organização dos poderes do Estado, prevalecem as normas não sancionáveis sobre as sancionáveis. Allorio citou, em uma dis­cussão sobre a sanção que veremos mais tarde, o art. 154 do antigo Código de Processo Penal italiano, que parece feito de propósito para mover o moinho dos que negam a sanção: “Os magistrados, os secretários, os oficiais e agentes de polícia são obrigados a observar as normas estabelecidas neste Código, ainda quando a inobservância não importe em nulidade ou em outra sanção particular”. Neste artigo, o próprio legislador parte do pressuposto de que possam existir normas não sancionadas; em outras palavras, a presença de normas não sancionadas não é somente um fato evidenciado pela doutrina, mas uma hipótese acolhida pelo próprio legislador, uma hipótese a que o legislador anexa certas conseqüências (ou melhor, a ausência de certas conseqüências).

A presença de normas não sancionadas em um ordena­mento jurídico é um fato incontestável. A solução para esta dificuldade, por parte de quem considera a sanção como ele-


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mento constitutivo do direito, não é certamente a de negar o fato. O fato é o que é. Trata-se, quando muito, de ver como este fato pode ser acolhido e justificado em uma teoria do di­reito como conjunto de regras com sanção organizada. Uma saída seria a de negar às normas não sancionadas o caráter de normas jurídicas. Mas é uma solução radical, desnecessária. A dificuldade pode ser resolvida por um outro modo, isto é, ob­servando que quando se fala em uma sanção organizada como elemento constitutivo do direito, nos referimos não às normas singulares, mas ao ordenamento normativo tomado no seu conjunto, razão pela qual, dizer que a sanção organizada dis­tingue o ordenamento jurídico de todo outro tipo de ordena­mento não implica que todas as normas desse sistema sejam sancionadas, mas apenas que o seja a maior parte. Quando eu me coloco frente a uma norma singular e me pergunto se é ou não uma norma jurídica, o critério da juridicidade não é certa­mente a sanção, mas a pertinência ao sistema, ou a validade, no sentido já aclarado de referibilidade da norma a uma das fontes de produção normativa reconhecidas como legítimas. A sanção tem relação não com a validade, mas com a eficácia, e já vimos que uma norma singular pode ser válida sem ser eficaz (v. pp. 36 e ss. e 41).

Compreende-se que o legislador tende a produzir normas, além de válidas, eficazes: mas pode-se observar que ali onde topamos com normas não providas de sanções, nos encontra­mos geralmente frente a estes dois casos típicos: 1) ou se trata de normas com cuja eficácia se consente, dada a sua reconhe­cida oportunidade ou correspondência à consciência popular ou, em uma palavra expressiva, dada a sua justiça, sobre a adesão espontânea, onde a sanção é considerada inútil; 2) ou então, trata-se de normas estabelecidas por autoridade tão alta na hierarquia das normas que se torna impossível, ou pelo me­nos pouco eficiente, a aplicação de uma sanção. Em ambos os casos, a falta de sanção não depende de um defeito do sistema no seu conjunto, mas de circunstâncias específicas das normas singulares, circunstâncias que tornam, naquele determinado


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caso, e só nele, ou inútil ou impossível a aplicação de uma sanção, sem que, por outro lado, seja afetado o princípio que inspira o acionamento do mecanismo da sanção, ou seja, o princípio da eficácia reforçada, que vale quando esta eficácia reforçada é possível, e quando, sendo possível, é também ne­cessária ou, pelo menos, particularmente útil.

Este segundo caso, isto é, das normas superiores na hierar­quia normativa, como são as normas constitucionais, merece uma consideração particular, porque é um pouco “o cavalo de batalha” dos não-sancionistas, para quem parece estranho, para não dizer absurdo, que careçam de sanções justamente as normas mais importantes do sistema. Na realidade, para nós, esta ausência de sanções no vértice do sistema não parece ab­surda, mas, ao contrário, de todo natural. A aplicação da san­ção pressupõe um aparato coercitivo, e o aparato coercitivo pressupõe o poder, isto é, uma carga de força imperativa, ou se se preferir, de autoridade, entre aquele que estabelece a norma e aquele que deve obedecê-la. É, portanto, de todo natural que conforme passamos das normas inferiores às superiores, nos aproximamos das fontes do poder, e por isso diminui a carga de autoridade entre quem .estabelece a norma e quem deve segui-la, o aparato coercitivo perde vigor e eficiência, até que, chegando às fontes do próprio poder, isto é, ao poder supremo (como o que se denomina “constituinte”), uma força coercitiva não é absolutamente mais possível, pela contradição que não o consente, ou seja, porque se esta força existisse, aquele poder não seria mais supremo.

O problema da relação entre direito e força é muito comple­xo, e não é agora o momento de aprofundá-lo. Aqui nos basta dizer que, ao passar das normas inferiores de um ordenamento às superiores, passamos da fase em que a força é dirigida a aplicar o direito àquela em que serve para produzi-lo, e por­tanto, passamos do conceito de força como sanção de um di­reito já estabelecido (isto é, meio para tornar o direito eficaz) ao conceito de força como produção de um direito que deve valer no futuro. Nesta passagem dos planos mais baixos aos planos


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mais altos de um ordenamento acontece, pouco a pouco, uma inversão das relações entre direito e força, sem que seja possí­vel precisar em que ponto esta inversão ocorra: nos planos mais baixos, a força está a serviço do direito; nos planos mais altos, o direito está a serviço da força. Com outra expressão, podemos dizer que, olhando um ordenamento jurídico de bai­xo para cima (e é este o ponto de vista mais genuinamente jurídico, isto é, próprio do jurista), vemos um poder coercitivo voltado a fazer com que um conjunto de regras seja obedecido: olhando de cima para baixo (e é este o ponto de vista mais propriamente político), vemos um conjunto de regras destina­das a fazer com que um poder possa exercitar-se.

Se as coisas são deste modo, o fato de que as normas supe­riores não são sancionadas é natural também por uma outra razão, ainda mais decisiva, não mais por uma razão de fato (a impossibilidade de constranger com a força quem detém a própria fonte da força), mas por uma razão de direito: quando aqueles que agem no ápice do poder agem de modo não con­forme a uma norma do sistema, este seu comportamento não é a violação de uma norma precedente, mas a produção de uma norma nova, isto é, uma modificação do sistema, e portanto, cai como improponível o problema da sanção, a qual pressupõe um ilícito. Em suma, não se afirma que um comportamento des- conforme seja sempre um ilícito: pode ser a posição de uma nova licitude, onde a sanção é juridicamente impossível. Imagi­nemos um exemplo extremo: o art. 139 da Constituição italiana, como é sabido, indica um limite normativo ao mesmo poder constituinte estabelecendo que “a forma republicana não pode ser objeto de revisão constitucional”. O que aconteceria se uma assembléia constituinte violasse este artigo? Haveria pura e simplesmente a instauração de uma nova Constituição.

O que se disse até aqui sobre normas superiores do orde­namento não deve levar a crer que o direito público em geral seja um direito não sancionado. Ao contrário, deve-se dizer que, se uma tendência se revelou na evolução do direito públi­co europeu, foi no sentido de uma sempre menor diferenciação


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entre direito privado e direito público, relativamente ao pro­blema da sanção. O “Estado de direito” avançou e continua a avançar na medida em que se substituem os poderes arbitrários pelos juridicamente controlados, os órgãos irresponsáveis pelos órgãos juridicamente responsáveis; enfim, na medida em que o ordenamento jurídico organiza a resposta às violações que pro­vêm não só dos cidadãos privados, mas também dos funcioná­rios públicos. Poder-se-ia assinalar uma das tantas diferenças entre Estado de polícia e Estado de direito acentuando-se a extensão do mecanismo da sanção desde a base, sempre su­bindo, até o vértice, o que é também uma confirmação da im­portância da sanção com fins de estabelecer as características diferenciadoras do ordenamento jurídico; a evolução do orde­namento jurídico se exprime não na restrição, mas na amplia­ção do aparato sancionatório. Somos inclinados a considerar um ordenamento tão mais “jurídico” (o Estado de direito é um Estado no qual o controle jurídico foi se ampliando, e por isso é mais “jurídico” do que um Estado de polícia) quanto mais a técnica da sanção vai se aperfeiçoando.

 

45. ORDENAMENTOS SEM SANÇÃO

Há, porém, uma objeção mais grave. Até aqui, nós nos de­fendemos frente à objeção fundada na constatação de normas sem sanção em um ordenamento jurídico. E nos defendemos, atente-se, sustentando que o que conta para os fins da teoria da sanção não é mais que todas as normas singulares perten­centes a um sistema sejam sancionadas, mas que o sejam a maior parte, ou, em outras palavras, que o ordenamento recor­ra à técnica da sanção institucionalizada, mesmo se depois esta técnica desapareça em alguns casos. Respondemos, em suma, passando da norma singular ao ordenamento como conjunto de normas. Mas esta resposta, os não-sancionistas rechaçam, afirmando que existem ordenamentos inteiros, que mesmo denominando-se jurídicos, carecem completamente da institucionalização da sanção. Frente a esta objeção, a resposta dada

 


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no tópico precedente não serve mais. O exemplo característico que se costuma dar de ordenamento jurídico sem sanção insti­tucionalizada é o ordenamento internacional. Se o ordena­mento internacional, afirma-se, é um ordenamento jurídico, como se pode ainda falar em direito e sanção como dois ter­mos indissolúveis? Em geral, esta objeção é uma das conse­qüências da teoria institucional do direito, e da reconhecida pluralidade dos ordenamentos jurídicos. Admite-se que a cor­relação entre direito e sanção pudesse ser acolhida enquanto não se reconhecia outro ordenamento jurídico além do estatal. Ampliada a noção de ordenamento jurídico, através da teoria da instituição, seriam jogados na rede tantos outros ordena­mentos em que esta correlação entre direito e sanção não apa­rece mais, ou pelo menos não aparece com a mesma evidência com que aparecia quando o único ordenamento jurídico consi­derado era o estatal.

Não achamos que também esta objeção seja insuperável. Certamente a característica aqui ilustrada da sanção organizada tem uma função limitativa: serve para circunscrever na catego­ria das instituições ou dos ordenamentos normativos aqueles a que se considera mais apropriado reservar o nome de “jurídi­cos”; e evita, portanto, a identificação, que não apresenta vantagens para fins de uma melhor compreensão do fenômeno jurídico, de sistema normativo em geral e sistema jurídico. Mas acrescente-se que esta delimitação não é tal que possa reduzir, mais uma vez, o ordenamento jurídico somente ao ordenamento estatal. Na definição de ordenamento com eficácia re­forçada mediante a organização da sanção entram perfeita- mente instituições como a da máfia, das sociedades secretas, da cavalaria com seu código cavalheiresco que é essencial­mente um conjunto de regras de procedimento, e, em geral, todas as associações que se organizam sobre a base do poder de expulsão (e de outras sanções menores) nos confrontos dos sócios transgressores.

Pelo que diz respeito ao ordenamento internacional, have­ría, como no caso das normas não sancionadas, a escapatória


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de não considerá-lo um ordenamento jurídico. Encontramo-nos frente a uma questão de palavras, e por conseguinte frente a uma questão de mera oportunidade. É um fato, porém, que a expressão “direito internacional” entrou em uso, e é portanto aconselhável servir-se de uma acepção do termo “direito” tão ampla a ponto de incluir também o ordenamento internacional. Mas é realmente certo que o caráter da sanção organizada, uma vez acolhido, acabaria por excluir das coisas conotadas pelo termo “direito” o ordenamento internacional?

Sem nos adentrarmos na questão da juridicidade do direito internacional, que nos seja permitido aqui repetir o que já ti­vemos ocasião de dizer, isto é, que o direito internacional nas­ceu ao mesmo tempo que a regulamentação da guerra, ou seja, com a consciência, por parte dos membros da comunida­de estatal, da natureza sancionatória da guerra e, por conse­qüência, da necessidade de indicar os limites com regras concordantemente aceitas, isto é, nasceu junto com a instituciona­lização da guerra enquanto sanção. Além disso, é tese aceita por alguns internacionalistas que o direito internacional tenha também as suas sanções e preveja o modo e a medida do seu exercício. A violação de uma norma internacional por parte de um Estado constitui um ilícito. Porventura, no ordenamento internacional um ilícito não importa conseqüência alguma? O que são as represálias e, nos casos extremos, a guerra, senão uma resposta à violação, isto é, a resposta à violação que é possível e legítima naquela sociedade peculiar que é a socieda­de dos Estados? Ora, em relação a esta resposta à violação, não há mais do que duas possibilidades: ou a resposta é livre ou é, por sua vez, regulada e controlada por outras normas pertencentes ao sistema. A primeira possibilidade é a que se realiza no hipotético estado de natureza; a segunda é a que encontra aplicação na comunidade internacional através da regulamentação do direito de represália e de guerra. Logo, também o ordenamento internacional é um ordenamento jurí­dico no sentido preciso em que se fala de ordenamento jurídico como ordenamento com sanção regulada.


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Se existe uma diferença entre ordenamento internacional e outros ordenamentos, como, por exemplo, o ordenamento estatal, ela não reside na ausência de uma sanção regulada, porém, quando muito, somente no modo como é regulada.

Mas trata-se, então, de diferença não principal, porém se­cundária. Para acolher esta diferença, em relação ao modo de exercício da sanção, devemos retomar a distinção, feita no tópico 42, entre autotutela e heterotutela, isto é, entre a sanção aplicada pela própria pessoa do ofendido e a sanção aplicada por pessoa diversa, super partes. Se considerarmos, por exem­plo, a represália como exercício de uma sanção, não há dúvida de que se trata de resposta à violação dada pelo mesmo Estado que sofreu as conseqüências de um ato ilícito de um outro Es­tado, ou seja, de um ato de autotutela. Por conseguinte, po­demos dizer, em geral, que todo ordenamento internacional, diversamente do estatal, é fundado sobre o princípio da auto­tutela e que, portanto, o que diferencia o ordenamento interna­cional do estatal não é a ausência ou presença de sanções or­ganizadas, mas a organização da sanção através da autotutela ou da heterotutela. Que o instituto da autotutela seja manifes­tação de uma sociedade menos organizada do que aquela em que vige o princípio da heterotutela, importa em uma diferença não de substância, mas de grau, entre o ordenamento interna­cional e o estatal, diferença, aliás, que ninguém jamais negou.

 

46. AS NORMAS EM CADEIA E O PROCESSO AO INFINITO

Examinemos uma quarta objeção: é a objeção conhecida como a do processo ao infinito e que se encontra formulada, por exemplo, em Thon com estas palavras: “Qualquer atribui­ção de direitos, inclusive a que é provida pela mais enérgica coação com uma pena e com um ressarcimento no caso da sua violação, repousa, no fundo, somente sobre um complexo de imperativos, dos quais o sucessivo tem sempre por condição a


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desobediência do precedente, mas o último, quando é trans­gredido, permanece em todo caso privado de conseqüências. O sistema jurídico inteiro consta, portanto, de normas. Ora, se deseja-se fazer pouco caso da norma como tal, que se faça: mas, então, a todo o direito se atribuirá um escasso valor. Pois é impossível que uma norma por si só impotente adquira ener­gia só porque no caso da sua transgressão a ela se conecte uma outra norma potente".[nota 28] Esta objeção encontra-se repetida su­cessivamente inúmeras vezes. Formulemo-la de modo mais sintético com nossas palavras: se é verdadeiro que uma norma é jurídica só se é sancionada, também a norma que estabelece a sanção será jurídica só se for sancionada, e, na seqüência, a norma que sanciona a primeira norma sancionadora, para ser jurídica, deverá remeter-se, por sua vez, a uma nova norma sancionadora. Chegaremos, obrigatoriamente, a um ponto em que haverá uma norma sancionadora que não será, por sua vez, sancionada. Podemos, com outras palavras, exprimir o mesmo conceito deste modo: a norma primária pressupõe a norma secundária; mas esta norma secundária é, por sua vez, norma primária em relação à própria norma sancionadora, que é secundária em relação a esta e terciária em relação à primei­ra; mas também a norma terciária pressupõe uma norma ulterior, etc. etc. Chegaremos a um ponto em que uma norma é apenas secundária e não também primária, isto é, a um ponto em que, visto que não se pode proceder ao infinito, haverá uma norma que não tem além de si uma sanção que a garanta, e permanece, por isso, no sistema, como norma não sancionada. Esta objeção tende a demonstrar que, por mais que o sis­tema da sanção organizada se estenda, não pode englobar todas as normas e, portanto, a falta de sanções não é somente resultante de uma constatação de fato, mas também de uma razão implícita no próprio sistema.

Esta objeção, embora sugestiva, não traz argumentos novos em favor da tese dos não-sancionistas. Pode-se, de fato, res-


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ponder a esta objeção recorrendo aos contra-argumentos ex­postos no tópico 43.

Por um lado, de fato, ela nos diz que em todo ordenamento, ainda que se admita a organização da sanção, também na for­ma mais ampla, haverá sempre normas que não são sanciona­das. Mas aqui, podemos responder como dissemos no tópico 44, que a presença de normas singulares não sancionadas não importa em recusa da tese sancionista, que se funda na presen­ça do mecanismo da sanção no ordenamento tomado no seu conjunto. Por outro lado, ela nos mostra que as normas não sancionadas emergem na medida em que se procede das nor­mas inferiores às normas superiores. Mas também a este argu­mento já respondemos no mesmo tópico, colocando anterior­mente o fato de que se a sanção implica a presença de um apa­rato coercitivo, a presença do aparato coercitivo implica, em última instância, a presença de um poder de coação que não pode ser, por sua vez, constrangido, e que, portanto, a existên­cia de normas não sancionadas no vértice do sistema é o efeito da inversão da relação força-direito que se verifica na passagem das normas inferiores às normas superiores.

Além de tudo isso, pode-se ainda objetar se não há uma contradição ao se considerar, por um lado, que a sanção seja elemento constitutivo do direito e, por outro, que faltam san­ções precisamente nas normas superiores do ordenamento, as que deveríam garantir a eficácia de todo o sistema. Se a obje­ção que estamos examinando neste tópico apresenta algum interesse em relação aos precedentes, é justamente por indicar com mais clareza esta contradição. Consideramos que se possa resolver esta contradição retomando o que foi dito sobretudo no tópico 43. Por mais que um ordenamento tenda a reforçar a eficácia das próprias normas organizando a coação, não está excluído que ele confie também na adesão espontânea. Aqui, acrescentemos que a eficácia direta, isto é, a que deriva da adesão espontânea, não apenas não está excluída, mas é de fato indispensável. As normas, cuja aplicação é certamente confiada à adesão espontânea, são justamente as normas supe-


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riores do sistema. Ora, um sistema em que todas as normas superiores devessem ser garantidas pela sanção não só é juridi­camente impossível (e realmente é sempre válida a pergunta: “Quis custodiet custodes?” [“Quem governará os que gover­nam?’’), mas é também impossível de fato, porque significaria que aquele ordenamento estaria fundado somente na força.

O problema das relações entre força e consenso é tão com­plexo quanto o das relações entre força e direito, a que já alu­dimos. E não é o caso de fazer disto uma análise minuciosa. Limitaremo-nos a dizer isto: força e consenso são os dois fun­damentos do poder. Podemos muito bem propor a hipótese de um poder fundado somente na força e de um poder fundado só no consenso. Efetivamente, os jusnaturalistas, quando ela­boraram a teoria contratualista do Estado, imaginavam um Estado fundado exclusivamente no livre acordo dos cidadãos, e o contrapunham aos Estados despóticos, em que se assumia que o direito era a expressão da vontade do mais forte. Bastará ler as primeiras páginas do Contrato Social de Rousseau para convencer-se da persistência desta contraposição. Mas se pres­cindirmos desta contraposição puramente teórica, e olharmos sem preconceito a realidade histórica, perceberemos que força e consenso se mesclam, e que não há Estado tão despótico que não se fie também no consenso (pelo menos, com a fidelidade dos seus acólitos, o déspota deve poder contar), nem Estado fundado no contrato que não tenha necessidade da força para manter os dissidentes contidos. Os Estados históricos se distin­guem entre eles pela maior ou menor medida de força e de consenso. Quando se falou, como se fez até aqui, do aparato da coação para tornar eficaz um ordenamento normativo, sempre se ateve o olhar nos Estados históricos, nos quais está também sempre presente, junto à força, um mínimo de consen­so. Ora, a presença de normas superiores não sancionadas nada faz além de refletir esta situação histórica: as normas não sancionadas representam aquele mínimo de consenso sem o qual nenhum Estado poderia sobreviver.


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CAPÍTULO VI: CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS

 

Sumário: 47. Normas gerais e singulares - 48. Gene­ralidade e abstração - 49. Normas afirmativas e nega­tivas - 50. Normas categóricas e hipotéticas.

 

47. NORMAS GERAIS E SINGULARES

São possíveis muitas distinções entre as normas jurídicas. Todos os tratados de filosofia do direito e de teoria geral do direito examinam um certo número delas. Aqui, porém, come­cemos por fazer uma primeira distinção sobre os próprios crité­rios de distinção. Há distinções que se referem ao conteúdo das normas: por exemplo, aquela entre normas materiais e normas processuais, ou entre normas de comportamento e normas de organização. Outras distinções se referem ao modo em que as normas são estabelecidas, como aquela entre as normas consuetudinárias e as legislativas. Outras ainda, se referem aos


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destinatários, como aquela entre as normas primárias e as se­cundárias. Outras se referem à natureza e à estrutura da socie­dade regulada, como, por exemplo, a distinção entre normas de direito estatal, canônico, internacional, familiar, etc.

Todas essas distinções não nos interessam neste domínio, mesmo porque, são freqüentemente examinadas, de tempos em tempos, nos textos das disciplinas jurídicas singulares, por ocasião da abordagem dos problemas que lhes estão relacio­nados. Neste domínio, o de uma teoria geral do direito nos interessa, e logo nos importa, examinar apenas um critério, o formal. Chamo de critério formal, para distinguir dos vários critérios materiais, o que se relaciona exclusivamente à estrutu­ra lógica das proposições prescritivas. Para desenvolver este discurso, nos serviremos de algumas distinções fundamentais e tradicionais, referentes às proposições descritivas e as estende­remos às proposições normativas.

Uma distinção elementar, que se encontra em todos os tra­tados de lógica, é aquela entre proposições universais e propo­sições singulares. Chamam-se universais as proposições em que o sujeito representa uma classe composta por vários mem­bros, como por exemplo: “Os homens são mortais”; singulares, aquelas em que o sujeito representa um sujeito singular, como por exemplo: “Sócrates é mortal”. Esta distinção tem particular relevância na classificação das normas jurídicas. Poderiamos dizer, em geral, que uma primeira classificação das normas jurídicas - uma classificação, repito, puramente formal, é a entre normas universais e normas singulares.

Para ser útil, esta primeira distinção tem, contudo, necessi­dade de ser ulteriormente especificada. Em relação às normas jurídicas, ela tem na realidade uma dúplice aplicação, sobre a qual devemos nos deter brevemente.

Toda proposição prescritiva, e portanto também as normas jurídicas, é formada de dois elementos constitutivos e portanto imprescindíveis: o sujeito, a quem a norma se dirige, ou seja, o destinatário, e o objeto da prescrição, ou seja, a ação prescrita.


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Mesmo na mais simples das prescrições, como, por exemplo: “Levante-se”, distinguem-se um destinatário-sujeito e uma ação-objeto. Não se pode pensar em uma prescrição que não se dirija a alguém e que não regule um certo comportamento. Se nós considerarmos uma norma jurídica qualquer, poderemos constatar a presença destes dois elementos: ou melhor, diría­mos que o primeiro passo para interpretar uma norma jurídica seria o de perceber a quem ela se dirige e qual comportamento estabelece. Ora, tanto o destinatário-sujeito quanto a ação-objeto podem apresentar-se, em uma norma jurídica, sob for­ma universal e sob forma singular. Em outras palavras, tanto o destinatário quanto o objeto podem figurar em uma proposição com sujeito universal e com sujeito singular. Deste modo, ob­tém-se, não dois, mas quatro tipos de proposições jurídicas, ou seja, prescrições com destinatário universal, prescrições com destinatário singular, prescrições com ação universal, prescri­ções com ação singular.

Exemplo das primeiras: “O mandatário é obrigado a exe­cutar o mandato com a diligência do bom pai de família...” (art. 1710 do Código Civil italiano). Exemplo das segundas: a sentença do tribunal, com a qual, com base no art. 155 do Có­digo Civil italiano, é ordenado ao cônjuge, de quem foi pro­nunciada a separação, manter consigo os filhos e prover o seu sustento, sua educação e instrução. Exemplo das terceiras: “O marido tem o dever de proteger a mulher, de mantê-la consigo e de proporcionar-lhe tudo que for preciso às suas necessida­des em proporção aos seus rendimentos.” (art. 145 do Código Civil italiano[nota 29]). Exemplo das quartas: com base no art. 210 do Código de Processo Civil italiano, o juiz instrutor ordena, sob pedido de uma parte, à outra parte, a exibição em juízo de um documento cuja obtenção julgue necessária ao processo. A diferença entre o primeiro exemplo e o segundo está no seguinte: o mandatário, a quem se dirige a norma do Código Civil, não é uma pessoa determinada, um indivíduo concreto,


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mas uma classe de pessoas, e portanto a norma se volta simul­taneamente a todos aqueles que adentram naquela classe; o destinatário, a quem se dirige o juiz ou tribunal para ordenar-lhe manter consigo o filho, é um indivíduo concreto, singularizado, e a relativa norma se dirige a ele apenas e a nenhum outro. Quanto à diferença entre o terceiro e o quarto exemplo, pode-se dizer que a ação prevista e regulada pelo art. 145 do Código Civil italiano é uma ação-tipo, que não se exaure na execução, una tantum, mas se repete no tempo e vale para todos aqueles comportamentos que podem ser enquadrados na ação-tipo; a ação, prevista pelo artigo 210 do Código de Pro­cesso Civil italiano, é uma ação singular, ou seja, a exibição daquele particular documento, e, uma vez cumprida, a norma perde a sua eficácia.

 

48. GENERALIDADE E ABSTRAÇÃO

Com esta especificação posterior, a distinção entre normas universais e normas singulares nos introduz na velha doutrina, que se encontra em todos os manuais, acerca da generalidade e abstração das normas jurídicas e nos ajuda a ver os limites e os defeitos da doutrina. De fato, a doutrina da generalidade e abstração das normas jurídicas é, por um lado, imprecisa, por­que não esclarece com freqüência se os dois termos, “geral” e “abstrato”, são usados como sinônimos (“as normas jurídicas são gerais ou abstratas”), ou então, como tendo dois significa­dos diferentes (“as normas jurídicas são gerais e abstratas”). Por outro lado, é insuficiente e francamente nos leva para a direção errada, porque colocando em evidência os requisitos da generalidade e da abstração, faz crer que não haja normas jurídicas individuais e concretas.

A classificação, feita no tópico precedente, nos permite uma distinção mais precisa e mais completa das normas jurídicas. Ao invés de usar indiscriminadamente os termos “geral” e “abstrato”, julgamos oportuno chamar de “gerais” as normas que são universais em relação aos destinatários, e “abstratas”


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aquelas que são universais em relação à ação. Assim, aconse­lhamos falar em normas gerais quando nos encontramos frente a normas que se dirigem a uma classe de pessoas; e em nor­mas abstratas quando nos encontramos frente a normas que regulam uma ação-tipo (ou uma classe de ações). As normas gerais se contrapõem as que têm por destinatário um indivíduo singular, e sugerimos chamá-las de normas individuais; às nor­mas abstratas se contrapõem as que regulam uma ação singu­lar, e sugerimos chamá-las de normas concretas. A rigor, o ter­mo “norma concreta” não é muito apropriado, na medida em que a palavra “norma” faz pensar em uma regulamentação con­tinuada de uma ação, e é portanto mais apta para designar ape­nas as normas em abstrato. As normas concretas poderíam ser chamadas mais apropriadamente de ordens. Vimos, preceden­temente, a repugnância de alguns em considerar comandos as normas jurídicas pelo fato de que o termo “comando” parece referir-se apenas a prescrições com destinatários determinados: disto se poderia tirar inspiração para chamar de comandos as normas individuais. Deste modo, poderia ser proposta uma clas­sificação fundada sobre as duas seguintes dicotomias: normas gerais e comandos, normas abstratas e ordens.

Não desejamos, contudo, atribuir muita importância às questões de denominações. A este propósito, o ponto mais importante é que esta quadripartiçào nos ajuda a escapar da doutrina tradicional segundo a qual as características das nor­mas jurídicas seriam a generalidade e a abstração. Se nós ob­servarmos realisticamente um ordenamento jurídico, não pode­remos deixar de notar que contém, ao lado das normas gerais e abstratas, comandos e ordens. Com isto, não se deseja dizer que as prescrições de um ordenamento jurídico sejam de igual importância. Uma classificação não é uma graduação. Deseja- se apenas precisar, para corrigir uma doutrina corrente (em declínio), que ao lado das prescrições gerais e abstratas, se encontram as individuais e concretas, e portanto não se pode elevar os requisitos da generalidade e da abstração, ou os dois juntos, a requisitos essenciais da norma jurídica.


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Julgamos que a consideração da generalidade e abstração como requisitos essenciais da norma jurídica tenha uma origem ideológica e não lógica, isto é, julgamos que por trás desta teo­ria haja um juízo de valor do tipo: “É bom desejável) que as normas jurídicas sejam gerais e abstratas”. Em outras palavras, pensamos que a generalidade e abstração sejam requisitos não da norma jurídica tal como é, mas do que deveria ser para corresponder ao ideal de justiça, no qual todos os homens são iguais, todas as ações são certas; isto é, são requisitos não tanto da norma jurídica (ou seja, da norma válida em um certo sis­tema), mas da norma justa.

Em particular, quais são os valores em que se inspira a teo­ria da generalidade e da abstração? Com relação a uma pres­crição individual, uma prescrição geral é julgada como mais apropriada para realizar um dos fins fundamentais a que todo ordenamento jurídico deveria tender: a igualdade. Não se afir­mou que toda norma individual constitua um privilégio. Mas é certo que os privilégios são estabelecidos através de normas individuais. A principal garantia da máxima que se desejaria fosse o fundamento do nosso ordenamento jurídico: “A lei é igual para todos”, é, indubitavelmente, a generalidade da nor­ma, isto é, o fato de que a norma se dirija não àquele ou a este cidadão, mas à totalidade dos cidadãos, ou então a um tipo abstrato de operador na vida social. Quanto à prescrição abs­trata, ela é considerada como a única capaz de realizar um outro fim a que tende todo ordenamento civil: a certeza. Por “certeza” se entende a determinação, de uma vez por todas, dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão esteja em grau de saber, com antecedência, as conseqüências das próprias ações. Agora, esta exigência é maximamente satisfeita quando o le­gislador não abandona a regulamentação dos comportamentos ao arbítrio do juiz, caso a caso, mas estabelece com uma nor­ma a regulamentação de uma ação-tipo, de modo que ali adentrem todas as ações concretas inclusas naquele tipo. Assim como a generalidade da norma é garantia de igualdade, a abs-


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tração é garantia de certeza. Se refletirmos sobre o quanto te­nha inspirado a moderna concepção do Estado de direito a ideologia da igualdade e da certeza frente à lei, não será mais difícil dar-se conta do estreitíssimo nexo intercorrente entre teoria e ideologia, e compreender, portanto, o valor ideológico da teoria da generalidade e abstração, que tende não a descre­ver o ordenamento jurídico real, mas a prescrever regras para tornar o ordenamento jurídico ótimo, aquele em que todas as normas fossem em seu conjunto gerais e abstratas.

Que um ordenamento todo composto por um conjunto de normas gerais e abstratas seja um ideal me parece que possa ser confirmado pelo fato de que um tal ordenamento dificil­mente poderia subsistir. Se nós admitirmos, como fizemos até aqui, que estabelecido um sistema de normas, deva-se prever a sua violação, deveremos também admitir, ao lado das normas gerais e abstratas, normas individuais e concretas, não fosse exatamente para tornar possível a aplicação, em determinadas circunstâncias, das normas gerais e abstratas. Não há dúvida, por exemplo, que a sentença em que o juiz condena um indiví­duo a um determinado comportamento (por exemplo, ao res­sarcimento de danos), seja uma norma, ao mesmo tempo, in­dividual e concreta.

Na realidade, combinando-se os quatro requisitos, o da ge­neralidade, o da abstração, o da individualidade e o da concretude, as normas jurídicas podem ser de quatro tipos: normas gerais e abstratas (deste tipo são a maior parte das leis, por exemplo, as leis penais); normas gerais e concretas (uma lei que declara mobilização geral se volta a uma classe de cida­dãos e ao mesmo tempo prescreve uma ação singular que, uma vez cumprida, exaure a eficácia da norma); normas indi­viduais e abstratas (uma lei que atribui a uma determinada pessoa um ofício, por exemplo, o de juiz da Corte constitucio­nal, se dirige a um só indivíduo e lhe prescreve não uma ação singular, mas todas aquelas que são inerentes ao exercício da função); normas individuais e concretas (o exemplo mais ca­racterístico é fornecido pelas sentenças do juiz).


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49. NORMAS AFIRMATIVAS E NEGATIVAS

Uma outra distinção tradicional da lógica clássica, que pode ser aplicada às proposições prescritivas, é aquela entre proposi­ções afirmativas e negativas. Partindo-se de uma proposição qualquer, obtém-se outra com o uso variado do signo não. Até este momento, falamos de proposições afirmativas. Se agora partirmos da proposição afirmativa universal (“Todos os ho­mens são mortais”), obteremos outras duas proposições, con­forme neguemos universalmente (“Todos os homens não são mortais”, ou “Nenhum homem é mortal”) ou então nos limite­mos a negar a universalidade (“Nem todos os homens são mortais”, ou “Alguns homens não são mortais”). Se, enfim, combinarmos as negações, isto é, negarmos ao mesmo tempo universalmente e a universalidade, obteremos uma quarta pro­posição (“Nem todos os homens não são mortais”, ou “Alguns homens são mortais”).[nota 30] Para indicar estas quatro proposições com termos fáceis de recordar, usamos os termos latinos: omnis, nullus, non omnis, nonnullus. Quanto às relações que ocor­rem entre as quatro proposições, nos limitamos a dizer que a segunda (nullus) é a contrária da primeira (omnis); a terceira (non omnis) é a contraditória da primeira; a quarta (nonnullus) é a contraditória da segunda. Em outras palavras: toda propo­sição tem a sua contrária (que é uma oposição mais débil) e a sua contraditória (que é uma oposição mais forte). Designando com X a primeira, com X não a segunda, com não X a terceira, e com não X não a quarta, as relações recíprocas entre as qua­tro proposições resultam na seguinte figura:


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[Descrição da imagem] Imagem formada por figura geométrica de quatro lados nomeadas contrários (acima), subcontrários (abaixo). Subaltermos nos lados. Linhas diagonais nomedas como "contraditórios. [Final da descrição]

 

Diz-se que duas proposições são contrárias quando não po­dem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas faisas; que são contraditórias quando não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas; que são subcontrárias quando podem ser ambas verdadeiras, mas não podem ser ambas falsas; enfim, que são subalternas quando da verdade da primeira pode-se deduzir a verdade da segunda, mas da verdade da segunda não se pode deduzir a verdade da primeira (e, vice-versa, da verdade da primeira não se pode deduzir a verdade da segun­da, mas da falsidade da segunda pode-se deduzir a falsidade da primeira). Entre dois contrários afirma-se que há relação de incompatibilidade; entre dois contraditórios, de alternativa; entre dois subcontrários, de disjunção; entre o subalternante e o subalternado, de implicação.

Para aplicar o que foi dito às proposições prescritivas, par­tamos de uma prescrição afirmativa universal (“Todos devem fazer X”). Com o uso diverso do signo não, obtemos outros três tipos de prescrições: a segunda, negando universalmente, com o que gera uma prescrição do tipo: “Ninguém deve fazer X”; a terceira negando a universalidade, com o que obtemos uma prescrição do tipo: “Nem todos devem fazer X”; a quarta usan-


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do ambas as negações, onde obtemos: “Nem todos devem não fazer X”. O segundo tipo de prescrição, manifestamente, não é outra senão a prescrição negativa, ou, como de outro modo a chamamos, o imperativo negativo, isto é, a proibição. A tercei­ra proposição é a que, enquanto isenta alguns do dever de fazer, permite a estes o de não fazer, e corresponde por isso àquela norma que chamamos de permissiva negativa. A quarta, finalmente, é a que, enquanto isenta alguns do dever de não fazer, os permite de fazer, e é aquela que chamamos de per­missiva positiva. Simbolizando a primeira proposição com O (obrigatório), as outras três podem ser simbolizadas pela ordem neste modo: O não (leia-se: obrigatório não fazer, ou proibido); não O (leia-se: não obrigatório fazer, isto é, permissão negati­va); não O não (leia-se: não obrigatório não fazer, isto é, per­missão positiva).

Entende-se que ao invés de partir da prescrição afirmativa, podemos partir de qualquer outra proposição, e com o uso variado da negação obter as outras três. Experimentemos partir da norma permissiva positiva que simbolizamos com P: obte­mos primeiro P não (leia-se: permissão de não fazer, ou seja, permissão negativa); depois não P (leia-se: não permissão de fazer, ou seja, proibição); enfim, não P não (leia-se: não per­missão de não fazer, ou seja, obrigação). Entre obrigação e permissão, a diferença é de duas negações; onde a tábua de equivalência é a seguinte: O = não P não (leia-se: deve-se fazer equivale a não se pode não fazer); O não = não P (leia-se: deve-se não fazer equivale a não se pode fazer); não O = P não (leia-se: não é obrigatório fazer equivale a é permitido não fazer); não O não = P (leia-se: não é obrigatório não fazer equivale a é permitido fazer).

Quanto às relações que ocorrem entre estes quatro tipos de normas, correspondem às relações ilustradas no quadro acima referido.

Para um posterior esclarecimento, reproduzamos aqui o quadro com os símbolos das proposições prescritivas:


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[Descrição da imagem] Imagem formada por figura geométrica de quatro lados nomeadas contrários (acima), subcontrários (abaixo). Subaltermos nos lados. Linhas diagonais nomedas como "contraditórios. Termos "não" nos quatro cantos. [Final da descrição]

 

Deste quadro resulta que as prescrições afirmativas e as ne­gativas, isto é, os comandos e proibições, são contrários; as per­missivas afirmativas e as negativas são subcontrários; comandos e permissões negativas, proibições e permissões positivas são entre si contraditórios (como foi ilustrado no tópico 32).[nota 31]

 

50. NORMAS CATEGÓRICAS E HIPOTÉTICAS

É preciso mencionar uma terceira distinção puramente for­mal, isto é, fundada exclusivamente na forma do discurso: a distinção entre normas categóricas e normas hipotéticas. Tive­mos ocasião de nos ocupar desta distinção anteriormente (tópi­cos 23 e 30), e por isso a trataremos aqui muito brevemente. Ela é exemplificada na tradicional distinção dos juízos em apo dícticos (“Sócrates é mortal”) e hipotéticos (“Se Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal”). “Norma categórica” é aquela que estabelece que uma determinada ação deve ser cumprida; “norma hipotética” é aquela que estabelece que


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uma determinada ação deve ser cumprida quando se verifica uma certa condição.

A rigor, todas as normas reforçadas por sanções podem ser formuladas com proposições hipotéticas no sentido em que se pode considerar a admissão ou a recusa das conseqüências imputadas pela norma sancionadora como uma condição para a realização da obrigação imposta pela norma primária, segun­do a fórmula: “Se você não quiser sujeitar-se à pena Y, deve cumprir a ação X”. Como, por outro lado, não se exclui que há normas não sancionadas, é preciso admitir a existência de normas jurídicas categóricas, isto é, de normas formuláveis na forma apodíctica, sem condições. É claro que as normas jurídi­cas a que se refere o já citado artigo 154 do Código de Proces­so Penal italiano, segundo o qual alguns funcionários são obri­gados a observar as normas do Código mesmo quando a inob­servância não importe em sanção alguma, são normas categó­ricas, ou seja, normas cuja obediência não está submetida a qualquer condição, pelo menos com referência ao sujeito a quem é dirigida.

Quanto às normas jurídicas hipotéticas, já vimos que elas podem ser de dois tipos, segundo a sanção consista em não se alcançar o fim desejado ou se alcançar um fim diverso do de­sejado. As normas do primeiro tipo, cuja formulação é: “Se você quiser Y, deve S”, podem ser chamadas de normas ins­trumentais, pelo fato de que a ação por elas prescrita é tomada como um meio para se alcançar um objetivo. As normas do segundo tipo, cuja formulação é: “Se você não quiser Y, deve S”, podem se chamar normas finais, porque prescrevem ações que têm valor de fim.

Se agora combinarmos esta distinção entre normas instru­mentais e finais com aquela examinada no tópico precedente, entre normas afirmativas e positivas, obteremos quatro tipos de normas hipotéticas: 1) “Se você quiser Y, deve X”; 2) “Se você quiser Y, não deve X”; 3) “Se você não quiser Y, deve X”; 4) Se você não quiser Y, não deve X”.


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Anotemos, ainda, concluindo, para livrar o terreno de um possível equívoco, que aqui se falou de normas como proposi­ções hipotéticas no sentido em que esta qualificação serve para distingui-las das normas categóricas. Não se falou, pelo contrá­rio, de um outro sentido em que freqüentemente se fala das normas jurídicas como proposições hipotéticas, isto é, no senti­do de proposições prescritivas que estabelecem uma obrigação condicionada à verificação ou não verificação de um dado evento, segundo a fórmula: “Se é Y, deve ser X”. Exemplo: “Se o dote consiste em bens que a mulher conservou a proprieda­de, o marido ou os seus herdeiros são obrigados a restituí-lo sem dilação, dissolvido o matrimônio” (art. 193 do Código Civil italiano[nota 32]). Quando os juristas falam das normas jurídicas como normas hipotéticas, falam, sobretudo, neste segundo sentido. Se, nesta acepção, se quiser introduzir uma distinção, não se tratará mais da distinção entre normas categóricas e normas técnicas, mas sim da distinção entre obrigações simples e obrigações condicionadas.


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Bibliografia

Esta bibliografia é parcial e bastante concisa, indicando apenas algu­mas obras mencionadas pelo autor que, já traduzidas para o português, encontram-se disponíveis. Não apontamos obras em língua estrangeira, mesmo porque o próprio Bobbio indica ao longo desta sua obra os títulos originais e traduções italianas.

ARISTÓTELES. A Política, Edipro, Bauru, São Paulo.

            . Ética a Nicômaco, Edipro, Bauru, São Paulo.

BOBBIO, N.. A Era dos Direitos, Campus, Rio de Janeiro.

            . A Teoria das Formas de Governo, UnB, Brasília.

            . Diário de um Século, Campus, Rio de Janeiro.

            . Dicionário de Política, UnB, Brasília.

            . Direita e Esquerda, UNESP, São Paulo.

            . Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Mandarim, São Paulo.

            . Ensaios sobre Gramci e o Conceito de Sociedade Civil, Paz e Terra, São Paulo.

            . Entre Duas Repúblicas, UnB, Brasília.

            . Estado, Governo, Sociedade, Paz e Terra, São Paulo.

            . Igualdade e Liberdade, UnB, Brasília.

            . Liberalismo e Democracia, Brasiliense, São Paulo.

            . Locke e o Direito Natural, UnB, Brasília.

            . O Futuro da Democracia, Paz e Terra, São Paulo.


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. O Positivismo Jurídico, ícone, São Paulo.

. O Tempo da Memória, Campus, Rio de Janeiro.

. Os Intelectuais e o Poder, UNESP, São Paulo.

. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, Brasiliense, São Paulo.

. Teoria do Ordenamento Jurídico, UnB, Brasília.

CALAMANDREI, P.. Eles, os Juízes Vistos por um Advogado, Martins Fontes, São Paulo.

CÍCERO, M. T.. Da República, Edipro, Bauru, São Paulo.

HARE, R. M.. A Linguagem da Moral, Martins Fontes, São Paulo.

HEGEL, G. W. F.. Princípios da Filosofia do Direito, Martins Fontes, São Paulo.

HOBBES, T.. Leviathan, Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo.

. De Cive, Coleção Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo.

IHERING, R. von. A Luta pelo Direito, Edipro, Bauru, São Paulo.

. Teoria Simplificada da Posse, Edipro, Bauru, São Paulo.

KANT. I.. Doutrina do Direito, ícone, São Paulo.

KELSEN, H.. Teoria Pura do Direito, Martins Fontes, São Paulo.

. Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo.

LOCKE, J.. Dois Tratados sobre o Governo, Martins Fontes, São Paulo.

ORTEGA Y GASSET. A Rebelião das Massas, Martins Fontes, São Paulo.

PLATÀO. A República, Edipro, Bauru, São Paulo.

. As Leis, Edipro, Bauru, São Paulo.

RADBRUCH, G.. Introdução à Ciência do Direito, Martins Fontes, São Paulo.

ROUSSEAU, J.-J.. Do Contrato Social, Edipro, Bauru, São Paulo.

. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, Nova Cultural, São Paulo.

. Discurso sobre a Economia Política, Vozes, Petrópolis.


Página notas de rodapé

Nota 25, página 164: Teoria generale del diritto e dello Stato [Teoria Geral do Direito e do Estado], cit., p. 19.

RETORNO NOTA 25, PÁGINA 164

Nota 26, página 165: Filosofia della pratica [Filosofia da PráticaJ, 3a ed., p. 310.

RETORNO NOTA 26, PÁGINA 165

Nota 27, página 166: Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975.

RETORNO NOTA 27, PÁGINA 166

Nota 28, página 174: Norma giuridica e diritto soggettiuo [Norma Jurídica e Direito Subjetivo], cit., p. 15.

RETORNO NOTA 28, PÁGINA 174

Nota 29, página 179: Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975.

RETORNO NOTA 29, PÁGINA 178

Nota 30, página 184: Para este tópico me valho sobretudo do ensaio de R. Blanchè, “Opposition et négation” [“Oposição e negação”], em Reuue Philosophique [Revista Filosófica], 1955, pp. 187-217.

RETORNO NOTA 30, PÁGINA 184

Nota 31, página 187: Retomaremos este argumento quando tratarmos das antinomias no ordenamento jurídico.

RETORNO NOTA 31, PÁGINA

Nota 32, página 189: Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975.

RETORNO NOTA 32, PÁGINA 189