Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, Capítulo IV, Artigo 46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

 

Revisado por: Alana Valesca, Breno Mateus, Carlos Eduardo, Fernanda Rodrigues, John Lennon, Juscilene Maria, Sherry Barbosa.

 

Natal, dezembro de 2021.

 

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 256 p.

 

[Todas as notas de rodapé encontram-se no final do texto]

 

Página 1

A Estética do Oprimido

 

Página 2

Presidente da República       Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Cultura     Juca Ferreira

 

Fundação Nacional de Artes — Funarte

Sérgio Mamberti      Presidente

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Página 3

AUGUSTO BOAL

 

A Estética do  Oprimido

 

Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não científico

 

Página 4

Direitos cedidos para esta edição à Editora Garamond Ltda.

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Telefax: (21) 2504-9211

e-mail: editora@garamond.com.br

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Preparação de originais e revisão     Carmem Cacciacarro

Capa e projeto gráfico           Estúdio Garamond / Anderson Leal

Fotos de capa            Máquina automática do metrô de Paris (capa) e Fabian Boal (4a capa)

 

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

 

B63ie

 

Boal, Augusto, 1931-2009

A estética do oprimido / Augusto Boal. - Rio de Janeiro : Garamond, 2009.

256p. : il.

 

ISBN 978-85-7617-167-6

 

1. Estética. 2. Arte - Filosofia. 3. Realismo na arte. 4. Realismo estético. 5. Teatro e sociedade. I. Título.

 

09-4633.        CDD: 701.17

CDU: 7.01

 

04.09.09        14.09.09        OI5063

 

Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei n° 9.610/98.

 

Página 5

[Início de citação] A Natureza não é bela; belos são os olhos que a miram.

 

2008, 2009, 2010... A noite cai sobre o

mundo. Que fazer? Silenciar? Sinto

sincero respeito por todos aqueles artistas

que dedicam suas vidas à sua arte — é seu

direito ou condição. Mas prefiro aqueles

que dedicam sua arte à vida.

 

Em defesa da arte e da estética, em

tempos de crise e de paz.

 

Arte não é adorno, Palavra não é

absoluta, Som não é ruído, e as Imagens

falam. [Final de citação]

 

Página 6

Em branco.

 

Página 7

Agradecimentos

 

Tentando organizar um pouco a mesa do Augusto, encontrei um papelzinho, uma folha arrancada de um bloquinho de hotel escrita com a sua letra: era a dedicatória, para este, o seu último livro.

Fiquei sem saber o que fazer.

Não sei se cabe a mim entregar esse texto para que seja publicado.

Ao mesmo tempo, sei do reconhecimento que Augusto sentia pelas pessoas mencionadas.

Decidi retomar o texto com as minhas palavras, de modo que este livro do Augusto seja dedicado à nossa amiga Maria Rita Kehl, que com tanta paciência e cuidado leu e comentou os originais.

E aos amigos Marcelo Land e Flávio Cure Palheiro, pela sensibilidade com que entenderam que Augusto devia viver a sua vida até o fim como ele sempre tinha vivido e o ajudaram a conseguir.

 

Cecília Boal

 

Página 8

Em branco.

 

Página 9

Apresentação

 

Este livro, texto inédito e definitivo de Augusto Boal, foi finalizado em janeiro de 2009, poucos meses antes do falecimento do autor. Deve ser lido como complemento e afirmação de sua longa obra teórica, crítica e prática. Uma obra que revolucionou o cenário das artes brasileiras e ganhou repercussão internacional ao propor um método teatral cujo objetivo era exercitar o pensamento político, social e estético dos oprimidos e estimular a busca por uma sociedade sem opressores.

Baseada em valores éticos e solidários, a arte proposta por Boal propõe intervir concretamente na realidade, fazer emergir consciências e transformar simples consumidores em cidadãos capazes de produzir cultura - o que acarreta consequências individuais e sociais. Surgem neste livro algumas das ideias já usadas como base para o método conhecido como Teatro do Oprimido, que vem sendo aplicado em dezenas de países.

Nos dois primeiros capítulos são apresentados e exemplificados os conceitos da Estética do Oprimido, como pensamento sensível, pensamento simbólico, metáfora, moral e ética. No terceiro, Boal explica como esses conceitos são empregados nas atividades propostas pelo Projeto Prometeu, realizado no Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro.

Ao publicar este livro em co-edição com a editora Garamond, a Fundação Nacional de Artes - Funarte presta homenagem ao diretor, dramaturgo e ensaísta Augusto Boal (1931-2009) e coloca ao alcance de pesquisadores, artistas e público um material determinante para a construção da arte democrática, política e social.

 

Sérgio Mamberti

presidente da Funarte

 

Página 10

Em branco

 

Página 11

O Centro de Teatro do Oprimido de Augusto Boal

 

Augusto Boal foi um homem de coletivos, um semeador de multiplicadores. Ensinava aprendendo e aprendia ensinando, num constante processo de criação. Além de sua fundamental contribuição para a criação de uma dramaturgia genuinamente brasileira no Teatro de Arena de São Paulo, criou o Teatro do Oprimido que é um dos métodos teatrais mais praticados no mundo, presente em todos os continentes, através do trabalho de milhares de praticantes.

Em seu regresso ao Brasil, em 1986, Boal funda o Centro de Teatro do Oprimido com a missão de difundir o seu trabalho no Brasil, estimulando e supervisionando a atuação de praticantes e grupos. O cto torna-se um espaço de pesquisa e aprofundamento prático e teórico do Teatro do Oprimido, onde nasceu o Teatro Legislativo e se edificou a Estética do Oprimido.

Boal considerava essencial o trabalho de pesquisa, por isso o realizava de forma intensa, sistemática e dialogal. O processo que gerou a Estética do Oprimido surgiu da análise crítica dos projetos do Centro de Teatro do Oprimido, onde se identificava a necessidade concreta de desenvolver um senso estético próprio nos integrantes dos grupos comunitários. Seguindo a orientação de Boal, buscamos encontrar os meios para auxiliar os integrantes desses grupos a se libertarem das amarras estéticas a que estavam submetidos e a criarem a sua própria estética, na qual pudessem se reconhecer e com a qual pudessem se expressar.

A pesquisa da Estética do Oprimido foi constituída por meio da experimentação prática em laboratórios teatrais e da sistematização teórica em seminários. Encontros quinzenais com a equipe do cto, semestrais com multiplicadores de diversas regiões do Brasil, e laboratórios ampliados com participação internacional.

 

Página 12

Nos laboratórios, experimentavamos entre nós para depois repassarmos aos multiplicadores em formação, que assumiam a tarefa de praticar junto a grupos comunitários no Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Essas práticas retornavam para a análise coletiva por meio de relatórios de atividades, alimentando um diálogo permanente entre Boal, Curingas e Multiplicadores.

Surgiram exercícios, jogos e técnicas para potencializar o uso da imagem, do som e da palavra. A criação - de poesias, músicas, desenhos, pinturas, danças, esculturas e espetáculos - ratificava o novo conceito e impulsionava radicalmente a habilidade dos integrantes dos grupos em criar metáforas, em representar a realidade a partir de suas próprias perspectivas.

Descobertas práticas dialogavam com o texto em construção. Depois de sistematizadas, as atividades da Estética do Oprimido passavam a ser incluídas nos programas de capacitação dos projetos nas áreas de educação, saúde mental, sistema prisional e pontos de cultura. Os resultados, comparados; as dúvidas, discutidas e os desafios, analisados teatralmente.

Ao longo de quase oito anos de trabalho, este livro ganhou forma prática e teórica. Boal escrevia com habilidade e prazer; amava o processo de construção do texto, o lapidar de cada parágrafo, a escolha de cada palavra. Mesmo sendo o último, um livro não é a obra toda de uma pessoa. Entretanto, para Boal este livro tinha um caráter de sistematização: de alguma forma, representava o conjunto do que já havia escrito sobre o Teatro do Oprimido. Uma produção que contém as reflexões de uma caminhada de mais de 50 anos de militância artística, marcada essencialmente por sua coerência política.

Desde sua fundação, o Centro de Teatro do Oprimido teve direção artística de Augusto Boal, numa trajetória de 23 anos de desafios e descobertas. Uma história que nos enche de orgulho e renova o compromisso de continuidade, seguindo os caminhos que traçamos com nosso mestre, amigo e companheiro de trabalho. Além dos parceiros de luta, contaremos com este livro que consideramos ferramenta fundamental para o desenvolvimento do Teatro do Oprimido: Brasil adentro e mundo afora.

Viva Boal!

Equipe do Centro de Teatro do Oprimido www.ctorio.org.br

 

Página 13

Sumário

 

15       Introdução

23       OS DOIS PENSAMENTOS,

SIMBÓLICO E SENSÍVEL

25       O Pensamento Sensível e o Pensamento

Simbólico na criação artística

41       Um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética

49       O corpo humano, social desde antes de nascer

50       Um corpo vem ao mundo

59       Cérebro e conhecimento

63       Palavra, a maior invenção humana

64       Gênese da palavra

77       Metamorfoses e usos abusivos da palavra

95       DO PENSAMENTO ESTÉTICO À

CONCREÇÃO ARTÍSTICA

97       A subjetividade da arte

114     A famosa Teoria dos Neurônios Estéticos

131     Monarquias políticas e artísticas

148     A invasão dos cérebros

159     A objetividade da arte

166     Revolução cultural não dogmática

 

Página 14

171     IMAGENS DO TEATRO DO OPRIMIDO

181     O PROJETO PROMETEU

183     Introdução ao Projeto

197     Projeto Prometeu

212     Conjunturas, estruturas e vida real

222     Experiências iniciais no campo da saúde mental

245     Observações complementares

 

Página 15

[Início de citação] Como é possível defender a multiplicidade cultural e, ao mesmo tempo, a ideia de que existe apenas uma estética, válida para todos? Seria o mesmo que defender a democracia e, ao mesmo tempo, a ditadura. [Final de citação]

 

Sempre lamentamos que nos países pobres, e entre os pobres dos países ricos, seja tão elevado o número de pré-cidadãos fragilizados por não saberem ler nem escrever; o analfabetismo é usado pelas classes, clãs e castas dominantes como severa arma de isolamento, repressão, opressão e exploração.

Mais lamentável é o fato de que também não saibam falar, ver, nem ouvir. Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez estética. Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da produção da sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as formas de Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à condição de espectadores.

A castração estética vulnerabiliza a cidadania obrigando-a a obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos, sem pensá-las, refutá-las, sequer entendê-las!

O analfabetismo estético, que assola até alfabetizados em leitura e escritura, é perigoso instrumento de dominação que permite aos opressores a subliminal Invasão dos Cérebros!

As ideias dominantes em uma sociedade são as ideias das classes dominantes, certo, mas, por onde penetram essas ideias? Pelos soberanos canais estéticos da Palavra, da Imagem e do Som, latifúndios dos opressores! E também nestes domínios que devemos travar as lutas sociais e políticas em busca de sociedades sem opressores e sem oprimidos. Um novo mundo é possível: há que inventá-lo!

 

Página 16

Este livro não é obediente a nenhuma fórmula consagrada de se entender a arte e a estética; não é relato de consabidas teorias; não se inclina, reverenciai, ao que é tido como certo: questiono, e proponho! Não esqueço o passado, mas não ando de costas para o futuro.

Com ele, avançou duas teses principais:

1 — existem duas formas humanas de pensamento - Sensível e Simbólico -, e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas complementares, poderosas, e são, ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles que impõem suas ideologias às sociedades que dominam;

2— como todas as sociedades estão divididas em classes, castas, etnias, nações, religiões e outras confrontações, é absurdo afirmar a existência de uma só estética que a todos contemple com suas regras, leis e paradigmas: existem muitas estéticas, todas de igual valor, quando têm valor.

Paralelamente, temos que repudiar a ideia de que só com palavras se pensa, pois que pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma subliminar, inconsciente, profunda! Temos que repudiar a ideia de que existe uma só estética, soberana, à qual estamos submetidos - tal atitude seria nossa rendição ao Pensamento Único, à ditadura da palavra - que, como sabemos, é ambígua.

O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia. [nota 1].

 

Página 17

Os humanos, como quaisquer animais, estruturam suas inter-relações segundo o poder que têm, dispõem ou conquistam. Não podemos continuar nutrindo ilusões de que todas criancinhas são anjinhos e todos os humanos, gente boa. Conhecer a verdade é necessário para transformá-la.

Ser vivo é ser expansivo. Não só entre animais silvestres e selvagens a necessidade de existir se transforma em luta; no reino vegetal existem plantas assassinas, que matam tendo como armas suas folhas e raízes; trepadeiras parasitas levam à agonia suas hospedeiras, como as palmeiras; carnívoras, comem caça. É fácil acreditar que nas águas do oceano misterioso o peixe gordo come o magro; difícil é pensar que, embaixo da terra firme, fortes raízes buscam nutrientes, esfomeando as fracas. A vida come a vida.

A natureza permite a vida, mas exige a morte: oferece o prazer - seu preço é a dor. A biologia não tem ética. Viver é luta de morte. Melhor sabê-lo, para mudar.

Entre os humanos, a luta pelo espaço é luta por todos os espaços: físico, intelectual, amoroso, histórico, geográfico, social, esportivo, político... Há que se inventar seu antídoto: a Ética da Solidariedade, cuja construção terá que ser obra da incessante luta dos próprios oprimidos, e não dádiva celeste: do céu, cai chuva, neve e gelo, eventualmente, bombas e foguetes, mas não mágicas soluções. Estamos entregues a nós mesmos e temos que aceitar a nossa condição com a cabeça nas alturas, os pés no chão e mãos à obra.

A Ética é uma invenção humana, não fruto maduro da árvore do bem e do mal.

A maioria dos sistemas políticos, como o neoliberalismo - predatório em todas as suas modalidades e não apenas nos seus excessos -, busca sempre mais poder e riqueza sem limites: esta é sua essência e razão! Para tanto, ocupam espaço e oprimem - faz parte da sua natureza.

 

Página 18

No mundo real em que vivemos, através da arte, da cultura e de todos os meios de comunicação que as classes dominantes, com o claro objetivo de alfabetizarem o conjunto das populações, os opressores controlam e usam a palavra (jornais, tribunas, escolas...), a imagem (fotos, cinema, televisão...), o som (rádios, CDs, shows musicais...), monopolizando esses canais, produzindo uma estética anestésica - contradição em termos! -, conquistam o cérebro dos cidadãos para esterilizá-lo e programá-lo na obediência, no mimetismo e na falta de criatividade. Mente erma, árida, incapaz de inventar - terra adubada com sal!

Esta comunicação unívoca introduz simbólicas cercas de arame farpado nas cabeças oprimidas, embalsamando o pensamento e criando zonas proibidas à inteligência. Abre canais sensíveis por onde se inocula a obediência não contestatória, impõe códigos, rituais, modas, comportamentos e fundamentalismos religiosos, esportivos, políticos e sociais que perpetuam a vassalagem.

O Pensamento Sensível é arma de poder - quem o tem em suas mãos, domina. Por isso, os opressores lutam pela posse do espetáculo e dos meios de comunicação de massas, que é por onde circula e se impõe o pensamento único autoritário.

Quando exercido pelos oprimidos, o Pensamento Sensível é censurado e proibido - eles não têm direito à sua própria criatividade: a máquina não cria.  Aperta-se um botão…e produz. Podem também ser usados como macaquinhos de realejo em programas de auditório...

A Invasão dos Cérebros explica a formação dos submissos rebanhos de passivos fiéis das igrejas eletrônicas dos milagres a granel, com dia e hora marcados pela TV; das enfurecidas multidões de torcedores dos esportes de massa, unânime ficados pelo estéril fanatismo; da irritante e venenosa vacuidade intelectual dos programas de auditório; das tristes decisões eleitorais das massas corrompidas pelo próprio sistema ao qual estão integradas, que os explora, reprime e deprime, e atrai...

Como cidadãos, antes de tudo, como artistas por vocação ou profissão, temos que entender que só através da contra comunicação, da contracultura-de-massas, do contra dogmatismo; só a favor do diálogo, da criatividade e da liberdade de produção e transmissão da arte, do pleno e livre exercício das duas formas humanas de pensar, só assim será possível a liberação consciente e solidária dos oprimidos e a criação de uma sociedade democrática - no seu sentido etimológico, pois, historicamente, a democracia jamais existiu. Dela, pedaços sim.

 

Página 19

Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passiva contemplação absorta. Não basta consumir cultura: é necessário produzi-la. Não basta gozar arte: necessário é ser artista! Não basta produzir ideias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e continuados.

Em algum momento escrevi que ser humano é ser teatro. Devo ampliar o conceito: ser humano é ser artista!

Arte e Estética são instrumentos de libertação.

 

O caos é parte do nosso mundo. É uma forma de organização do universo, da natureza, da sociedade, da família, da política, de tudo que existe. O caos    governa-se por leis que ainda não conhecemos e provavelmente não conheceremos jamais.

Até mesmo no chamado movimento browniano, em Física, quando certas partículas macroscópicas se movem em um determinado fluido de maneira aparentemente aleatória, até mesmo esse movimento deve ter suas leis, que desconhecemos. A princípio, pensou-se que se tratava de uma nova forma de vida; hoje, sabe-se que não, mas ainda não se sabem as causas das direções imprevisíveis que tomam, em todos os sentidos.

O caos é ininteligível para nós se não o analisarmos de todos os meios de que dispomos, não apenas com teorias e palavras. O Pensamento Sensível é necessário e insubstituível tanto para entendermos as guerras mundiais como o sorriso de uma criança.

 

Este texto deve ser lido no contexto da minha obra de meio século. Quando escrevo cérebro estou escrevendo sobre salário mínimo e greves; quando digo neurônios, digo sectarismos e guerras coloniais, aids e fome; se penso sinapses, penso política e diálogo; de falo teatro, penso estruturas sociais e falo vida consciente.

 

Página 20

Não renuncio a nenhuma das minhas convicções anti-imperialistas, anticolonialistas, antirracistas, antissexistas, antienvelhecimento do ser humano. Sou, cada vez mais, inimigo irreconciliável de todas as formas políticas, morais, econômicas e sociais que hoje escravizam a maior parte da humanidade.

Não sou nenhum Nostradamus, privilegiado com o dom de ver o futuro, mas posso garantir, com toda certeza, que se alguém se atirar no vazio pela janela do 30o andar de um edifício são enormes as possibilidades de que se esborrache no chão ou na cabeça de alguém. O sangue explodirá por toda parte, salpicando coisas e pessoas. E não sou vidente, nem leio búzios: apenas penso.

Sem catastrofismos e com a mesma precisão, posso prever que o destino das sociedades em um regime capitalista neoliberal - onde os especuladores andam à solta, o dinheiro prevalece sobre o estômago - é o de criar um precipício cada vez maior entre pobres e ricos, que, inevitavelmente, dentro de alguns anos ou poucas décadas, haverá uma explosão social desenfreada e sem limites que promoverá uma desorganização de tal ordem que só um regime autoritário baseado na força bruta de indivíduos mal pagos, eficientes embora inconscientes, será capaz de criar um arremedo de hordas primitivas que, vagando pelos países devastados, imponham uma estrutura pré-histórica baseada na força bruta. Monarquias da borduna, clava e tacape! Leiam os jornais de hoje, de ontem e de amanhã, e entenderão o que digo.

Einstein escreveu: “Não sei com que armas se vai lutar a Terceira Guerra Mundial; mas sei que a Quarta será com paus e pedras!”

Um regime que se baseia na competição sem limites, sem leis nem regras claras, que são quase livremente interpretadas pela Justiça, aliada do poder econômico e/ou militar, exacerba essa competição e enlouquece. Digo loucura e provo - mato a cobra e mostro o pau: vejam as imagens dos corretores das Bolsas de Valores gritando seus lances e suas ofertas. E nesse hospício antiquado que estamos vivendo, é o que estamos vendo nesta crise econômica mundial iniciada em 2008.

O neoliberalismo é feito sob medida para estimular o instinto predatório animal que subsiste na maioria dos humanos e se propaga ao resto da Humanidade. Há que dizer Não!

 

Página 21

Os Senhores de Davos [Nota 2] apresentam como mágicas soluções para a crise que eles mesmos criaram para despedir milhões de trabalhadores, economizando seus salários para que esses trabalhadores caiam na pobreza, garantindo assim que sejam mantidos os lucros dos que já haviam lucrado. Propõem socializar os bancos podres com o dinheiro do contribuinte e guardar, privados, os rentáveis. Que isso aumente as camadas famintas, pouco lhes importa. Davos preocupa-se com a crise econômica dos bancos, banqueiros, empresas e acionistas - autores da crise -, mas não com a crise humana da aids e da fome na Ásia, África e entre os miseráveis dos seus próprios países. É monstruoso pensar que as atividades humanas obrigatórias, como a educação, a saúde e a previdência social, estejam em mãos privadas que buscam o lucro. Essa insensibilidade é criminosa. A resignação, um crime: há que dizer Não!

Não é porque eu digo estas coisas que elas assim se tornam: assim já eram antes que eu o dissesse.

Platão escreveu que nenhuma cidade (país ou nação) poderá se dizer democrática se não existir um limite para a extrema pobreza e a extrema riqueza. Dizia a verdade, jamais ouvida.

Rosa Luxemburgo escreveu que o primeiro ato revolucionário é chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. É verdade! Por que não se quer ouvir a verdade? Porque vivemos na caverna desse mesmo Platão, onde nascemos e daí jamais saímos: nossas cabeças, acorrentadas, só nos permitem ver as sombras da realidade, à qual só teríamos acesso pela palavra, pelo som e pela imagem, que ainda não dominamos - têm dono.

Na metafórica caverna do filósofo os humanos estão acorrentados, imóveis, de costas para a abertura por onde entra a luz de uma fogueira e projeta sombras na parede. Tudo que acontece entre a fogueira e as costas dos homens na         caverna - pessoas que passam, animais transportando coisas - se transforma em sombras sem vida própria. O que os humanos podem ver são as sombras do real, não o real. [Nota 3].

 

Página 22

Quem acende e cultiva esse fogo são os donos das imagens, sons e palavras. Para nos libertarmos do imobilismo e da resignação, temos que sair da caverna, olhar o mundo cara a cara, compreender como se move e quem o faz se mover. Não devemos apagar o fogo, devemos usá-lo para assar batatas e fazer belos churrascos na caverna de Platão!

O falso e ideologizado conceito dominante de Estética favorece a ideia competitiva do neoliberalismo, como veremos mais adiante no capítulo um novo conceito de aura e arte.

Arte é o objeto, material ou imaterial. Estética é a forma de produzi-lo e percebê-lo. Arte está na coisa; Estética, no sujeito e em seu olhar.

Existem saberes que só o Pensamento Simbólico pode nos dar; outros, só o Sensível é capaz de iluminar. Não podemos prescindir de nenhum dos dois.

No confronto com o pensamento único, temos que ter claro que a política não é a “arte de fazer o que é possível fazer”, como é costume dizer, mas sim a arte de tornar possível o que é necessário fazer.

 

[Início de citação] Cidadão não é aquele que vive em sociedade — é aquele que a transforma!

Arte não é adorno, palavra não é absoluta, som não é ruído, e as imagens falam, convencem e dominam. A estes três Poderes - Palavra, Som e Imagem - não podemos renunciar, sob pena de renunciarmos à nossa condição humana. [Final de citação]

— Augusto Boal

 

Página 23

OS DOIS PENSAMENTOS, SIMBÓLICO E SENSÍVEL

 

Um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética

 

Página 24

Em Branco.

 

Página 25

O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico na criação artística

 

Quando, entre 1750 e 1758, o filósofo alemão Alexander Baumgarten escreveu seus dois livros sobre a Estética, [nota 4] ele a definiu assim:

 

[Inicio da citação] Os sentidos – e os conhecimentos que deles derivam – permitem imaginar uma gnosiologia inferior. Não duvido que possa existir uma Ciência do Conhecimento Sensível... intermediária entre a sensação pura, obscura e confusa, e o puro intelecto, claro e distinto. Ela não é nem algo existente na própria Coisa, nem pura criação do ser humano: é o resultado de uma síntese particular, harmonia entre Coisa e Pensamento. O conceito sensível é particular, como objeto de sensibilidade; geral como objeto de entendimento. [Final da citação]

 

Isto é o que diz Baumgarten, e nós vamos analisar.

Estética é uma relação sujeito-objeto, concordo: o objeto de desejo depende do sujeito desejante para que possa ser desejado – em si, não o é. Da mesma forma que a beleza da mulher amada não está apenas no seu corpo e na sua fala, mas nos olhos de quem a ama, [nota 5] também assim a apreciação do Beijo de Judas, de Giotto, depende da percepção de quem o mira – será beijo amigo ou trágica traição: a capacidade perceptiva é condicionada pela religiosidade ou não do observador, e pelo seu conhecimento histórico.

 

Página 26

Discordo de que a sensação pura seja obscura e confusa: na verdade, é rica e complexa, quando sentida como tal como é. Sendo provocada pelo objeto (coisa), pode causar diversidade de percepções em diferentes sujeitos, ou no mesmo sujeito em diferentes momentos. Pelas múltiplas possibilidades que oferece de ser traduzida em palavras, pode causar confusão. O que causa confusão, porém, são as palavras que a traduzem, não ela. Palavras são Pensamento Simbólico, e os símbolos necessitam interlocutores concordes.

Como diz o próprio Baumgarten, o “conceito sensível é particular, como objeto de sensibilidade; geral como objeto de entendimento”. Ambos se complementam ou contradizem: sensibilidade e entendimento são formas ativas de pensar – nenhuma, da outra, é sombra.

O objeto do fenômeno estético pode, ou não, necessitar ser explicado para melhor ser fruído. Uma flor azul pode não necessitar palavras, mas a imagem do assassinato do célebre Duc de Guise no dia 23 de dezembro de 1588, no Chateau de Blois, na região de La Loire, durante a assim chamada Guerra das Religiões, talvez precise de explicações, sim.

Baumgarten teve o imenso mérito de reabilitar a palavra Estética, reconhecendo sua existência e função, por tantos séculos obscurecida. Isso nos obriga a conhecer a etimologia dessa palavra para entendermos o que são, na verdade, a Cultura e a Arte, que são, essencialmente, manifestações concretas da aisthétós – Estética.

Discordo do uso da palavra inferior para designar o Conhecimento Sensível, pois este não é arquivo morto, mero registro de informações sensoriais, mas sim o dinâmico orquestrador das novas informações com as já recebidas e hierarquizadas, com as carências e desejos do sujeito – isto é Pensamento –, é a sua conversão em atos.

Baumgarten define a Estética com sendo a Ciência do Conhecimento Sensível, isto é, a organização sensorial do caos. A meu ver, esta tarefa organizativa só pode ser realizada pelo Pensamento Sensível, dinâmico e fluido a cada instante, e não pelo estático acúmulo, depósito. O Pensamento Sensível pode ser interpretado em palavras (Pensamento Simbólico) que o expandam ou delimitem.

 

Página 27

Temos que concordar: os sentidos têm sentido! Não são meras sensações que se apagam com o tempo: têm sentido e direções!

Quero adotar a ideia de que existe uma forma de pensar não-verbal

– Pensamento Sensível –, articulada e resolutiva, que orienta o contínuo ato de conhecer e comanda a estruturação dinâmica do Conhecimento sensível. Quero afirmar que, para serem compreendidos, mesmo quando são expressos em palavras, os pensamentos dependem da forma como essas palavras são pronunciadas ou da sintaxe em que as frases são escritas – isto é, dependem do Pensamento Sensível.

Eu não digo, como o filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836), inventor da palavra ideologia, [nota 6] que pensar é sobretudo sentir, e que só a sensibilidade nos faz saber que existimos, mas afirmo que o ato de pensar com palavras tem início nas sensações e, sem elas, não existiria, embora delas se desprenda e se autonomize até à sua mais total abstração.

Coexistem em cada indivíduo, na sua percepção do mundo, o Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico, nutridos pelo Conhecimento, simbólico e sensível.

O Conhecimento reside no cérebro físico materializado em complexas redes neuronais vivas e pulsativas que se expandem e retraem a todo instante,    acendem-se e apagam-se como cinzas ao vento. O Pensamento, que nelas flui, é imaterial: é o Conhecimento em sua constante transformação: é a sua própria transformação.

Como pedra atirada ao mar: a água material ondula, mas as ondas, em si, são imateriais. São o ondular, como as ondas sonoras ou sísmicas. Ondas do mar não são águas, mas nelas planam e, sem elas, não existiriam.

O ar que respiramos está recheado de ondas hertzianas, ondas de imagens de tv, telefone, telégrafo, Internet, celulares, wi-fi... talvez pen- samentos, emoções, olhares de amor e ódio... Estamos inundados por ondas flutuando em um mar de micróbios – bactérias, vírus, bacilos... A macronatureza está infestada de invisíveis micros, vivos ou não, dentro e fora do nosso corpo.

 

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Pensamento é como pedra atirada ao ar: a pedra tem peso e forma – é matéria, existe concretamente no seu voo, pesa. A energia que a faz mover-se, vencer seu atrito com a atmosfera e resistir à gravidade, essa é imaterial. O objeto que voa é matéria, mas o ato de voar é imaterial. Podemos, com as mãos, agarrar a pedra – jamais o voo.

Uma nota musical é som, mas não é música, que é a organização do som no tempo. A música, que nelas se apoia, transcende as notas musicais que permitem sua existência.

Uma linha está formada de pontos sucessivos, nem curvos nem retos, mas não é nenhum deles: é a sua disposição no espaço. Da mesma forma, o pensamento é a articulação dinâmica dos significantes – inscrições gravadas no cérebro –, mas neles não está aprisionado: está na sua estruturação em movimento, como o voo e as ondas. Isto é o pensamento. Como a vida, que flui do DNA mas não é a matéria biológica: sem ela, no entanto, a Vida não existiria!

Assim são os pensamentos.

Os dois pensamentos, amalgamados, despertam e adormecem redes de neurônios em múltiplas áreas do cérebro, inter-relacionando memórias, ideias, sensações e emoções. Não estão aprisionados em nenhuma área exclusiva do cérebro, como a visão e a audição, mas podem acender quaisquer, a qualquer momento. Podem ativá-las ou ativam-se por si mesmas quando ideias ou sensações acendem a memória, que é brasa, ou a imaginação – fogo que se alastra mesmo contra a vontade consciente do sujeito, na vigília e no sono

O cérebro físico está dividido em partes, mas é um só, só um, orgânico e organizado: Casa Sem Portas por onde se pode transitar, nada murado. Mesmo quando se cala o Pensamento Simbólico, o Pensamento Sensível está sempre ativo, pensando até o impensável, como o infinito e a morte.

 

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O fluxo contínuo de nossas ações, que levam em conta e a cabo as informações do Conhecimento, são obra de um verdadeiro Pensamento Sensível, que orienta a dinâmica voluntária do Sujeito, traduzida em palavras ou não. A parte não consciente desse pensamento cumpre a mesma função e tem semelhantes virtudes, é o que Freud chamava, em seus primeiros escritos, de pré-consciente, e Stanislawski, em seu método de interpretação do ator, de subtexto. Existem muitos níveis de pré-conscientes e subtextos simultâneos, entrelaçados; alguns, um dia, chegam à nossa consciência... outros, jamais. Alguns se traduzem em fala; outros, em silêncios.

Somos capazes de falar um único pensamento contínuo enquanto outros, simultâneos, não chegam à nossa consciência verbal – escondidos, fluem no nosso monólogo interior. Se tenho diante de mim sete pessoas e falo com as sete, digo palavras escolhidas: este pensamento verbal flui consciente – com lapsos, é verdade, e falhas de memória! – enquanto outros seis, submersos e sem censura, dirigem-se a cada um dos meus interlocutores, que a eles são sensíveis, quase sempre, de forma inconsciente – deixam, porém, suas marcas.

O Conhecimento Sensível já é pensamento embrionário desde a sua forma verbal infinitiva – Conhecer –, que é o ato de receber as informações. Conhecimento conjuga-se no presente do indicativo, mas o Pensamento Sensível é gerúndio. Como tal, projeta-se no futuro.

Pensar é organizar o conhecimento e transformá-lo em ação, que pode ser fala ou ato, sendo que fala é ato. Pensamento é ação que transforma o pensador, o interlocutor e a relação entre os dois. Que podem ser a mesma pessoa.

O Conhecimento oferece opções; o Pensamento inventa e escolhe. Um põe, outro dispõe. O Conhecimento acumula; Pensamento é aventura. O Conhecimento traz o passado até o instante presente; o Pensamento, do instante, permite avançar para o futuro ou revisitar o passado.

Conhecer, Conhecimento e Pensamentos são níveis e modos de um mesmo processo psíquico. O Conhecimento não é uma estática estante de livros, depósito: é vivo e pulsativo, memória e esquecimento, acende-apaga. Palavras ao vento não deixam registro, mas intensos prazeres e dores repetidas, sim. Frases reiteradas deixam sua marca. Imagens revisitadas, sua prensa. Sons, ecoam. Conhecimento é Memória ativa. Pensamento é ação.

 

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Nos animais, o conhecimento também leva à ação, mas de forma conclusiva, não mediada pela consciência. Em humanos, o pensamento pondera e dá aos seus possíveis atos valores morais ou éticos. Os atos humanos são éticos, segundo a moral vigente a cada momento, em cada lugar e circunstâncias. [nota 7] Os escravagistas agiam segundo a moral de sua época; os abolicionistas, segundo sua ética. Moral e ética colidiam.

Consciência é a reflexão do sujeito sobre si próprio e sobre o significado dos seus atos, não apenas sobre suas consequências

Também não me parece adequada a expressão puro intelecto, pois tal pureza não existe: no seu texto, Baumgarten, sem mencioná-lo nem distingui-lo, refere-se apenas ao Pensamento Simbólico, constituído pelas palavras e por gestos convencionados. As palavras, porém, que, entre outras funções, podem designar coisas, são, elas próprias, coisas; podem ser percebidas e reveladas pelo Pensamento Sensível – eis a poesia.

O intelecto é a contínua organização de sensações, emoções e ideias, memórias e imaginações que rodopiam na mente e se transformam em fala, que é uma modalidade de ação.

Concordo que, na formação do intelecto, existe um salto vital impossível de ser conhecido: da mesma forma que o ácido desoxirribonucleico adquire vida, ou nela se transforma sem que saibamos como nem por quê, o cérebro orgânico cria a mente multifária e, esta, o intelecto refinado, expurgado de banalidades.

O intelecto é o Pensamento Simbólico purificado do não essencial: é uma categoria desse pensamento. Este é um texto intelectual: pelo menos, quero pensar que o seja...

Além do salto que vai da matéria à vida, outros saltos, tão infinitos como este e tão misteriosos, vão da vida orgânica ao pensamento, do pensamento à consciência, e da consciência ao Ato ético. Este é o mais difícil...

 

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Belo, Bonito e Feio

 

A Estética não é a ciência do Belo, como se costuma dizer, mas sim a ciência da comunicação sensorial e da sensibilidade. é a organização sensível do caos em que vivemos, solitários e gregários, tentando construir uma sociedade menos antropofágica. [nota 8]

O Belo, que da Estética faz parte, é a organização da realidade, anárquica e aleatória, em formas sensoriais que lhe dão sentido e, a nós, prazer. Belo não é só o que nos alegra e agrada, mas também o que nos assusta e consterna, como a beleza de uma catástrofe natural, como um tsunami, ou a bomba atômica, que explode em cogumelo.

O Belo pode ser traduzido e explicado em palavras, mas não as necessita. A Festa Junina de Djanira ou o Negro Rodando Pandeiro de Nelson Sargento; o terrível Laocoonte de El Greco, enroscado com seus filhos em serpentes venenosas; arte abstrata ou grafites – nada disto necessita, embora suporte, explicações: muito já está dito em cores e traços.

Fosse a Estética somente a ciência do Belo e do Sublime, teríamos que inventar uma outra palavra genérica, parceira e antônima da Estética, que englobasse o não-Belo e a Fealdade.

O feio, antônimo apenas de bonito, pode ser belo. Guernica, de Picasso, é bela obra de arte que nos mostra horrendo crime histórico, feio e trágico, tal como a destruição de Rotterdam, Hiroshima, Nagazaki e outras cidades sem nenhuma importância militar. O Morto, de Cândido Portinari, mostra os terrores da guerra em bela e feia imagem, tinta de sangue; seu famoso Tiradentes esquartejado mostra os horrores do colonialismo. Belos quadros, feios temas. Fotos de Sebastião Salgado mostram, em rostos e corpos, na pele e nos olhos, na seca e ao sol, o pavor da fome e da aids: belas fotos – angústia e medo.

 

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O Belo está na coisa e no olhar. Nem todos olhares veem a mesma coisa. O dono do olhar é um cidadão que vive em sociedade de classes, castas, casas grandes ou senzalas. Não existe o olhar puro – é impossível nos desfazermos da carga social (cultural) entranhada em nosso corpo e em nossa mente – esta carga é possante filtro através do qual vemos o mundo.

Na criação estética, dois artistas verão o mesmo modelo de duas formas diferentes (ou mais) e, na apreciação da mesma obra de arte, duas pessoas verão a mesma obra de duas (ou mais) formas diferentes. Por essa razão, a escolha do tema é importante, mas ainda mais importante é o tratamento que se lhe dê.

“O feio é belo!” – não há nisto nenhuma contradição, pois bela é a verdade escondida que a arte revela! O Belo é o reluzir da verdade através dos meios sensoriais – dizem alguns filósofos, e eu concordo; porém... qual verdade?

Como não somos todos iguais, haverá muitas. Como não somos Hegel, não será Deus.

Se, com nossa Arte, decidimos conscientemente participar das estruturas sociais que se confrontam em todas as sociedades humanas – e é esse confronto que as faz avançar ou recuar! –, não devemos nos iludir com nenhuma entidade fictícia como a ideia absoluta, o espírito e outras divindades, por mais que estas tenham sido adotadas por eminentes filósofos. “Amicus Plato, sed magis amica veritas” – disse Aristóteles. “Sou amigo de Platão, mas mais amigo sou da verdade.” A frase, é óbvio, foi dita em grego, língua de Atenas, mas é conhecida em latim.

Nós, com a Estética do Oprimido, buscamos a nossa verdade: uma Arte Pedagógica inserida na realidade política e social, e dela parte!

Onde estará, então, o chão para os nossos pés?

 

As verdades de cada cultura

A Verdade de cada sociedade humana, ou de cada um dos seus segmentos, é determinada por sua cultura, que é a soma ativa de todas as coisas produzidas por qualquer grupo humano em um mesmo tempo e lugar, em sua relação com a natureza e com outros grupos sociais.

 

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Não são só as coisas, em si mesmas, que são cultura, mas também o conjunto das condições sociais nas quais essas coisas se produzem e são usadas, nos objetivos e formas de produzi-las. Hábitos, costumes, rituais e tradições; crenças e esperanças; técnicas, modos e processos; sobretudo valores da ética, como proposta, e da moral vigente – tudo isto forma a cultura, que, em cada momento histórico, revela o estado das forças sociais em conflito – ou, dele, boa parte.

As verdades de cada cultura são as afirmações de cada segmento e momento da sua evolução, com todas as contradições que possa ter. A luta camponesa e o movimento estudantil no Brasil têm e tiveram, cada qual, sua cultura e suas verdades, assim como o sistema econômico e o lazer das classes abastadas têm as suas. A cultura das Ligas Camponesas de antes de 1964 era centralizada; a cultura do MST de hoje é mais democrática; o movimento estudantil de ontem era combativo; o de hoje, cauteloso.

A verdade da religião é Deus e seus supostos desígnios – cada qual tem seu Deus ou deuses, [nota 9] alguns exclusivos, outros compartidos. A verdade do cientista é a descoberta do mundo e a invenção do possível – descoberta e invenção são coisas diferentes: uma já existia, outra passa a existir. A verdade de certas formas de ação política é a invenção de uma sociedade sem classes e sem o livre mercado, que assanha o lado predatório dos indivíduos. A verdade das ditaduras é a imposição do pensamento único. A verdade de uma possível democracia é a livre manifestação do pensamento, a compreensão das necessidades individuais e coletivas e o debate sincero e aberto entre os oprimidos, desde que seja seguida de ações concretas possíveis e reais. Não basta pensar! A ação é necessária, ou sobrevém a nefasta e mortal Melancolia!

Isto posto, não se pode dizer que todas as verdades se equivalham, que tudo é igual, com igual valor e peso: os esforços pela humanização da humanidade elegem como verdade suprema o avanço social em direção a uma sociedade sem oprimidos e sem opressores, em todos os campos da vida humana: política, social, familiar e todas mais que possam existir. Não podemos lutar contra as opressões e continuarmos, nós mesmos, sendo opressores.

 

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Se este é um parti pris, não importa: pois seja parti pris. Se tentar alcançar essa sociedade é uma utopia, não importa: avançar em sua direção não é utópico, é opção ética. Se as utopias não se alcançam nunca porque sempre haverá outra mais distante, não importa: caminhemos na sua direção – assim é a vida, melhor do que ficar parado, passivos, vendo a carruagem passar, pois que isso enferruja as pernas e o pensamento!

Escrevo a palavra verdade em itálico porque tem, aqui, diversos significados que se complementam: virtude, meta, caminho... As diferentes verdades e os diferentes conceitos que definem essa palavra provocaram no passado e hoje provocam, neste século XXI, as mais estúpidas e cruentas guerras religiosas e étnicas, além das sempiternas guerras territoriais, econômicas e comerciais.

Não se pode pertencer a duas culturas, possuir duas éticas, duas morais, mas, como cada cidadão vive em uma atmosfera pluricultural onde conflitam valores, é inevitável o surgimento de culturas híbridas fundadas em valores diferentes, até opostos: padres guerrilheiros são o exemplo clássico, ao lado de médicos assassinos, juízes ladrões, políticos corruptos.

Em 1976, na Argentina em plena ditadura, um sacerdote católico foi procurado pela família de um coronel torturador, morto de um ataque cardíaco, para que presidisse a cerimônia do enterro. A família pertencia à paróquia daquele sacerdote e frequentava seus cultos. O bom homem hesitou entre seus deveres de pastor e suas obrigações de cidadão antifascista. Finalmente decidiu aceitar o encargo – colocou sua condição sacerdotal acima da sua cidadania – e encomendou a alma do torturador.

Nesta história, o que mais me inquieta não é a decisão do padre, que naquele momento agiu de modo coerente com sua fé, mas sim me interessa saber o que fazia ele antes da morte do militar: qual o conteúdo político das suas homilias? Que defesa fazia dos Mandamentos diante da família daquele carrasco? Será que explicava aquele excelente Mandamento que preconiza “Não matarás”, que supõe “Não torturarás”? Ou aquele outro – “Não roubarás” –, que inclui “Não usurparás o poder confiado ao Presidente da República pelo voto popular livre”?

 

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No seu púlpito, o padre teria tentado dissuadir os militares que se diziam religiosos a cessar o terror que haviam instaurado contra a população, cessar a matança, ou preferia divagar sobre a natureza assexual dos anjos e a vida preclara dos santos?

Não só indivíduos, mas também segmentos importantes de um setor social podem adotar comportamentos contrários à sua própria cultura e à sua missão declarada: nos piores momentos da corrupção no Brasil, as bandas podres da polícia sentiam-se à vontade usando técnicas de achaque tradicionais da cultura dos traficantes de drogas que essas mesmas milícias deveriam combater; terroristas econômicos espalhados pelo mundo, manipulando bancos e bolsas, sentiram-se confortáveis usando técnicas da cultura típica dos cassinos clandestinos, graças à desregulamentação [nota 10] permissiva promovida pelo neoliberalismo, o que nos levou à crise financeira mundial iniciada em 2008 e que, antes, já havia aprofundado o fosso entre ricos e pobres, fartura e miséria.

São as quimeras culturais [nota 11] ... metade gente, metade não.

Como são muitas as culturas e as verdades que delas emanam; como são tantas as divisões no seio das sociedades, e tantos e tão díspares seus valores, a Estética e o Belo não possuem valores universais e eternos. Já não se pode falar de uma só Estética, única, que seria a do pensamento único, arma de exploração dos oprimidos e da opulência dos opressores.

Há que se tomar partido, juntar-se a um dos lados em conflito. Se formos éticos, este partido será sempre o dos oprimidos.

 

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Culturas harmonizam ou extremam diferenças, constroem e transgridem a moral, sonham ética. Culturas estão em contínua mutação – temporais, em que pese sua possível longevidade; locais, em que pese sua possível transcendência. Imortais, em que pese sua morte.

O mundo é pluricultural porque vive permanentemente em guerras, deflagradas ou latentes, bélicas ou diplomáticas – sempre o confronto, sempre a força. Não só o mundo, mas todos os países são pluriculturais; não só países, mas nações; não só nações, mas regiões, bairros, raças, classes sociais e sistemas políticos: todos os grupos humanos são pluriculturais. Todos têm seu conceito de feio, bonito e belo.

Há que se tomar partido: juntar-se aos que lutam contra todas as formas de opressão, em todo o mundo!

A cultura reflete e revela os confrontos de patrícios e plebeus, burguesia e monarquia, proletários e capitalistas, camponeses e latifundiários... Quando a cultura de uma época ou país é universalmente aceita como sendo a melhor, única e mais perfeita, é porque a opressão ali é universalmente exercida, sem contestação.

Toda cultura é impura ou se impurifica ao contato com outras culturas.

O dilema de toda cultura é esfingético: – “Ou me devoras (decifras) ou serás devorado”. Culturas imperialistas e colonialistas devoram, digerem e devolvem elementos culturais dos países colonizados – somos obrigados a digerir, metamorfoseados, formas culturais que um dia foram nossas: Carmen Miranda e seus shows musicais em Hollywood durante a Segunda Guerra Mundial, equilibrando bananas e abacaxis na cabeça, é o exemplo mais transparente. Ela tinha consciência disso e cantava: – “Disseram que eu voltei americanizada...”. Tinha razão!

Criar nossa própria cultura, sem servidão àquelas que nos são impostas, é ato político e não apenas estético; ato estético, não apenas político!

 

A antropofagia cultural, [nota 12] por outro lado, é dever cidadão. No Brasil, foi proposta por Oswald de Andrade na Semana de Arte Moderna de1922, e batizada por Tarsila do Amaral.

 

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Em línguas indígenas, Abaporu, título do seu mais famoso quadro, significa homem que come homem! Podemos comer a cultura alheia, devorá-la como certas nações indígenas devoravam seus inimigos na suposição de que, com seu sangue e carne, pudessem se robustecer! Neles, esse repasto canibalesco era esperança vã, carnal placebo; metafórico em nós, é certeza.

O próprio Picasso canibalizou a arte africana e, a seu modo, Gauguin, a de Tahiti. Se eles podem, por que não todo mundo?

Vietnamitas, durante as guerras de libertação do seu país contra a França e, mais tarde, contra os Estados Unidos, deram uma exemplar demonstração antropofágica usando todas as partes dos aviões que abatiam: fizeram armas, material cirúrgico, mesas e cadeiras, coisas de guerra e de paz... Nada se desperdiçou. Antropofagia cultural.

Não basta ser cultura para ser respeitável. O povo Asteca, que viveu antes das invasões colombinas nos territórios que hoje são parte do México, desenvolveu criativa e útil cultura arquitetônica e científica: até trepanações cerebrais faziam para a cura de certas doenças. No entanto, os astecas perpetravam anualmente sacrifícios de vidas humanas: rapazes e moças eram imolados, às dezenas, a uma força sobrenatural chamada deus, especialmente a um certo deus da guerra, Huitzilopochtli. Abriam-se os peitos dos sacrificados e retiravam-se seus corações, que eram ofertados ao Sol. As vítimas eram, preferencialmente, escravos e prisioneiros de guerra – dava menos trabalho convencê-los e explicar às famílias as exigências rituais da divindade...

Sem esta oferta frequente, o Sol, segundo a crença estúpida vigente naquela época e naquela cultura, se recusaria a nascer no dia seguinte... Isso era parte da sua cultura e da sua ignorância culposa e dolosa!

Não é necessário voltar séculos atrás: ainda hoje, centenas de milhares de moças, mal chegadas à puberdade, são violadas com a ablação do clitóris, o que, supostamente, eliminaria seu desejo sexual.

 

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O objetivo declarado dessa cirurgia monstruosa é o de obrigá-las a ser fiéis aos seus maridos, o que é ingênuo e falso, pois nem se elimina o desejo e o gozo, nem se garante a fidelidade... Segundo o INED (Instituto Nacional de Estudos Demográficos, da França), mais de cem milhões de mulheres em todo o mundo já sofreram esse suplício, especialmente na África subsaariana. Quem perpetra esse crime, em geral, são mulheres que sofreram a mesma infâmia em nome dessa abominável cultura duas vezes milenar. Mesmo sendo prática proibida, como no Egito, a força dessa cultura ainda é maior do que a inteligência.

No Afeganistão, as mulheres vivem dentro de sarcófagos ambulantes impostos pelos talibãs embrutecidos – não podem ir à escola, mostrar o rosto nem os olhos, vivem atrás de véus. Na Arábia Saudita, líder mundial das exportações de petróleo, as mulheres são proibidas de ter passaportes e dirigir carros... Basta de tantos exemplos ignóbeis!

Cultura é palavra-caminhão: para explicar o que pensamos, temos que ser precisos e falar especificamente de cultura aristocrática grega do século VI AC, cultura burguesa dos países imperialistas, cultura popular do campesinato brasileiro, e assim por diante.

O desenvolvimento da própria cultura não elimina a antropofagia cultural, desde que transformada em coisa nossa: comamos o necessário e saboroso, os avanços da ciência, as técnicas de fabricar o pão e o vinho, os primitivos rádios galena e a Internet, o piano e o violão; dancemos e cantemos o amor em tango, swing ou chachachá, do jeito que sentirmos; valsa vienense, samba, todos os ritmos e cores, mas, por favor... techno, isso não, já não seria cantar o amor – seria estupro.

Culturas são campos de batalha: temos que combater tudo que nos leve à subserviência e à passiva aceitação da opressão, em todas as culturas, inclusive nossas, naquilo que têm de ruim e perverso.

 

O Sublime e a Ética

Belo, bonito, feio... e Sublime.

Sublime é o belo inexcedível. Sublime é a ética, organização suprema do caos. Moral se obedece, ética se inventa.

Moral é o que é – Ética é o que se deseja que seja.

Assim como a cosmetizada palavra Estética, a Ética tem sido amesquinhada quando entendida como sinônimo de bom comportamento.

 

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Ética [nota 13] é o caminho por onde se pretende chegar ao sonho de huminizar a Humanidade. A ética repugna a persistência do instinto predatório em sociedades humanas, cujos resíduos selvagens ainda existem em nós. Contra o aspecto predatório animal do ser humano, a ética busca criar relações solidárias. [nota 14]

Dentro de cada cultura existe cada indivíduo, cada grupo, gênero, raça e nação. A globalização destrói culturas, que brotam na sociedade como da terra nasce a vida. A globalização quer impor uma só maneira de ver, ouvir, sentir, degustar, pensar, fazer e ser. Mas as raízes voltam a crescer, assim é a natureza: pedra e flor.

Em Nuremberg, a cultura arquitetônica nazista ergueu enorme estádio com tribuna de um só lugar: dali, Hitler falava para a Alemanha e para o mundo sobre o Império dos Mil Anos... que durou pouco. Hitler já era a favor da globalização. Rebelou-se a natureza, rompeu o concreto armado das arquibancadas, árvores nasceram sob a solitária tribuna e destruíram o pesadelo: onde havia cimento e ferro, nasceram plantas e flores...

 

Toda cultura é dialética e se move: o escravo desenvolve a cultura escrava, que contém desejo de liberdade. Isto é o Belo – a revelação da verdade escondida.

Afirmo que não existe o mais-belo e o menos-belo, conceitos criados em sociedades competitivas – hoje, neoliberais – nas quais é importante ser o primeiro, o mais rico, mais forte e melhor.

 

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Penso, ao contrário, que cada coisa, material ou imaterial, é ou não bela em função da sua qualidade de, através dos nossos sentidos, significar uma verdade, real ou imaginária, consciente ou não, dentro de condições temporais e concretas, quer nos atraia ou assuste.

O Maria Fumaça e o Trem-Bala, o carrinho de mão e o carro de corridas, a piroga e o avião a jato, são belos em suas realidades sociais, como, nas naturais, são belos o pôr do sol e a tempestade, o jequitibá e a sequoia, o riacho e o mar.

 

O Pensamento Sensível não é língua: é linguagem. Com ela, o sujeito expressa ideias e revela sentimentos, para si e para outros, decide ações e age sem usar palavras nem gestos simbólicos, apenas sinaléticos (onde significantes e significados são inseparáveis).

Existem, portanto, duas formas de pensar: Pensamento Simbólico (noético, língua) e Pensamento Sensível (estético, linguagem).

 

Conclusões

A Alexander Baumgarten damos graças por seus estudos sobre a Estética, que nos permitem avançar e melhor ver o que sempre havíamos visto.

Nenhum cidadão deve renunciar a nenhuma das duas formas de pensar, como não se pode alegrar por ter um olho só, um só braço ou só uma perna. é pela posse da Palavra, da Imagem e do Som que os opressores oprimem, antes que o façam pelo dinheiro e pelas armas.

Temos que reagir contra todas as formas de opressão. Essa luta deve se dar, também, nesses três importantes campos de batalha do Pensamento Sensível.

Temos que reconquistar a Palavra, a Imagem e o Som.

 

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Um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética

Função ritual, comercial e política da arte

 

Walter Benjamim (1892-1940), filósofo alemão, no seu ensaio Sur l´Oeuvre d´Art (“Écrits Français”, Ed. Gallimard, 1991), afirma que, através dos tempos, houve um deslocamento nas formas de apreciação da obra de arte e no seu uso. Esse deslocamento vai do início da própria arte, quando desempenhava uma função ritual, até os tempos modernos, quando, graças à multiplicação mecânica, pode-se expor a mesma obra a um público diverso e heterogêneo, em muitos lugares e ao mesmo tempo. A xilogravura, por exemplo, é arte que pode ser multiplicada aos milhares a partir de uma matriz; a fotografia, através de um negativo; o cinema já é múltiplo em si mesmo, pois nenhuma cópia de um filme tem primazia sobre qualquer outra: cada cópia é um original – o copião ainda não é a obra e, menos ainda, cada fotograma, pois a essência do cinema é a imagem em movimento.

Perde-se o caráter ritual da arte, que, por sua unicidade, se ligava à tradição, à sua origem, às narrativas que sobre ela eram feitas, fatos reais ou imaginários, à sua autenticidade, sua história... Com a multiplicação, ganham-se cópias, mas perde-se a aura da obra de arte para sempre única.

Vamos analisar.

Sabemos que aura não é halo: é a projeção que faz o observador sobre o objeto, enquanto halo é algo que o objeto exala e a ele pertence, como a luz em certas substâncias radioativas. Aura e halo podem coexistir, ou não.

Em que momento surge a aura? Sabemos que qualquer objeto, qualquer que seja sua finalidade, deve ser construído antes de ser usado. No caso de objetos artísticos – que são metáforas substantivas, isto é, são matéria –, a sua construção física é anterior à sua finalidade e aos significados que possam vir a ser, neles, projetados.

 

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A aura se desenvolve depois da criação do objeto, não antes, quando só existia, imaterial, na mente do artista. A construção do objeto de arte precede sua utilização, religiosa ou secular.

Mesmo que a sua construção tivesse tido finalidades místicas, os significados a ela atribuídos seriam, na melhor das hipóteses, simultâneos com a sua realização material, jamais anteriores. A primeira martelada na pedra ainda não cria a imagem de um profeta ou santo; não pode a pedra, portanto, ser objeto de adoração. No desejo do crente, sim, já existia a adoração, que apenas buscava um objeto onde pousar.

Em que sentido Arte é Metáfora? Metáfora, do grego, meta (além de) + phore (levar), pode ser translação ou transubstanciação. O objeto artístico é a transubstanciação de uma realidade, objetiva ou imaginada, em outra substância diferente da original: traço e cor, na pintura; argila, bronze ou mármore, na escultura; sons, na música; o corpo humano em movimento, na dança... Pode ser também o deslocamento (neste caso, translação) de uma figura gramatical para outro contexto literário, como fazem os escritores com suas palavras. As modernas instalações, embora isso não lhes garanta qualidade, são outro exemplo de translações: não mudam a substância, só o lugar e a sua disposição no espaço. O mesmo podemos dizer dos objets trouvés (objetos encontrados) e das colagens. Tudo isto são metáforas.

Nem a arte rupestre mencionada por Benjamim no seu ensaio, nem qualquer outra no ato de ser criada, isto é, durante sua metaforização substantiva, contém qualquer religiosidade ou quaisquer significados, que só lhe serão apostos durante sua fabricação ou após a sua completude. Concluímos que a aura é produzida pelo olhar subjetivo, não pela coisa concreta. Podemos ver até o que não existe, mas que está dentro de nós.

Sendo esta afirmação verdadeira - e é! -, podemos dizer que, em menor medida, até mesmo a cópia de um santinho de igreja ou qualquer amuleto, religioso ou profano, pode ter sua aura, dependendo da paixão do fiel e da sua relação passional com esse objeto. Exceções não invalidam regras; existem auras públicas e auras privadas.

 

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Oposto a isso, em Santa Catarina existem pinturas rupestres cravadas na rocha, face ao mar, com claras advertências aos marinheiros, não aos espíritos. Provavelmente eram indicações sobre ventos, marés e outros perigos; mesmo inspirados em divindades, indicavam cuidados maríti­mos, não espirituais. Essas pinturas são arte que dura séculos, passados e porvir.

Não só antigas estátuas de deuses e deusas eram arte: objetos utilitários de uso cotidiano como canecos, colares e pratos de servir, sem nenhuma conotação religiosa, também eram arte... despercebida, é verdade, mas arte. Hoje, ao mirá-las, surge a aura. Se um desses objetos, vulgar moringa, por exemplo, tivesse pertencido a algum feiticeiro ou pessoa ilustre em sua época, se tivesse o valor agregado de alguma história fantástica, essa moringa conquistaria a mais resplandecente aura mesmo no seu tempo, sem esperar posteridades.

Auras se perdem e se ganham ao sabor do diálogo social, capricho das culturas.

No campo da fé, como escreve Benjamim, em algumas catedrais gó­ticas, certas figuras de adoração não podem ser vistas do chão: é preciso que os adoradores subam escadas com esforço e sacrifício. Temos que acrescentar, porém, que mais necessário ainda é que alguém, o guardião da chave, lhes abra a porta para a subida. Em certos templos, algumas imagens ficam escondidas de crentes e curiosos... mas não se escondem dos sacerdotes, que as guardam em lugar seguro, inacessível ao vulgo. Certos livros sagrados só são expostos aos fiéis em momentos litúrgicos especiais - fora deles, só quem os custodia pode vê-los.

Mas... quem guarda e esconde objetos de culto? O sacerdote e seus prepostos. Só a estes é permitida a contemplação das imagens e dos livros até o momento de escondê-los.

Ao ser escondido, o objeto religioso flutua sem outro destinatário para a sua aura além do sacerdote, que se torna proprietário temporário dos supostos poderes sobrenaturais que a imagem possui para seus ado­radores. O guardador assume o poder da aura, que se transforma em instrumento de força. O guardião incorpora o poder do objeto guardado, ao deter o poder de manejá-lo, escondê-lo, exibi-lo, impor condições para a sua mostra.

A religiosidade ganha seu viés político.

 

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Nenhum objeto é imanentemente sagrado - é apenas coisa. O caráter sagrado, ou também fetiche, surge com as projeções feitas pelos seus adoradores. Está no olhar, não apenas na coisa. Seria uma forma de animismo acreditar que uma coisa, objeto, possuísse algo de sagrado que a transcendesse: alma. Seria adotar o corpóreo animismo, que ainda hoje subsiste em certas crenças, em que todas as coisas têm alma, até o meu sapato. Ou fetichismo.

A substância da aura é o Saber e o Mistério. Ela se densifica com o acúmulo de tradições, histórias, conhecimentos e experiências vividas, que são o Saber; com mitos, esperanças, lendas, delírios e alucinações, que são o Mistério. O sacerdote, ao guardar (esconder) o objeto, apropria-se dos poderes mágicos, místicos e rituais de que a coisa, objeto da adoração, é possuidora.

Também nos rituais da igreja católica os sacerdotes escondiam o significado de suas missas em latim. A democratização da fé operada pelo Concílio Vaticano II, ao permitir que as missas fossem celebradas nas línguas locais dos fiéis, deu volta atrás com o recente papa Bento xvi que, se não obrigou, ao menos permitiu que outra vez fosse usado o latim diante dos fiéis, intimidados por essa língua, hoje solene. Este ato obscurantista teve a intenção de fortalecer a autoridade eclesiástica aumentando a ignorância dos fiéis - o Mistério funciona como fonte de               poder - aquele que o possui, possui o poder da Revelação!

Latim tem aura; vernáculo é chão. Latim é aura das palavras incompreensíveis pelo vulgo ao qual, hipnoticamente, são destinadas. O uso de uma língua estranha aumenta a aura e esconde significados. Essa foi, exatamente, a intenção papal. Só quem sabe latim, sabe. Não saber é renunciar ao poder, porque o poder emana da aura, não do objeto. Do Mistério não revelado, que só o sacerdote conhece.

Aura é arma.

Estas considerações de nenhuma forma contradizem o pensamento de Walter Benjamim - penso que o complementam.

Toda e qualquer religião ou seita, estruturando fiéis em forma monár­quica piramidal, como é costume, ganha força sinérgica e se transforma em agrupação política - torna-se Poder. Como tal, possui relativa força, que intervém na realidade do seu país ou região.

 

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Exemplo concreto é a triste pressão que faz a igreja católica (e outras) contra o uso de contraceptivos, mesmo em tempos de aids; mesmo na África, continente afogado no vírus. O amor, o simples ato de amar, fica proibido: sexo deixa de ser amor, e passa a ser obrigação litúrgica - obedece rituais.

Exemplos maiúsculos dos usos que se faz de deuses, inventados e improváveis, cruéis e vingativos, são as teocracias que se exerciam no passado e ainda hoje se mostram devastadoras tanto no Oriente como no Ocidente. Nenhum livro, nenhuma revelação supostamente divina, nem profetas se podem dizer sagrados se pregam a destruição dos inimigos como o fazem e fizeram, em recentes e antigos genocídios e holocaustos, contra ameríndios, armênios, curdos, judeus, ciganos e palestinos, ou lutas intestinas entre seguidores de Moisés, e também de Jesus.

Todo objeto religioso trás em si a ideologia, as estratégias, táticas e objetivos da agrupação que o adota e que nem sempre são religiosos, mas econômicos e territoriais.

Eis o perigo maior da aura: a sua utilização política antidemocrática baseada no saber de uns e na ignorância do rebanho: algumas religiões assim chamam, carinhosamente, os fiéis apaziguados, domesticados. Pastores nomeiam fiéis como ovelhas sem pensar que, se as ovelhas são mansas, sem livre-arbítrio e sem iniciativa, não por escolha ética: é porque lhes faltam neurônios. Entre os animais de grande porte, ovelhas e carneiros são os que menos neurônios possuem... Incapazes de reagir, chorando diante da faca, pagam o preço da sua escassez neurológica.

A antiga definição de Obra de Arte - possuidora de aura pelo fato de ser  única - perde-se ao ser a obra mecanicamente reproduzida, diz Benjamim, e é verdade: cópias não têm o mesmo feitiço, embora tenham maior abrangência. Justamente por virtude desse vício, servem àqueles que dominam o conjunto da sociedade que detém o poder multiplicador.

Auras, nestes tempos neoliberais, têm sido comercialmente construídas pela mídia como forma de acrescentar valor - dinheiro e fama - a certas obras que nem sempre o têm. É sabido que pessoas e empresas compram, a preço vil, obras de determinados artistas plásticos desconhecidos para revendê-las com grandes lucros após serem valorizadas por reportagens pagas, estrondosas vernissages, críticas laudatórias, encontros sociais e outras amenidades das revistas de intimidades.

 

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No neoliberalismo tudo se vende e compra. Por que não a arte? Se não se respeitam os artistas, por que respeitariam suas obras? Os leilões de arte têm a mesma estrutura das Bolsas de Valores e perseguem os mesmos fins, que nada têm a ver com a fruição estética, mas com o valor de mercado.

A aura de mercado passa a ser valor agregado - nela, pendurada, vai a etiqueta com seu preço e formas de pagamento: aceitam-se todos os cartões.

Não só as obras são cobertas com auras mediáticas, mas os próprios artistas, através dos meios de comunicação de massa - quanto mais valorizados por esses meios, maior a aura que os envolve. Tudo tem preço - arte e artistas. Tudo tem seu momento e lugar: auras religiosas, esportivas, comerciais... [nota 15] e auras dos novos tempos.

A Estética do Oprimido, ao propor uma nova forma de se fazer e de se entender a Arte, não pretende anular as anteriores que ainda possam ter valor; não pretende a multiplicação de cópias nem a reprodução da obra, e muito menos a vulgarização do produto artístico. Não queremos oferecer ao povo o acesso à cultura - como se costuma dizer, como se o povo não tivesse sua própria cultura ou não fosse capaz de construí-la. Em diálogo com todas as culturas, queremos estimular a cultura própria dos segmentos oprimidos de cada povo.

Queremos promover a multiplicação dos artistas.

São os artistas, eles próprios, que se multiplicam, não suas obras copiadas. Não se podem fazer cópias de um ser humano - cada um é único e essa é sua aura, ou dela é parte. Cada um é parte de uma classe, gênero, etnia, país ou grupo de oprimidos da mesma opressão. Cada um é um, e é o todo.

 

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Aura e halo se amalgamam.

Promove-se o trânsito entre a obra, o artista e sua comunidade, entre estes e outras populações oprimidas.

Estes novos artistas e suas obras de arte têm sua aura, que é criada pelo fato de serem quem são, de viverem em tal ou qual comunidade, que tem sua tradição, suas histórias, necessidades sociais de transformação do mundo, do seu mundo, porque são usuários de saúde mental em tal Centro de Atenção Psicossocial, como tantos usuários; nordestinos como tantos boias-frias; participantes de tal Ponto de Cultura, como em tantas comunidades violentas; estudantes de tal escola, como em tantos bairros. Gente em transformação que deseja transformar!

Existe aura da obra, aura do artista e aura do grupo ao qual se per­tence. A multiplicação dos artistas cria uma nova aura dentro desta nova concepção da Estética e da Arte.

Vivemos outras épocas, outras auras... O que proponho neste livro não é um novo ramo da Estética, novo estilo: é uma nova Estética!

Esta moderna aura não é misteriosa. É saber sem mistério. É aura da verdade descoberta, não do segredo escondido. Aura do futuro, não só do passado revoluto.

Aura de um outro mundo, que sabemos ser possível.

 

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Em branco.

 

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O corpo humano, social desde antes de nascer

 

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Um corpo vem ao mundo

Os sentidos são enlace entre corpo e subjetividade, caminhos da inserção do indivíduo na sociedade — primeiras fontes de opressão e de libertação

 

Quando nasce, um bebê é um corpo humano que vem ao mundo. Passam a existir o corpo e o mundo - o corpo no mundo.

Esse corpo não traz consigo nenhum preconceito, partipris, ideias inabaláveis, certezas ou dúvidas ontológicas. Não torce por nenhum time de futebol e não professa nenhuma religião - longe disso. Não faz filosofia, nem compara valores - desconhece valores: é apenas um corpo humano.

Não possui nenhum conhecimento a priori, no sentido kantiano,[nota 16] que ultrapasse os limites do que lhe é orgânico e, nele, singular. Não é página branca, pois traz consigo seus cinco sentidos, que mesmo antes do nascimento já lhe provocavam prazeres e dores - emoções. Traz seu código genético, físicas necessidades vitais e, mais tarde, desejos e subjetividades.

Traz vida, qualidade imponderável da matéria.

Sobretudo, traz um encéfalo (cérebro, cerebelo e massa encefálica) com cem bilhões de neurônios,[nota 17] que, estimulados por mais de cinquenta substâncias químicas já conhecidas - chamadas neurotransmissores - e infinitesimais descargas elétricas, criam infinitas sinapses (inter-relações) que, formando trilhões de redes neuronais, constituem sua vida psíquica, ativa organizadora e produtora de sensações e emoções, desejos e projetos, esperanças e frustrações, ideias abstratas e ações concretas.

 

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Seus sentidos já existiam em desenvolvimento dentro do ventre materno e já guardavam memórias. Mesmo antes de estar formado, o cérebro é informado e as informações sensoriais recebidas passam a fazer parte das suas estruturas sensitivas e, mais tarde, cognitivas. A informação torna-se parte do seu sistema nervoso.

 

O feto absorve e reage aos movimentos de sua mãe dançando forró e frevo ou valsa vienense; lavando os cabelos ou lavando pratos; morando em oca de maloca ou cobertura em condomínio; devorando jantares ou passando fome. Sem falar em fumo e drogas, ar puro e poluição.

Sussurrando ou gritando, transmitindo ideias e emoções, as palavras voam e vão pousar no cérebro em formação. No meio de tantos outros ruídos e rumores, o feto consegue distinguir sons articulados; ouve conversas em determinada língua, com suas particularidades fonéticas, que também vão moldar o seu sistema nervoso.

Língua é linguagem socialmente estruturada com suporte fisiológi­co: cerebral, porque localizada maiormente nas áreas de Wernicke e de Broca;[nota 18] muscular quando falada, porque envolve lábios, língua, pulmões, diafragma e cordas vocais; envolve até brônquios, traqueia e nariz, pernas sentadas ou de pé, braços abraçados ou abraçando, envolve até o coração, sempre aos saltos.

 

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Língua não é genética, é cultural. Cada língua tem seu ritmo; cada indivíduo, sua cor e nervosismo, certezas e dúvidas: transformados em sons, são ouvidos pelo feto quando ainda no ventre materno e absorvidos pelo sistema nervoso em formação. Nesta etapa, a língua é apenas um conjunto de sons culturais que produzem reflexos biológicos e cinéticos no futuro cidadão dentro do corpo de sua mãe.

As palavras carinhosas dos pais ou suas brigas; funk ou samba de raiz, tiros na rua e gritos em feiras livres, berimbau ou harpa, violino ou violão de sete cordas, cantos gregorianos ou bandas do corpo de bombeiros - todos estes sons culturais são recebidos pelos sentidos em formação e passam a fazer parte do sistema receptivo do não-nascido, porém vivo.

 

Fantástico: o zigoto - união do espermatozoide com o óvulo -, logo no segundo dia depois da fecundação, começa a produzir células-tronco, assim chamadas porque são polivalentes, multiplicam-se e são capazes de se especializar, formando os diferentes órgãos do corpo humano.

Ainda hoje este processo biológico é objeto de curiosidade científica e pesquisa em centenas de laboratórios em todo o mundo, pois grande é o mistério: como se faz essa especialização? Como é programada e quais são os agentes dessa programação? Como será possível, em laboratório, manipular células-tronco para curar doenças ou restaurar órgãos danifi­cados ou malformados? Como fabricar, in vitro, pedaços de pele ou de fígado, pâncreas e coração, refazendo erros e desvios da natureza?

 

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Como é possível que, de uma pequenina semente, nasçam as raízes de robusta árvore, tronco, galhos, folhas, flores e frutos? Dos frutos, sementes; das sementes, a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica?

Será esta a mais fantástica descoberta da ciência quando nosso corpo, pela natureza produzido, for simples rascunho de nós mesmos, que poderá ser corrigido em socorro da natureza, quando falha. Já assim pensava Aristóteles - para ele, e para isso! - servia a arte da medicina: corrigir equívocos naturais e assumir o domínio da vida.

Enigma, claro enigma: na Natureza, tudo já está previsto e tudo é imprevisível. Como a nossa vida.

Ao serem produzidos, os neurônios não são especializados em nada, e só o serão a partir do momento em que se localizem em algum lugar do sistema nervoso. Ao se estruturarem com outros neurônios, formando redes neuronais, gânglios e nervos, aí começam a receber as informações correspondentes a esse lugar onde se puseram... ou foram levados pelos gliócitos, outro tipo de células nervosas que funcionam como pilotos e fornecem nutrientes aos seus neurônios - companheiros inseparáveis.

Mas... quem pilota os pilotos? Os mistérios do mundo são maiores que as respostas que sabemos dar. Ainda mais complexas são as perguntas que não sabemos perguntar.

As informações vindas de fora e do corpo em fase de construção fazem com que os neurônios sejam formados socialmente (neurônios+informações sensoriais) desde antes do nascimento do infante. Neurônios que, ao se­rem produzidos, eram puros, já não o serão ao se integrarem começando a trabalhar em equipe, jamais sozinhos!

No mundo neuronal, a solidão mata!

Dentro de sua mãe, o feto não está totalmente protegido de influências exteriores. No ventre, amortecidos, sons, gostos e sensações cutâneas vão entrando sem pedir licença! Menos afoitos, imagens e cheiros aguardam o nascimento do pequeno indivíduo, já tão marcado pelos outros sentidos, já em processo de socialização.

Através dos sentidos, o mundo social se amalgama com a matéria biológica do cérebro e dela se faz parte.

 

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A cultura de cada sociedade está imbricada no sistema nervoso de cada um de nós. Os estímulos senso- riais não esperam por um habite-se para começar a influenciar, formar e deformar neurônios: vão se integrando a esse sistema no próprio ato da sua criação. Entram... sem pedir licença!

 

Dos três mais potentes canais da comunicação estética - Som, Imagem e Palavra! -, o som é o primeiro a se manifestar: por fora, falas e ruídos; por dentro, o ritmo do coração materno e do seu, a melodia do sangue em suas veias.

A imagem é a segunda; a palavra simbólica, a custo, bem mais tar­de. Neste capítulo, quero mostrar como os opressores usam os canais estéticos para intensificar a opressão através da docilidade obediente dos oprimidos; e como a contestação e a resposta são necessárias.

Como grande parte das informações sensoriais que o feto recebe do mundo exterior não são fenômenos naturais, como vento, chuva e cachoeiras, mas sociais, como vozes, timbres, ritmos e movimentos corporais, é claro que o cérebro já é social desde os primeiros estágios da sua formação.

No início desse processo evolutivo, o desenvolvimento do feto é apenas biológico - obra da natureza. A vida, que já existia no espermatozoide e no óvulo, avança para o seu destino: o desenvolvimento, a plenitude e a morte.[nota 19] Mas só quando produz iniciativas motoras próprias, quando desenvolve emoções e estrutura seu aparelho psíquico, quando surge a ação criativa em lugar da simples resposta, quando essas ações são indi­vidualizadas em cada feto - só então poderemos falar do limiar de uma vida humana.

 

Como as redes neuronais perdem a virgindade no próprio ato de se constituírem, o cérebro é social desde o começo da sua formação. Em clarões que acendem e formam redes de neurônios, registra sensações em todas as etapas e em cada momento do seu vir-a-ser, sendo.

 

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Por esse bastante motivo, é bom falarmos com as crianças desde antes que nasçam: a voz perdura.

Esses clarões, extensos segundo sua abrangência, intensos segundo a dor ou o prazer que provocam, são variações calóricas às quais chama­mos emoções. Mesmo que a ciência venha a provar que as emoções são controladas pela parte do cérebro chamada amígdala, mesmo assim é por todo o cérebro que as emoções passeiam.

Emoções são propriedades das redes neuronais, são como fole que sopra a brasa que arde - são a brasa: incandesce ou se apaga.

 

Não apenas as características das informações que recebe, mas sobretudo o seu histórico - a ordem e a intensidade com que são inscritas no cérebro físico durante e depois da sua construção inicial no ventre materno -, essa ordem e essa intensidade explicam as enormes diferenças que podem existir entre dois gêmeos univitelinos cuidados da mesma forma - que nunca é a mesma, nem será jamais, apenas parecidas - pelos mesmos pais, em condições materiais semelhantes, comendo o mesmo pão e sabendo os mesmos saberes... que nunca são os mesmos, nem o saber, nem o sabor.

Esse histórico explica a diversidade psicológica e ideológica de indiví­duos da mesma cultura e mesmas condições sociais, vivendo no mesmo continente, mesmo país, mesmo bairro e mesma rua, na mesma casa, cabana ou barraco, no mesmo quarto ou espaço compartido... ou mesmo ao léu. Explica as ovelhas negras, azuis e brancas, e a imensa variedade de normalidades, conceito que, no plural, contradiz a si mesmo. Norma é conceito exato, referente à moral e à ética. Normalidade, conceito relativo e ambíguo, é opinativo.

O mesmo histórico cria aquilo que chamo de idades-refúgio. Quando algo grave e emocionante acontece em algum estágio das nossas vidas, situações de risco e perigo ou de intenso prazer, essas estruturas emocio­nais perduram vivas em nossa memória oculta. Muitos desses eventos acontecem com violência no início da puberdade. Quando, décadas mais tarde, uma nova situação a elas se assemelha, regredimos àquela idade-refugio e tendemos a agir como se ainda tivéssemos aquela idade. Voltamos a ser crianças.

 

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Informações sensoriais não se referem apenas às relações emocionais com pessoas, mas também às proteínas, vitaminas e sais minerais que abundam ou fazem falta; sal e açucar; pés descalços na poeira do chão ou calçados em couro macio; dinheiro no bolso ou bolso furado.

Todos os estímulos sensoriais inscrevem-se em nosso cérebro. Os mais intensos e os que mais se repetem, nele permanecem como inscrições em pedra; os fugazes se desvanecem como nuvens ao vento. Nossa vida psíquica é alimentada pelos sentidos, sem os quais nosso cérebro seria pura biologia. O cérebro guarda memórias - em parte, é memória.

Beethoven já era renomado músico aos trinta anos, elogiado pelo próprio Mozart, que, durante dois meses, foi seu professor e dele dizia ser “...um jovem de brilhante futuro, que fará seu próprio caminho na música”. Mozart acertou: Beethoven tornou-se Beethoven. Só ficou surdo depois de muito ouvir e produzir música; se nunca a tivesse ouvido, jamais seria compositor.

Seu silêncio se fez música porque os sons já estavam em seu cérebro, ativos, não nos ouvidos moucos. O que lhe faltou foram ouvidos, não o ouvir. Pessoas surdas e cegas, quando não nasceram cegas e surdas, veem e ouvem o que ouviram e viram antes da doença.

Os ouvidos ouvem e os olhos olham, mas quem escuta e vê é o cérebro. As informações óticas são inócuas; organizadas em imagens pelo cérebro- artista, ganham sentido, emoção e valor. Ouvidos ouvem, o cérebro escuta e organiza sons em tons e timbres, melodias e ritmos, aos quais atribui valores ou as descarta em bulício e algaravias. O mesmo acontece com os demais sentidos: são estruturantes, não máquinas registradoras.

 

Sentidos são seletivos

 

Jamais poderemos ver (enxergar) tudo que olham nossos olhos, escutar tudo que ouvem nossos ouvidos, sentir tudo que toca nossa pele, gustar todos os gostos, olfatar todos os cheiros. Olhos nos permitem ver, mas também escondem; nossos ouvidos ensurdecem quando nos convém. São assim todos os nossos sentidos.

 

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O artista mostra o escondido, não o óbvio, e nos faz entender através dos sentidos - torna consciente o que estava em nós impregnado. No tempo, surpreende o instante; no espaço, o invisível.

No teatro - a mais complexa de todas as artes porque a todas inclui com suas complexidades -, os artistas (cidadãos) devem fazer-nos ver o que temos diante do nariz e não vemos, entender o que é claro e nos aparece obscuro. Disse um camponês do mst: “O Teatro do Oprimido é bom porque nos ensina tudo que já sabíamos!”

Podemos ver, na obra de arte, até o que não foi premeditado. Como tanto o artista como todos nós pensamos em dois níveis de pensamentos, Simbólico e Sensível, e como em cada nível coexistem várias camadas simultâneas, o artista transmite o que nem lhe passou pela consciência verbal.

Na obra de arte acabada, podemos também não detectar nuances por estarmos a elas acostumados, inconscientes da sua importância e valor.

No cotidiano, não vemos o que não podemos ou não queremos ver, mesmo diante dos nossos olhos. Em uma das casas de Pablo Neruda - Santiago do Chile, em Bella Vista - existe um quadro que mostra Matilde, seu amor secreto quando ainda não era sua terceira e última esposa. Esse quadro foi pintado por Diego Rivera, amigo do poeta. Miramos e vemos uma mulher com dois rostos - espanta. Somente depois que somos informados, vemos o perfil de Neruda desenhado nos cabelos de Matilde, seu amor escondido... como o perfil do amante. Em cabeças, somos treinados a ver cabelos, não Nerudas.

Nunca vemos tudo que está diante dos nossos olhos, mas podemos ver o que não existe: em sua outra casa, a de Isla Negra, vemos dois túmulos singelos voltados para os recifes do seu mar; vemos Matilde e Pablo, vivos, que foram enterrados contemplando o oceano, mas... onde estarão agora? Nós os vemos onde não estão... Também o trompe-1'oeil[nota 20] mostra que nossos sentidos não são tão confiáveis: podemos ver o vazio.

 

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A percepção de todas as sensações fornecidas pelos nossos sentidos é estruturada pelo prazer e pela dor... ainda que seja o prazer da dor, ou a dor do prazer: todas provocam, ou são, prazer e dor.

 

Dentro de sua mãe, a pele do feto em formação já tocava o líquido amniótico, que tinha poucas variações de temperatura. No ventre materno, a partir de certa idade e consistência muscular, já chorava, soluçava, dava pontapés. Seus ouvidos ouviam sons amortecidos; sentia sabor nos lábios apertados; seus olhos nada viam e seus pulmões não respiravam.

O nascimento produz um choque sensorial de tremenda violência, e o bebê chora. Chora porque não sabe o que dizer. Assustado, pensa um pensamento mudo, sensorial, pois não conhece palavras. Mudo, mas não silencioso. Para aquele corpo que nasce, o mundo é cinzento, o som é ruído e a palavra é um grito.

Sua pele toca outras peles, roupas e coisas - sente e compara. Pela primeira vez, com dor, seus pulmões se repletam de ar e o bebê cheira. Saboreia o leite materno. Seus olhos, ao longo dos dias que passam, das pessoas e coisas que passam, distinguem traços e cores, reconhecem fisionomias.[nota 21] O corpo humano que acaba de nascer é habitado: tem gente dentro!

Seus primeiros contatos com o mundo exterior são de natureza sen­sorial. Alguns permanecem nesse nível, como a dor de estômago, o frio e o quente, a fome. Quando, porém, são estruturados pelo pensamento, tornam-se Estéticos.

A Estética nasce com o bebê - não há o que temer.

 

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Cérebro e conhecimento

O mundo é como é, não como gostaríamos que fosse: é preciso mudá-lo para que seja!

 

Para sobreviver, o bebê precisa conhecer o mundo onde passou a viver — sobretudo o seu lugar nesse mundo. Precisa percebê-lo, organizando sensações. Os estímulos que recebe são pletóricos e confusos, difíceis de entender. Seus sentidos registram sensações torrenciais que ele deve es­truturar - desejar ou repelir. Felizmente, algumas se repetem e são fixadas no seu cérebro: servirão de parâmetros e paradigmas para estruturar as próximas que virão.

Cada sensação provoca em nosso cérebro um clarão formado por redes neuronais que se acendem e disparam, com dor ou prazer. Esses clarões se expandem e se propagam em suas regiões sensoriais específicas. Quando as sensações atingem os neurônios estéticos, os clarões se alastram por outras regiões do cérebro, como incêndio estival.

Clarões também acontecem, dentro do próprio espaço psíquico, sem o estímulo das sensações físicas, por obra da memória e da imagi­nação, que são atividades investigativas dos dois pensamentos. Podem provocar emoções, delírios e alucinações; no sono, gerando sonhos. Com o tempo, esses clarões tendem a se desfazer e a se apagar como cinzas de fogueira exausta, mas tornam-se duradouros pela emoção repetida.

Se os disparos forem intensos e frequentes, podem ficar para sempre iluminados na conturbada noite da nossa vida psíquica, cheia de sombras, brasas e vultos fugidios.

Os psicanalistas são os Caçadores de Vultos e Sombras.

Sensações não nos vêm isoladas nem puras: recebem e produzem emoções específicas em momentos precisos. Se o bebê mama, o estômago saciado e o sabor do leite se associam ao prazer de tocar o corpo da mãe, sentir seu cheiro, ouvir sua voz. Se ouve um barulhento caminhão, seu corpo estremece e perde harmonia, física e psíquica. Cada sensação está envolta em emoções e memórias.

 

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Se ouve música suave, o bebê se reconforta e sente o mundo como feito de estruturas coerentes, não de caos como sentiu ao nascer; ouvindo modernas bandas eletrônicas que confundem estridentes estuporados estrondos com música, essa agressiva sensação virá associada ao espanto e à dor. [nota 22] Confrontado à luz de holofotes, seu corpo se retrai em sofri­mento, mas se pacifica se exposto à suave luz azul.

Progressivamente, as sensações, emoções e memórias a elas referentes organizam-se em permanentes estruturas mnemônicas e emotivas que, em sua interação e conversão em atos, são pensamentos sem palavras - Pensamento Sensível.

Este não é um interveniente exterior que surge do nada, mas o próprio modo e forma como se organizam os elementos psíquicos. Não é força externa que estrutura esses elementos, mas os próprios elementos vitais que se estruturam e, mais tarde, irão criar o Pensamento Simbólico, com a invenção da palavra e dos conceitos.

Entre emoções, sensações e pensamentos existe o fenômeno da sinestesia, que propicia o seu entrelaçamento e interdependência. Sinestesia é o diálogo entre os sentidos: a visão de uma pessoa ou coisa pode provocar sensações de medo ou atração; o doce na vitrine faz a boca salivar; a voz amada ao telefone faz-nos vibrar.

A sinestesia está mais presente em nossas vidas do que dela somos conscientes. Até mesmo os elogios poéticos com que um sommelier descreve as qualidades da sua bebida enaltecem o gosto do vinho, que seria menos saboroso sem a poesia do especialista.

 

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Isto permite a trampa, trapaça: na boca, sentimos o gosto das palavras, não do líquido. O feijão com arroz e carne moída do boteco da esquina, servido às pressas no balcão, ao contrário, tem o gosto que tem, sem guirlandas nem grinaldas...

Sinestesia é diferente da cenestesia, que se refere às impressões sensoriais internas do organismo que fazem com que nos sintamos bem-dispostos ou tensos, saudáveis ou doentes. Ressaca e euforia são reveladas pela cenestesia. Diferente da propriocepção, que é a “sensibilidade própria dos ossos, músculos, tendões e articulações, que nos fornece informações sobre a estática, o equilíbrio, o deslocamento do corpo no espaço” (Houaiss).

E bom termos uma palavra para cada coisa: melhor ainda, criar uma coisa para cada palavra - esta é uma das funções da arte.

Quando as faculdades motoras do bebê se desenvolvem, ele apren­de que não só é capaz de perceber o mundo, mas é também capaz de se associar a ele. Ouve música e dança perseguindo o ritmo, que nem sempre encontra. Reage, com prazer, ao canto dos pássaros e teme o trovão. Sente o cheiro de leite e busca o seio. Vê um rosto amigo e abre os braços, pressentindo calor e maciez. Cara feia, refuga.

Aprende a sorrir - grande invenção humana! O bebê já nasce sabendo chorar: a sorrir, aprende a duras penas.

Quanto mais se desenvolvem seus músculos e se organizam seus sentidos, mais ele compreende que pode não apenas conhecer e se associar ao mundo, mas também transformá-lo. Se levarmos uma criança à praia, com areia ela fará esculturas e se descobrirá escultora. Se lhe dermos papel branco e lápis de cor, ela se descobrirá pintora. Brincando com peças de madeira, a criança organiza esculturas como, mais tarde, com palavras, organizará ideias e falas.

Em parte sua criatividade pode ser cópia: se faz castelos de areia, é porque viu castelos ao vivo ou desenhados - sua obra é metáfora subs­tantiva, portanto, a criança está em vias de humanização, pois só os humanos são metafóricos. Tendo visto o modelo, é capaz de repeti-lo em outra substância.

Em países capitalistas, as crianças podem gostar de jogos como o execrável Monopólio e os games de assassinatos porque a isso foram in­duzidas. Na Idade Média, as crianças não eram reconhecidas como seres humanos completos: brincavam com jogos de meios-seres humanos – o que jamais os impediu de serem criadores dentro das limitações culturais impostas.

 

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Brincadeiras são aprendizado, relacionando forma com outra forma, volume com volume, palavra com pessoa, objeto com distância e espaço, cor com emoção, som com algo que vai acontecer. Se a palavra, pessoa, som, coisa ou cor evocam alegria, ela ri: se tristeza ou medo, chora. Esta é a etapa da criação de conjuntos e estruturas, como o cãozinho que saliva ouvindo a campainha que anuncia a chegada da comida (sinestesia).

Nesta sequência cumulativa - perceber o mundo, associar-se a ele e transformá-lo - estes são os primeiros contatos da criança com o mundo: contatos estéticos, organizadores de sensações às quais atribui valores e qualidades, através das quais realiza desejos, foge do perigo e se integra ao mundo físico e social.

Esta forma de pensar sem palavras e de se relacionar com o mundo é uma forma estética de conhecê-lo.[nota 23] As linguagens estéticas - música, pintura, dança etc. - são cognitivas, isto é, em si mesmas, são conhe­cimento. As linguagens simbólicas - línguas: português, espanhol, in­glês, francês, esperanto, e as línguas regionais de surdos-mudos, gestos convencionados etc. - são informativas: transportam conhecimento. A maneira de fazê-lo, no entanto, é cognitiva.

Na vida adulta e cidadã temos que fazer o que fazíamos, crianças, em outro nível, outras necessidades. Para isso temos que dominar e usar todas as línguas que possamos escrever e ler; temos que revitalizar nosso Pensamento Sensível através de todas linguagens sensoriais que formos capazes de dominar.

Noética e Estética guiadas pela Ética!

 

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Palavra, a maior invenção humana

A palavra integra os arsenais da opressão... e da revolta

 

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Gênese da palavra

 

A palavra, a mais grandiosa invenção humana - o fogo não foi invenção, foi descoberta! - vem ocupar espaços que antes pertenciam ao Pensamento Sensível. A palavra é axial entre o sensível e o simbólico. Não é limite entre um e outro: espraia-se pelos dois. Palavra tem corpo e alma.

 

Do Pensamento Sensível nasce o Pensamento Simbólico

 

O bebê desde cedo começa a reter na memória sons sequenciais associados às mesmas coisas e pessoas: percebe as palavras que, nesta primeira etapa, ainda não são Pensamento Simbólico - puro som.

As primeiras palavras que aprende são de natureza substantiva (substância). Substantivos associados a realidades visíveis e palpáveis: mamãe, mama, papai, pão. Os primeiros gestos que faz são com o dedo indicador: mostra o que quer e o lugar onde deseja ir - coisas e lugares concretos.

Palavras são conjuntos de fonemas - o som da fala, de cada                    sílaba -associados a imagens: mãe é aquela mulher, e não simples conceito. Mais tarde, os fonemas podem se transformar em morfemas - “a menor unidade linguística que possui significado”, segundo Houaiss (sim, não, eu, tu, nós, vós, dá...). Cada fonema, com variações sonoras, pode se transformar em mais de um morfema - em mandarim, principal língua chinesa, o mesmo fonema, dependendo da maneira como é pronunciado, pode ter até sete ou mais significados.

Estes morfemas adquirem vida e se desprendem do grito animal.   Multiplicam-se, formam poeiras de morfemas, acoplam-se uns aos outros criando novas palavras e significados. Também as palavras se justapõem criando a poesia; na narrativa, interpretando o mundo.

 

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Aquela mulher, com aquele cheiro e gosto de leite, é sua mãe. O som da palavra está colado àquela mulher, que é única. Ele a percebe através do pensamento dos sentidos, não do pensamento abstrato. Relação em linha reta: eu e mãe. A palavra tem predicado carnal: sua mãe existe e pode ser vista, cheirada, apertada, mamada.

Significante (aquela mulher) e significado (mãe) estão colados; só quando se descolam surge a linguagem conceitual, simbólica. Só quando se triangula esta relação, aí começa o parto do conceito. Quando o bebê percebe outra pessoa chamando outra mulher de mãe, quando vê filhos e mães, passa a agrupar essas unicidades em um conjunto. Surge a linguagem simbólica, formada por conceitos descolados de realidades sensíveis.

Mesmo descoladas, as realidades de origem são lembradas, e a palavra traz, em si, sua vivência: por essa razão, a língua materna tem história e pré-história. Línguas aprendidas mais tarde terão apenas histórias a partir do momento do aprendizado.

Quando percebe que outro pai, não o seu, também é pai, é obrigada a aprender um pronome possessivo - meu. São muitos pais, mas este é meu; aquele, teu. Relação triangular: eu - meu pai - pais em geral. O mesmo acontece com números: quando aprende a contar sem a ajuda do ábaco, só então a criança começa a entender matemática.

Assim se dá a transição do Pensamento Sensível ao Simbólico - esta é sua gênese: do uno ao múltiplo; do concreto ao abstrato.

Palavra é meia verdade: a verdade inteira inclui meus olhos, mão e boca, o tom da minha voz. O trajeto da palavra para se dissociar da realidade concreta é longo. Grito é palavra incubada.

“La parole est a moitié a celui qui parle, la moitié a celui qui écoute”, disse Montaigne: - “A palavra pertence pela metade àquele que fala, metade ao que a escuta”. Voltaire foi ainda mais radical: “Laparole a été donnée à l'homme pour déguiser sa pensée”- “A palavra foi dada ao homem para disfarçar seu pensamento”.

A solidão mata não só os neurônios, mas também a palavra, quando não encontra interlocutores. Como toda linguagem, existe em sua relação com o outro: pertence a ambos.

 

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Em certas regiões da África, orangotangos conseguem criar uma linguagem que inclui sons de convite ou negação, chamamentos etc. Um grito previne os filhotes de que não devem se pendurar naquela árvore de galho quebrado - é perigosa. Mas esses primatas não compreendem o conceito de perigo. Grito de advertência é relação concreta com a árvore presente, mas não revela o perigo de todas as árvores de galhos quebrados - só daquela.

A alienação do ser humano ao trabalho manual tende a levá-lo de volta a este estágio primário de percepção do mundo. Essa alienação obriga as pessoas a regredir às etapas já vencidas da história humana. Brutaliza. O mesmo acontece com o sectarismo e o fanatismo político, religioso e esportivo.

O nascimento da palavra é semelhante ao primeiro mês após o nascimento: do cinza que olhamos, surgem cores e traços que vemos. Semelhante também, mas não igual, às experiências de Ivan Pavlov (1848-1936) sobre o reflexo condicionado: seu cão era capaz, como qualquer cão caseiro, de associar a chegada da comida aos passos do seu dono - salivava antes de ver a comida porque a relação    passos-comida já estava integrada no seu cérebro.

Pavlov associou determinada música à chegada iminente do alimento: o mesmo efeito se produzia, e o cão salivava. Ouvindo outra música, qualquer que fosse o ritmo e por mais genial o compositor, o cão continuava espantando moscas com o rabo. Ouvindo sua música, salivava.

Chimpanzés são capazes de reconhecer símbolos visuais quando associados às vozes dos seus treinadores. Círculos verdes e amarelos, por exemplo. O treinador aponta a cor e diz seu nome associado a uma ação concreta:             verde-levanta, amarelo-senta. Os animais passam a obedecer indiferentemente ao dedo que aponta a cor ou à voz que diz seu nome, e realizam ações simples associadas ao nome ou à cor. Obedecem aos símbolos mudos como se ouvindo vozes de comando: vendo o dedo que aponta a cor, obedecem à cor como se fosse a voz. Associam cores, vozes e gestos.

Outros animais, como o golfinho que parece peixe mas é mamífero cetáceo, embora não tenha ampla capacidade de modular os sons que emitem para formar embriões de palavras, são, mesmo assim, inteligentes: a prova da sua inteligência é que fazem sexo mesmo fora do período fértil da fêmea, que colabora radiante. Neles, sexo é amor, não liturgia procriativa.

 

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A psicanalista Maria Rita Khel conta que seu cachorrinho percebeu um dia que, ao acabar de comer, o ruído que fazia lambendo o pires de comida vazio atraía a atenção de sua dona, e ele recebia mais comida. Começou a arranhar o pires toda vez que sentia fome... e a ter seu desejo satisfeito. O mais curioso é que o gato percebeu a estratégia canina e começou a arranhar o pires... do cachorro, não o seu próprio. Era capaz de perceber que o barulho daquele pires atraía a comida, mas não percebia que a causa desse fenômeno era o ruído de qualquer pires, e não uma sonoridade exclusiva do pires do cachorro.

Avaliar dados e tomar decisões, certo, pode ser chamado de primário pensamento, pois é uma forma de ordenação do caos. A razão, no entanto, forma suprema de pensamento, é a ordenação do cognoscível, não só do conhecido. Razão é suma.

Para facilitar nosso entendimento do mundo, temos o hábito de simplificá-lo usando a conjunção coordenativa ou. Tudo é “isto ou aquilo”. Branco ou preto? Racional ou irracional? Temos que aprender o advérbio também. Isto e também aquilo.

Dizia Freud que, no inconsciente, não existe o isto ou aquilo, aqui ou ali, ontem ou amanhã: ambos coexistem. Em sonhos, o pai pode estar morto e estar vivo; podemos viver simultaneamente em Botucatu e no Rio de Janeiro, como astronautas e operários. Sonho é sonho.

Calderón de la Barca: “La vida es sueno y los suenos... suenos son”.

 

As necessidades e os desejos do bebê mais avançado no tempo faz com que ele imite ou invente sons que se transformarão em palavras. Com o surgimento do simbólico, as duas formas de pensar passam a coexistir. O Pensamento Sensível busca a amplitude do Simbólico e quer falar, não apenas sentir. O Pensamento Simbólico busca a concreção do Sensível, quer sentir e fazer sentir, não apenas enunciar - a voz da palavra, sensível, dá precisões concretas ao seu significado simbólico.

 

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Na genealogia das palavras existe o seu momento fetal em que ainda não são simbólicas, mas já deixaram de ser apenas sensíveis. Este é um dos objetos de estudo da etimologia, que investiga a origem das palavras, e da semântica, que trata dos seus significados e de suas evoluções ao longo do tempo e das transformações sociais que tudo transformam, até o sentido das palavras.

Depois dos substantivos, virão os pronomes possessivos - meu, teu; os verbos (ação: comer, brincar) e os pronomes pessoais (identidades: eu!) - Me dá, eu quero; os advérbios de lugar - aqui, ali, lá; de tempo - agora e depois. Cedo surge um advérbio formador da personalidade: Não! Só mais tarde virão as categorias gramaticais que não têm existência própria, sendo apenas referenciais: adjetivos, advérbios, artigos, preposições, conjunções.

Pelos estímulos repetidos, o cérebro do infante começa a formar uma gramática residente em redes neuronais. Esta é a gramática seminal, constituída predominantemente por sujeito, verbo e objeto direto: eu quero aquilo. Gramática semelhante em todas línguas, porque semelhantes são as necessidades humanas básicas: físicas, fisiológicas e sociais.

Quando essas necessidades se tornam mais complexas e subjetivas,     criam-se gramáticas literárias:

 

[Inicio da citação] Comigo me desavim

sou posto em todo perigo:

não posso viver comigo

nem posso fugir de mim. [Final de citação]

— Sá de Miranda (poeta quinhentista português)

 

Pronomes, verbos, adjetivos, preposição, substantivo, advérbio e conjunção coordenativa. Demora um certo tempo até que a criança possa chegar a este grau de abstrações...

Os verbos são minhas mãos; pronomes, limites entre cada ser humano e o mundo; adjetivos são minha maneira de ser e fazer; advérbios, minha personalidade; conjunções, meus amigos e inimigos. Objeto é o objeto do desejo.

A soberana palavra nos traz o conhecimento abstrato produzido pelas linguagens informativas: aquelas que transportam conhecimento, mas não são conhecimento; referem-se à coisa, mas não são a coisa. Simbólicas e não sinaléticas.

 

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Nas linguagens simbólicas, os significantes estão dissociados dos significados; nas sinaléticas, significantes e significados são inseparáveis. Se uma pessoa diz “Eu te amo”, essa frase se refere ao amor, mas não é amor. Se apenas olhar a pessoa amada, seu olhar é amor, mesmo que não o diga.

A palavra amor é linguagem informativa, enquanto a voz com que é pronunciada e o rosto de quem a pronuncia, esses, são linguagem cognitiva. A palavra amor é simbólica; o rosto do amante, sinalético.

A linguagem das palavras é essencial para a constituição do ser humano, pois nos permite articular pensamentos sobre o que não está em contato com os sentidos, pensar o futuro que não existe, refletir sobre o passado revoluto. Permite empenhar a palavra, escrever cartas de amor e ódio, diários de bordo; adiar e antecipar, organizar o tempo e criar agendas e calendários; dar significados ao espaço e valores abstratos à terra; jogar xadrez e jogar no vulnerável cassino da Bolsa; usar dinheiro e cartão de crédito, emprestar e cobrar juros, hipotecar e continuar morando na mesma casa, como se nada fosse. Sobretudo, permite imaginar o não-acontecido e ponderar possibilidades de acontecer.

Permite a especulação filosófica, a precisão arqueológica, a sistematização sociológica e as decisões políticas. Criando uma outra forma de vida, a palavra torna mais complexa e densa a realidade sensível, acrescentando transcendência ao tempo e ao espaço, vestidos pela memória de fatos acontecidos.

Vocabulários buscam a precisão e, contraditoriamente, favorecem a ambiguidade porque necessitam ser interpretados. Quem interpreta é o intérprete, ser vivo, social e político, que se transforma a cada momento da sua caminhada. Como poderia o transitório eternizar juízos e valores? Como poderiam dois pontos de vista ter a mesma vista sobre o mesmo ponto?

Palavras são símbolos. Para que um símbolo exista, é necessária a concordância dos interlocutores. Como quase tudo na vida social, também as palavras se tornam objeto de encarniçadas lutas.

 

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A etimologia mostra a correlação de forças da sociedade no momento em que fabricou uma palavra a fim de revelar - ou esconder - uma verdade. A semântica torna-se um campo de batalha em que todas as forças em conflito procuram, a cada palavra, atribuir-lhe o sentido que mais lhes convenha.

A luta semântica é luta pelo Poder.

 

Do grito animal à palavra, da palavra à lei, e da lei ao dogma

 

Nesse processo de purificação da palavra até à sua nudez, que vai do grito animal à mais sublime das abstrações - ser ou não-ser - a luta pelo território é incessante porque assim é viver.

Este é o caminho: no peito do orangotango nasce o grito, como extensão dos seus braços - grito prolongado, repleto de significados e emoções. Mais calmo, o orangotango modula seu grito dando-lhe as nuances desses significados e, a cada um, seu timbre e intensidade. E a linguagem. [nota 24]

Outro primata, o ser humano, fragmenta o grito em pedaços, gritos menores - fonemas e morfemas - que manipula, junta e disjunta, modela e associa: eis a palavra - polissêmica, pode ser interpretada de diferentes maneiras por diferentes observadores, em diferentes momentos.

Essa linguagem é Língua.

Cada fragmento do grito segue sua vida e pode ser usado na formação de outras palavras. P-e de perigo pode ser usado em pecado e Pernambuco; peão e pé-atrás; peba e peculato, mas também em pedagogia e pedagogo.

Toda Palavra é Grito! Grito primata e primário que permanece vivo no bojo de cada palavra que pronunciamos, cada poema, frase de amor, cada artigo de cada lei.

 

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No fragor dos conflitos de classes, castas, etnias, gêneros, pessoas, nações, estados e impérios, a palavra vai sendo deformada. A semântica revela as transformações do sentido original de todos os gritos. Sublimada, esterilizada, a palavra desencarna na lei, que é o grito do mais forte: aquele que o legislador é, ou representa.

Lei é o grito do poder, abstração que nasce dos conflitos concretos da vida social e nela conserva raízes e garras. Montesquieu, filósofo universal nascido na França (1689-1755), afirmou que as leis são o reflexo das “relações necessárias que derivam da natureza das coisas”, [nota 25] outra forma de dizer que as leis são assim porque a sociedade assim é: manda quem pode! Entre essas coisas, enumera os costumes, o clima, a religião e o comércio - resíduos de coisas que, clandestinas, sobrevivem na lei.

A lei, que resulta de uma estrutura beligerante de forças políticas, morais, sociais e econômicas em cada sociedade e em cada momento da sua fabricação, é sempre apresentada não como expressão da vontade dos vencedores, como de fato é, mas como inspiração do genérico povo, ou proveniente de uma entidade sobrenatural, um Deus distante, invisível. Desde Hamurabi (século dezoito antes de jc), na famosa Pedra que repousa no Museu do Louvre, o rei aparece recebendo do seu Deus os itens daquele primeiro Código Penal. Desde Hamurabi... até a nota de dólar que afirma sua fé, não no dinheiro, que realmente não vale mais nada com a crise de 2008, mas “In God We Trust”! Na crise do Deus-Mercado, voltam as pessoas a acreditar em outro Deus, ainda mais abstrato do que o dólar...

Maquiavel jamais deu receitas para acabar de vez com os conflitos políticos, mas analisou como se vai de um a outro conflito, pois assim são as sociedades: conflitantes. Toda sociedade é fragmentada e cada fragmento tem suas necessidades e interesses. E pelos conflitos que as sociedades se movem, não pelo diálogo civilizado. Obra de gênio seria conciliar partes antagônicas, coisa que só acontece nas guerras de um país contra um inimigo comum, quando se invoca o nome da Pátria e outras abstrações.

 

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Maquiavel nos propõe a perda da inocência. Se quisermos continuar angelicamente pensando que um dia chegaremos, na terra, à eterna paz do paraíso, sonhemos, mesmo sabendo que os seres humanos sempre estiveram divididos, sempre os movimentos da sociedade ocorreram pela confrontação de forças. O que move o mundo é o conflito. Talvez o que nos proponha o pensador florentino não seja a perda da inocência, mas o fim do fingimento de inocência.

Louis xiv foi sincero, curto e grosso: “L’Etat c’est moi!” (“O Estado sou eu”) - e calem a boca!

Para que a lei permitisse a existência de uma justiça ética e não apenas condenatória dos adversários e absolutória dos aliados, deveria pesar fatos e significados, hierarquizados pelo bem maior. Não é o que acontece. Victor Hugo, irônico, comentou: “A lei é igual para todos: proíbe tanto ao pobre como ao rico roubar um pão para matar a fome!”

A Lei não se autoaplica: necessita de um juiz. Juiz e réu: aquele, comparte o poder; este, no máximo, é seu igual.

A Lei tem corpo e alma. O corpo da lei existe em pedra ou papel -ele se aplica aos oprimidos. A alma se inventa a partir do caráter e das necessidades dos opressores! O espírito da lei é a margem de manobra que permite ao juiz decidir como lhe aprouver. Ao manipular a palavra nua, o juiz a veste e adorna com os significados que melhor respondam aos seus interesses e desejos, quase sempre estranhos ao fato julgado. O juiz, como artista que também é, escolhe ou inventa significados para a palavra escrita - esta é sua arte.

A Lei é como a espada: não fere ninguém - quem fere é quem a maneja!

Para que os oprimidos se libertem das injustiças que sofrem é necessário criar sua própria lei e assumir o poder que dela emana, poder que só se consegue com a participação ativa na vida social e política, com organização e com o bom uso da força dela decorrente.

O homem só é presa fácil, e a solidão é alucinógena.

A reprodução do poder existente, no entanto, não leva necessariamente à universalização de uma nova Lei mais democrática; ao contrário, pode levar à criação de clones dos opressores, como milícias repressivas que ficam fora do controle do Estado e da população, como no Brasil e em tantas partes do mundo.

 

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Abaixo do juiz, na escala jurídica, existem os burocratas, capazes apenas da interpretação literal da lei. Com seus monóculos e nariz colados ao papel, o burocrata jamais levanta os olhos e só enxerga, letra por letra, o que está escrito.

Exemplo clássico: “É proibido pisar na grama!” corresponde à justa necessidade de proteger o jardim. Mas, para salvar uma criança atacada por um pitbull enquanto brinca na grama, é necessário violar a letra dessa lei, pisar grama, cravos e rosas para que se faça justiça à vida da criança e não à fome do cão, nem ao capítulo tal, parágrafo qual, inciso a, b ou c. O bem maior é a criança: pisemos em todas as gramas! [nota 26]

Gigantesca tolice é simbolizar a Justiça por uma mulher de olhos vendados quando ela deveria ter os olhos bem abertos para tudo ver e pesar. Temos que cumprir com o dever cidadão de arrancar as vendas da Justiça para que possa enxergar a burocracia, forma legal de crime! Seria mais verdadeiro simbolizar a Justiça por dois lutadores de jiu-jitsu em confronto aberto, ou boxe tailandês, onde valem mãos e pés. A Lei, com suas múltiplas capacidades de ser interpretada, aplica-se aos ricos e poderosos; burocracia, aos humilhados e ofendidos.

A lei burocrática se transforma em dogma quando sua origem é atribuída à natureza das coisas - ao é assim porque assim está escrito neste parágrafo daquele capítulo. O dogma abandona o campo da inteligência, onde não tem lugar.

 

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Dogma é o suicídio da palavra, loucura do pensamento, destruição da lógica, desvario, devaneio. Enquanto a ciência dúvida e inventa, descobre e cria, o dogma embalsama a sensibilidade e fecha as portas à Razão.

 

Seguir à risca, dogmaticamente, a melhor cartilha ou o mais judicioso conselho pode-se revelar um desastre. Conselhos e cartilhas podem ser símbolos de correto comportamento, mas catastróficos se aplicados a situações concretas, diferentes daquelas que os motivaram. Uma análise estrutural não pode ignorar conjunturas. Grandes erros de opções políticas já foram cometidos adotando-se como dogmas certas análises corretas de realidades feitas no passado em situações sociais revolutas.

A morte de Che Guevara, que, mal aconselhado, tentou na Bolívia, em 68, a mesma estratégia da guerrilha cubana em 59 - a célebre Teoria dos Focos e a divisão do país em dois, com a estupenda vitória de Santa Clara -, é trágica evidência do que digo. A Bolívia não era Cuba; transformada em bela cartilha, já não servia - era História exemplar... Os exemplos devem ser interpretados e não dogmatizados.

Se os companheiros do Che em Cuba que, com o mesmo heroísmo, combatividade e ternura, souberam organizar a revolta do povo, se os mesmos jovens tentassem a mesma estratégia na Bolívia onde Guevara se viu só, teriam o mesmo destino: as condições concretas exigiam uma nova estratégia, adequada ao mundo real, e não aceitava a reprodução de um livro de memórias.

Somos tão apegados aos passados exemplares que desejamos venerá-los como dogmas, carregá-los defuntos em nossos braços, sem viver o nosso presente. Com o passado, temos que nos aconselhar, mas sem correr de costas para o futuro - não seguir em frente olhando para trás. Tudo que nos acontece, acontece pela primeira vez, todas as vezes.

Cada dia é um novo dia: estamos condenados à criatividade!

Os fanatismos religiosos, como os sectarismos políticos, refugam qualquer tentativa de racionalização ou experiência comprobatória, pois se baseiam em sonhos e revelações sobrenaturais, sem testemunhas nem vestígios, sequer indícios. Dogmas religiosos são leis pétreas, inflexíveis, de origem fantasista, improvável e impossível. Ficções. Racismo teocrático.

 

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A Fé funciona como o placebo em farmacologia: o paciente pensa que aquilo que ingere é remédio e nele crê, mobilizando suas forças mentais para sua cura - assim é a Fé. O grande perigo é a adição: as pessoas podem se tornar aditas de um placebo, e da Fé também.

A fé em dogmas indemonstráveis contraria a vida criativa, limita a percepção do real, obscurece o olhar. Quem crê contra a razão, nada busca nem descobre, pois tudo já está descoberto e explicado. O dogma repele provas. Repele o movimento: estagna. Define-se pela própria incapacidade de ser provado, ao menos experimentado.

Os dogmas impediam - em muitos países ainda impedem! - que as mulheres votassem porque... são mulheres. Obrigavam e obrigam negros a sentar nas últimas filas dos ônibus porque... são negros. Impõem que a terra improdutiva pertença a quem não a faz produzir, enquanto camponeses passam fome ao relento porque... porque sim.

Que grasse o desemprego, que empresas se associem e despeçam funcionários condenados à pobreza porque... é necessário aumentar os lucros dos acionistas e o mercado está nervoso. Que países bem armados invadam e ocupem outros países para impor seus conceitos de democracia matando centenas de milhares de nativos porque.... ora, pois, porque é necessário impor a liberdade, a ferro e fogo! Livres na porrada.

Quem impõe o dogma, impõe aos outros, não a si mesmo. Dogma é arma de dominação - não se discute! Arma de opressão: oprime e explora. Arma de exclusão: cria castas.

Quem tem o poder da palavra, da imagem e do som, tem a seu dispor a invenção de dogmas religiosos, políticos, econômicos, sociais... e também dogmas da arte e da cultura. Nestes, os seres humanos são divididos em artistas e não artistas, como se fossem divididos em nobres e plebeus. Isto é dogma, e dos mais abjetos.

O poder da palavra é tão grande que pode criar o contradogma, que, mesmo sendo contra, pode ser dogma - dogmatismo, sectarismo. E dever do cidadão analisar e desmistificar todos os dogmas. Já que estamos condenados à criatividade, no presente estudando o passado, devemos inventar o futuro sem esperar por ele. Futuro sem dogmas.

É dever do cidadão-artista, usando os mesmos canais de opressão mas com sinal trocado - palavra, imagem e som -, destruir os dogmas da arte e da cultura mostrando que todos os seres humanos são artistas de todas as artes, cada um do seu jeito. São produtores de cultura e não apenas boquiabertos consumidores da cultura alheia.

 

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Não temos que ser melhores que ninguém: temos que ser nós mesmos, melhores que nós mesmos. A arte de cada um é a arte de cada um. O lírico cantor de ópera não tem por que dançar forró - não é proibido nem obrigatório. Nem vice-versa!

Até mesmo a simples arte de assinar o nosso nome já produz uma pequena obra de arte: “Nossa assinatura é única” - disse dona Teresa, filósofa em prendas domésticas.

O canto do camponês é rouco. Os dedos do operário ao violão são rudes dedos de operário, rude som. Pavarotti, um dos maiores tenores que já cantaram neste mundo, seria inábil para cantar com a voz grossa e sanguínea de Nelson Cavaquinho, abraçado ao violão, pé apoiado em cadeira de botequim, a canção em que pedia à sua ex-amada:

 

[Início de citação] Tira o teu sorriso do caminho

que eu quero passar com a minha dor... [Final de citação]

 

Plácido Domingos, com toda a sua maravilhosa opulência vocal, jamais teria a doçura necessária para cantar o triste lamento de Orestes Barbosa:

 

[Início de citação] A Lua, furando o nosso zinco,

salpicava de estrelas nosso chão...

e tu pisavas nos astros, distraída... [Final de citação]

 

Cada um é cada qual.

Callas foi Maria; Dolores, Duran.

Carreras no palco do Scala de Milão e o pedreiro anônimo construindo sua casa, cada um tem sua voz e sua arte.

“Cantar é vestir-se com a voz que se tem!” - canta, na Lapa, com a suave voz que tem, Teresa Cristina.

Ser humano é ser artista.

 

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Metamorfoses e usos abusivos da palavra

Semântica: zona de guerra

 

As Palavras são inquietas, avançando novos significados. Escravo deriva do latim eslavus, transformada em esclavus no século x e, mais tarde, em escravo, cativo. A mudança semântica se explica porque germanos e bizantinos escravizaram grande parte de indivíduos eslavos na Europa Central durante a alta Idade Média. A palavra eslavus era entendida como aquele ser humano que podia ser castrado de suas vontades e desejos, ser dominado e servir. Era necessário inventar uma palavra para que a escravidão adquirisse cidadania e se tornasse aceitável... O homem deixa de ser homem e torna-se apenas escravo.

Palavras que, em alemão, sempre foram inocentes, como Endlosung, Selektion e Anschluss, tiveram seus vários significados reduzidos aos mais tristes pelo uso que delas fizeram os nazistas. Na Alemanha, hoje, essas palavras devem ser evitadas, tal a carga trágica da qual estão carregadas: “solução final da questão judaica”, “seleção dos prisioneiros a serem exe­cutados” e “anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938”.

Outra palavra curiosa, fascismo, se encarada de um ponto de vista histórico e social, remete a Mussolini desde 1922 e, mais extensamente, aos regimes nazistas da Alemanha hitleriana até o fim da Segunda Guerra Mundial e da Espanha franquista até mais tarde. Etimologicamente, seu sentido é mais abrangente: deriva do latim fascio e fascis, que significam feixe, molho, grupo, ajuntamento (Houaiss, Larousse, Britannica).

Podemos, portanto, apesar das diferenças sociais, falar do fascismo das ditaduras militares da América Latina dos anos 60 a 80, e do fas­cismo de nações ultraindustrializadas, que são, na prática, governadas por feixes, punhados, grupos de dirigentes de grandes corporações, e não pelos detentores nominais do poder político - estes são chefes que obedecem.

 

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A luta pela posse do território[nota 27] é uma característica necessária a todos os seres vivos, que, para viver, necessitam de espaço. E mais espetacular entre os animais musculosos e predatórios.

Nós, humanos, somos binários: predatórios e solidários!

Essa luta se estende também às palavras e não somente à terra e aos bens materiais. Humanos, desejamos possuir palavras, fazê-las nossas - palavras são formas de Poder.

Liberdade e democracia, por exemplo, na mídia neoliberal, passaram a ter o significado que lhes atribuem seus atuais proprietários - já perderam o sentido etimológico que possuíam ao serem criadas. O neoliberalismo captura e monopoliza palavras-chave para a compreensão do mundo, e chama de democracia - o poder do povo - ao que sabemos ser uma plutocracia - o poder do dinheiro -, oligarquia - o poder de poucos.

O protagonista da peça Um homem insignificante, de Dostoievski, em certo momento afirma: “Quando os homens descobriram que eram criminosos, inventaram a palavra Justiça para justificar seus crimes!”

Democracia é bela utopia que devemos perseguir, mesmo sabendo que esse sonho jamais existiu, nem no seu berço ateniense, onde as mu­lheres, metade da população, não podiam votar - misógina democracia! - muito menos os escravos — sociedade escravocrata. Não existe tampouco na fictícia maior democracia do mundo, Estados Unidos, onde os me­canismos eleitorais são tão tergiversados que o candidato menos votado pode ser eleito, que a Justiça de um estado (Flórida) pode determinar a suspensão da recontagem de votos e dar a vitória a quem não a merecia. Onde apenas os ricos têm acesso aos caros meios de comunicação: nas últimas pré-eleições de pré-candidatos presidenciais (2008) foram gastos mais de um bilhão de dólares nas campanhas dos dois candidatos de um dos partidos — vejam bem: mil milhões! Quem ofereceu a dois simples candidatos todo esse dinheiro?

Liberdade, do latim liber, libertas, significava que uma pessoa era livre em contraposição à pessoa escrava; hoje, na linguagem do neolibe­ralismo consolidado pela dupla Tatcher-Reagan, significa a ausência de limites que protejam os fracos contra os fortes.

 

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Liberdade, a razão do mais forte. Não podemos negar a forte semelhança que existe entre o moderno neoliberalismo e as florestas e savanas... Isto não é opinião nem teoria: é a crise de 2008!

Nesta luta semântica ninguém pode nos proibir de ser etimológicos, carregando as palavras com a carga que tiveram ou queremos que venham a ter. Se quisermos inventar palavras temos uma bela justificativa: todas as palavras que existem foram inventadas! Nenhuma existiu antes do ser humano. Somos humanos: inventemos!

O Pensamento Sensível, apesar da progressiva predominância do Simbólico, nele subsiste. Esmaecido, subsiste na voz da palavra falada, na sintaxe da escrita e nas imagens que assomam. Quando pronunciamos uma palavra - em especial substantivos -, ela não nos vem como simples som e sentido. Jamais sozinhas, ainda que pálidas, surgem em nosso cons­ciente, subconsciente, pré-consciente e inconsciente, nuvens esvoaçantes de imagens, segundo a cultura a que pertencemos, nosso passado pessoal e o momento que vivemos.

As palavras vivem cercadas de imagens flutuantes, como figuras de santos medievais cercados por enxames de anjinhos esvoaçantes.

Se falo de olhos abertos, vejo o mundo; se os fecho, vejo o meu mun­do, no qual está o mundo tal como eu o sinto e entendo. Com os olhos arregalados ou bem vendados, tudo que foi visto um dia, ainda se vê. O mundo está no meu cérebro revolto, com ideias, sensações e emoções passadas. Está também no futuro imaginado.

A palavra mulher pode nos evocar a nudez de um corpo humano ou um daqueles horrendos sarcófagos com os quais os talibãs escondem suas mulheres; soldado pode evocar imagens de garbosas e musicais paradas militares, veleiros qual cisnes brancos ou sangrentas escaramuças, pescoços e pernas decepadas.

Se as palavras são meios de transporte, casalé barco a remo: povo, trem; diplomacia, tanque de guerra; Deus, imenso navio cargueiro.

Desde sempre os seres humanos se inquietaram com a origem e a substância do Universo, e da nossa própria substância e origem dentro desse Universo infinito. A essa perplexidade, a esse não-saber, deram um nome: Deus.

 

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Deus é palavra que produz todos os gêneros de imagens de todas formas e formatos. Exatamente porque se refere a uma hipotética força sobrenatural, inverificável, pluridefinível, presta-se a todos significados, preenche todas carências e desejos, e satisfaz nossas necessidades sempre que nos sentimos como “un nino frente a Dios”, como cantava Violeta Parra.[nota 28]

Como a palavra não nos dá nenhuma certeza nem informação certa, temos que vê-la como se fosse imagem, ouvi-la como música, tocá-la com as mãos: senti‑la.

 

Um povo estranho... tão familiar

Desta dupla forma de pensar, exemplo curioso nos é dado pela etnia pirahã, que conta com poucas centenas de sobreviventes e ainda hoje vive ao longo do rio Maici, em Roraima, Norte brasileiro. Sua língua, mura-pirahã, tem apenas três vogais e oito consoantes. Destas, as mulheres usam apenas sete, excluída aquela que, aliada a uma vogal, soa como o fonema do nosso “k” = quê. Não sei por “k” tal interdição, mas suspeito que até no uso do alfabeto as mulheres sejam oprimidas. Se o são em todo o mundo, por “k” não à beira do aprazível Maici? Lembremos que em algumas regiões do mundo as mulheres são proibidas de ler e escrever: não só o “k”, mas todo o alfabeto lhes é interditado.

Mura-pirahã não possui nenhuma palavra que designe cores, números ou formas de quantificação (muitos, poucos, alguns, todos etc.).[nota 29] Em sua língua, a mesma palavra pode ter significados antônimos, dependendo da maneira de ser pronunciada - formas sensíveis e não apenas simbólicas. A diferença entre amigo e inimigo está na escala musical... O mesmo acontece no mandarim chinês, no coreano e no árabe popular. Em bom português, podemos nós também pronunciar cada uma dessas duas palavras - inimigo e amigo - de mil formas diferentes, com mil diferentes significados. Temos, porém, duas palavras antônimas e não apenas uma fazendo suas vezes.

 

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Em compensação, os pirahãs comunicam-se com assovios, cantos, zumbidos e trinados que, esteticamente, suprem a falta de palavras. Nós mesmos nunca falamos com rosto impávido: algo sensível transparece.

E possível que os pirahãs não tivessem a mesma variedade vocabular para expressar a dor de cotovelo e a tristeza do amor que tão bem revelam os tangos argentinos e os boleros caribenhos, mas esses sentimentos não ficavam clandestinos: olhares, pausas e nós da garganta mostravam sua melancolia na hora do adeus.

Curiosamente, embora tenham desenvolvido a Estética do Som, os pirahãs carecem de importantes manifestações artísticas na pintura e na es­cultura. Mesmo sem palavras para nomeá-las, as cores existem; como é certo que pensamos tudo que nossos olhos veem - ver, ao contrário de apenas olhar, é uma forma de pensar -, podemos imaginar que os pirahãs a elas se refiram por meios sensíveis, não-verbais: zumbidos, talvez. Aos números, talvez associem trinados ou gestos manuais simbólicos. Vocabulário em gestação.

No entanto, os meios sensíveis têm seus limites: para pensar o futuro além do anoitecer, as palavras são necessárias. Para pensar o passado além do há pouco tempo, as palavras são indispensáveis.

Essa pobreza vocabular talvez explique, ou seja causa, da ausência, nessa cultura, de qualquer forma de ficção ou mitos de origem. Olhando o passado, os pirahã não vão além de alguns anteontens; seu futuro é sem amanhãs.

Outra interessante característica desse estranho povo é que seus indi­víduos, de tempo em tempo, mudam de nome próprio porque acreditam que o avançar da idade os transforma em outras pessoas. Mentiriam se guardassem os mesmos nomes: já não são quem foram. Desprezam o pas­sado, não imaginam o futuro. São o contrário do que canta Paulinho da Viola: “Quando penso no futuro, não esqueço o meu passado...”

Nós, ao contrário, construímos nossos nomes ao longo de nossas vidas. Nosso nome tem a nossa cara. Nenhum nome é inocente, nenhuma palavra é vazia. Somos nosso nome.

Nenhum nome, anônimo.

 

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Harmonia e colisões

Entre os dois pensamentos, Simbólico e Sensível, existe o perigo de que sua boa relação possa entrar em colisão, negando-se um ao outro: podemos fazer afirmações verbais, simbólicas, que contradigam nossas mensagens sensíveis. Podemos calar a boca, jamais o corpo; esconder a verdade com palavras, jamais com a voz.

Separar os pensamentos seria pura perda para ambos, pois são a mesma coisa em formas diferentes - aí reside a sua riqueza. Os dois pensamentos podem se apresentar de forma clara e consciente, ou podem continuar ativos subliminalmente, sem que deles nos apercebamos; podem se apresentar completos e bem acabados, ou em ruínas, fragmentados.

Estética e Noética são formas que têm todos os seres humanos de se relacionar com o mundo. Não são exclusivas de uma classe ou casta, tempo ou lugar, mas universais como a respiração, a morte e o bater do coração. Culturais são as formas de fazê-lo, não o fazer.

Nenhuma das duas formas de pensar pode proporcionar, sozinha, a mais completa percepção do mundo, da qual só seremos capazes se formos capazes de conjugá-las. Da mesma forma que devemos aprender a ler e escrever, devemos aprender a ver e ouvir. O abandono deste ou daquele pensamento causa graves danos à expansão da personalidade.

Exemplo das limitações especialistas é o economista que só pensa em números, alíquotas e percentagens, que renuncia ao Pensamento Sensível e não vê a fome do povo, não vê Áfricas nem genocídios. Renuncia à Ética.

Imaginem um encontro dos homens mais ricos do mundo nas brancas montanhas de Davos, Suíça, banhada em flores e cores, quando se reúnem com suas secretárias e seus políticos. Imaginem agora se os seus salões esti­vessem decorados, não com papoulas, lírios e camélias, mas com quadros e esculturas de artistas populares, mostrando as consequências de suas deliberações econômicas: pobreza, doença e morte. Imaginem a revista Forbes, que a cada ano anuncia os cem indivíduos mais ricos do mundo, se, ao lado daquelas sorridentes figuras, mostrassem fotos dos cem mil homens mais esquálidos desta Terra... Seria difícil falar em lucros e dividendos.

Imaginem Jesus, vestido com os trapos que usava, andarilho nas ruas de pedra de Jerusalém, se um dia aparecesse, inesperado, em uma festivi­dade vaticana de fim de ano, onde o papa reluz ouro e diamantes ao lado dos seus príncipes, ambiente de luxo e requinte: Jesus seria expulso pelos garbosos guardas suíços. Sem piedade, sem caridade cristã!

 

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Não podemos renunciar a nenhuma forma de pensar! O operário, alie­nado à sua função manual, termina por se confundir com sua máquina e dela se torna apêndice; os artistas que só pensam em sua arte; os soldados que atiram sem saber em quem - todos são autômatos.

 

Arte como política

O perigo oposto à palavra inócua é o monopólio do sensível. Alguns artistas esquecem que o Pensamento Sensível é pensamento, não mera sensação. A sensibilidade, ao ser concretizada na obra de arte, tem forma e sentido. E atividade cognitiva, não mero registro de sensações aleatórias, impressões fugidias, êxtases.

Como tal, o Pensamento Sensível é vassalo e senhor do Simbólico, que pode conduzi-lo, embora seja, simultânea e parcialmente, obra e dependente seu.

O Pensamento Sensível é atividade intelectual que não se detém nos órgãos receptores e transmissores de sensações - vai além, e busca organizar o mundo de forma compreensível. Os dois pensamentos, mesmo quando dizem a mesma coisa, não dizem a mesma coisa: iguais e diferentes, abrem espaço para a imaginação. A forma de dizer é parte do que é dito.

A arte não necessita ser figurativa para figurar, como não são necessárias palavras para pensar. A palavra é apenas uma das duas formas, tardia, de pensamento.

Algumas formas artísticas se limitam a provocar sensações sem conhecimento organizado, nem pensamento organizativo, sem história nem futuro, como se a pura sensação estanque fosse a razão da arte. Não é! Explicações não são necessárias, mas a razão sensível é razão.

Vi uma vez uma exposição de pintura em que o pintor declarava que seu único pensamento tinha sido o de produzir uma obra que não fizesse pensar. Havia procurado sentir quais as cores e traços que não permitiriam sentir. Andava atrás do vazio absoluto... e parece que o encontrou: o salão deserto.

Independente da vontade do artista, a obra de arte quer dizer... e diz. Mas nem tudo que diz a obra é percebido por todos os observadores da mesma forma. Cada um de nós tem a sua Capela Sistina!

 

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A fruição da obra e a sua compreensão dependem do conhecimento e das prévias experiências de vida de cada observador. Não preciso saber nada sobre uma obra para senti-la do meu jeito, mas não a sinto do mesmo jeito que o meu vizinho, nem a sente, como eu, o seu autor.

Os westerns de Hollywood, como aqueles sobre Custer, invasor de terras, arquiassassino, querem mostrar natives como sendo maus porque são natives e brancos bons... porque, ora por quê: porque são brancos. Os produtores desses filmes exaltam a figura macabra desse general, mas os indígenas sabem que Custer foi matador de inocentes.

Terrível e histórico exemplo dos conflitos entre fundo e forma é a fil­mografia de Lenni Riefenstahl sobre Hitler e o nazismo, especialmente seu filme sobre as Olimpíadas de Berlim em 1936 - belo e odioso! Esses filmes mentem não porque dizem mentiras, mas porque escondem verdades.

Belos porque revelam, em imagens, parte da realidade daquele trágico período; odioso porque enaltecem genocidas de judeus, ciganos, comunistas e diferentes. Seus filmes são importantes pela filmagem, não pelo filmado - pela técnica, não pela arte. São geometricamente belos os militarizados desfiles de atletas das delegações estrangeiras fazendo a saudação nazista para o Führer - inclusive delegações de países que logo seriam invadidos pelos exércitos alemães; odiosos porque conhecemos, ao vê-los, as catástro­fes que aquele desumano regime provocou em todo o mundo. Ali estava o Ovo da Serpente.

Serpentes são belas... e assassinas. [nota 30]

Não nos admiremos que tais filmes tenham contribuído para a propaga­ção do nazismo entre os jovens fanáticos e os desempregados, que sonhavam com empregos estáveis em qualquer lugar... por exemplo, em fábricas de armamentos. As plateias eram atraídas e dominadas pela grandeza física e pelo poder bélico daquele regime multitudinário.

 

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Não nos admiremos também da indignação dos mais lúcidos, que previam as tragédias que se avizinhavam. Não nos admiremos do impacto que produzem, hoje, os filmes do gênero homens-aranha e mulheres-escorpião: estes pseudo-heróis são todos Führers que fazem justiça pelas próprias mãos. São a exaltação da ilegalidade, dos fora-da-lei e das organizações paramilitares.

Oscar Wilde dizia que a arte não imita a vida, como se diz: é a vida que imita a arte. Como Wilde tem sido associado a frivolidades - por sua obra e vida, ou por puro preconceito -, esta afirmação é interpretada como brincadeira, boutade. No entanto, é profunda e verdadeira! O cinema e o teatro são capazes de infiltrar comportamentos em suas plateias: a empatia é a responsável.

Existem filmes que, ao contrário do elogio, denunciam a violência que execram, revelam o horror do crime. Ao mostrá-lo, porém, permitem que parte da plateia se identifique com aqueles que o filme pretende denunciar e não com as vítimas... e aplauda a violência.

Quando se apresenta um personagem odioso, existe a possibilidade de que o espectador com ele se identifique - incitação ao crime. Isso acontece com frequência com filmes sobre a ação truculenta de matadores policiais. Para evitar esse descaminho, Aristóteles recomendava a Anagnorisis da tragédia grega: o herói trágico reconhecia sua falta, pela qual pagava caro e, através da empatia, conduzia seus espectadores a se sentirem faltosos e a corrigir sua própria falha moral. Shakespeare criou personagens ambiciosos, como Macbeth e sua Lady, Ricardo III, Cássio e Brutus... todos derrotados no fim da peça, para tranquilidade da moral vigente.

Explicações sobre a obra influenciam a sua percepção. Nos primeiros meses de 2008, o Leopold Museum, de Viena, Áustria, apresentou quadros do pintor Albin Legger-Lienz. Fez-se potente escândalo. Organizações judaicas pediram que a Mostra fosse fechada e os quadros confiscados, enquanto o Museu alegava a importância histórica do pintor e sua obra.

 

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Estava eu trabalhando naquela cidade e quis ver com meus olhos a razão de tanta bulha. Entrei no Museu de má vontade, desci ao porão onde estavam os quadros de Legger-Lienz. Estava pronto para detestá-los - não suporto aqueles que aderiram ao nazismo, seja qual for sua profissão. Mesmo assim, comecei a achar que os quadros não eram ruins, apesar da ideologia do pintor, mas continuei achando defeitos em todos eles: sempre encontramos razões de sobra quando queremos detestar algo.

Na última parede da última sala, porém, um texto explicava as razões do explosivo escândalo: alguns daqueles quadros haviam sido roubados de casas de judeus perseguidos pelo regime, confiscados por oficiais do exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial e vendidos, depois da guerra, a um colecionador privado, que revendera os quadros suspeitos ao Museu, que, mesmo sem saber do histórico de cada obra, não hesitou em expô-las. As organizações judaicas queriam que os quadros fossem guardados em lugar seguro até que se descobrissem seus verdadeiros proprietários judeus.

Então... Albin Legger-Lienz, nascido em 1868 e falecido em 1926, não era nazista. Que alívio...

Voltei pelo mesmo caminho da ida, olhando cada quadro pela segunda vez: como eram belos! Talvez eu os achasse ainda mais belos do que na verdade eram porque sentia necessidade de pagar minha culpa estética em julgá-los sem conhecer sua verdade política...

Adam Smith, considerado pelos economistas como o pai da Economia moderna, em seu livro seminal, A riqueza das nações, já no século XVIII dividia os indivíduos que produzem riqueza desta forma: os trabalhadores, remunerados pelo salário; os capitalistas, que fornecem o capital e recebem os lucros produzidos pelos trabalhadores, e os proprietários da terra, que rece­bem renda. A riqueza, ele a definia como poder de compra. Tanto o trabalho doméstico como a atividade artística eram classificados como improdutivos.

Seu livro trata da riqueza das nações, que é dividida entre os que traba­lham, os que têm dinheiro e os que possuem terras; entre os que recebem e vivem dos seus salários, lucros ou rendas. Em um país assim dividido, a Arte tende a refletir a ideologia dos que têm dinheiro ou possuem terras. Os que vivem do seu salário devem fortalecer a sua arte para não serem fagocitados pelo pensamento único. O direito à rebelião vive desde o âmago mais entranhado de cada Oprimido até a sua consagração no texto cardinal das Nações Unidas sobre os direitos humanos.

 

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Vive, mas não vige.

Mesmo quando as ideias dominantes em uma sociedade são as ideias da classe ou casta dominante, os dominados lampejam descontentamento. Até na aparentemente imóvel Idade Média feudal, ao lado de um ferrenho teatro catequético majoritário, existiam farsas pícaras que contestavam dogmas, inclusive o da sagrada virgindade - sacrílega blasfêmia.

Neste campo de batalha, surge a necessidade da Estética do Oprimido.

 

Mentiras e hipocrisia

Com a invenção da palavra, o ser humano, criando uma outra forma de percepção do mundo, criando um outro mundo, com esse gigantesco salto inventou a mentira em suas formas mais comuns: o falso testemunho e a calúnia, amplamente usados como armas de poder.

Tão logo pronunciada, a mentira torna-se verdade virtual. Como tal, a mentira é uma das categorias da verdade. Pode-se mentir dizendo-se a verdade ou, dela, parte.

A própria negação da mentira afirma sua virtualidade como verdade potencial: “Fulano não é ladrão!”significa que não é, mas poderia ser, ter sido ou vir a ser. Fulano e ladrão formam uma só entidade, com desprezo do verbo ser e do advérbio não. Sua justaposição cria outra entidade, au­sente de cada uma. Já vimos candidatos em eleições afirmando sua crença de que seus adversários não são ladrões, claro que não: a palavra ladrão dificilmente será descolada da sua vítima.

A potência prenuncia o ato, mesmo que ele não se cumpra. Potência é ato em gestação. A mentira é autêntica criação humana. Os animais não mentem: simulam, mas não mentem. A camuflagem do camaleão é reação biológica e não produto da sua possível imaginação.

Com a mentira surgiu a hipocrisia, que é a possibilidade de se dar uma contínua aparência de verdade ao que sabemos ser falso. E curioso lembrar que a palavra grega hupokrisia ou hupocritês, entre seus vários sentidos, tinha o de “desempenhar um papel em uma peça”: a arte do ator. Significava também: “A resposta do oráculo”.

 

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Oráculo e ator, ambos misteriosos, tinham e conservam o mágico poder de impor uma empática submissão a seus interlocutores e, neles, inocular mensagens, sentimentos e valores hupokrisicamente, sem que o ator e o oráculo se apresentem com sua verdadeira identidade: o primeiro repre­senta um papel convencionado, e o segundo se esconde sob o pseudônimo de um Deus. Ambos mentem porque qualquer afirmação que façam está associada a quem a faz e muda de sentido se muda o seu autor: se fala o rosto e não a máscara.

Quando alguém reconhecido por suas virtudes, carisma ou feitos espetaculares, artista ou atleta, faz elogia uma mercadoria na mídia - produto que não usa ou sequer conhece -, faz um uso criminoso da empatia. Crime que, no nosso Código Penal, é conhecido como falsidade ideológica.

A empatia - instrumento de convencimento e poder - pode ser be­néfica quando o personagem com o qual nos deixamos empatizar, tanto no teatro como na vida cotidiana, produz ideias e emoções que ajudam o nosso desenvolvimento intelectual e emotivo. Torna-se daninha quando imobiliza os espectadores inoculando-lhes ideias e emoções ordinárias e falsas, como a luz ofusca cangurus.

Essa delegação de poderes que o espectador oferece ao personagem - que passa a agir, sentir e pensar em seu lugar, fazendo-o pensar, agir e sentir como ele — é uma perigosa renúncia à cidadania, porque o espectador, imobilizado, se torna vítima passiva e não parceiro.

A ficção, variante da mentira, revela-se outra forma paralela, estruturada e coerente de compreensão do real, que tanto pode produzir belas obras de arte, como tirânicas estruturas de raça, casta ou classe, credo ou sexo.

Torna-se outra realidade, na qual o improvável e o impossível passam a ser categorias do real. Pode tornar-se mais real que a realidade: mais imaginariamente real que a realidade sensível. A palavra ficção torna-se a única ficção que realmente existe, pois que existe descolada de qualquer realidade.

 

Os malefícios da palavra

As palavras são tão poderosas que, quando as ouvimos, obliteramos nossos sentidos através dos quais, sem elas, perceberiamos mais claramente os sinais do mundo.

 

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Sua compreensão é lenta porque necessitam ser decodificadas; as sensações são de percepção imediata - principal diferença entre lingua­gens simbólicas e sinaléticas, símbolos e sinais, linguagens informativas e linguagens cognitivas.

Escutando uma palavra, necessito de tempo para compreender as in­tenções do meu interlocutor. Se ponho o dedo em um fio desencapado, o choque elétrico que recebo não precisa de nenhuma tradução especial. Grito! Se beijo a mulher amada, fecho os olhos. Se como chocolate, sorrio.

 

Quando seres humanos, em épocas pré-históricas, começaram a balbuciar as primeiras palavras da proto-protolíngua universal - se pudermos crer nessa controversa teoria segundo a qual uma língua primordial teria existido em várias partes do mundo -, começou a lenta degradação dos seus sentidos.

A suposta existência dessa língua universal, já mencionada na Bíblia, foi cientificamente defendida pelos linguistas norte-americanos Joseph Greenberg e Merritt Ruhlen a partir de 1980. Para eles, todas as línguas faladas no mundo, ontem e hoje, podem ser sistematizadas e reunidas em diferentes famílias, como aquela que reúne línguas românicas, eslavas, germânicas...

Estas famílias são, hipoteticamente, originárias de uma única protolíngua, a indo‑europeia, que talvez tenha sido falada por uma população nômade três ou seis mil anos antes de nós. Juntando-se esta e outras protolínguas, forma-se uma imensa árvore genealógica com um tronco comum: a proto-protolíngua, primeira língua universal. Tem sua lógica, mesmo para quem não acredita em Adão e Eva. Falta prová-lo!

 

Um trágico exemplo dos sentidos humanos esmaecidos pelo surgimento da fala aconteceu no dia 26 de dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis devastaram várias cidades da Ásia e da África, matando mais de trezentas mil pessoas. No entanto, no Parque Nacional do Sri Lanka, povoado por animais silvestres e selvagens, nenhum morreu, apesar da tremenda inunda­ção provocada pelas ondas de doze metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais, pássaros e roedores, e até desajeitados crocodilos conseguiram escapar - fugiram a tempo para regiões elevadas quando perceberam as primeiras vibrações sísmicas e os primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que se abria.

 

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Só morreram animais domésticos, contaminados pelas palavras que ouviam, sem entendê-las, ou presos em coleiras e correntes... Essa tragédia não tira o valor supremo da Palavra como refinado meio de comunicação, mas revela um deslocamento da fina percepção - dos sinais para os símbolos -, que traz consigo algumas tristes desvantagens.

Asiáticos e africanos, enquanto subia o mar, esperavam por avisos simbólicos - palavras! - através de telefones e megafones, celulares, TVS, rádios e mails, sem atentar para os sinais sísmicos que seus corpos registra­vam, mas que não chegavam às suas consciências - sensações que não se transformavam em Conhecimento - e, portanto, não eram mensagens.

Ao aprender novos artefatos de linguagens, como telefones e celulares, rádio e televisão, internet etc., as sociedades desenvolvidas industrialmente nos fazem esquecer, ou substituir, a transmissão estética - oral e visual - dos conhecimentos que estavam a cargo dos “mais velhos”. Ganha-se a abstração, perde-se a concreção.

 

Definha, em nós, o artista

Com a introdução da palavra, simbólica, as linguagens estéticas (sinaléticas) esmaecem e se tornam menos conscientes e consistentes. Limitamos nossa percepção a caminhos cansados, e o nosso corpo se mecaniza nas ações dos rituais cotidianos. Prestamos atenção ao significado atribuído às palavras - não ao timbre, volume, ritmo, características sensoriais da voz.

Definha, em nós, o artista.[nota 31] O Pensamento Simbólico sufoca o Sensível, que continua vivo, inconsciente, mas atuante. Em teatro, a subonda é o pensamento escondido e fluente, um dos determinantes da ação do per­sonagem —dele o ator deve se conscientizar em busca da forma sensível do seu personagem: corpo e voz.

 

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O corpo humano é a fonte, e as linguagens estéticas são os meios de um pensamento simultâneo ao Pensamento Simbólico das palavras e dos gestos convencionados. Esta é a razão da arte.

 

As formas estéticas de conhecer produzem um Pensamento Sensível específico, que somente através delas se obtém e às outras se acrescenta. O que aprendemos ao ver uma pessoa é insubstituível pelo que dela possam nos dizer. Ouvi-la traz um conhecimento insubstituível pelo que, da sua voz, se possa predicar.

Magritte dava a alguns dos seus quadros títulos como Esta não é uma maçã, Este não é um cachimbo. De fato, não eram maçãs nem cachimbos: eram a representação de cachimbos e maçãs. Eram metáforas. Lembremo-nos que a palavra metáfora significa toda translação - como as literárias - ou transubstanciação - como as artes plásticas -, que são a matéria da arte.

Um cachimbo é um cachimbo, e a imagem do cachimbo contém uma opinião sobre ele, um sentimento, uma visão particular. A metáfora nos permite uma visão binária do real: nós, em face da representação metafó­rica que é a obra de arte. Quando ultrapassamos esse limite especulativo e, como cidadãos-artistas, criamos nossa própria obra de arte invadindo a cena e construindo alternativas à situação mostrada, no teatro; quando, com nossas mãos, pintamos um quadro, fabricamos uma escultura, nas artes plásticas ou nas artes da palavra, quando escrevemos poemas ou nar­rativas - nestes casos estaremos inventamos o terceiro ângulo do triângulo estético: eu vivendo minha vida social e pessoal; a realidade que me serve de modelo; e a minha imagem da realidade possível.

Esta visão metafórica triangular nos estimula a descobrir aspectos invisíveis da realidade. Em teatro, o espectador-cidadão se multiplica por dois: é quem é, e se torna parte da sua própria obra de arte teatral sendo o personagem.

 

O Pensamento Sensível pode ser traduzido em palavras, porém, ao ser traduzido, elude sua essência como quando alguém explica uma sonata.

 

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A sonata já falava por si, e a palavra, embora nos traga um conhecimento complementar, obscurece nossa percepção estética. Ler receita de prato gastronômico pode nos dar água na boca, prazer diferente do que sentimos saboreando o mesmo prato: comemos com boca, nariz e olhos, e não ape­nas com o intelecto, por privilegiado que seja. Ver um beijo apaixonado e ardente na tela do cinema pode ser excitante, mas não deixa marcas na boca.

O Pensamento Sensível é sustento e raiz do Simbólico, sem o qual este não existiria, mas que existe sem ele. Estas características, no entanto, não desobrigam o Sensível do saber, nem o absolvem da desrazão.

O Pensamento Sensível, primogênito e genitor, inventa palavras, e as palavras constroem o Pensamento Simbólico. Os dois pensamentos interagem, amalgamam-se impuros e variam seus fluxos a cada instante. Despertos, podem se assumir como consciência, que consiste em pensar o pensamento, criticamente, como quem corrige seu próprio texto - este é um dos poderes da mente.

O objeto que o sujeito analisa pode ser o próprio sujeito. “Falei sem pensar...” - dizemos às vezes. Mas como será possível falar sem pensar se toda fala se constitui de palavras articuladas e estas são pensamentos?

“Eu disse, mas não era bem isso que eu queria dizer...” - esta expressão revela pensamentos inconscientes ou com significados inconscientes, só compreendidos depois de pronunciados... quando repensados em palavras. Concordo com o ditado popular: “Para não se arrepender do que diz, pense duas vezes antes de dizê-lo”. Pense seu pensamento.

A expressão “Eu tenho uma ideia, mas não sei como explicar...” revela os estreitos limites de um pequeno vocabulário. Aumentando o nosso vocabulário, estaremos expandindo os territórios da nossa compreensão do mundo.

 

Estética, direito humano

Palavra, som e imagem são as mais poderosas formas de comunicação do ser humano. Devem ser democratizadas como a terra, a água e o ar.

Porque não necessita ser decodificado para ser entendido, o Pensamento Sensível é veloz; o Simbólico, lento. O Pensamento Sensível não ocupa espaço no tempo, é instantâneo!

 

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O Simbólico exige tempo para ocupar seu espaço - é discursivo. O discurso promove a reflexão expansiva; a instantaneidade aprofunda a percepção do tempo que nos escapa.

Arquimedes deu seu famoso grito - “Eureka, achei” - e só depois ver­balizou seu achado: “Um corpo sólido mergulhado em um líquido recebe um impulso de baixo para cima igual ao volume de líquido deslocado!” A frase inteira ultrapassou o limite entre o Pensamento Sensível - ele estava na banheira tomando banho - e o Simbólico: compreendera tudo vendo sua perna flutuar na água.

Mesmo quando escrevo estas linhas usando palavras, outras palavras fluem rápido no meu cérebro e chego a pensar que já escrevi o que apenas pensei.

O Pensamento Sensível penetra unicidades ao sentir, gustar, cheirar, ver e ouvir, enquanto o Pensamento Simbólico inventa conjuntos ao fabricar palavras: mar, mal, amor, sal, açúcar, vinagre, política, esquerda, direita... Unidos, oferecem a mais completa e profunda compreensão do mundo. Separados, um se perde nas abstrações esvoaçantes que o outro não alcança. Um não desce à terra; o outro, dela pouco se eleva. O ser humano inventa a arte como instrumento de conhecimento. Os opressores, percebendo seu imenso poder, dela se apropriam.

Remédio ou veneno, nunca placebo, a arte pode paralisar seu consu­midor inerte, transformá-lo em estação repetidora de comportamentos e conceitos - é veneno! -, assim como pode dinamizar aquele que aprende a produzi-la - é remédio!

A indústria da imagem e do som tem sujeito e objeto, opressor e opri­mido. A indústria da palavra tem remetente e destinatário. O primeiro diz o que pensa; o segundo pensa o que lhe dizem. O cidadão que desenvolve em si o artista que é, mesmo sem sabê-lo, pode enfrentar melhor as indús­trias da palavra, do som e da imagem. O cidadão que se deixa ritualizar na obediência, torna-se ventríloquo do pensamento alheio e mímico dos seus gestos. O tênis de marca é o testemunho triste e sombrio da submissão de certa paupérrima juventude, existente em nossas comunidades pobres, aos padrões da moda imposta.

A arte pensa o sentimento e sente o pensamento. Procura conhecer a palavra como objeto sensível, transformando palavras em poesia, pois a poesia está na sintaxe e não no léxico, como a música está na sequência de notas musicais e não em cada uma; a vida, em seres mais complexos, está no arranjo das células e não se limita a esta ou àquela; a consciência está na estrutura de elementos psíquicos, não na solidão de cada um.

 

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Duas palavras, quando se associam, podem criar um terceiro Ser, soma infinita de significados. Como duas cores, dois sons, dois traços - quaisquer dois seres -, quando postos em relação, são mais do que a soma dois.

Se observarmos os adjetivos imortal e infinito, as conjunções enquan­to, posto e mas, o pronome que, o advérbio não, o substantivo chama e os verbos ser e durar — conjugados em diversos tempos e modos -, estas palavras não são necessariamente poéticas. Mas, ordenadas dentro de uma sintaxe especial, tornam‑se um dos mais belos versos sobre o amor da língua portuguesa: “ Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure" - Vinicius de Morais.

A arte não deve continuar encerrada em museus, teatros e salas de concerto para visitações de fim de semana, pois é necessária em todas as atividades humanas, no trabalho, no estudo e no lazer. Não deve ser atri­buto de eleitos: é condição humana. Não é maquiagem na pele: é sangue que corre em nossas veias.

A vida humana, social e política não pode enxergar de um olho só, se temos dois; andar como saci, numa perna só, se temos duas; abraçar com um só braço, ouvir com uma orelha, a outra surda. Não basta aprender a ler e escrever: é preciso sentir, ver e ouvir, produzir imagens, palavras e sons.

A terra, a água e o ar; a palavra, o som e a imagem são bens da huma­nidade. Arte é direito e obrigação, forma de conhecimento e gozo.

Arte é dever de cidadania!

Arma de libertação!

 

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O pensamento estético à concreção artística

 

 Nossas opções teóricas e nossas ações concretas devem surgir não porque somos artistas, mas porque somos cidadãos.

 

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Em branco.

 

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A subjetividade da arte

Conjuntos analógicos, conjuntos complementares

 

A natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia, dois fios da minha barba ou gêmeos univitelinos; nem impressões digitais ou duas gotas de orvalho; nem árvores da floresta, galhos e folhas, nem as estrias de cada folha... Nada é idêntico a nada. Todas as coisas inanimadas, todos os seres vivos são únicos, irreproduzíveis, mesmo clonados.

Para seres semoventes, humanos e animais, com um mínimo de vida psíquica, seria impossível viver (mover-se) dentro dessa infinita diversidade se não pudessem organizar sua percepção do mundo e simplificá-la.

Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que olhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo que sentimos, cheiramos e gustamos, tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações recebidas. A Natureza é vertiginosa, não somos capazes de viver essa vertigem.

Felizmente, a Natureza permite a criação de aparências simples das realidades complexas, através da construção imaginária de conjuntos analógicos e conjuntos complementares.

Embora simplificações excluam complexidades, realizamos o processo psíquico da formação de conjuntos para poder nos guiar, viver neste mundo e na sociedade. Somos obrigados a nos afastar do real para sermos capazes de percebê-lo, ainda que de forma aproximada.

Ao nascer, olhamos o que nossos olhos alcançam e nada vemos: apenas a cor cinza. Na medida em que nosso nervo ótico começa a ser estimulado por luz e sombra, organizamos nossa percepção visual distinguindo retas e curvas, profundidades e cores. Quando deixamos de olhar tudo ao mesmo tempo é quando realmente começamos a ver - vemos conjuntos: curvas e retas, profundidades e cores.

 

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Nenhum peixe é igual a outro peixe, mas todos se assemelham: eis o cardume. Uma rosa é uma rosa, mas todas se parecem, vermelhas, brancas e amarelas: eis o roseiral. Nenhuma cor é homogênea em toda a extensão do objeto colorido, mas podemos abstrair as diferenças que, ao microscópio, existem claras e profundas.

A floresta não está contida em nenhuma das árvores que a compõem, mas não existiria sem elas. A cidade não é nenhuma de suas ruas e praças, mas, sem elas, não haveria cidades. A Via Láctea não é nenhuma de suas estrelas.[nota 1]

Um astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra, que vermelho é o sangue em nossas veias e plúmbeo o céu de chuva... Sabemos que não é verdade: nenhum milímetro de nada é igual a nada de outro milímetro. Por analogia, contudo, podemos perceber e formar conjuntos analógicos, homogêneos, que englobam seres semelhantes, mas não iguais - isto é, unicidades[nota 2] - em um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera, um batalhão de soldados ou a farinha de um mesmo saco.

Podemos perceber também conjuntos heterogêneos, feitos de elementos complementares. Não existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todos corre água, no caudaloso Amazonas e no riacho do Ipiranga. Suas margens são diferentes, mas todas oprimem a água que neles corre. Pedras, no seu leito, são desiguais em peso e forma, mas parecidas mesmo quando feitas de matérias diferentes, orgânicas ou minerais.

Margens, águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado de coisas inanimadas e seres vivos, heterogêneos, que podem ser percebidos como conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em cada um dos elementos únicos que o compõem.

 

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Podemos nomear rio todos esses conjuntos percebidos como semelhantes. Todos os rios têm a identidade dos rios e sabemos de qual acidente geográfico estamos falando quando falamos do Nilo egípcio ou do Arroyo de la Sierra [nota 3] de José Marti, diferentes no volume de suas águas, na altura de suas margens, na violência ou suavidade do seu fluir.

Podemos perceber a floresta como conjunto de árvores semelhantes, mesmo sabendo que não são iguais; o rebanho, conjunto de animais da mesma espécie, tendo cada um o seu feitio, seu focinho e sua fome; a multidão, conjunto de seres humanos - embora nenhum deles seja igual a nenhum de nós.

Até mesmo cada indivíduo e cada coisa é um conjunto heterogêneo feito de elementos complementares: temos cabeça, pescoço, tronco e membros, artérias e veias, pelo e pele; uma pedra tem muitas cores, mesmo cinza: ricas variações tonais e formais em sua superfície, mesmo roliças.

Simplificando nossa percepção da Natureza e da sociedade, podemos viver sem sobressaltos: unicidades podem ser sistematizadas em conjuntos analógicos de seres e coisas semelhantes, ou conjuntos complementares de coisas e seres dessemelhantes.

Nessa simplificação perde-se a riqueza das diferenças e das identidades, que, por infinita, é inacessível. Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não da multifária Natureza, funciona como couraça que possibilita o acesso apenas às aparências do real[nota 4] e nos permite, sobre elas, predicar.

 

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Para que possamos nos comunicar, os conjuntos devem ser nomeados: nomeamos montanha a todas as protuberâncias da terra que beijam o céu, mesmo sabendo que nenhuma montanha é igual a outra montanha, nenhuma nuvem igual a outra nuvem, nenhum sonho igual ao meu. Nomeamos mar - mar de gente bêbeda no Réveillon, mar de flores ao vento, mar de ondas raivosas - todas as aglomerações onduladas de água, girassóis ou gente.

Nomear significa tentativa de imobilizar. O nome é a fixação, no tempo e no espaço, do que é fluído e não pode parar nem ser parado, nem no espaço, nem no tempo.

Tudo é trânsito neste mundo - cada um de nós e cada império, Romano ou dos Mil Anos; cada nação e o mapa-múndi - tudo muda: eu mesmo, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou quem fui antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a próxima? Sou um rio de Crátilo: [nota 5] em mim, correm águas que não corriam. Outras correram e jamais voltarão rio                 acima - escondem-se no mar. “Como cambia el calendario, cambia todo en este mundo”, canta Violeta Parra.

O mundo vive em guerras e confrontos entre indivíduos e grupos humanos, como o nosso corpo, que é também um campo de batalha: nutre-se da natureza e com ela combate - combate de vida e de morte.

Ninguém pode me ver duas vezes como sou em cada instante fugaz da minha vida, como fugazes são todos os instantes... e a vida. Jamais serei o mesmo em cada segundo que me foge. Aqueles que me veem agora jamais serão iguais a si mesmos em dois segundos da trajetória de seus caminhos.

Não sou: estou sendo. Caminhante, sou devir. Não estou: vim e vou.

 

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Hesito: para onde? Escolho meu caminho, se puder; sigo calado, se forçado! Não existe porto seguro porque todos os portos estão em alto-mar, e nosso navio não tem âncoras. Navegar é preciso, pois navegar é viver[nota 6] - vamos deixar de bobagens: viver é preciso, sim! E gostoso e útil.

Nomes nomeiam o que será e o que foi. Não o que é, porque nada apenas é!

Universo é gerúndio.

 

Palavras são meios de transporte

Palavras são perigosas - cuidado! Designam conjuntos, mas ignoram uni-cidades. Negros e brancos, homens e mulheres, proletariado e campesinato são conjuntos criados pelo pensamento e pela imaginação, inspirados em realidades sensíveis, mas que não existem como concreção física. São, mas não existem. O que existe corporeamente é este negro e aquela branca, esta mulher e aquele homem, esta camponesa e aquele operário.

Conjuntos estão em trânsito, como seus componentes: pedras e flores,[nota 7] eu e você. Não se pode atribuir aos indivíduos características que pertencem exclusivamente ao seu conjunto, nem vice-versa. O mais valente soldado não é um exército, nem a mais preciosa bailarina, um corpo de baile.

As transformações que se operam nos indivíduos modificam os conjuntos aos quais eles pertencem e estes alteram aqueles. Existe interatividade permanente, o que significa permanente transformação: nada resta igual a si mesmo.

 

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A belíssima arenga de Henrique V, na peça de Shakespeare,[nota 8] exortando os soldados das suas maltrapilhas tropas a se portarem como heróis antes da Batalha de Agincourt contra os franceses, durante a Guerra dos Cem Anos, é um lúcido exemplo dessa interatividade. Falta dizer que os happy few ingleses venceram... Não existem, nem o indivíduo nem o conjunto, em si mesmos".

Uma sociedade, em cada momento histórico, contém sua História e seu anelo, dividido em classes e castas. Nada é eterno, nem a eternidade: um dia, talvez expluda, e não haverá mais dia. Só no espaço que alcança a vista e no tempo que dura o corpo, somos eternos: este é o nosso eterno campo de batalha.

Conjuntos, dada a força que os unifica, podem reagir como se unicidades fossem: um comando militar ou time de futebol; família unida, sindicato operário combativo ou o sistema solar.

Conjunto é sempre algo mais que a soma de suas unidades - é sinergia! Assemelha-se à segunda estrutura de cordas da cítara, cordas musicais que vibram embora não sejam tocadas pelo músico - apenas pelas ondas sonoras que as primeiras cordas produzem.

Esse algo mais, força criada pela sinergia dos conjuntos, pertence ao conjunto, mas retorna a cada indivíduo tornando-o mais complexo e potente, como ocorre com operários em greve ou jogadores em campo.

Podemos falar em proletariado, família, pátria etc. para designarmos propriedades específicas desses conjuntos - cientes, porém, da sua transitoriedade. Não podemos eternizar o conceito de palavras que eternizam conjuntos que não são eternos. O proletariado do qual falava Marx no século xix não é o mesmo proletariado estadunidense do século XXI. Semelhanças existem... e imensas diferenças.

 

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As palavras são indispensáveis para que seja possível o diálogo. São, porém, significantes polissêmicos que, ao serem percebidos pelo receptor, perdem parte dos significados que motivaram o emissor. Pronunciadas pelo emissor, as palavras são significantes com significados ricos das suas experiências, desejos e imaginações; no trânsito, esses significantes mudam de significados, como o caminhão que, de uma cidade a outra, troca sua carga: ao chegar, as palavras estarão carregadas com as experiências do destinatário, não do remetente.

Para entendermos uma palavra, seja qual for, temos que conhecer o histórico do emissor. Mil pessoas usando a mesma palavra - liberdade, por exemplo - dão-lhe mil significados diferentes. Ouvindo qualquer afirmação, nossa resposta deve ser sempre a mesma pergunta: “O que foi que você quis dizer”?

Mesmo que chegue ao destino com carga intocada, o receptor possui seus sistemas de recepção-tradução, que traduzem, e traem, a mensagem recebida. Traduttore, tradittore - dizem os italianos: tradutor, traidor.

Traduzimos, traímos tudo que lemos e ouvimos, principalmente quando dito e escrito em nossa própria língua, porque esta tem história e pré-história que remontam ao tempo em que as palavras foram aprendidas em nossos primeiros meses de vida. Além do que denotam para todos, despertam conotações inconscientes em cada um de nós. A língua estrangeira, aprendida mais tarde, tem apenas a história que remonta ao seu aprendizado tardio.

Temos que entender que o emissor faz parte da mensagem. O psicanalista Hélio Pellegrino costumava dizer: “Se Judas Iscariotes estivesse passando um abaixo-assinado em solidariedade a Jesus Cristo, eu não assinaria”! Mensagem e emissor são unha e carne.

Palavras são meios de transporte como ônibus e caminhões. Da mesma maneira como ônibus transportam pessoas e caminhões carga, as palavras transportam ideias, desejos e emoções. Com a mesma palavra pode-se dizer, na frase escrita com a sintaxe e, na falada, com a voz, exatamente o contrário daquilo que jura o dicionário.

 

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[Início de citação] Nunca eu tivera querido

dizer palavra tão louca.

Bateu-me o vento na boca

e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra

deixou ficar o sentido.

O sentido está guardado

no rosto com que te miro,

neste perdido suspiro

que te segue alucinado,

no meu sorriso suspenso,

como um beijo malogrado. [Final de citação]

Canção, Cecília Meireles

 

A primeira coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo: podemos apreciar a beleza de uma nave espacial ou de uma palavra inusitada, mas, para compreendê-los, é preciso examinar o que levam dentro - esse exame é sensível e não apenas simbólico.

A palavra é um todo que não é nada. Um traço que riscamos na areia; um som que, como delirantes escultores, esculpimos no ar. Traço que as ondas levam; som que se dissolve na brisa.

Areia, nós a sentimos na mão; vento, no nosso rosto. Palavras, onde estão? Em lugar nenhum, pois não existem: apenas são.

As palavras não estão em nenhum lugar e estão em toda parte. São o vazio que preenche o vazio que existe entre um ser humano e outro. Meu corpo é matéria; o que penso, energia. Palavra é ponte. Pontes não existem em alto-mar, entre duas águas revoltas: elas se apoiam nas margens que somos nós que atravessamos a Ponte das Palavras buscando alguém. Somos margem e somos ponte: somos palavras.

Rasgando a areia ou cortando o ar, nesse vazio depositamos nossas vidas: eis a palavra. Preenchemos o nada com tudo que somos: as palavras que     dizemos - nós mesmos, transformados em sons e traços.

Este livro não é um testemunho de vida: é minha vida![nota 9]

 

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Para que palavras adquiram um sentido menos permissivo é necessário vesti-las: na tragédia grega, com máscara, coturno e manto; nos templos, com pompa e liturgia; no exército, rituais de disciplina; no cinema, iluminação, ângulos e lentes. Na vida cotidiana, roupas, gestos, timbres, ritmos da fala, fisionomias... A palavra escrita se veste com a sintaxe e o estilo do escritor.

Para que sejamos capazes de apreender o uno e não apenas os conjuntos aos quais pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse gado é feito de unicidades bovinas e não de massa açougueira. Cada vaca tem sua personalidade: Mimosa, Estrela, Esmeralda... - são vacas. Boiada é sinergia.

Palavras são obra e instrumento da razão simbólica, não da razão sensível: temos que transcendê-las, buscar outras formas de comunicação que não sejam apenas simbólicas, mas também sensoriais - comunicações estéticas. Atenção: esta transcendência estética da Razão é a razão do teatro e de todas as artes.

Não podemos divorciar razão e sentimento, ideia e forma, palavra e voz. Razão simbólica e razão sensível são sólidos casais, mesmo quando às turras, bicadas. A palavra escrita é voz pressentida ou imaginada.

 

O artista e sua arte, artista-indivíduo e cidadãos-artistas

O artista, como nós, é capaz de ver conjuntos onde analogias ou complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver em sociedade, comum mortal. Sabe distinguir a rua por onde rolam carros, diferente da calçada pedestre - salva-se de ser atropelado. Confere a conta do supermercado e não permite equívocos. É ser social.

 

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Ao não se deter, porém, na comum percepção que constrói conjuntos analógicos ou complementares - nem diante das imagens pré-fabricadas, dos sons estereotipados e palavras vazias que expressam o Pensamento Único dominante -, o artista avança, sente, toca, vê e ouve a potência, não só o ato; ultrapassa as aparências do real e revela percepções e aspectos únicos da realidade encouraçada, ou formas únicas de percebê-la: revela aquilo que as palavras confundem, as imagens escondem e os sons ensurdecem.

Revela o que existia... e nos fugia.

Van Gogh pinta o vento;[nota 10] Monet, o tempo;[nota 11] Munch, o som do grito lancinante; Portinari, a dor do retirante. Onde estavam o grito e o vento, a dor e o tempo? No modelo, fora do artista, é certo; mas também nele. O modelo estava diante dos seus olhos - a arte, no seu olhar. Arte e amor estão no olhar, não só no modelo. Não na reprodução do aparente, mas na recriação reveladora.

Pelo que com ela aprendemos, arte é pedagogia do entendimento.

Na arte dos oprimidos - quer se trate de poeta solitário ou criação coletiva, em que vários cidadãos-artistas pintam um mural, compõem uma canção ou constroem um espetáculo com palavras, sons e imagens -, o processo criativo é o mesmo: os artistas têm que se desviar do óbvio e penetrar na verdade escondida.

Escondida por quem e para quê? Não vamos nos esquecer de que em todas as sociedades existem oprimidos e opressores em todos os níveis da vida social. Os que oprimem impõem aos oprimidos sua visão do mundo e de cada coisa desse mundo, para que sejam obedecidos e reine a sua paz.[nota 12] Para se libertarem, os oprimidos devem descobrir sua própria visão da sociedade, suas necessidades, e contrapô-las à verdade dominante, opressiva.

 

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Na arte coletiva, assim como no esporte, ou existe orquestração maior que a soma das partes ou não acontece a obra e se perde o jogo. Não serão os melhores jogadores que farão a melhor seleção, nem os melhores músicos a melhor orquestra, se lhes faltar a unidade, a estrutura que a todos unifique. Nem serão os gostos díspares - sempre existem em qualquer grupo social - que irão impedir a formação da equipe, desde que exista e seja aceito um bem maior: consciência da opressão e o desejo de recriar a sociedade. É esta sinergia que se deve alcançar na arte coletiva, sejam os artistas profissionais ou lavradores.

Uma orquestra de cem professores deve ser uma orquestra... e não cem professores.

O teatro, como algumas outras artes, é movimento. Movimento tem sentido e direção. O sentido é a estrada por onde se pode andar em duas direções; a direção é o caminho escolhido. Seja qual for o caminho e a estrada, o teatro - tal como vem sendo praticado pelas classes dominantes, como forma de convencimento compulsivo -, mais que outras artes, imobiliza os espectadores na contemplação. Imobilizados, tornam-se vulneráveis. Vulneráveis, estão prontos a aceitar como seus as emoções e os pensamentos dos personagens e suas escolhas.

Estes espectadores desempenham o papel de testemunhas não intervenientes: saem do espetáculo inoculados pela ideologia dos personagens, sejam eles trágicos heróis gregos ou bandidos de westerns. Doce forma de lavagem cerebral, reposição ideológica, implantação de ideias e comportamentos contrários à identidade de cada um. Para que nossas sociedades se humanizem, esta não é a melhor forma de arte que servirá aos oprimidos transformados em recipientes onde se vertem conteúdos.

A existência de uma Estética do Oprimido - Estética da Cidadania - não proíbe ninguém de fazer arte sobre a perplexidade, a angústia, a solidão e sonhos desvairados. Todas as formas de criação artística, toda especulação filosófica e estética, podem ajudar a enriquecer nossa sensibilidade e nossa               inteligência - depende do tempo e lugar.

Não devemos temer nenhum lirismo, nenhuma subjetividade.

 

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O artista solitário que, em virtude da sua solidão, não pode fugir da própria subjetividade, penetra na unicidade do Ser[nota 13] como quem busca a si mesmo no outro. Escreveu Fernando Pessoa:

 

[Início de citação] Ninguém a outro ama,

se não que ama o que, de si, há nele,

ou é suposto! [Final de citação]

 

Ao encontrar-se, o artista, o espectador e o amante defrontam-se com o infinito - transe ou orgasmo:

 

[Início de citação] Amor é fogo que arde sem se ver

é ferida que dói e não se sente é um

contentamento descontente é dor que

desatina sem doer é um não querer mais

que bem querer é um andar solitário por

entre a gente. [Final de citação]

— Camões, Soneto #4.

 

Arte é Coisa. Coisa (Houaiss): tudo quanto existe ou possa existir, de natureza corpórea ou incorpórea. Na sua forma metafórica, pode ser o mármore do escultor, sons do compositor, palavras do poeta, cores do pintor, o salto da bailarina ou a voz do cantor. Entre o mundo e nós, medeia o artista e sua sensibilidade, que desperta o nosso sentir e nossa inteligência - capturamos seu mundo, que se torna nosso. Seja ele pessoa só, seja um grupo usando arte, por si ou como instrumento.

 

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A arte do artista cria conjuntos de espectadores que nela se veem refletidos, seja seu tema a solidão ou a luta de classes. Essa obra tanto pode levar seus espectadores à contemplação admirativa, como pode estimulá-los, pelo exemplo e inspiração, à ação transformadora da realidade.

A arte criada pelo conjunto de cidadãos-artistas é plural desde o início da sua fabricação: o grupo de oprimidos, com visão semelhante, cria a obra. O próprio ato de prepará-la é ação propedêutica que leva à ação social. Obra aberta que exige continuidade no real. São formas diferentes de arte, não antagônicas.

Os artistas, populares ou eruditos, revelam unicidades escondidas pela simplificação da linguagem que as nomeia e pelos sentidos que as agrupam. A obra de arte não retrata a sociedade como é, não a copia: recria mostrando suas entranhas, não como fazem os jornalistas narrando um acidente com seus sangrentos detalhes.

Essa dinâmica percepção nunca se imobiliza: tanto a percepção do artista ao fabricar a obra, do espectador ao fruí-la e do amante ao amar. Amores se conquistam e se perdem ao sabor da vida e do domínio que sobre ela possamos alcançar. Tal como a arte, que não é nunca igual a si mesma. Tal nosso gozo, mutável mutante. Tal nossa vida, errante.

 

Divagações sobre as curiosas semelhanças entre amor e arte

Arte é amor. Sei, sabemos, que a palavra amor está desgastada pelo uso abusivo que dela se faz, pelas banalidades que dela se diz. O fenômeno a que essa palavra se refere, no entanto, continua existindo. Nunca em estado puro - pureza não existe! -, mas amalgamado com o ódio, a inveja, necessidade, posse, violência, e todos os complexos catalogados pela psicologia. Esse fenômeno, essa intensa atração multifacetada, existe sim! Eis a prova: eu amo!

A pessoa amada é o ser único. Amando, nós a sentimos insubstituível sem percebermos que, como todo ser, está em movimento. Disse Swan, personagem de Proust, ao re-encontrar seu antigo amor, já esquecido: “Eu me apaixonei por uma mulher que nem sequer era o meu tipo (que eu não amava)...”

 

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Swan acreditava amar a mulher quando estava apenas apaixonado pela perseguição, não pelo encontro. Pela miragem que não existia: era miragem. Seu amor não era Odete, nem nela estava: era projeção de si mesmo. Podemos também pensar que Swan não reconhecia, na paixão extinta, o amor que já não tinha, mas havia tido quando se perseguiam no percurso que faziam juntos!

Amor é experiência estética: fundado na realidade, é obra do imaginário. Amamos não apenas a pessoa que existe, mas as projeções que sobre ela fazemos - projeções: produto e parte de nós, não dela. Nosso imaginário projeta sobre a pessoa amada passados e futuros que não lhe pertencem - existem em nosso desejo ou nosso medo.

Por essa razão bastante, pessoas há que temem ser amadas, imobilizadas em uma projeção que sobre elas faz o amante. Recusam também a função de espelho do amante - não querem, deste, refletir as mudanças.

Amar é uma forma de arte, e o amante sempre algo de artista tem; arte é amor no sentido em que, sem essa atração que sente o sujeito pelo objeto que também é sujeito, ela, a arte, não existiria. Este livro é minha arte: sem o amor que por ele sinto, ele não existiria ou, pelo menos, não na forma que aqui o tenho fabricado.

Estes dois processos - amar e perceber esteticamente a unicidade de outro ser, vivo ou coisa - são idênticos. Da mesma forma que o amor não é “imortal, posto que é chama...” (Vinícius de Moraes), também a fruição da obra de arte não é estável - jamais veremos a mesma obra com a mesma emoção e pensamento: a milésima será sempre uma primeira vez.

Amor é fluxo de corrente alternada - como pode ser a eletricidade e são as marés, porém sem a garantia dos ritmos previsíveis. É verdade que existem amores eternos... e efêmeros, especialmente aqueles que terminam em tragédias sangrentas. Assim também existem obras de arte perenes. Mas nem a pessoa amada nem a obra admirada são admiradas e amadas com a mesma intensidade, nem pelas mesmas razões, a cada momento.

No amor e na arte, a única constante é a inconstância. Ao contrário do que se diz, o amor não é um encontro: é uma perseguição! Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue aquela ou aquele que nunca é igual a si mesmo.

 

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O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e temos provado. Perdoem-me o lugar-comum, mas, da mesma forma que devemos cultivar a arte com amor, o cultivo do amor é uma arte.

 

Arte como forma de conhecimento

Na arte como processo estético e na obra como produto artístico, o artista entra em contato com um certo real - como no orgasmo ou no delírio. Mesmo nas chamadas criações coletivas, a equipe criativa deve encontrar uma visão comum, descobrir e revelar o insólito escondido pelo dia-a-dia.

Arte é forma de conhecer, e é conhecimento, subjetivo, sensorial, não científico. O artista viaja além das aparências e penetra nas unicidades escondidas pelos conjuntos.[nota 14] Sintetiza sua viagem e cria um novo conjunto - a Obra -, que revela o Uno descoberto nesse mergulho; este, por analogia, nos remete a nós mesmos.

Quando escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven, a trêmula ária Voi que sapete do Querubim morzateano, a triste Donna traviata verdiana, Carinhoso de Pixinguinha, Ó Abre Alas de Chiquinha Gonzaga, em cada caso são acordes únicos que escuto na infinitude de sons e ruídos que explodem à minha volta. Alguma coisa única, escondida em algum único lugar de mim, vibra e me faz vibrar. Vibramos ouvindo acordes únicos, estruturados de maneira única.

Esta unicidade cria, por analogia, um novo conjunto imaginário - a plateia -, formado por indivíduos que alguma identidade/relação/estranheza/sedução sentem com tais acordes, como podem senti-la com as tragédias de Antígona e Rei Lear, com o sorriso da Gioconda, os Profetas do Aleijadinho, um poema de Manoel Bandeira e a Vênus de Milo, que, necessariamente, não pode ter os braços que um dia teve. Se ainda os tivesse seria outra Vênus, não a nossa - a ausência dos braços corporifica a presença do tempo: ó corpo do tempo. Tempo faz parte da distância estética que nos permite sentir a escultura. O vazio nela esculpido faz parte do mármore, como o silêncio da música.

 

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Metaforicamente, sou Wagner e Velasquez, mesmo se jamais cantei como Valquíria, jamais pintei meninas. Sou Vitalino, mas jamais sujei minhas mãos com o barro nordestino. Eles o fizeram por mim; através deles, posso fazê-lo, pensando sons, sentindo cores, moldando imagens.

Eu se transforma em nós - extraordinário salto. Nós e os artistas, eu e nós - plateia. Juntos, descobrimos a descoberta que fez o artista. Arte é, a um só tempo, individual e social: ao dizermos nós, descobrimos nosso abrangente eu. Digo eu, e somos nós. Podemos estar todos juntos diante de atores, bailarinos ou telas de cinema, ou podemos, solitários, observar um quadro ou escultura - a pluralização se opera, ainda que invisível.

A arte reinventa a realidade a partir da perspectiva singular do artista, mesmo quando se trata de um artista-plural, uma equipe; sua obra recria, em nós, seu caminho e caminhar. Na arte e no amor, penetramos no Infinito.[nota 15]

O cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence a todos e não depende da individualidade do solitário cientista. O teorema de Pitágoras revela que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual à soma dos quadrados dos catetos - isso acontece em qualquer país, a qualquer hora do dia ou da noite, no verão e no inverno, seja lá quem for o desenhista do triângulo ou a cor dos seus olhos.

 

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Newton, ao sentir o peso da maçã que lhe caiu na cabeça, jurou que “a matéria atrai matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado da distância” - isso é verdade, assim na terra como no céu, chova ou faça sol, não só com maçãs e peras, mas pedras, laranjas e tangerinas.

Não importa que Einstein tenha introduzido a ideia de que o espaço se curva quando próximo da massa de qualquer matéria: para nós que vivemos com os pés na Terra, o melhor é nos afastarmos das árvores frutíferas, que não se curvam à nossa passagem como a luz ao cruzar com a massa...

Ciência é arte, no sentido de que o Pensamento Sensível intervém - como é o caso até mesmo na ciência exata da matemática, no caso do cálculo infinitesimal, que se aproxima da poesia -, mas arte não é ciência.

Reafirmo que, quando falo da identificação do sujeito com a obra de arte, a palavra identificação tem dois sentidos bem definidos: eu me identifico “com” e eu identifico “a”.

A arte não dá conta de toda a realidade verdadeira, mas é uma verdadeira realidade.

 

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A famosa Teoria dos Neurônios Estéticos

 

[Início de citação] Quando, sobre determinado assunto, a ciência não tem resposta precisa ou saber inquestionável, abre-se o caminho para interpretações poéticas. Temos o dever da poesia e os direitos da imaginação. Sabemos sem saber, e provamos sem provas - apenas razão, simbólica e sensível.

Sobre esta Teoria dos Neurônios Estéticos, ouso pensar que não é uma hipótese: é batismo. Existe: é necessário nomeá-la! Ela justifica uma nova concepção da Estética que surge e circula pelos sentidos, que são organizados e inteligentes, não pura epiderme. Sentidos são sociais e políticos, e compartem tudo que envolva o pensamento e a ética.

Sentidos têm sentido! [Final de citação]

 

O processo estético é expansivo porque cada estímulo em uma área ce­rebral estimula áreas adjacentes, nelas se expande e com elas se estrutura: o cérebro é um ecossistema, não disco duro de computador. Elástico e plástico.

Quando começam a ser produzidos no útero materno a partir da terceira semana de gravidez, os neurônios não têm nenhuma especialidade, não sabem fazer nada, não sabem para onde ir nem para que irão servir. Suas funções dependerão do lugar onde os gliócitos os forem colocar: no nervo ótico, aprenderão a ver; no auditivo, ouvir.[nota 16]

 

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Vale repetir que, nem ainda formado nosso cérebro em construção, o mundo exterior já o invade e abre caminhos, toma posições e estrutura o nosso universo psíquico. Sem essa invasão do mundo exterior - natural e social -, não haveria vida psíquica. Sem sons, o cérebro seria silêncio; sem imagens, trevas. No vazio vácuo insensível, sem toque, sem gosto e sem cheiro, neurônios seriam breu.

As sensações abrem caminhos pelos nervos competentes até o cére­bro - lá se espraiam. Deixam suas marcas e são marcadas pelo que lá encontram: memórias de outras sensações, ideias e emoções, em livres e complexas associações. Os caminhos abertos pelos sentidos são abertos nas duas direções, ida e volta - rios cujas águas descem rio abaixo, como em todos os rios, e sobem rio acima, como em nenhum outro. Águas impuras - as sensações (águas) impurificam nossos sentidos (rios): ne­nhum sentido é puro!

Essa faculdade nos permite receber e projetar sensações - as alucinações são os mais belos exemplos de memórias impuras e deformadas.

Por essa razão, quando falamos em psicologia estamos falando da sociedade onde ela habita. Toda psicologia em algum lugar reside: no mundo vive, dentro e fora de cada um de nós.

Cada neurônio se especializa em consequência de estímulos exterio­res repetidos que recebe, e se relaciona com outros neurônios formando caminhos nevrálgicos (homogêneos) e redes neurais (heterogêneas, compatíveis).

Neurônio extraviado que se isole, morre! No cérebro não há lugar para solidões eremitas - o cérebro é social.

Sinapses são zonas de encontro entre neurônios, através das células nervosas chamadas neuritos:[nota 17] axônios, que transmitem, dentritos, que recebem mensagens. Braços suaves que se abraçam sem se tocar, criando espaços por onde circula a informação, seja imagem, som, palavra, prazer e dor, lembranças, diálogos... Isso se faz através de processos químicos e estímulos elétricos que ligam um neurito a outro.

 

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As sinapses se multiplicam e se diversificam na medida em que são estimuladas.[nota 18] Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais invento como usar pincéis e tinta, como se fosse pintor. Quanto mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz como cantor. Quanto mais fizer bailar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como se fosse poeta.

Fazendo, serei pintor, poeta e cantor. Sou.

Saber, conhecer e experimentar expandem minha capacidade de co­nhecer, saber e aprender. Expandem além da busca e me fazem encontrar o que nem sequer procuro. “Não busco: encontro!” - disse Picasso.

Nós também encontraremos o que não buscamos se nos dedicarmos a ver o que olhamos, ouvir o que escutamos, sentir o que tocamos, escrever o que pensamos, pensar o que sentimos, pintar o que queremos, cantar descobrindo a nossa voz. Somos Picassos, cada um na sua medida e ao seu tempo - modestamente.

Para nossa alegria, nos seres humanos existem neurônios que, den­tro dos circuitos que integram, acumulam múltiplas funções, capazes de receber, produzir e transmitir sensações físicas, emoções concretas e ideias abstratas.

A Estética do Oprimido baseia-se no fato científico de que, em um indivíduo, quando são ativados esses neurônios plurifuncionais, eles não ficam lotados de barriga cheia como bytes de um computador à espera de um agente exterior. Neurônios são vivos, dinâmicos; sua capacidade de armazenar informações e processá-las não se esgota nem se repleta - o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular!

Neurônios estimulados formam circuitos cada vez mais capazes de receber, transformar e transmitir mais mensagens simultâneas - sensoriais e motoras, abstratas e emocionais -, enriquecendo suas funções e ativando neurônios de perto ou de longe, que entram em ação criando redes cada vez maiores de circuitos entrelaçados que nos fazem lembrar outros circuitos, estabelecendo relações entre circuitos, quer tenham óbvias ou insuspeitadas afinidades, o que nos permite criar, descobrir, inventar, imaginar. A imaginação vai além do lembrado.

 

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A imaginação é a memória transformada pelo desejo.

Esse tipo de neurônios e circuitos neuronais se localizam especial­mente no córtex e no tálamo, que são as partes mais humanas do cérebro humano, por suas infinitas possibilidades de entrelaçamentos criativos. São capazes de todas as expansões e, pena, de todos encolhimentos.

Pedindo antecipadas desculpas aos neurocientistas, quero batizá-los de neurônios estéticos porque é essa a função da Estética: através dos sentidos emocionados, luzir razões, promover transformações.

As mensagens recebidas pelo córtex, transformadas em circuitos neuronais, relacionam-se com outros circuitos já existentes em camadas mais profundas do cérebro, trazendo-as de volta ao córtex, onde vão dialogar com as novas mensagens, diálogo do qual nascerão as ações e decisões do sujeito.

Todos esses circuitos modificados retornarão às camadas subcorticais, de onde, por sua vez, irão influenciar a recepção de novas mensagens com as quais guardem alguma relação: os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos sons; as primeiras imagens, a de novas imagens; as velhas palavras serão confrontadas com novas palavras; velhos conceitos com conceitos novos; primeiros valores com valores recém-chegados.

Todos esses primeiros arcaicos não são imutáveis e podem ser modi­ficados, substituídos ou erradicados, porque não são definitivos - nada no ser humano é definitivo, a começar pela vida! Quanto mais arcaicos, porém, mais resistentes serão a qualquer transformação.

Se uma pessoa começa a pintar - não importa idade, sexo, cor da pele ou rugas dos olhos, condição social ou conta bancária -, se começa a dançar, fazer teatro ou qualquer arte, ativa esses superdotados neurônios pluripotenciais e o resultado será um aumento não só da sua sensibi­lidade, mas da inteligência, não só da sua capacidade de compreender, mas de sentir.

Este nosso novo conceito de arte nada tem a ver com as hierarquias monárquicas piramidais: não se distribuem títulos honoríficos de aprendiz, artista, talento, gênio... Todos são o que fazem: quem pinta é pintor.

 

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A atividade estética é um atributo do ser humano, um dos mais sufocados, estrangulados, que devemos libertar. Alguns produtos estéticos (obras) nos balançam, assustam, comovem, iluminam; outros não. Não devemos esquecer, no entanto, que aprender e apreender são obra do sujeito mais do que dos          objetos - diante do mesmo objeto ou evento, há quem muito aprenda, enquanto outros restam mudos.

Os neurônios estéticos são os mais importantes do sistema nervoso porque neles os sentidos coexistem com a razão, o concreto e o abstrato. A percepção estética incorpora razão e emoção, juízos e valores, não apenas sensações![nota 19] Dada essa qualidade pluridimensional, a expansão dessas redes não se faz apenas por vizinhança ou semelhança, mas pode se ampliar a todo o espaço cerebral e psíquico, desde a mais remota memória até a mais complexa imaginação.

Neurônios estéticos estimulam o Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico, reforçam esta relação permitindo que o sujeito produza e compreenda metáforas.

Sem metáforas não existe pleno entendimento. As metáforas são essenciais aos seres humanos, pois permitem que, ao delas nos afastarmos e nelas nos reconhecermos, ganhemos perspectivas delas e do real, e assim possamos melhor compreendê-los. São evoluídas e sofisticadas formas de conhecimento. O processo estético é criador de metáforas e, além de útil em si, mais útil se torna se puder criar um produto artístico que possa ser compartido, socializado.

O produto artístico - obra de arte - deve ser capaz de despertar ideias, emoções e pensamentos semelhantes aos que levaram o artista à sua criação. O processo estético desenvolve nossas capacidades perceptivas e criativas atrofiadas, aumenta o nosso poder de metaforizar a realidade.

 

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Somos todos artistas, mas poucos exercem suas capacidades. Há que     fazê-lo! Não podemos ser apenas consumidores de obras alheias porque elas nos trazem seus pensamentos, não os nossos; suas formas de compreender o mundo, não a nossa. Seus desejos, não os nossos. Elas podem nos enriquecer; mais ricos seremos produzindo, nós também, a nossa arte, estabelecendo, assim, o diálogo.

Dostoievski escreveu que “Só a beleza salvará o mundo”. Podemos traduzir: “Só com a Estética, que é a razão do Pensamento Sensível, torna- se possível a mais profunda compreensão do mundo e da sociedade, e de nós mesmos”.

 

Metáfora — translação e transubstanciação

A metáfora, no sentido etimológico de translação e transubstanciação, transpõe algo que existe no contexto cotidiano para um contexto dife­rente - como palavra deslocada do seu texto para outro. Ou constrói, em outra substância, imagens da realidade original, como um quadro ou uma estátua.

Metáfora é visão organizada do mundo - não é a coisa, é outra coisa: uma visão da coisa. Metáfora é meta: é além de.

Além da literatura oral e escrita, abrange as linguagens simbólicas, entre as quais todas as formas de ficção ou narrativa, em qualquer estilo - mas com estilo -, inclusive, mas não limitada a, a parábola, a fábula e a alegoria. Abrange todas as artes visuais, vivas em palco ou arena, documentadas em tela, fita ou foto, todas as artes sonoras, acústicas ou eletrônicas, todas as que já existem ou que venham a ser inventadas.

Metáforas existem em três formas gramaticais, sendo duas literárias: a metáfora adjetiva - “O capitalismo é um tigre de papel” -, a metáfora adverbial - “O carro voava na pista”, onde o verbo voar é usado adver­bialmente como um modo particular de correr - advérbio eclipsado.

Todas as obras de artes plásticas e teatrais, por sua vez, são metáforas substantivas. Sólidas substâncias, como a pedra e o corpo do ator, ou fluidas, como o som e palavras ao vento.

Existem ainda metáforas por metonímia - “Um copo de vinho” -, metáforas por analogia - “Murro em ponta de faca!”. Metáforas não faltam!

 

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A palavra nomeia conjuntos, e a metáfora literária organiza esses con­juntos para que possam ser nomeados. Essa organização é feita por um sujeito a partir de um ponto de vista localizado no tempo e no espaço - é social e política onde quer que se encontre o sujeito, jamais cósmica.

As artes plásticas organizam traço, volume e cor. O desenho, a pintura e a escultura, pelos próprios elementos que utiliza - lápis, tintas, pincéis, tela, ferro, barro, mármore... -, já se distanciam por eles mesmos da realidade original, criando outra, igual e diferente - não se trata apenas de uma translação literária, mas de uma transubstanciação.

A música organiza o som e o silêncio. Escreveu a filósofa estaduni­dense Suzanne Langer (1895-1985): “A música nos faz ouvir o silêncio”.[nota 20] E bonito.

A dança nos revela a musicalidade do corpo, casando corpo, espaço, melodia e ritmo, que estruturam o tempo. A fotografia, na imagem, en­carcera o tempo no instante que nos foge. Cinema, metafórico pelo ato eletrônico de filmar, mostra a imagem em movimento ou o movimento da imagem. A literatura tem como seus instrumentos o léxico e a sintaxe, rima e ritmo, todas as figuras literárias e o que mais se invente.

O teatro organiza as artes que organizam a vida social, fora e dentro de cada um de nós, para que possa ser metaforicamente compreendida à distância, não com o nariz colado à realidade onde vivemos. A distância estética permite ver o que, diante de nossos olhos, se esconde.

Quando ativamos, pelo exercício das artes, os circuitos neuronais estéticos, eles disparam e formam redes em todas as direções cerebrais, ao contrário dos neurônios especializados, que cantam uma nota só.

Os circuitos neuronais estéticos, transmitindo mensagens sensoriais entrelaçadas com as simbólicas, devido à sua imprevisibilidade, não seguem sendas batidas, caminhos cansados. São vagabundos de todos os espaços, tempos e rumos. Vagueiam velozes no cérebro, surpreendendo o jamais visto. Nos caminhos conhecidos, onde também se embrenham, desco­brem novas maneiras de ver e, pela memória, revisitam redes neuronais ainda em brasas, que não se apagaram após labaredas de amor antigo, ódio intenso, angústias no emprego, medo do custo de vida.

 

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Como estão em redes sinápticas, é como se abrissem os olhos e pu­dessem ver, sensibilizassem os ouvidos, e ouvir; despertassem os sentidos, e sentir. Com ideias, pensar palavras.

Guiados pela razão, esses neurônios permitem ao indivíduo organizar o mundo de forma estética e não apenas noética, para conhecê-lo pleno de posse da paleta do entendimento sensível, que aprofunda a paleta simbólica.

A matéria adquire consciência de si mesma e o cérebro torna-se mente. Salto misterioso como o das moléculas químicas que saltam para a vida, o que contraria Leibnitz, filósofo alemão do século dezoito, para quem “natura non facitsaltus”. Faz sim - ele é que não sabia.

Na arte, o barro continua barro; transformado pelas mãos de Mestre Vitalino, surgem os personagens nordestinos que o bruto barro escondia: só Vitalino os via. Nossa melancolia está em Hamlet; nossa ambição é Ricardo; nossa hipocrisia é Tartufo.

Cientistas têm estudado alguns animais para determinar em que são semelhantes a nós. Parece ser que elefantes e golfinhos são capazes de se reconhecer no espelho, como nós; orangotangos e chimpanzés são capazes de uma linguagem rudimentar que ultrapassa os limites dos conselhos aos filhotes ou a ameaça aos inimigos; em cativeiro, fazem gestos simbólicos que indicam fome e sede. Parece ser que algumas raças de cães são capazes de entender o significado de algumas frases, mesmo em línguas diferentes. Parece ser... Mas nenhum outro animal é capaz de construir metáforas.

A evolução dos hominídeos até o atual ser humano não foi retilínea nem contínua. Na Ilha das Flores, Indonésia[nota 21] foi descoberto o esqueleto de um hominídeo que data da mesma época em que homens e mulheres de Neandertal desapareceram misteriosamente, vinte ou trinta mil anos atrás, quando coincidiam na terra com os Cro-Magnon e talvez com ou­tras espécies pré-humanas ainda não descobertas. Nós talvez sejamos, de um destes, a linhagem, ou o resultado de cruzamentos entre Neandertais, Cro-Magnons, Homo Floresiensis e outros ainda soterrados.

 

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Os hominídeos se humanizaram quando inventaram a palavra, a pintura, a música, a dança e o teatro. Para entender o real, é necessária a istância estética. Não importa se o produto dessa atividade metafórica era depois utilizado para fins religiosos, ou não; como metáfora, ela precede seu uso.

Nós não devemos vê-los com olhos modernos: pintando suas ca­vernas, os hominídeos não estavam decorando seus apartamentos, mas criando metáforas de animais que permitiam estudá-los - necessitavam abatê-los: tinham fome.

Por que falo tanto de metáfora? Porque é preciso!

Pintavam cenas de sua vida cotidiana e faziam abstrações geométricas da realidade que os cercava. No Nordeste brasileiro, no Piauí e Rio Grande do Norte, em Mato Grosso e Minas Gerais, temos exemplos do estilo realista e do geometrizante, como em outras partes do mundo. Não se sabe se o geométrico significava regras e normas, e os comportamentos realistas - mas é provável que sim.

Os humanos criaram algo parecido ao que Platão chamava de mundo das ideiasperfeitas, em contraposição às realidades sensíveis. Sócrates já havia estabelecido o conceito de logos: não o fenômeno, mas o conceito, que abrange todos os fenômenos da mesma natureza. Fazendo uso de ampla licença poética, podemos dizer que a dança é o logos do movimento; a música, o logos do som; o teatro, o logos da vida.

Contrariando Platão, Aristóteles dizia que o sonho de perfeição re­sidia no coração do mundo imperfeito, era o motor do seu movimento para a perfeição. Nesse sentido, a moral é a imperfeição daquilo que é como é - mores: costumes. No seio da moral, nasce a ética, aquilo que deve ser: a busca, o sonho de perfeição.

Faz parte da nossa estética criar condições para que os oprimidos pos­sam desenvolver sua capacidade de simbolizar, fazer parábolas e alegorias que lhes permitam ver, a distância, a realidade que devem modificar.

 

Exemplo grego — só exemplo

Sensivelmente, a natureza é descontínua e aleatória. Segue suas leis, é verdade - coqueiro não dá banana, nem tangerina! -, mas permite todas as unicidades: nenhuma banana é igual a outra banana, nenhum coco a outro coco.

 

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Para nela viver, o homo mais ou menos sapiens procura criar parâ­metros. A invenção das palavras e dos conceitos, o sistema métrico e outras formas de medição do tempo e do espaço, a lavoura sedentária e a arquitetura pesada, a moral e as leis, ciências e filosofias, sinais de trânsito e regras em cada esporte - como, em outro registro, artesanato e obras de arte - são tentativas bem-sucedidas de se criar parâmetros e paradigmas que nos orientem.

Todas essas inovações ocorrem no tempo e no espaço, transitó­rios: não são eternas. Nas artes, sucedem-se estilos e modismos; nas palavras, intervém a semântica, que transforma o sentido que um dia tiveram; nas ciências, descobertas e invenções; nas leis, revolu­ções, e a medição do tempo e do espaço tornam-se, com Einstein, relativas. O mundo transforma-se a cada dia, nada permanece igual ao que era.

A Grécia sempre me fascinou pela simplicidade da sua complexidade. Sobre sua História pode-se ter uma vista de voo de pássaro e compreendê-la em linhas gerais; pode-se mergulhar nos seus mares densos de sol e aprender mais.

No século vi antes na nossa era, as cidades gregas eram estruturadas sob o poder aristocrático: governavam os melhores - melhores segundo eles próprios, os aristois, donos da terra, como os coronéis nordestinos. Parece certo que camponeses sem terra eram obrigados a dar 3/5 do produto de suas colheitas em pagamento do uso daqueles latifúndios. Os aristois faziam a lei.

Os ideais sociais e políticos dessa aristocracia autocrática eram sim­bolizados no homérico Belo Guerreiro, saudável e destemido, cultor do corpo e do espírito, repleto de todas as virtudes da guerra e da paz, capaz de dar a vida pela pátria sem hesitar - a esse conjunto de normas de perfeição dava-se o nome de Areté.

Tais perfeições, é claro, só eram possíveis graças à exploração que os aristocratas exerciam sobre camponeses e pastores. Nenhum herói grego era obrigado a lavar os pratos depois do banquete, nem a varrer a casa depois da chuva. Se tivessem que pastorear cabras e lavrar a terra, pouco tempo lhes sobraria para tantas perfeições. Os heróis aristocráticos não serviam de paradigma - eram ideais admirados e temidos para serem vistos de longe; imitá-los, impossível.

 

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Fenômeno semelhante, mas não igual, à admiração que sente hoje a gente pobre vendo telenovelas com personagens abastados, lendo revistas sobre milionários.

A sociedade no seu conjunto tinha, impostos pelos aristois, valores inquestionáveis sobre costumes, economia, posse da terra, decisões políticas... Para que esses valores fossem aceitos pela pobre plebe, era necessário simbolizar esse mundo através de heroicas figuras perfeitas. Se são belas, são verdadeiras... como na tv.

Alguns não-aristois tinham sua parcela de poder - crescia o comércio e, com ele, a barganha, a instabilidade dos preços, dos valores e das trocas: quanto vale isto, quanto aquilo? A troca, o comércio, são necessários por­que ninguém pode produzir tudo que precisa consumir. Todos queriam comprar e vender: ter mais poder.

Nesse crescente jogo econômico começou a desfazer-se o monolitismo do poder global aristocrático, retalhado pelas guerras entre cidades, caça aos butins e aos prisioneiros transformados em escravos, provocando mudanças nos costumes e no pensamento.

Se o modelo do Belo Guerreiro já não era indiscutível, outro haveria de ser criado. Como fazê-lo se não se sabia para onde iam as cidades sem os velhos parâmetros e sem novos?

Para tentar compreender os novos tempos econômicos e sociais, na esfera do pensamento surgiram os sofistas: sophistês, de sophizesthai, tornar-se sábio; sophos, “sábio”.

Esses novos sábios queriam conhecer a verdade; melhor ainda, todas as verdades, não apenas a verdade de um lado só, como até então, naquele mundo globalizado pelos aristocratas. “Abaixo o pensamento único!”, pensavam, com outras palavras, os sofistas!

Como fazer? Examinando cada fato - evento, comportamentos, pes­soas e decisões - por todos os lados e não por um lado só. Defendendo com unhas e dentes um dos termos em conflito e, logo depois, com dentes e unhas, o lado oposto.

Protágoras foi um desses criativos sofistas. Contava-se dele uma his­tória que fazia seus interlocutores pensarem de verdade, a fundo, sem repetir frases feitas e conceitos estabelecidos pelos aristocratas, que não permitiam o pensamento livre, isto é, não permitiam pensar.

 

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[Início de citação] O jovem Euathlus queria ser seu aluno e foi procurá-lo. Protágoras, era grande orador, portanto, advogado. Como não tinha dinheiro, o aluno propôs pagar suas aulas no fim do curso, com o salário que receberia pela sua primeira vitória em seu primeiro julgamento. Protágoras aceitou. No meio do ano, o aluno desistiu e foi-se embora. Protágoras reclamou em juízo o pagamento dos serviços que já lhe havia prestado como professor, e o aluno foi trazido aos tribunais para se defender.

O aluno recusou-se a pagar alegando que não havia terminado o curso nem ganho qualquer causa e que, portanto, a obrigação de pagamento não existia. O juiz lhe deu ganho de causa.

Protágoras retornou ao combate e afirmou que, tendo ele, Protágoras, perdido a causa, quem a ganhara havia sido seu ex- aluno, que, em tão pouco tempo, tanto aprendera. Portando, como ganhador de sua primeira causa, o aluno deveria pagar.

O juiz pensou, pesou... olhou os dois lados da questão... paga ou não paga? Examinou bem... e... o que pensaria você, leitor?

Diga lá — eu não vou ajudar em nada: pense com sua cabeça, como aconselhava Protágoras! [Final de citação]

 

É verdade que cada coisa tem dois lados; cada lado, outros lados tem. Postos frente a frente, estabelece-se um jogo de espelhos, e todos os lados se multiplicam ao infinito porque cada lado pode, no espelho, aparecer do outro lado e refletir-se, depois, no próprio lado - pingue-pongue. Substitua agora os lados por opiniões e faça o mesmo raciocínio. Assim é o pensamento abstrato - tudo pode ser pensado de mil maneiras.

Cada infinito tem dois lados... mas como nós não temos tempo a perder e o mundo é veloz, temos que examinar todos os lados, mas es­colher logo o nosso, tomar partido, saber de que lado estamos. Analisar é bom - mas temos que chegar a uma decisão.

Tão longe os sofistas não queriam ir: queriam pensar, debater, dia­logar, desestruturar certezas e, diga-se de passagem, queriam confundir um pouco - era divertido.

 

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Até hoje as palavras sofista e sofisma significam vulgarmente algo como embusteiro e embuste. Mas Protágoras, Gorgias e outros sofistas eram homens sérios: pensavam. Hoje, pode-se dizer que queriam destruir os valores aristocráticos. Nenhuma sociedade pode avançar mantendo os valores do passado: há que inventar o futuro. Para isso servem as revoluções e, em menor escala, as reformas, como em II Gattopardo, do escritor Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Algo deve mudar para que tudo possa permanecer igual”!

Os sofistas inventaram uma forma de dialética só com tese e antítese, sem síntese. Com palavras, os sofistas queriam destruir as próprias pala­vras; semear a incerteza como caminho para o entendimento, chegar à realidade de cada caso concreto: ato e ator são indissociáveis, como crime e criminoso, a virtude e o virtuoso. Protágoras escreveu que “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são”. Nisto se opunha a Sócrates, que buscava os conceitos válidos para todos, em todas as circunstâncias.

Esta frase pode refletir uma visão antropocêntrica contrária àquela imposta pelos preceitos aristocráticos, eternos, imutáveis. Este entendi­mento se inspira na descoberta da Pedra de Salamina, na qual todo um sistema métrico é proposto em forma de desenhos de partes do corpo humano médio: altura, tamanho dos braços e pés-dórico, jônico e o pé genérico, que hoje ainda é o nome de uma medida usada nos países anglo-saxões, como a braça, que vai de um punho ao outro, com os braços esticados. Um pé (30,48 cm) equivale a 12 polegadas, outra parte do corpo. Exemplificando: quando estamos em um avião de longa distância, nossos pés estarão voando a trinta mil pés...

Protágoras e os outros eram homens sérios e cobravam por seus ensinamentos, com toda seriedade... Da mesma forma que os pastores negociavam o preço do seu rebanho, os camponeses o das colheitas, na­quele mundo em transformação os sofistas negociavam o preço dos seus pensamentos - mercadorias valiosas. Foram eles os primeiros a afirmar que pensar custa caro! Cobravam cem minae por cada conversa - não sei quanto valia cada mina, nem como se fazia o câmbio naquela época, não sei se era caro ou barato, mas... sei que tinha preço!

- “Os deuses existem?” - perguntavam. “Não tenho a menor ideia...” - respondia Protágoras. - “A pergunta é obscura e a vida muito curta para descobrirmos tamanho mistério...”

 

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Esta perigosa resposta - ao preço de cem minae! - punha em dúvi­da a existência das divindades, que, existindo ou não, tinham para os aristois e para o conjunto da sociedade uma função precisa: asseguravam o respeito à ordem estabelecida, a ordem, mantendo o mundo o mais imóvel possível... além das invasões de cidades inimigas, onde iam buscar riqueza e escravos.

Com os sofistas, faziam mudanças estruturais - era uma revolução. Por pensarem assim - e pelos seus escritos, mais duradouros que o vento das palavras -, os atenienses, habituados às certezas aristocráticas, não suportaram dúvidas. Atônitos, despidos dos valores aristocráticos tradi­cionais - destruídos pelos sofistas - e sem outros valores em seu lugar, os atenienses não acharam coisa melhor do que queimar seus livros e exilar o autor, Protágoras, que era estrangeiro, nascido em Abdera, em 480 ac, e que foi morrer na Sicília em 410 ac. Pensavam que, com sua expulsão, ficaria sobrando um lado só, o velho e bem conhecido lado aristocrático. Mas Diógenes Laertius, historiador de filósofos, contou toda sua história, que agora pode ser lida e vista por muitos lados.[nota 22]

O grande feito dos sofistas foi desmontar um sistema de valores exis­tente - foram destruidores de valores aristocráticos. Destruir era preciso, mas construir também. Os sofistas enfureciam Sócrates, que não queria saber de que lado estavam as palavras, mas sim o que elas significavam: queria que ninguém usasse nenhuma palavra quando não soubesse o que essa palavra queria dizer. Para ele, sofismar era fácil se ninguém conhecesse o significado exato de cada palavra que pronunciava.

Em um dos diálogos narrados por Platão - Gorgias -, Sócrates diz: “se um doutor, sábio, inteligente, profundo conhecedor do seu ofício, explica seu tema ao Orador (Retórico), que antes nada sabia, e se vão os dois depois pedir o mesmo emprego relativo a esse setor do conhe­cimento, é certo que o Retórico-Orador ganhará daquele Doutor, pois usará, não a palavra justa, mas a de maior efeito. Seu discurso será mais convincente, mesmo que pouco entenda do que diz”.

Em palavras menos complicadas, o célebre Velho Palhaço da TV, Chacrinha, costumava dizer: “Quem não se comunica, se trumbica!” Mais uma vez, perdão pelas comparações milenares.

 

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Protágoras havia acionado os tribunais em busca de Justiça: Sócrates não se perguntava quem tinha razão, mas o que é a Razão? Justiça?! O que é Justiça? Aluno e mestre haviam-se tornado inimigos? Mas... o que é a Amizade? O juiz, examinando o caso, mostrou-se um homem virtuoso? Porém... a virtude, o que será?

Sejamos sofistas para destruir o pensamento único; socráticos para determinar novos e necessários valores.

Sócrates tanto se apaixonava pelas palavras e pelos conceitos de cada palavra que recusava os conhecimentos dos sentidos como se fossem falsos e enganadores.

Conceito: para ele, só ali estava a verdade. Cada um poderia dizer o que quisesse, mas o conceito de cada palavra seria sempre o mesmo, um só. Nós sabemos, porém, que isso é impossível: os conceitos tampouco são unívocos porque são feitos, eles próprios, de palavras, e cada palavra pode ter diversos conceitos segundo quem conceitua...

Sócrates confessa, horas antes da sua morte, a julgar pela transcrição platônica de suas falas a Cebes, em Fedon, que, no princípio de seus estudos, queria entender a Natureza mas acabou desistindo.

“Quando abandonei a investigação da realidade”, diz ele, “decidi ter cuidado para que não me acontecesse o que acontece aos que olham para o sol durante um eclipse: perdem seus olhos, a não ser que olhem a imagem do sol refletida na água. Pensei nesse perigo e temi que a mi­nha alma ficasse cega se eu olhasse as coisas com meus olhos e tentasse entendê-las com meus sentidos.”

Sócrates obliterou seus sentidos em favor dos conceitos, dos logos. Era, porém, impossível traduzir em palavras tudo que os meios estéticos, sensoriais, sabem fazer melhor: a linguagem dos sentidos é sinalética; a das palavras, simbólica. São complementares e não adversários, mesmo quando se enfrentam.

Sabemos que não é apenas o sol que não pode ser visto cara a cara, olho a sol, mas também o ferro em brasa não pode ser tocado com a mão descoberta porque esturrica a pele, a carne e até o osso. Há pimen­tas que queimam a boca.

 

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Mas nem por terem estreitos limites físicos nossos sentidos deixam de ser úteis nas faixas sensíveis, que são capazes de registrar sem danos. Dos nossos sentidos, nem a palavra escapa, pois que ela será sempre por eles percebida quando a ouvimos, ou mesmo quando a lemos. A verdade dos sentidos é outra verdade, tão verdadeira como a das palavras - não é a mesma.

Sócrates abandonou a realidade dos sentidos e se concentrou nas ideias abstratas. Disse ter ouvido, de um sonho[nota 23] um conselho: o sonho dissera-lhe para compor uma música. Como se sentia incapaz de inventar uma música do nada, buscou inspiração em versos de Esopo. Lendo os versos, pensou música — o que prova que, apesar de tudo, o filósofo já conhecia a sinestesia...

Pena que o sonho não lhe tenha dito também que pintasse suas emo­ções e pensamentos, que dançasse seus desejos, cantasse seus lamentos... Talvez, assim, ele tivesse unido os dois pensamentos em vez de tentar reduzi-los a um só.

Tudo flui, é verdade, meu bom Sócrates; águas fluem, pedras rolam... mas o rio existe e canta! Temos que ver o rio, pedras e águas; ouvir seus lamentos e sua fúria. Temos que beber a água, atirar pedras e nadar no rio; temos que pensar rios, pedras e águas.

Sócrates, que tanto amava palavras, mesmo sem ter cometido crime, morreu pelas palavras que pronunciava e por outras que nunca haviam saído de sua boca: durante seu julgamento, o filósofo fez questão de afirmar quais ideias professava, bem diferentes da figura que, dele, o aristocrata Aristófanes havia pintado em sua comédia As Nuvens. Nela, o comediógrafo caluniador mostra um personagem vil, a quem chama de Sócrates, como porta-voz dos sofistas que, na realidade, Sócrates tanto combatia. [nota 24]

 

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Esse testemunho ficcional esteve presente no julgamento: “O linho, uma vez manchado, jamais volta a ser tão branco como era antes” - es­creveu Bertolt Brecht. Os que o julgaram, colavam a imagem do bobo Sócrates aristofanesco à imagem real que tinham diante de si do verda­deiro Sócrates sendo julgado.

Dos juízes, Sócrates só ouviu uma palavra: “Morte!”. Seu conceito era a cicuta. Consequente com suas ideias, bebeu, de sua mão, o veneno.

 

Com Platão restabeleceu-se a dignidade da imperfeição: existem dois mundos, sim, um Sensível, outro Simbólico. Foi exatamente isso que, com outras palavras, disse Platão. Só que esses dois mundos são o mesmo mundo: nele vivemos.

Na verdade, o que existe são duas formas de perceber o nosso mundo, pela simples razão de que temos duas formas de pensar.

 

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Monarquias políticas e artísticas

 

Todas as coisas precisam ser nomeadas para que seja reconhecida a sua existência, mesmo invisível. Quem não tem nome, não existe; quem deixa de ser o que era, precisa de rebatismo.

As cidades gregas haviam mudado. Atenas já não era a mesma aristo­cracia. O que era então? Os gregos tinham que solucionar esse problema nomenclatural: vinte e cinco séculos atrás inventaram uma palavra nova, bonita, elegante: democracia! Assim foi batizada aquela que seria a estrutura política ideal para o não‑opressivo relacionamento entre habitantes de uma cidade, onde a todos seria dado o direito à palavra - palavra é ato. Não basta falar, é preciso dar sequência, produzir consequências.

Na prática, porém, a generosa ideia de democracia revelou-se difícil de ser realizada, não por causa dos seus defeitos, mas por sua principal virtude: a organização política na qual deveria predominar o respeito e a valorização do indivíduo, todos os indivíduos, com suas opiniões, necessidades e idiossincrasias.[nota 25]

Nessa franca liberdade reside a riqueza da democracia... e seus perigos. Os ditadores, ao contrário, com suas pequenas variações cromáticas, são todos iguais. Bem cedo, nos debates da Ágora, na praça, nas grandes decisões, começaram a surgir oradores mais capazes, projetando-se os mais hábeis, ardilosos, destros, sagazes, assumindo o poder da palavra, origem de quase todos os poderes humanos.

 

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Por essa razão, desde as hordas primitivas até hoje, no mundo só existiu e existe um único sistema político, a monarquia, imposta pela clava, pelo tacape, por punhais, medo, Bolsa de Valores ou dinheiro, vestida de variadas formas e cores; monarquias hereditárias ou nomeadas, sanguinárias ou esclarecidas: imperiais, despóticas, oligárquicas, plutocráticas, ditatoriais, parlamentares etc.

Assim se organizam os seres humanos na guerra e na paz, no traba­lho e no lazer, nas ciências e nas artes, nas famílias de qualquer espécie, tribos, nações e estados.

Sua essência consiste em dividir pessoas em estamentos, castas ou classes, escadas de poder e direitos, dentro de uma estrutura piramidal, aproximativamente como nos exércitos ou como na Idade Média - reis, príncipes, condes e viscondes, barões e baronetes, unidos pelo sistema de obediente vassalagem da dicotomia senhor-vassalo, senhor de outro vassalo, senhor de menor vassalo, e assim rolando escada abaixo até o mais mísero camponês, sua mulher, filhos, cachorro... e o gato.

Este meu entendimento abrangente da palavra monarquia tem suporte na sua etimologia: monarca - do grego Monarkhês: monos, so­zinho; arkhein, comandante. Vivemos uma guerra semântica e eu sou combatente. Temos que plantar bandeiras nas palavras conquistadas - é o que pretendo fazer.

A dicotomia suserano-vassalo, apoiada na fidelidade servil e vertical em toda a escada piramidal, é o elemento estrutural da pirâmide monár­quica, que será tão mais absolutista na medida em que o vértice e a base estiverem mais distantes; menos absolutista (ou mais democrática) na medida em que vértice e base se aproximarem, esta podendo influenciar aquele, ainda que vagamente.

A solidez da estrutura piramidal se dá pelas armas, pela religião, por tradição, medo, ignorância, apatia ou convencimento. Os golpes de estado acontecem no vértice; as revoluções, na base; os reformistas estão no meio.

A Estética do Oprimido é um método artístico que pretende ajudar a restaurar a ideia original e humanística de democracia diminuindo as distâncias entre base e vértice.

A Estética do Oprimido é a Estética dos Direitos Humanos!

Figuras como mordomo, capataz e chefe de polícia são exemplos mo­dernos do sistema de vassalagem. Apesar do enorme poder que exercem sobre seus subordinados, podem ser despedidos a qualquer momento por seus patrões, que estão, por sua vez, submetidos aos seus superiores até o mais alto e poderoso.

 

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A pirâmide monárquica pode ser dona do poder quase total, como a de Luiz xiv; pode deter o poder político, mas não o econômico - Elizabeth i, na época de Shakespeare, era a maior devedora dos bancos (ou agiotas) ingleses, poderosos nos séculos xvi-xvii.[nota 26] Pode professar ideologias apelidadas de populares, como no caso dos regimes da Europa do Leste antes da queda do Muro de Berlim. Stalin, seus similares e aliados, eram perfeitos monarcas, segundo a etimologia do termo. Os jovens da revolução cultural chinesa, seguidores do monarca Mao Tse Tung, obedeciam como vassalos ao livro vermelho, mesmo que nem sempre o compreendessem.

A pirâmide monárquica pode ser um ornamento para embelezar festas cívicas e religiosas - Elizabeth ii; pode ser vassala do imperialismo, como as ditaduras cívico-militares latino-americanas dos anos sessenta a oitenta - em bom português, paus-mandados. Monarquias ventríloquas, bonecos que parecem falar - na América Latina foi o que mais tivemos.

Pode a monarquia deter o poder setorial compacto, como o poder da informação (tv, jornais, editoras etc.), e fragmentado, como as bandas podres de corporações policiais, milícias e seitas eletrônicas, indústrias dos milagres por atacado (uma delas faz milagres até pelo telefone, de­pois de recebido por fax o recibo do depósito bancário correspondente à gravidade da doença a ser curada...).

O verdadeiro poder pode ser dissimulado, como acontece com as corporações multinacionais - monarquias econômicas invisíveis - que governam o país, mas não se exibem, enquanto o governo constituído, a monarquia visível, lhe serve de escudo e camuflagem.

Para isso, necessita de insígnias e rituais, cerimônias, desfiles, missas, condecorações, para que pareça ser o que não é, e esconder seus senhores.

Quem nomeia o monarca, rei, imperador, coronel nordestino, chefe de família ou gangue, maestro, catedrático, cacique, caudilho ou generalíssimo? Quase sempre uma tradição que se perde no passado esquecido, apoiada na força física ou na lavagem de cérebros, na força das armas ou no poder que cada obediente vassalo tem em relação aos seus inferiores.

 

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Pode-se apoiar no intenso carisma de um líder ou na crença em uma entidade sobrenatural, como o Espírito Santo, por exemplo, que está supostamente presente nos conclaves, onde inspira e nomeia o monarca católico, infalível monarca-papa, através dos seus cardeais, chamados príncipes da igreja. Jesus tinha, modestamente, doze apóstolos; o monarca vaticano, mais de cem príncipes‑cardeais - isso é que é progresso!

Hirohito - bom exemplo -, até o fim da última Grande Guerra Mundial, era o descendente direto de um casal de deuses xintoístas, Izanagi e sua irmã-esposa Izanami, que, no começo do mundo, depois de criarem deuses da máxima importância, como Amaterasu-o-mi-kami (o sol), Tsuki-yomi-no-mikoto (a lua) e Susa-no-o-no-mikoto (o tufão), estavam confortavelmente sentados em um mítico e gigantesco arco-íris, remexendo águas do mar, fazendo ondas com uma vara de pérolas, quan­do, ao levantarem a vara, algumas gotas de água - suponho que também algumas pérolas - caíram no oceano, criando as ilhas do Japão. Em outra versão do mesmo mito, a vara era espada e o arco-íris era a ponte, unindo a terra dos deuses à dos humanos. Ponte: une ou separa?

Perdida a Grande Guerra Mundial, Hirohito foi obrigado pelas forças armadas da ocupação a renunciar à sua linhagem celeste. Voltou a ser quase tão humano como qualquer japonês. Muitos, no entanto, ainda hoje acreditam na descendência divina daquele imperador, já falecido - convicções profundas não se desfazem com um piscar de olhos, nem com solenes declarações à imprensa.

Segundo o livro sagrado do xintoísmo, o Kojiki, a deusa Izanami continuou dando à luz alguns outros deuses menores, entre eles o Deus do Fogo; imprudente, ela morreu carbonizada no incêndio do parto.

São belas histórias, poéticas e sedutoras, mas apenas histórias... belas, sedutoras e poéticas. Alguns deuses ou filhos de deuses nasceram das axilas de suas mães ou de mães virgens - ambas impossibilidades científicas. Não podemos confundir a metáfora da realidade com a realidade da me­táfora.[nota 27] Se o fizermos, o real se desvanece e evapora, nossa mente passa a viver na coerência do delírio e nosso corpo em terra descontínua.

 

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Essas visões poéticas são belas quando vistas a distância, mas quando invadem o ar que os crentes respiram cumprem funções alienantes se­melhantes às telenovelas e ao fanatismo esportivo: separam corpo e mente, que passam a viver em dois mundos distantes e contraditórios: diante da TV, os telespectadores mergulham nas águas tépidas das piscinas dos ricos personagens, mas não têm água corrente em seus barracos; nas arquibancadas, os torcedores fazem gols espetaculares com os pés dos milionários jogadores, mas não têm dinheiro no bolso para pagar as prestações.

Qualquer explicação, mesmo fantástica e fantasiosa, sobre a origem e a legitimidade do poder mostra-se útil aos que estão no topo da pirâmide, sempre que com isso consigam obediência irrestrita, a alguns oferecendo direitos, a outros, obrigações.

Muitos sistemas de intenções democráticas, nesta pré-história da humanidade que estamos vivendo, cedo se transformam em monarquias autoritárias, até mesmo em seus opostos, como aconteceu com o Cristo, que não escapou dessa triste alomorfia: sua doutrina de igualdade, fra­ternidade e carinhosa solidariedade logo foi queimada nas fumegantes fogueiras da Inquisição, junto com Brunos e Joanas, bruxos e feiticei­ras... Sua democrática multiplicação de pães e peixes transformou‑se em dízimos a serem pagos pontualmente - comércio cuja mercadoria é a ilusão, a esperança e a fé.

O sistema monárquico de senhorio e vassalagem é reproduzido quase literalmente em todas as áreas da atividade social humana: nas forças armadas, em sua rígida hierarquia, na maioria das religiões, em fascinantes mitologias, nas gangues do narcotráfico, de armas em punho, na imprensa, na família, nas formas de exploração e valorização da arte... em toda parte.

 

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Nos meios de comunicação - fantástica arma de poder e conven­cimento! -, imperam absolutas as monarquias da palavra, do som e da imagem, transformadas em latifúndios da informação.

Imagem, palavra e som não circulam livres na sociedade - são canali­zados pelas estações de rádio e tv, pelos livros, revistas e jornais, escolas e universidades, e pela propaganda na beira da estrada. Tudo isso tem dono! Vivemos no mundo virtual desses três impérios.

Palavra, som e imagem são livres enquanto possível criação acessível a todos os seres humanos, mas os meios de comunicação que os fazem circular são privativos do poder econômico que os fabrica, padroniza, difunde, controla e usa.

Que fazer? Quando possível, penetrar nesses meios; quando não - isto é, quase nunca -, criar nossas próprias redes de comunicação. O cto já está criando essas redes no Brasil inteiro; todas as suas atividades buscam esse entrelaçamento.

Devemos pensar dois pensamentos e fazer com que nossas imagens, palavras e sons circulem por todos os meios possíveis, abrindo caminhos não controlados pelas monarquias econômicas. Inventar e produzir fora e longe dos latifúndios da arte, e mesmo invadi-los quando possível.

Não se trata de construir um grande teatro paralelo ao teatro comercial e oficial, Catedral do Futuro, como preconizava o diretor teatral suíço Adolfo Appia no início do século passado, espécie de grande Agora teatral: “espaço livre, vasto e transformável, que receba as manifestações mais diversas da nossa vida social e artística, que será o local por excelência onde florescerá a arte dramática, com ou sem espectadores”. [nota 28]

Trata-se de transformar em teatro todos os locais, grandes ou peque­nos, no campo e na cidade, onde vivem e trabalham homens e mulheres: teatro é o mundo, e seus atores são a sociedade.

Ser profissional não confere a ninguém o dom da arte, pois todos já o tinham ao nascer - uns mais, outros menos; todos podem desenvolvê-los - uns mais, outros menos.

 

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Significa apenas que o cidadão é pago para exercer essa função, que é sua profissão habitual. Significa treinamento específico, que aumente suas possibilidades expressivas.

Artistas profissionais existem que são maravilhosos - outros não. Exatamente como acontece com qualquer artista vocacional, que não necessita ser pago, nem possuir diplomas e prêmios, estes apenas indicam um determinado lugar na pirâmide monárquica, com deveres e funções específicas que visam difundir ideias e mercadorias, não imaginação e criatividade. Nisso se transformou a Estética nas sociedades com­petitivas, capitalistas neoliberais e ditatoriais coercitivas: uma corrida de cavalos.

A Estética do Oprimido não quer criar um estilo a mais, gênero a mais, modismo a mais, forma diferente de fazer o mesmo: trata-se de sermos radicais, de irmos radicalmente (radical = raiz!) ao âmago do ser humano e revelá-lo. Essa revelação plena surge em forma estética, através da arte. Como trabalhamos com os oprimidos, aí surge a Estética do Oprimido!

Appia continuava preso à ideia de que o teatro deve ter um lugar próprio para sua celebração, grandiosa imitação dos já existentes, assim como a religião costuma ser celebrada, apenas dentro de igrejas e templos. Reza-se lá dentro; cá fora, Deus nos acuda!

Arte e vida - uma não pode existir sem a outra, e a vida existe em toda parte; teatro e estética também.

LEtat, cest moi!”- dizia Luiz xiv (“O Estado sou eu!”). Em nenhum outro lugar, mais do que nas indústrias da palavra, da imagem e do som, essa afirmação é tão verdadeira: o proprietário dos meios de comunicação decide e ordena, e só existe no mundo aquilo que ele afirma existir e da maneira como nos informa. Só a sua versão é verdadeira, só existe quem ele faz existir virtualmente em sua tela, microfones e jornais. O resto da humanidade é sombra e silêncio; a verdade escamoteada, silêncio e sombra...

Para esse estado empresarial, a África não está morrendo de fome nem de aids, nem genocídios estão ocorrendo no Médio Oriente e na Ásia; nas periferias dos grandes centros urbanos, o narcotráfico, a falta de saneamento básico e de pão na mesa são males inevitáveis da próspera conjuntura econômica; o salário mínimo é suficiente para promover o bem-estar social...

 

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A espantosa crise financeira norte-americana é ape­nas um acidente no caminho do capitalismo, porque o Deus-Mercado acabará resolvendo seus problemas... São os pensamentos mágicos do l'Etat c'est moi!” da informação.

Uma indústria de aparelhos de som, com inaudita propriedade, escolheu seu símbolo comercial: um cão atento ouve música de um gra­mofone. Nada mais perfeito: nós somos aquele cãozinho domesticado e bonitinho... Para completar, a empresa acrescentou uma frase à imagem: A voz do dono!

Mais explícito, impossível.

Convém não esquecer que ser humano é ser artista e ser artista é ser humano. Arte é vocação humana, é o que de mais humano existe no ser. Para alguns de nós, tornou-se profissão, mas continua sendo uma democrática vocação. Nenhum de nós tem que ser melhor que ninguém; cada um de nós pode sempre ser melhor que si mesmo.

Arte, que pertence a todos, não pode se tornar propriedade de poucos artistas, e estes, propriedade do monarca. A monarquia da comunicação expropria a Estética como os latifundiários expropriam a terra. Cria, exalta e protege estrelas e estrelatos, imagens de senhorio. Aos que não são as estrelas da vez, ela os encerra em auditórios, com a função de bater palmas. Arte latifundiária é inaceitável em uma democracia que se queira tal. A arte tem que ser democrática como devem ser a terra, a água e o ar.

Sempre existiram, existem e hão de existir artistas excepcionais, pro­tegidos ou não pela mídia, em todos os campos da arte. Muitos, com gênio e criatividade. A democratização da arte não significa enfrenta- mento com os artistas profissionais: pelo contrário, é sua liberação. Ao serem avassalados pelos monarcas econômicos, os profissionais não devem se iludir pensando que conservam sua liberdade de criação: como assalariados, devem obedecer regras estabelecidas pelas empresas que os contratam e controlam.

Da mesma forma que o operário tem sua força de trabalho, o pro­prietário possui a terra, o capitalista o capital, o artista profissional tem o valor econômico da sua popularidade.

Para os artistas profissionais será salutar a experiência de uma arte ci­dadã, nela rejuvenescendo sua vocação, livres de injunções contratuais.

 

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Se vivemos em uma Monarquia da Arte, é necessário que a base seja criadora para que se aproxime do vértice: democracia. E necessário que todos os homens e mulheres reconheçam que são artistas, produzam arte como artistas, e que todos os artistas reconheçam que são cidadãos e, na sociedade, atuem como tais.

 

A linguagem estética do poder

A pedra inanimada ocupa espaço idêntico ao seu volume compacto. Plantas crescem e necessitam de maior território que seu volume; imóveis, nutrindo-se de terra e chuva, as árvores espalham sombras no chão, onde não mais floresce a grama - chão que se torna parte do seu território, maior que o volume do seu corpo. Em suas copas frondosas, galhos e folhas aprisionam o espaço aéreo; as raízes se aprofundam e ocupam maiores quantidades de terra que seus volumes.

Os animais que, quase todos, se movem, lutam por um espaço ainda maior. Uma das principais funções do cérebro é organizar o movimento, e o movimento necessita espaço. Alguns animais marcam seus territórios pelo cheiro, como cães e lobos que urinam para que se saiba a quem pertence aquele espaço. Poderiam urinar a bexiga inteira em um só poste, um só tronco de árvore, mas preferem usar postes e árvores para demarcar seu mais extenso território.

Outros animais anunciam seus domínios pelo ouvido: os leões urram, pois não ficaria bem um leão urinando nos muros com a perna levantada. Tigres bramam, gatos bufam, o galo clarina seu galicanto, o falcão crocita, a onça esturra, geme a juriti, enquanto ri a hiena, silva a serpente e suspira a ema.

Os animais privatizam o espaço e o espaço privatizado é excludente: esta é a minha casa, o meu quintal, o meu latifúndio; não é a tua casa, o vosso quintal ou a nossa terra. Não nosso ou vosso: é meu! Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço, que se tornou extensão do corpo do dono, seja leão, tigre ou, no campo, grileiros.

O que acontece nas florestas e savanas com animais selvagens, acon­tece na terra com latifundiários, na Bolsa de Valores com o cassino da especulação financeira.

 

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O dinheiro tudo compra, a começar pelo espaço onde vivemos, pela comida e água que nos permitem viver. Só não compra o ar que respiramos... mas polui!

A recente crise econômica nos Estados Unidos, no setembro selvagem de 2008, mostrou o caráter de jogo de azar dos investimentos bancários e da Bolsa: vivemos em um cassino. O governo teve que usar centenas de bilhões de dólares do contribuinte para salvar alguns bancos da ban­carrota, à qual haviam sido levados por seus gerentes e donos, cúpidos e cobiçosos. Centenas de bilhões: dois ou três trilhões.

Em janeiro de 2009, o presidente Barack Obama teve que baixar um decreto indignado proibindo que os executivos dos bancos socorridos pelo dinheiro público tivessem, como teto salarial, nunca mais de cem mil dólares anuais. Em dezembro desse mesmo ano, esses mesmos exe­cutivos haviam destinado a si mesmos quantias astronômicas, a título de recompensa pelos excelentes trabalhos realizados, quantias que haviam sido recebidas do governo, com o dinheiro dos contribuintes, dinheiro destinado a restabelecer a “confiança” da população. Segundo o Presidente, o rombo foi da ordem dois ou três bilhões...

Esses executivos que se apropriaram desse dinheiro público agiram perfeitamente dentro das leis do capitalismo neoliberal, e ninguém foi preso, ninguém levou nem ao menos um puxão de orelhas, nem teve que devolver um centavo: se não existem regras que proíbam abusos, por que não cometê-los? Greed is good a cobiça é boa - dizem os neoliberais.

Em outros países ricos, governos que antes diziam não ter dinhei­ro em caixa para salvar a Educação, a Saúde e a Previdência Social, de repente, não mais que de repente, descobriram alguns trilhões. Será real esse dinheiro, ou virtual? Onde estava? A que e a quem servia?

O capitalismo teve o seu momento socialista: após privatizarem os lucros da esperteza, socializaram as perdas da nossa ingenuidade.

No mesmo mês de janeiro, a onu revelou que existem 950 milhões de famintos na terra... mas as nações ricas não moveram meia palha, nem gastaram um só centavo para salvá-los da tortura da fome. Dez por cento do que gastaram com bancos e banqueiros teriam bastado para alimentar esses milhões de famintos durante dez anos. A crise que os preocupa é sempre a crise dos ricos, não a dos pobres; crise do sistema financeiro, não da barriga vazia. Será que a mesma Estética será válida para os dois lados?

 

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Este fato não revela os excessos do capitalismo selvagem: revela a selvageria do capitalismo.

 

Sociedades espetaculares e sociedades do espetáculo

 

[Início de citação] O ser humano, como qualquer animal, usa seus sentidos para estender os limites do seu território. Dos três sentidos de longo alcance, mais que o ouvido e o nariz, o ser humano usa os olhos, a Imagem, que, conjugada com os demais sentidos, promove espetáculos.

Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e produzem espetáculos em momentos especiais. [Final de citação]

 

São espetaculares como forma de organização social. Mesmo quando não conscientes, todas as relações sociais na vida cotidiana são estruturadas como espetáculos nos quais se exibem as relações de poder existentes entre os integrantes daquele segmento social: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, gestos e movimentos corporais, tudo que pode ser revelado pelos sentidos denuncia relações de poder. Cada participante desses espetáculos conhece o seu lugar, sabe o seu papel, com ele se conforma, ou tenta modificá-lo segundo as armas de que dispõe.

Uma das principais funções e poderes da Arte é revelar, tornar sensíveis e conscientes esses rituais teatrais cotidianos, espetáculos que nos passam desapercebidos, embora sejam potentes formas de dominação.

As sociedades são espetaculares no sentido estético da palavra, isto é, como organização sensorial de um ato, uma relação humana, um evento. O comer solitário em um botequim da esquina já contém elementos culturais do espetáculo que é um jantar em família; um só indivíduo ao telefone prenuncia, em gestos e voz, uma teatral reunião de negócios. As sociedades jamais deixam de ser espetaculares porque todo espetáculo é uma confrontação de poderes, e todas as relações humanas são con­frontações de poder.

 

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As sociedades são espetaculares porque o poder de cada um dos seus membros necessita ser exibido de forma explícita para que se faça valer. Esses espetáculos - conscientes ou não, com ou sem espectadores — são visuais, secundados pelos demais sentidos.[nota 29]

Ao contrário das sociedades espetaculares, as sociedades do espetáculo, como entende Guy Debord, são conscientemente dirigidas por aqueles que têm poder e querem preservá-lo - têm remetente e destinatário! Promovem apresentações de teatro, cinema, tv e Internet, que são for­mas óbvias de espetáculos destinados a cativar ou intimidar cidadãos e a integrá-los a uma sociedade dominada pelos opressores, que controlam seu conteúdo, suas formas e seus efeitos. São totalmente conscientes na sua emissão, embora nem sempre na recepção; o emissor sabe o que faz; o receptor nem sempre sabe o que sofre.

Além destes espetáculos explícitos com claro sentido ideológico e de propaganda, também os rituais sociais, como as solenidades cívicas, religiosas ou esportivas, são produtos conscientes, intencionais e volun­tários das sociedades do espetáculo.

Claramente coexistem a sociedade do espetáculo, e a sociedade como espetáculo.

Os espetáculos da sociedade do espetáculo são revelados e reconhe­cidos como tais dado o seu caráter de exibição e a clara divisão entre espectadores e espetáculos, uns lá, outros cá, enquanto os espetáculos do cotidiano das Sociedades Espetaculares são, ou se tornam, inconscientes. Podem e devem ser revelados pela arte - todas as artes!

Mesmo quando preparam um espetáculo, os agentes dessa preparação são, eles mesmos, espetáculos, como atores antes de entrar em cena - a preparação do espetáculo já é espetacular.

O que varia com o avanço da tecnologia, tanto nas sociedades espeta­culares como nas sociedades do espetáculo, não é o seu caráter teatral, pois esta é a maneira cultural como as sociedades se estruturam e se mostram a si mesmas - o que varia são os meios de produzir espetáculos.

Sociedades tecnológicas sofisticadas com luz elétrica e computação eletrônica dão a impressão de que só elas são espetáculo, ou que o espetáculo só com elas nasceu. No entanto, para realizar seu teatro, cada sociedade usa os meios de que dispõe: usamos a eletrônica como o cão usa a urina e o elefante o berro.

 

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O que confunde alguns teóricos da sociedade do espetáculo - na qual a presença de espectadores é indispensável - é o fato de que, nas formas espetaculares do cotidiano, que são, via de regra, subliminais, a presença da plateia não é necessária porque os espectadores são os atores.

O espetáculo é feito pelos próprios espectadores.

Existe trânsito entre as sociedades espetaculares e as sociedades do espe­táculo: estas podem se tornar inconscientes e aquelas podem ser reveladas à consciência. Esta é uma das tarefas da Estética do Oprimido.

Também a palavra espetacular não deve ser entendida no sentido usual de grande, enorme, imenso etc. Espetáculos modestos, pequenos, invisíveis, também existem: a todos eles, grandes e pequenos, eu me refiro.

Estruturas sociais são estruturas de poder, e o poder exige insígnias e rituais para ser respeitado. Como é abstrato antes de ser exercido, pura potência antes do ato, o poder exige concreções para ser reconhecido à primeira vista e ao primeiro som, ser temido e respeitado: necessita visibilidade, mesmo inconsciente. Necessita insígnias fabricadas com sinais, signos e símbolos.[nota 30] Por essa razão, as sociedades espetaculares tendem a produzir sociedades do espetáculo dada a força intimidatória que estes possuem.

Luiz XIV acordava todas as manhãs diante de espectadores escolhidos entre os nobres favoritos da sua pomposa Corte, que esperavam ansiosos para aplaudir o seu primeiro bocejo matinal e seus estremunhados gestos, ao som de suave alaúde e cravo, em belas composições de Lully, que sugeriam docilidades e ajudavam a estruturar pensamentos e percepções do monarca, desorganizados pelo sono e pelo sonho.

 

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Os nobres disputavam a preferência do Sol vestindo-se de forma adequada para tal cerimônia. Palmas aveludadas aplaudiam quando se abria a cortina do dourado leito real. Entre parênteses: alguns cobriam o rosto para rir do monarca em protetor segredo, com razão.

O espetáculo expõe aos nossos sentidos não apenas o seu titular principal, mas toda a hierarquia, desde o mais poderoso senhor até o último coadjuvante. Todos desempenham papéis, ora distantes do epi­centro, ora como papagaios‑de‑pirata, no ombro de alguém importante, espinha reta ou curvada. Quanto mais próximo do protagonista, maior seu poder. Tocá-lo: sonho supremo.

Mesmo nu, o rei está sempre vestido de seda e ouropéis; pelo uso continuado, já se impregnaram, no seu corpo e nas memórias vassalas, todas as vestimentas que um dia o vestiram. O menino que disse que o rei estava nu não tinha entendido nada... Os seus maiores sabiam o que deviam ver, e viam.

A carruagem foi inventada como meio de transporte, mas aquelas que hoje transportam reis e rainhas - fosse essa sua única utilidade - seriam mais eficazes se fossem substituídas por um calhambeque de dois ou três cavalos de potência motora ao invés dos quatro ou seis garbosos e brancos animais de carne e osso. Carruagem é símbolo de poder, vetusta hierarquia e antiga tradição. Transporta poderosos... e nos condena a andar a pé para melhor apreciá-los.

Os rituais do poder são embalados por hinos patrióticos ou cânticos fúnebres, valsas vienenses ou marchas militares. Todas as cerimônias são espetáculos de luz, som e sombra - são estéticas. Feitas à mão ou eletrônicas, são espetáculos.

Hoje já não se usam espetáculos ingênuos como os que agradavam aos Luízes; mesmo assim, os reis continuam exibindo coroas, o papa sua mitra, o general suas estrelas, o maestro sua batuta, as damas das cortes burguesas suas joias e cirurgias plásticas - símbolos de riqueza e poder. Hoje, os garbosos desfiles militares - mesmo usando armas sem muni­ção - exuberam força e fortalezas! Fantásticas festas mundanas carimbam artistas com estatuetas que os marcam como sendo os melhores. Procissões pedestres e missas solenes fazem-nos promessas e ameaças.

 

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Bocassa, ditador da África Central, apesar de ter um poder dis­cricionário exercido através de um exército sanguinário, gostava de se apresentar paramentado de Grande Leopardo - vejam só! -, ornado de pedras preciosas, fartas em seu país. Exigiu ser coroado Imperador na presença de dignitários estrangeiros revestidos de medalhas e comendas. Cobiçosos de tanta riqueza, primeiros, segundos e terços ministros e presidentes vieram participar da festança. No fim das cerimônias, partiram brilhantes... Comeram à mesa do Imperador, apesar da sua fama de canibal inveterado. Serviu-se rosbife malpassado... Dizem que o molho estava delicioso - francês, legítimo.

Diamantes falam mais alto: têm voz e voto!

Terminada a festa - sociedade do espetáculo -, mesmo assim os rituais do cotidiano - sociedade espetacular - continuam: o imperador caminha para sua cama como se fosse Imperador; os serviçais, como obedientes serviçais, caminham para os seus porões; o tom de voz de um e outros mantém características de opressor‑oprimidos, mantém as estruturas do poder. A festa é um espetáculo da sociedade... O pós-festa é espetacular, embora inconsciente.

- “E agora, José?” - pergunta o poeta Drummond de Andrade.

Só então, quando não se sabe mais para onde ir, o espetáculo se fragmenta, dissolve e evapora - não há mais nada preconcebido, nada se sabe, o mundo parou. Só os náufragos não são espetáculo, se ninguém os vê - eles próprios não se podem ver, devem salvar-se: despem-se de todas as maneiras, hábitos, rituais, e tentam nadar.

Paulo Freire narra a cena em que os camponeses mais sacrificados, no Nordeste brasileiro, mesmo falando com pessoas que queriam ajudá-los, tinham o hábito (obrigatório espetáculo) de dialogar olhando o chão. O mesmo que eu próprio senti falando com jovens negros, quando lhes pedia informações sobre onde ficava tal rua, em Washington, em 1954.

Presidentes caminham em tapetes vermelhos, adornados de microfones e seguranças. Estrelas de música pop e de futebol, ao desembarcarem de seus jatos particulares, caminham no centro de um buquê de guarda- costas, jornalistas e jovens enlouquecidas em busca de marido rico.

 

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Não só as festas de 15o aniversário da moça que baila com seu pai sua primeira valsa, ou da plebeia Angélica que rodopia com o príncipe no Leopardo de Visconti - espetáculo que lhe abre as portas da nobreza e da respeitabilidade; não só as festas de formatura de fim do ano; não só a missa do galo ou de corpo presente, batizados, crismas, confirmações, cremações e casamentos, quando a noiva de branco vestida é entregue pelo pai à guarda e posse do noivo, cravo branco cravado no peito - não só estes rituais extraordinários são espetáculos, mas também os rituais co­tidianos que, por sua familiaridade, sequer nos chegam à consciência.

Não só o estadista depositando flores no túmulo do soldado des­conhecido e o magnata cortando fita colorida com as cores pátrias ao inaugurar mais uma filial da sua empresa - não só pompas são espetáculo, não só desfiles, mas também o café da manhã e os bons-dias, o almoço ajantarado aos domingos, quando se come e fala segundo regras invisíveis, mas respeitadas.

O espetáculo tem a função de revelar identidades e determinar comportamentos - quando e onde cada qual deve se sentar, quando se levantar ou sorrir, o que dizer. O espetáculo põe legendas classificatórias na testa daqueles que o integram!

A aparição de qualquer cidadão em capa de revista ou programa de tv pode dar a qualquer um, por mais insignificante que seja, o poder correspondente ao status que lhe confere a mídia e que deve durar até a próxima edição do mesmo programa, pois o poder que recebe é poder delegado, não seu. A mídia é fonte de informação, verdadeira ou falsa, e de valoração dos que nela desfilam: fonte de poder como coroa, medalha ou mitra.

Os meios de se realizar o espetáculo mudam com a cultura de cada povo, mas sua função é sempre a mesma. Menos tecnológicos, os indí­genas brasileiros usam plumagem colorida em suas cerimônias festivas ou guerreiras. Alguns usam objetos redondos com os quais furam os lábios e lhes dão feições assustadoras: são os chefes. À sua volta, dança a tribo. Em contexto diferente, é a mesma encenação dos nobres de Luiz velando o seu despertar.

As insígnias, ao mesmo tempo em que individualizam seu possuidor como alguém superior e potente, são também imagens da ausência.

 

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A coroa real nos faz perceber nossa pequenez: somos cabeças não coroadas! Medalhas em peito alheio nos dizem de quem estamos aquém, e a que distância. Insígnias mostram onde reside o poder e nos denunciam como não possuidores desse poder: súditos, vassalos, soldados, escravos.

A maior humilhação que um militar pode sofrer é que lhes retirem as medalhas diante de sua tropa de militares sem medalha: retorno ao marco zero, à igualdade.

Nenhuma sociedade sobreviveria sem ser espetacular, e sem espetá­culos - ambos têm função civilizatória. Sua vetustez, porém, engessa a criatividade e proíbe a invenção.

 

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A invasão dos cérebros

Se o cérebro de um telespectador transborda de filmes de inspiração holiudiana, vazios de ideias e repletos de força animal - sua única forma de diálogo -, tiros, explosões e rajadas de metralhadora vão influenciar a posterior percepção do mundo desse infeliz espectador.

Todo estímulo sensorial violento obscurece qualquer forma de pen­samento. Se uma bomba explode ao nosso lado, é difícil completar a soma de dois mais dois. Se um clarão de luz agride nossos olhos, ou se uma trilha sonora violenta nossos ouvidos, é difícil construir uma frase além das imprecações.

 

[Início de citação] A usual violência dos filmes e da TV busca levar os espectadores ao medo e ao desequilíbrio emocional que se assemelhem aos primeiros meses de vida do bebê diante do espanto lhe causa o mundo. Visa reproduzir a mesma impotência infantil para que suas vítimas adultas estejam à sua mercê, assim como os infantes estão à mercê dos seus maiores.

Esta infantilização do espectador é perigosa porque inculca no seu cérebro passivo um mundo virtual fabricado pelos donos dos meios de comunicação, com seus valores e interesses. Esta é a forma mais insidiosa de invasão, que, por si só, justifica a urgente criação e desenvolvimento, em todas as classes e grupos oprimidos, de uma poderosa Estética.

O desejo legítimo de qualquer cidadão de gozar os bens da vida — gozo que a justifica — é transformado em inveja domesticada ao observar a vida farta e cômoda de personagens de classes economica­mente superiores à sua. [continua]

 

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[continuação] O universo televisivo está sempre bem penteado e com a roupa engomada. Mesmo nas lutas sangrentas, a mecha de cabelos estará ele­gantemente posta de lado. As roupas de astros e estrelas, mesmo em cenas de violência, estarão sempre bem passadas... principalmente quando são de griffe conhecida... marketing, com o perdão da palavra. [Final de citação]

 

Invasão dos Cérebros: a mesma tática que se usa para invadir um país - primeiro bombardeios, antes que entre em ação a infantaria de ocupação: primeiro tv e cine... depois o mercado vem atrás.

As emissoras de tv fazem o possível para manter os espectadores em seus cárceres privados. Um das maiores emissoras brasileiras produz telenovelas e espetáculos de variedades nos quais as perguntas aos participantes são sempre sobre os personagens das suas telenovelas. Seus atores dão entre­vistas em programas dominicais falando de suas próprias participações. A tv olha o seu umbigo.

Segundo a lei, cárcere privado é crime!

A maioria dos personagens dos comics são magníficos exemplos de gente fora-da-lei que, por conta própria, prende, castiga e mata sem jul­gamento: organizações paramilitares como Batman e Robin fazem justiça pelas próprias mãos. Mandrake, o príncipe latifundiário, tem um escravo voluntário, seu fiel Lotar, rei de uma nação africana que ele abandona para servir ao grão-mágico - odioso símbolo do colonialismo. Outro traidor exaltado pelo cinema, Gunga-Din, indiano, sonhava ser corneteiro de sua majestade britânica e tocou sua corneta despertando o exército inglês para que derrotasse os patriotas indianos anticolonialistas.

No caso de Rambos e outros anti-heróis dessa subespécie humana infradotada, a empatia torna-se relação de pura animalidade irracional.

A empatia, em Aristóteles, estava ligada à anagnorisis - a descoberta e a aceitação da verdade. Édipo descobre que é, com seu orgulho, o assassino do pai; Creonte descobre que seu ato ditatorial foi a causa da morte de seu filho e nora. Os protagonistas, porém, explicam as razões de seus atos e admitem seus erros - emoção vinculada à razão. Nenhum sacrifício em vão. Na tragédia grega, a violência física se realizava fora de cena: Jocasta se enforcava dentro do palácio, Medeia jamais mataria seus filhos diante do aplauso frenético dos comedores de pipoca. Suas razões, essas sim, bailavam em cena diante das plateias, respeitadas como pessoas inteligentes, não como fanáticos espectadores de uma sangrenta luta de boxe tailandês.

 

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Mesmo sendo um sistema coercitivo que tinha por meta política acomodar suas plateias ao conformismo social, não estimular seu inconformismo, seu desejo de transformar o mundo - ao contrário do Teatro do Oprimido! -, a tragédia estimulava o pensamento e podia, como em Eurípides, questionar a sociedade e seus valores. Era o balé das ideias, não o das balas perdidas!

Em Shakespeare, é verdade, a violência chega a braços cortados e olhos furados, mas nunca desacompanhada de razões e pensamentos que permitam o contraditório. Não é a violência em si que causa irreparáveis danos neurológicos à hipnotizada plateia: é a carência de pensamentos e motivações para essas atividades físicas. A violência, em si mesma, não é boa nem má. Será má quando reduzida a socos e pontapés sem subjetividades; didática, quando reveladas suas causas e sua ética.

O convívio com a brutalidade forma brutamontes. Pessoa vivendo na selva em companhia de feras predadoras, sem a presença humana, como se humanizaria? Crianças abandonadas em florestas, aos cuidados de caridosos animais, sequer aprendem a sorrir.

A mediocridade desse tipo de cinematografia e de literatura infantil não se deve à falta de criatividade dos seus autores, mas sim à malsã intenção de, pela repetição, bloquear o desenvolvimento intelectual das plateias. Trata-se de crime artístico explícito, organizado e voluntário!

O belo filme de Stanley Kubrik, FullMetalJacket, mostra com perfeição estética o processo ultramilitar de socavar no cérebro dos recrutas peremp­tórias ordens de obedecer e matar. O filme demonstra, em exemplo militar, o mesmo processo que acontece na tv civil. Admiravelmente repugnante!

O extraordinário poder hipnótico da tv é levado ao paroxismo pelo frenético movimento da imagem. Sabemos que qualquer movimento é atraente por causa da sua imprevisibilidade - todo movimento cria suspense. Ainda no berço, o olhar do bebê é atraído por qualquer coisa que se mova, principalmente se tiver cores: o movimento harmônico de coisas e cores é forma sadia de desenvolver sua capacidade de perceber. A tv, aleivosa, utiliza esse fato biológico para confundir, fazendo com que suas imagens não demorem na tela, via de regra, mais que alguns segundos fugidios.

 

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Não permitir que os telespectadores vejam as imagens que olham - esse é um princípio básico da hipnose televisiva: forçar o olhar sem ver. O olhar, sem passar pela consciência, transporta ao cérebro a ordem: compre!

Outra imprevisibilidade é o som: surpreende e assusta. Locutores comerciais são neuróticos, a maioria psicóticos, apregoam aos berros suas nefastas mercadorias na contramão do entendimento: ouvir sem escutar.

A iluminação dos shows musicais, outro exemplo, é tornada vertiginosa qualquer que seja o significado da música que não nos deixa ouvir - não permite que se entenda a letra que se ouve. Luzes se acendem e apagam em ritmos alucinantes, provocando excitação sexual, entre outras. Dependendo de para que serve a música, já é alguma coisa... pelo menos isso...

Explicar para que não se entenda; informar para que não se saiba - essa é a missão da tv privada: fazer obedecer sem saber a quem. O mandante se esconde - seja o dono ou o patrocinador. Esse não se vê, mas nada se faz sem ele. O vendedor não aparece na tela: artistas e outras celebridades do momento emprestam a credibilidade dos seus nomes ao produto que vendem: “Faça como eu: use tal produto...”

A empatia criada com o artista, transformada em mimetismo, suspen­de nosso senso crítico. Imobilizados, corpo e mente, ficamos à mercê de ralos pensamentos e reles linguagem. Roupas e moda, maneira de andar e gestos, temas da trivial conversação, fast-foods e refrigerantes que promo­vem diabetes e obesidade, tudo isso são ordens que os espectadores, por mimetismo inconsciente, cumprem.

Até nas comédias o nosso riso é programado e obrigatório: bobas risadas, gravadas em background, informam que tal cena é engraçada e nos dizem quando devemos rir, mesmo sem achar graça.

Filmes made in Hollywood ocupam, no Brasil, dois terços dos cinemas com suas armas anestésicas da sensibilidade e letais à inteligência. Mas, sejamos justos: na tv a cabo, pelo menos, aprende-se a falar inglês. Mísero vocabulário... mas inglês - outra forma de imperialismo.

Além dos irreparáveis males psicológicos e políticos que causam, as fábricas de filmes arrecadam milhares de sacas de dinheiro todos os anos. Nos primeiros meses de 2007, oitenta por cento de todos os cinemas bra­sileiros foram invadidos e ocupados por dois ou três filmes dessa laia, 1, 2 e 3 homens-aranha e carrapato.

 

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Com este lixo ético despejado em seus perplexos neurônios, os vul­neráveis espectadores vão, mais tarde, receber as novas informações. Não podemos nos espantar diante de crimes de Columbine [nota 31] e Virgínia Tech, que foram prenunciados e promovidos por esse tipo de cinema, nem podemos esquecer que as torres gêmeas de Nova York foram destruídas em um filme de ficção antes de serem filmadas em chamas na tragédia verdadeira. [nota 32]

Nem sempre a estrutura de seus programas já os condena. A ideia dos reality shows não é péssima: se, ao invés de gente vazia e medíocre, convidassem Noah Chomsky, Amy Goodman e Michael Moore - para citarmos só intelectuais          norte-americanos vivos, críticos do sistema em que vivem - para ficar vinte e quatro horas em uma sala trocando ideias, seria um encontro de inteligências e não de aberrações.

Paradoxo: a tv torna-se a verdade absoluta, e a realidade, ficção, até que seja referendada pelo noticiário da noite.

No Rio de Janeiro, um assalto a ônibus que durou cinco horas foi filmado pela televisão. Uma jovem confessou que, ao ver o que estava acon­tecendo, voltou correndo para casa e ligou a televisão para ter certeza de que era verdade o que havia visto com seus olhos: necessitava do soberano aval dos olhos das câmeras.

Tememos a invasão da floresta amazônica por cobiçosas potências estrangeiras e latifundiários autóctones que promovem queimadas e destruição. É certo: devemos temê-la e combatê-la! Muito mais perigosa, porém, é a invasão dos cérebros promovida pela tv e pelo cinema colonialistas, que dominam nossos espectadores com seus exércitos de homens-morcegos e verdes maravilhas.

 

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Mesmo o Brasil, que sempre produziu fascinantes ritmos e melodias, mesmo nós somos invadidos pela música massificada das companhias transnacionais, cada vez menos acústicas e mais eletrônicas: mais máquinas e menos gente, mais baratas de fazer e fáceis de vender. Da mesma forma que se quis, um dia, decretar o fim da História, a indústria fonográfica quer agora decretar o fim da Música.

Esse fim trágico foi inventado dez anos atrás, em Hamburgo, Alemanha: o techno, ritmo semelhante ao de uma versão mais violenta dos bate-estacas ou britadeiras de pedra. Estas obstinadas máquinas da construção civil são muito mais musicais, delicadas e sensíveis do que o estridente techno, que, entre outros malefícios sanitários, descompassa marcapassos de doentes do coração, já tendo causado mortes em shows musicais nas ruas hamburguesas.

Além do fim da História, da Música, das Artes Plásticas, do Teatro, do Cinema, dos conceitos de esquerda e direita e dos movimentos sociais, querem decretar o fim do pensamento. Temos que libertar nossos pensa­mentos, Simbólico e Sensível - armas de luta.

Uma nova Estética é necessária!

As palavras não mudam de sentido ao sabor de suave brisa, mas sim na luta encarniçada pelo poder: Palavra é Poder. A semântica é um campo de batalha onde palavras são troféus e armas. Nessa terra arrasada, em democracia e liberdade já não se reconhecem as fisionomias que um dia tiveram. Não pode existir democracia onde não existem limites para a infinita riqueza, vizinha da absoluta pobreza.

Essa apropriação indébita de significados e significantes, proposital esvaziamento da palavra - que, podendo significar qualquer coisa, não significa nada - tem por objetivo desorganizar a linguagem e impedir a formulação de pensamentos coerentes.

Já não se sabe o que se diz quando se fala! Já não se sabe o que se escuta quando se ouve. A língua, falada e escrita, torna-se obstáculo à comunicação, o oposto daquilo para o que foi criada.

Sem exageros catastrofistas, estamos mergulhados na Grande Guerra Mundial da Desinformação, insidiosa e sub-reptícia. O objetivo claro dessa nova modalidade de guerra é o domínio, não de territórios geográficos, mas de cérebros.

E nesse campo de batalha que se deve colocar a arte popular. Temos que ser aliados nessa guerra contra o eixo do discurso unívoco.

 

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A maioria dos filmes comerciais de inspiração holiudense, sejam de que origem forem, têm uma só temática: o direito pertence aos mais for­tes, que estão sempre com a razão. São o Bem em sua cruzada contra o Mal - aqueles que pensam diferente, pensam em verdadeira democracia econômica, política, de classe, pedagógica, sexual, de gênero, todas.

Na Organização Mundial do Comércio, alguns países defendem a chamada exceção cultural não porque defendam a cultura, mas porque, através dela, o comércio - cinema, música, vídeos, cds, dvds e outras indústrias - impõe seus produtos.

Não falo contra aquele sadio comércio que satisfaz as necessidades do comprador - feiras livres, das quais sou adepto! - mas sim do comércio malsão, que cria necessidades desnecessárias, invadindo nossas casas até pelas janelas pop-ups da Internet.

Nunca o comércio foi tão invasivo, deixando para trás o tempo em que me alegrava ouvindo a voz do peixeiro, com cestas na cabeça, can­tando as vantagens do camarão fresco e românticas louvações ao bagre e à pescadinha... Não é saudosismo: é saudade! Não quero voltar o relógio atrás, mas quero avançar sem transgênicos.

A Estética do Oprimido faz parte da nossa luta contra essa invasão cotidiana, sub-reptícia e subliminal - venenosa!

Uma nova estética é imprescindível!

 

Coroas refratárias e agressivas, mas não indestrutíveis

As coroas que aqui apresentamos são uma hipo-tese, isto é, hipo = menos que tese. Não posso apresentar provas da sua existência, mas nenhum neurocientista pode apresentar provas da sua inexistência. Não sou cien­tista, mas ser artista me confere a liberdade poética de buscar a verdade por outros meios.

Si non é vero, é ben trovato!

Nomeio coroa a este sistema inspirado nas coroas reais, que, já na Idade Média, unificavam feudos estruturando estados. O rei submetia barões, príncipes, condes e outros nobres ao seu domínio dentro de uma estrutura maior que condados, principados e baronatos: o reino.

 

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Lope de Vega mostrou a necessidade histórica desse forte poder central em O melhor juiz, o rei, e Shakespeare os malefícios da fragmentação de poderes em Rei Lear.

Essas coroas assemelham-se às formas esponjosas animais e aos caules de certas plantas, subterrâneos e rizomáticos: estes, como aquelas, expandem- se, emaranhados, em todas as direções.

A penetração de novas informações sensoriais no córtex, através do tálamo, e a circulação cerebral de mensagens abstratas e emoções concretas podem se dar de forma fluida e harmoniosa, permitindo que novos circuitos se formem e se entrelacem, criando redes ricas e complexas contendo mais circuitos e outras redes neuronais.

Pode acontecer que, dada a natureza das informações dogmáticas repetitivas, essas redes se cristalizem, tomando-se opacas e compactas, impedindo a chegada de informações conflitantes com as já existentes.

Exemplos dessas coroas são encontrados em todas as formas de extremis­mo religioso, fundadas em um sistema coerente de revelações e dogmas que, mesmo inverossímeis, jamais serão questionados. Tornam-se agressivas em relação a outras coroas, outros fundamentalismos ou quaisquer informações, mesmo científicas, que com elas discrepem, o que caracteriza o racismo teocrático. Recusam subjuntividades, dúvidas, raciocínios contraditórios.

Essas seitas eletrônicas chegam ao absurdo de fazer com que seus fiéis acreditem naquilo que com certeza sabem ser impossível: vi com meus próprios olhos um pastor eletrônico, diante das câmeras, ressuscitar um menino de poucos meses que, mesmo morto, chorava baixinho e movia as mãos... Beliscado, ele passava a gritar bem alto e a turba aplaudia a milagreira ressurreição com ruidosas aleluias. Tive vontade de convidar esse pastor para visitar o Cemitério do Caju e lá exercer seus poderes reconstituintes e fortificantes...

Na minha infância vi mágicos orientais, trabalhando em circos, que adotavam pitorescos nomes como Fu Man-Chu (personagem do escritor inglês Sax Rohmer) ou Charlie Chan (norte-americano, de Den Bigger), bisonhos, fazerem truques mais emocionantes que os falsos religiosos, aprendizes de feiticeiros eletrônicos. É claro que essa gente não acredita em nada do que prega - acredita apenas em sua conta bancária.

 

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É necessário separar esses comerciantes da fé de um lado e, do outro, aqueles que, sinceramente perplexos diante do universo - como estamos todos nós, quando nisso pensamos -, buscam refúgio e segurança, buscam explicações para os mistérios do mundo em dogmas religiosos. Querem acreditar em alguma coisa sobrenatural e acreditam em explicações fabu­losas. São honestos.

Essas multidões que abastecem os cofres das seitas televisivas têm mui­tas razões para fugir de suas realidades de pobreza, doença e desemprego. Hoje, no Brasil, depois de décadas de ditadura, explícita ou subterrânea, quase não existem áreas conviviais além dos botequins, bingos clandestinos, estádios de futebol, bailes funks, programas de auditórios... Locais onde a inteligência e a sensibilidade não são bem-vindas. Os atuais e recentes centenas de Pontos de Cultura funcionando no Brasil inteiro são um belo e promissor começo de conscientização.

É verdade que alguns desses cultos televisivos fazem certo bem aos seus dizimistas: muitos deixam de beber, fumar, de bater em suas companheiras. O preço que pagam é o obscurantismo das pregações inquestionáveis e da obediência irrestrita. Não se tornam virtuosos pelo conhecimento, mas pela sujeição; pior, pela renúncia ao saber, à busca. Tudo já está explicado. Talvez 1% dos fiéis receba recompensa material: com os dízimos recebidos, essas igrejas contemplam alguns dos seus seguidores com geladeira ou choupana, dando a todos a ansiosa esperança para a próxima vez, como na loteria.

O fanatismo esportivo e religioso, a adoração idolátrica de pessoa ou instituição, o sectarismo político ou quaisquer outros sectarismos - mesmo quando existam razões sociais e econômicas para essa rendição à miopia - são exemplos concretos dessas coroas formadas pela repetição insistente das mesmas informações com o mesmo conteúdo, e pela aceitação de valores não questionados.

É certo que, tanto nesse tipo de templo como nas torcidas esportivas e nos programas de auditório, seus integrantes têm semelhante sensação de pertencimento. Pertencem, embora nada lhes pertença. Tornam-se grupo, plural; nós, não com a soma, mas com o abandono de cada eu.

Nesse aspecto, os blocos sujos de Carnaval oferecem a mesma sensação de companheirismo solidário, mas sem efeitos devastadores, apenas catárticos, e duram pouco. “Pra tudo se acabar na quarta-feira...”

 

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Onde se expande o medo e a insegurança causados pelo sistema socioeconômico em que vive a maioria das nossas populações aí se expandem as igrejas inventadas por qualquer autodenominado bispo ou pastor. Começam do nada - basta uma sala ou barraco em área pobre -, e podem crescer numerosas e fortes, pelo número de seus integrantes, oferecendo maior segurança espiritual onde nenhuma segurança material existe.

João Salles, no seu filme documentário Igreja evangélica, dá um belo exemplo de um caso típico: um metalúrgico aposentado começou a pregar sozinho - não tinha nem pássaros para ouvi-lo, como São Francisco, apenas rãs e sapos nas valas sujas do bairro triste. Pouco tempo depois, viu sua igreja lotada e passou a oferecer batizados com certificados para as paredes das casas dos fiéis etc.

Esse movimento vai na contra maré das outras formas de comércio que tendem a uma maior centralização: constroem-se centros comerciais, hiper e mega, e já não se veem quitandas, peixeiros ambulantes de cesta na cabeça, armarinhos... Proliferam as seitas eletrônicas, quitandas da fé, enquanto continua a construção dos mega-super-hipermercados dos milagres.

Algumas dessas igrejas atingem milhões de fiéis em todo o mundo: as igrejas são globalizantes e competitivas entre si, embora usem o mesmo livro.

Se as orações de uma seita extremista - ou dos extremistas de uma seita - fossem feitas apenas uma vez a cada três ou quatro semanas, essas coroas não se formariam. Sendo realizadas várias vezes ao dia, sim. Se as partidas de futebol fossem travadas a cada meio ano, não existiriam hooligans, mas, como se realizam duas vezes por semana, não deixam tempo ao torcedor de pensar outros pensamentos que não sejam a bola e o gol. As repetições produzem as refratárias e agressivas coroas. Essa não é condição bastante, mas necessária!

Coroas integram várias regiões do cérebro. Na teoria de Hughlings-Jackson (1835-1911), algumas atividades cerebrais são bastante simples, como a recepção da luz pelo nervo ótico, enquanto outras, como o pensamento, estruturam uma imensa quantidade de elementos simples.

Não esqueçamos que o cérebro é um sistema ecológico, com seus elementos interligados. Não temos que pensá-lo como uma cebola, formada por diversas camadas, mas como uma esponja, interligada nas verticais, horizontais e diagonais, por todos os lados, de trás para a frente, de frente para trás. verticais, horizontais e diagonais, por todos os lados, de trás para a frente, de frente para trás.

 

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Pensamentos, memórias e emoções nunca permane­cem isolados, nem iguais a si mesmos - são latejantes, pulsativos. Redes neuronais são clarões que, como brasas depois do fogo, se intensificam ou quase desaparecem, mas podem se transformar em labaredas quando sopradas. Nossa vida psíquica deve ser pensada como incêndio, não neve fria.

A Estética do Oprimido, democrática e subjuntiva, visa, através da arte, permitir ao cidadão questionar dogmas e certezas, hábitos e costu­mes que suportamos em nossas vidas. Visa analisar cada ação e cada fato que acontece dentro de circunstâncias concretas. Visa destruir coroas de circuitos neuronais refratárias e agressivas... mas não indestrutíveis.

Através delas se impõem ideias e ideologias imobilistas em que o único movimento permitido é a concentração de poder. Destruir essas coroas é a propedêutica necessária para a abertura de caminhos.

 

Todo poder autoritário é violência. Aquela mulher indiana que disse “Meu marido não me bate mais do que o necessário, portanto não sou oprimida!” revela a existência de um poder marital que não é maior nem menor do que aquele que sofre aquela mulher nórdica que justificou seu esposo: “É verdade que, no meu país, pelo mesmo trabalho e mesmas condições, os homens ganham mais do que nós, mulheres. Mas isso não é opressão, porque nossos homens são bons para nós!”

Elas não percebiam que a violência do poder não está apenas no seu exercício - está na sua existência!

Como a violência pode se manifestar sem que seja exercitada? Pelo espetáculo, pela estética. Como se revela e pode ser combatida? Pela es­tética e pelo espetáculo, que se extrapola para a realidade onde se torna real e nela se completa.

Uma Nova Estética é urgente.

A Estética do Oprimido é um ensaio de revolução.

 

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A objetividade da arte

Os três níveis da percepção

 

Para ocupar nossos territórios necessitamos perceber o mundo onde vivemos.

Essa percepção se dá em três níveis:

 Informação — A luz se reflete sobre os objetos, atravessa o cristalino dos meus olhos, estimula minha retina, que informa ao nervo ótico, que faz circular essa informação até aquela região do cérebro que me fará ver o que está diante de mim. Recebo a mensagem, que se relaciona com outros circuitos neurais formando redes - eis o conhecimento.

 Conhecimento e tomada de decisões — O indivíduo relaciona as novas informações com as que já havia recebido e toma decisões. Até aqui, humanos e animais se assemelham: decidem, reagem.

Ratos criados em laboratório, que jamais viram a cor de um gato, fogem assustados quando sentem o odor felino; mesmo sem conhecer o inimigo, reagem biologicamente e repelem o cheiro. Nos animais, o conhecimento não se traduz em ponderações, mas em decisões conclusivas. No ser humano, informação e conhecimento nos levam a uma avaliação subjetiva, que é o terceiro nível da percepção: a decisão ética ou moral.

Vejam este exemplo: abro a porta da minha casa e vejo um tigre, escapado do circo; meu nervo ótico registra sua presença - recebo a informação! Excelente! Meus sentidos funcionam. Fico feliz. O tigre se aproxima e as informações continuam chegando com precisão: vinte metros, dez, cinco. O tigre brama; escuto seu bramido. Ativa-se meu nervo auditivo, bravo! Continuo alegre com o funcionamento perfeito dos meus sentidos. O tigre abre sua enorme boca, ativa-se o meu olfato e sinto seu bafo quente! Fico contente: as informações são corretas, estou bem informado. O tigre abre a goela e arreganha os dentes! Maravilha: percebo tudo, tão perto está minha cabeça dos seus dentes afiados.

 

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Se parasse aí o meu processo psíquico, eu seria engolido com apetite e sem delongas. No nível do conhecimento eu já sabia que tigre é animal perigoso; sabia que posso trancar a porta e usar a chave; que tenho a chave da porta e tenho pernas - posso me refugiar no andar de cima, posso me salvar exatamente como o rato fugindo do gato. Mas, como humano, não me limito a fugir; posso tomar decisões criativas e buscar soluções: inventar, escolher o que fazer. Na gaveta, tenho um revólver e posso matar o tigre. Subo ao segundo andar, abro a gaveta, ponho a mão na arma e...

 ... Consciência ética — Nível exclusivo do ser humano, consiste em dar sentido e valor às decisões que tomamos. Este é o nível da dúvida, das ponderações éticas. Devo matar o tigre? Afinal, o bicho está faminto - a crise econômica diminuiu sua ração no circo onde trabalha! O tigre quer apenas me comer, nada mais, saciando a fome sem aleivosia: comer gente ou ração em lata lhe é tão natural como à piranha devorar um boi.

Eu posso me salvar trancado em minha casa, esperando que ele vá embora; mas, se o deixar livre, o tigre pode comer o filho do vizinho que está brincando com o triciclo que ganhou de Natal - a carne do menino é mais tenra do que a minha... Tigre sabe escolher. Chamo os bombeiros? Jogo minha escrivaninha na cabeça do animal para que fique desacordado? Grito? Faço caretas? Será que o tigre entenderá meu humor?

Este terceiro nível é ético: dá valores a cada ato que praticamos e projeta nossas ações no futuro, nas consequências das nossas escolhas. É criativo: exige a invenção de alternativas. Não basta ver o que é, mas principalmente o que pode vir a ser; ver o que não existe.

É neste nível ético que se devem mover o Teatro e a Estética do Oprimido: não bastam boas ideias, é necessário que sejam justificadas; não basta trabalhar com ideias que já existem, é necessário inventar, porque todas as situações, mesmo repetidas, são sempre novas.

No nosso trabalho teatral, devemos amplificar todos os níveis da percepção, especialmente o ético, para que nossas escolhas sejam conscientes- com ciência - das possibilidades que existem ou podem ser criadas em cada situação!

 

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Os animais agem levando em conta o que existe diante de si. Humanos imaginam, inventam o que não existe.

Nossa Estética deve ser conhecimento e invenção.

 

Do processo estético ao produto artístico

Humanos, em boa parte predatórios,[nota 33] buscamos ocupar o maior território, mesmo além do necessário, excluindo os demais dos nossos domínios. Se, nos animais, esse território é apenas terra, água e florestas, onde se comem uns aos outros, nós, humanos, predamos também símbolos, títulos de nobreza e poder, nomes e dinheiro - dinheiro como símbolo de todos os territórios.

Quem nomeia é sempre o mais forte, e as nomeações começam no berço com o batismo; na escola, com as notas que determinam quem é o melhor aluno; na formatura, títulos acadêmicos; no esporte, campeonatos; no exército, a benção da espada; na igreja, jogando-se ao chão. O nome de “esposa” se recebe com o vestido de noiva; de “doutor”, na solenidade de formatura, e o Presidente da República é nomeado em cerimônia no Palácio, cercado de ministros. Napoleão coroou-se a si mesmo na Catedral de Notre Dame porque acima dele não havia ninguém, nem o Papa, talvez Deus... talvez apenas...

No Renascimento, os nobres exibiam riquezas carregando dinheiro em um só bolso, volumoso, na frente do sexo - prova de monetária virilidade! - e não ao lado das pernas, como hoje. Usavam várias camadas de roupas cortadas verticalmente para que todas fossem vistas ao mesmo tempo. Nomeavam-se a si mesmos: “sou nobre”.

 

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O artista é nomeado pelos meios de comunicação, que desejam transformá-lo em mercadoria. No entanto, embora só algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo de artistas, todo ser humano é, substantivamente, artista.

As sociedades deveriam repousar em fraternas estruturas de solidariedade, mas as monarquias, em toda parte, repousam em estruturas de vassalagem. Também nas artes existem reis e rainhas; princesas e viscondes, estrelas e coadjuvantes...

Não nego o talento: nego sua posse exclusiva.

Quando, porém, àqueles que não pertencem à monarquia artística, quando às pessoas comuns se oferece a possibilidade de realizar um processo estético do qual foram alienadas, este processo expande suas possibilidades expressivas atrofiadas, aprofunda sua percepção do mundo, dinamiza seu desejo de transformá-lo.

Faço distinção entre o fazer, isto é, o processo estético, e o que é feito, o produto artístico. Para que este exista, aquele é necessário; mas não é necessário que o processo estético dê origem ao produto artístico, à obra de arte. O processo pode ficar inconcluso, e nisso não há mal.

Em uma democracia ideal, teremos que democratizar não apenas a política, através da mobilização popular, não apenas a economia solidária, não apenas a informação, não apenas a educação e a saúde, mas todas as artes, pois que fazem parte essencial de cada indivíduo, de cada grupo social, cada cultura e cada nação, e do harmônico desenvolvimento humano. Temos que nos desatrofiar!

Temos que não apenas consumir, gozar, fruir, mas produzir arte.

Ao fabricar sua obra, o novo artista, mesmo que não chegue a produzir obras para museus, sente o prazer de ser reconhecido como insubstituível naquilo que faz e que só ele ou ela sabem fazer do jeito que fazem.

 

O trânsito social do singular ao plural

O artista é mergulhador de águas profundas. Como conciliar essa perigosa aventura singular com a necessidade plural do grupo ao qual pertence?

 

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Cada arte é um caso à parte. Ao escrever um poema lírico, a criação do poeta é solitária. Ao pintar um quadro, o pintor expressa seus sentimentos em traço e cor: tarefa do indivíduo. Mas nada impede que o grupo pinte um mural, monte uma peça coletivamente, mesmo quando orientados nas diferentes técnicas e possibilidades, e escreva um livro coletivo de poemas individuais.

O trânsito entre o singular e o plural não deve limitar subjetividades nem perder de vista a criação coletiva, que é um somatório de sensibilidades e não passiva aceitação do denominador comum inferior.

No caso particular do Teatro-Fórum, uma das principais formas do to, é necessário construir um Modelo - cena ou peça - intencionado a ensaiar ações concretas na vida social, produzir mudanças, transformações. Esse Modelo deve ser escrito (ou aprovado) coletivamente, pois deve representar o pensamento, a necessidade e o desejo do grupo ou de sua classe.

A fabricação do Modelo move-se em dois níveis: seus autores devem recuar até o mais íntimo dos seus sentimentos e experiências de vida, e avançar ao encontro dos demais participantes. Mergulhar dentro de si e lançar pontes aos coartistas.

Na equipe criadora, todos devem pertencer à mesma categoria social, à mesma função ou profissão, vítimas da mesma opressão, vivendo semelhantes condições e tendo os mesmos desejos de intervir na realidade à sua volta. Negros discriminados por serem negros, mulheres por serem mulheres, camponeses sem terra, operários em greve, professores mal pagos... Este é o nível superior do processo criativo e estético do to.

Como em jogo de xadrez, todas peças devem estar presentes no tabuleiro - todos os personagens com algum poder de decisão devem lá estar, todos os oprimidos e todos os opressores - ou seus representantes: trata-se de um combate do qual todos participam.

O TO é um ensaio para a transformação do real e não apenas um fenômeno contemplativo, por mais transformadora que a contemplação já possa, em si mesma, ser.

 

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O processo estético da criação deve conduzir a um produto artístico bem acabado - o Modelo - que deve refletir a percepção do grupo e seu desejo de mudança. No espetáculo, o Modelo será submetido a um original processo de criação coletiva através do combate teatral e não da pura palavra, criação esta provocada pela intervenção dos espect-atores em busca de alternativas de ação.

As intervenções de cada espect-ator valem não só pelo que dizem, mas pela voz com que o dizem; não só pelo fazer, mas pela forma de fazê-lo. Não só pelo feito, mas pelo que se deixou de lado.

Esta forma teatral é revolucionária na medida em que o Teatro - do grego, Theatron, thea-tron — deixa de ser o “lugar onde se assiste a um espetáculo, ou é o próprio espetáculo” (Houaiss) e se transforma em arena onde espectadores e atores, assumidos como artistas e cidadãos, fabricam um espetáculo que pulsa em permanente moimento, como a vida: práxis-tron.

Fazemos praxis-tron, não thea-tron.

Como o Teatro é o encontro de todas as artes, a Estética do Oprimido existe no som, na palavra e na imagem. É a seiva da sua árvore - árvore viva. Não existe to sem Estética do Oprimido - esta é a sua linguagem.

O espaço físico, o espaço estético e o espaço cênico já são Estética mesmo antes que entre em cena o primeiro ator. Quando entra, seu corpo é pintura, escultura e dança. Quando pronuncia sua primeira frase, suas palavras são poesia, ideia e emoção. Sua voz é música. Seus atos são os atos estetizados de um cidadão.

Não se trata apenas de tornar agradável o espetáculo, torná-lo estético, mas de descobrir a verdade escondida atrás dos nossos hábitos mecanizados de pensamento e comportamento repetitivo do dia-a-dia.

Ao contrário do que se diz, o hábito faz o monge, sim, e o obriga a rezar mesmo quando não queira. O que não impede que, dentro do hábito e dentro do monge, um ser humano exista e viva. O monge pode se despir do hábito e do monge.

Não falo de monges: falo de nós.

Esta tarefa necessita dos meios estéticos e noéticos - sensações e símbolos - para que se revele inteira. Não se busca o bonito, busca-se o Belo. Não se quer constatar, mas transformar! Abaixo a resignação!

A cópia do real reproduz aparências visíveis: duplica o óbvio. Artistas, nós mergulhamos no fundo do mar para depois pisar em terra firme.

 

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O método subjuntivo

O teatro conjuga a realidade no tempo presente do modo indicativo -“Eu faço!” - ou no gerúndio - “Estou fazendo”. A tv e a publicidade, no modo imperativo - “Faça!” No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no modo subjuntivo, em dois tempos: no pretérito imperfeito - “...e se eu fizesse?” - ou no futuro - “...e se eu fizer?”

No trabalho com camponeses que lutam pela terra para cultivá-la ou com jovens cumprindo pena em estabelecimentos correcionais; em comunidades pobres ou com portadores de deficiências físicas ou mentais; com operários de uma fábrica ou empregadas domésticas; com alunos, professores e parentes, ou conosco mesmos, temos que ser, sempre, subjuntivos.

Tudo será se, porque quase tudo pode vir a ser.

O Método Subjuntivo é a instauração da dúvida como semente da certeza. Antidogmatimo. E a experimentação de modelos de ação futura, possíveis em uma situação dada, que precede a ação concreta.

Pedagogicamente, devemos ajudar cada participante a descobrir o que já sabe: trazer à sua consciência o seu próprio conhecimento. Não devemos dizer “Façam isto ou aquilo, porque é assim que se faz!”, mas “Se fizéssemos isto ou aquilo, como seria?”

Mesmo que os participantes dos nossos projetos em escolas, saúde mental, camponeses, pontos de cultura façam qualquer coisa admirável, ainda assim devemos pedir alternativas: e se fosse diferente, como seria? No final de cada sessão, sim, devemos decidir o que fazer, como fazê-lo e quando.

Devemos fazer!

 

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Revolução cultural não dogmática

Em alguns países europeus, o ensino da arte é obrigatório... de forma teórica. É óbvia a necessidade do estudo teórico dos grandes artistas e suas obras, mas isso não basta. É como se estudássemos a vida dos gran­des campeões olímpicos de natação... sem cairmos na água. Ou estudar futebol... sem bola.

A Estética do Oprimido é uma forma essencial de combater a Invasão dos Cérebros porque coloca o oprimido como protagonista do processo estético, não simples fruidor de arte.

Não leva a cultura ao povo, mas oferece meios estéticos necessários para o desenvolvimento da sua própria cultura, com seus próprios meios e metas. Não apenas educa nos elementos essenciais do como se pode fazer, mas, pedagogicamente, estimula os participantes a buscarem seus caminhos.

No caso particular do teatro, a peça deve conter a ação dramática e sua clara crítica. Não realismo, mas realidade que busque alternativas. Não a vida como ela é, mas como não queremos que continue sendo. Todo espetáculo, em cena ou na vida real, é uma estrutura de poderes que devem ser revelados.

A ascese, durante o fórum, é necessária à compreensão de cada fenô­meno que se mostra em cena, pois devemos sempre chegar às leis sociais que regem esses fenômenos.

David Farout dá este exemplo: se os marcianos visitassem a terra e tentassem compreender o nosso sistema social e político observando os sinais de trânsito, entenderiam quase tudo: o verde autoriza a passagem, amarelo é atenção, vermelho, e os carros param. Atribuiriam um enor­me poder a esses instrumentos deificados, mas não saberiam por que as cores dos sinais mudam, nem quem as faz mudar.

 

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Qual o valor da multa? Saberiam tudo, sem nada saber. Por isso, a ascese deve revelar as forças escondidas no ventre de cada fenômeno, que são sempre sociais e políticas, revelar a correlação de forças em conflito, e só assim entenderão as regras do trânsito... e da vida.

Na Guatemala, mais de mil mulheres foram assassinadas, em menos de dez anos, por seus companheiros ou membros de suas famílias: mas o que é o patriarcalismo? Nos Estados Unidos, trabalhadores mexicanos ilegais são explorados e humilhados: mas quanto lucram as empresas que os escravizam e por que as deixam escravizar? No Brasil, trabalhadores sem terra são deixados à margem de extensas terras incultas: quem detém esse poder e como se dá a valorização bancária dessa terra deixada improdutiva? O professor falta com frequência às aulas: qual é o seu salário?

Isto é ascese! Buscar a causa primeira, ou causa superior, anterior, verdadeira.

A Estética do Oprimido é trânsito; esperança, não conformismo! Nada tem a ver com as revoluções monárquicas, coercitivas, dirigidas de alto para baixo. Verdadeira revolução na cultura, quando a base da pirâmide se subleva, esteticamente, para depois pôr em prática seus achados. Na árvore do Teatro do Oprimido, a copa soberana são as ações concretas.

Uma Estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de produzir suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos opressores. Democracia estética contra a monarquia da arte.

Se, nas senzalas, só se ouvissem as falas da Casa grande e os cantos da corte, as senzalas jamais seriam capazes de inventar Palmares. Na cultura da casa grande, a senzala serve e a casa é servida. Só na valorização da sua própria cultura a senzala encontra sua forma de ser. A cultura da casa não serve à senzala porque tem valores senhoris e formas senhoriais.

Mesmo a chamada grande cultura milenar deve ser reinterpretada do ponto de vista de onde estamos, e não de onde nos disseram que a cultura estava.

Devemos pensar a arte do ponto de vista de quem a produz e pratica, não a partir de uma perspectiva contrária à nossa.

 

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A esta nova visão da Estética batizei um dia de Revolução Copernicana ao Contrário: [nota 34] somos, sim, o centro do universo da arte porque somos o nosso centro, e não devemos temer invadir e pisar o meio do palco, mesmo vivendo na periferia das cidades, nos guetos dos excluídos e longe da arte oficial, à qual não devemos obediência. Somos quem somos, e a vida é curta.

 

A Estética do Oprimido não inventou nenhuma panaceia para os males da cidadania, mas com ela é possível reverter o curso da acelerada desumanização dos oprimidos nesta época sombria.

Como a humanidade sempre esteve dividida, os opressores deter­minam formas e conteúdos da arte, impõem visão do mundo a todo mundo. E normal que os oprimidos contra isso se rebelem. A Estética do Oprimido busca criar seus próprios valores, sua verdade.

Como disse um camponês do MST: “O Teatro do Oprimido é bom porque permite que a gente aprenda tudo que já sabia”. Aprende esteti­camente - amplia o conhecer e lança o conhecedor em busca de novos conheceres.

Aprendemos a aprender!

O estímulo que se faz em uma área cerebral propaga-se às áreas circunvizinhas: acordes de violão desenvolvem potencialidades visuais e não apenas auditivas. Campeões de xadrez estudam música clássica para melhor imaginarem criativas estratégias. Einstein tocava violino quando não sabia prosseguir com seu trabalho matemático e voltava à matemática quando conseguia organizar seus pensamentos: a música é o som da matemática, sublimada, sonora.

Da mesma forma que o esporte expande as potencialidades do corpo, a arte expande as da mente.

Isto não significa que eu creia que não haverá mecânicos de automóveis mais capazes do que outros; corredores mais velozes; cientistas possui­dores de capacidade inventiva acima do comum; enxadristas capazes de estratégias insuspeitadas; escritores de estilo magnífico; significa apenas que a todos devem ser dadas condições e meios para desenvolver suas potencialidades em todas as direções.

 

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As sementes deste projeto já estão no próprio Arsenal do Teatro do   Oprimido - técnicas de imagem já são Artes Plásticas; falta extrapolá-las para a obra de arte concreta. Técnicas de ritmos já são música - falta transformá-las em canções. Improvisações já produzem literatura - falta concretizá-las em poemas e narrativas.

Até mesmo os Jogos Sinestésicos já estão no nosso Arsenal e são os que mais estimulam a criatividade artística porque, ao traduzirem uma sensação em outra, uma ideia em sensação ou uma sensação em ideia, ao traduzirem a memória em emoção e esta naquela, estimulam a totalidade dos neurônios estéticos envolvidos no tema. [nota 35]

Buscamos o belo como qualquer artista. O belo que, como escreveu Hegel, é o luzir da verdade através dos meios sensoriais. A verdade que se esconde atrás das aparências. Mas não buscamos a verdade hegeliana, onde se revela Deus, e sim aquela que pode ser inventada pelos humanos: a luta contra a opressão.

Buscamos o belo que se esconde em cada cidadão: mesmo que alguns não sejam capazes de criar um produto artístico, todos são capazes de desenvolver um processo estético.

O belo não é algo que existe como coisa ou na coisa, mas sim na relação entre coisa e observador - não é absoluto, é relativo. Pode durar milênios, mas não é eterno; pode ser imenso, mas não universal.

 

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O conhecimento da cultura de outros povos e outras épocas é impor­tante. Moças e moços de uma comunidade que aprendam a dançar valsa com rigor austríaco ou minueto com elegância francesa, algo aprendem mesmo que a “nobreza e o equilíbrio dos movimentos” [nota 36] destas danças nada tenham a ver com suas vidas: comparam e gozam.

Se encenam uma peça de Molière ou executam ao piano um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá ampliar os horizontes da sua                              per­cepção - aprendizado maravilhoso.

Nenhuma estrutura de dança, música ou teatro, no entanto, é inocente ou vazia: todas contêm a visão do mundo de quem a produz. Contêm sua ideologia, que, através da forma artística, é incorporada por quem as pratica... a menos que disso esteja consciente.

É ótimo que saibamos dançar minuetos e valsas, sabendo de onde vieram; melhor ainda é descobrir a dança que o nosso corpo é capaz de criar. [nota 37] Somos seres rítmicos desde nossos corações e nossos pulmões, até a sede e a fome, o dia e a noite, o trabalho e o lazer... Somos seres musicais.

A Estética do Oprimido é uma proposta que trata de ajudar os opri­midos a descobrir a Arte descobrindo a sua arte; nela, descobrindo-se a si mesmos; a descobrir o mundo, descobrindo o seu mundo; nele, se descobrindo.

Se não sei quem sou, serei cópia.

Para realizá-la na prática, o Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro vem desenvolvendo o Projeto Prometeu.

 

 

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O PROJETO PROMETEU

 

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Em branco.

 

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Introdução ao Projeto

 

[Início de citação] O desenvolvimento do Teatro do Oprimido no mundo suscita dois problemas essenciais: identidade e legitimidade. [Final de citação]

 

Quem somos?

O Centro do Teatro do Oprimido (www.ctorio.org.br) é uma organização não‑governamental sem fins lucrativos dedicada ao estudo, à prática e à difusão do Teatro e da Estética do Oprimido no Brasil e nos países onde quer que seja necessária e possível a sua utilização.

Temos como referência maior a Declaração universal dos direitos hu­manos, que nos oferece o melhor que podemos desejar como cidadãos: trabalho e lazer, moradia e dignidade, igualdade de gêneros e raças, direito à vida e à segurança pessoal, educação e saúde, cultura e arte etc. Proíbe a escravidão, a tortura, o tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante... Enfim, ela nos propõe um mundo aceitável no qual se poderia viver razoavelmente bem - e é viável. Foi assinada por todos os países membros na onu em 10 de dezembro de 1948; hoje, é ignorada por quase todos os seis bilhões de habitantes deste planeta e pisoteada pela maioria absoluta dos governos que a firmaram.

Temos que honrá-la e não permitir que se transforme em soberba hipocrisia, como tem sido até agora.

Respeitamos todas as formas do fazer teatral por mais diferentes que sejam. Não desejamos competição: acreditamos no intercâmbio criativo de informações e descobertas em todas as áreas artísticas, sociais e políticas, especialmente com as organizações fraternas que praticam o Teatro do Oprimido com as mesmas preocupações éticas e estéticas que justificam o nosso trabalho.

 

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Essas organizações atuam em dezenas de países dos cinco continen­tes, em variadas culturas, dinamizadas por centenas de centros, grupos e indivíduos, envolvendo milhares de mulheres e homens dispostos a trabalhar em favor da invenção de sociedades humanas solidárias (www. theatreoftheoppressed.org).

O conceito de legitimidade está associado ao de legalidade, mas dele diverge. Esta é um conjunto de leis, hábitos, tradições e culturas, que formam sua moral, não necessariamente sua ética - só esta pode legitimar a ação política e social.

Moral - mores, em latim - refere-se aos costumes que existem e são geralmente aceitos pela da população - até a escravidão já foi moral e legal. Ética - Ethos, em grego - é o que se deseja para si e para o con­junto da sociedade.[nota 1] Esta definição se baseia em Aristóteles, que em sua Poética afirmava que cada sociedade tendia à sua perfeição. Ethos é o ideal desejado, não o real existente. O comportamento ético consiste no conjunto de ações em busca desse ideal, não na passiva obediência. Nós trabalhamos com estas definições semânticas dessas palavras.

Nós, que praticamos o Teatro e a Estética do Oprimido, nós, que trabalhamos por uma sociedade sem oprimidos e sem opressores, que­remos ajudar a tornar realidade as promessas utópicas da Declaração universal dos direitos humanos.

Esta é nossa principal identidade.

 

O que fazemos?

Ser humano é ser artista. Nenhuma percepção da sociedade e da natureza estará completa sem as duas formas humanas de pensar: o Pensamento Sensível, criador de arte e cultura, e o Pensamento Simbólico das palavras. O to procura desenvolver esses dois pensamentos que, entre os oprimidos, foram atrofiados pela prevalência do pensamento único. Nossa filosofia e nossa política são claras: a luta contra todas as formas de opressão, em todos os segmentos sociais.

 

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Nossa identidade legitima nossas atividades. Como artistas, não dispo­mos de outras armas além da nossa arte e das ações concretas decorrentes do seu exercício social. Como cidadãos, cada um de nós tem, ou pode ter, suas alianças políticas, pode integrar outras organizações com objetivos similares, jamais opostos: não se pode ser servidor de dois patrões: o to é o Teatro do Oprimido, para o Oprimido e sobre o Oprimido.

 

Teatro do Oprimido

TO é um método teatral que se manifesta através da Estética do Oprimido, sistema com a mesma base filosófica, social e política, que engloba todas as artes que integram o teatro. A originalidade deste método e deste sistema consiste, principalmente, em três grandes transgressões:

1 — Cai o muro entre o palco e a plateia: todos podem usar o poder da cena;

2 — Cai o muro entre o espetáculo teatral e a vida real: aquele é uma etapa propedêutica desta;

3 — Cai o muro entre artistas e não-artistas: somos todos gente, somos humanos, artistas de todas as artes, todos podemos pensar por meios sensíveis - arte e cultura.

O TO é uma Árvore Estética:[nota 2] tem raízes, tronco, galhos e copas. Suas raízes estão cravadas na fértil terra da Ética e da Solidariedade, que são sua seiva e fator primeiro para a invenção de sociedades não opressivas. Nessa terra coexistem o remanescente instinto predatório animal e o avanço humanístico. Na terra, vemos a miséria do mundo; nas copas, o sol da manhã.

 

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TO é ensaio para a realidade - intervenção concreta no real. Não se trata apenas de conhecer a realidade, mas de transformá-la em outra melhor - obra dos próprios oprimidos conscientes, ou conscientizáveis, com os quais somos solidários. Nossa política é apoiar os grupos de oprimidos cujas políticas nós apoiamos.

Nenhuma oficina, encontro, ensaio ou qualquer atividade do TO deve terminar quando acaba: pelo contrário, deve projetar-se no futuro e produzir consequências individuais e sociais, por menores que sejam, reais. Todo e qualquer evento do TO deve objetivar as ações sociais con­cretas continuadas.

TO é ensaio para a realidade - intervenção concreta no real.

 

[Início de citação] Minha sabiá, minha zabelê,

Toda madrugada eu sonho com você.

Se você duvida,

Eu vou sonhar pra você ver.

(Cancioneiro popular de Minas Gerais. Zabelê é uma ave da família dos inhambus, perdizes e macucos. Aves em extinção... mas que ainda podem ser salvas e cantar, cada qual com a voz que tem.) [Final de citação]

 

Ética e Solidariedade

Sinto necessidade de algumas resumidas explicações.

Participação — deve incluir todos os segmentos oprimidos da so­ciedade. A pessoa só, é vulnerável: devemos ajudar nossos parceiros a se organizarem em grupos e com grupos que sofrem opressões semelhantes, evitando-se o corporativismo e o individualismo - a farinha pouca, meu pirão primeiro; cama estreita, eu deitado no meio, do cancioneiro popular. Participação política é o braço atuante da Filosofia. Dizia um filósofo latino: “Primum vivere, deinde philosophare (“Primeiro viver, depois filosofar”). Ou, nas palavras de Mário Moreno, Cantinflas, ator cômico mexicano: “Temos que pensar pensamentos profundos, sim, mas... de barriga cheia”.

 

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É difícil pensar quando se tem fome.

Filosofia — não se trata de ensinar apenas biografias de filósofos, nem suas ideias separadas da sociedade em que viveram, mas as relações entre os pensamentos e suas consequências na realidade concreta - ou em que as filosofias refletem o que vai nas sociedades. A forma de explicar é tão importante como aquilo que se explica. Ser complexo não significa ser complicado. Se uma ideia é complicada, é porque é ruim; se é complexa, pode ser explicada em partes simples, passo a passo.

História — hoje, no Norte do Brasil, indígenas são expulsos de suas terras por fazendeiros grileiros. A História nos ajuda a entender as violên­cias atuais, comparadas com os genocídios de indígenas após as invasões brancas europeias. Para compreender nossos vizinhos sul-americanos é recomendável estudar o genocídio da população paraguaia perpetrado pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) entre 1864 e 1870, quando foram mortos quase dois terços da população daquele país - homens principalmente. A rivalidade Argentina-Brasil talvez tenha algo a ver com a história do Uruguai, ex-Província Cisplatina, objeto da cobiça e posse alternada de ambos os países, antes das suas independências no início do século XIX.

Trabalhadores sem terra, de norte a sul do Brasil, acampam em frágeis barracas ao lado de fazendas não produtivas - é bom saber que a tragédia dos sem‑terra começou com as capitanias hereditárias, entre 1534 e 1536, quando o branco rei invasor, Dom João iii de Portugal, resolveu dividir as terras dos indígenas entre os favoritos de sua Corte para se defender contra as invasões francesas e holandesas.

Os recentes conflitos políticos na Bolívia (2008) serão mais bem entendidos se pensarmos que as invasões hispânicas desde o século xvi empurraram os indígenas para os territórios montanhosos e os espanhóis ocuparam as terras baixas onde estão o petróleo e o gás, fontes de riqueza. Justamente nessas regiões, agora hispânicas, estão as cinco províncias se­paratistas que pretendem isolar os ameríndios em terras áridas e guardar para si os dividendos do subsolo.

A História revela as lutas de classes que movem as sociedades e explicam a degradação climática da Terra, objeto da Ecologia; inclui o estudo dos sistemas financeiros e econômicos, que aprofundam as divisões entre ricos e pobres - para isso existem -, e todos os temas que possam iluminar os conflitos contemporâneos. A História refere-se a hoje, não só ao passado.

 

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Ética e Solidariedade, em forma estética, são a seiva que alimenta a Grande Árvore do TO e viajam pelas artérias axiais da Palavra, da Imagem e do Som, transitam pelos Jogos, metáfora da realidade, e iniciam o pro­cesso de nos despirmos do lixo cultural que nos envolve, estimulando a criatividade dos participantes.

O processo prático estético se inicia no tronco da Árvore com os jogos lúdicos que, ao contrário dos jogos de azar, têm regras fixas mas exigem criatividade, tal como a sociedade tem leis, mas necessita de liberdade. Sem leis não existe vida social - sem liberdade não existe vida.

No Teatro Imagem as formas de percepção não-verbal são estimuladas, sem detrimento da palavra.

Na nossa Árvore existem quatro grandes Copas, e mais uma.

A primeira, Teatro Jornal. Seria ingenuidade pensar em liberdade jornalística: jornalismo é ficção a mando dos proprietários, que nele refletem suas ideologias. Mesmo quando dizem a verdade, os jornais dominantes mentem usando técnicas ficcionais, como a diagramação e o tamanho das letras.[nota 3] As doze técnicas do Teatro Jornal (1970, Núcleo 2 do Teatro do Arena de São Paulo) permitem desmistificar essa falsa neutralidade transformando notícias e reportagens, ou qualquer material impresso, inclusive a Bíblia e atas sindicais, em cenas teatrais.

A segunda Copa é o Arco-Íris do Desejo, iniciado em um ateliê em Paris (1980‑1983), no Centre du Théâtre de ÉOpprimé-Augusto Boal, que codirigi com Cecília Thumim Boal: Le flic dans la tête (Opolicial na cabeça). Nesta fronde da Árvore estudam-se as técnicas introspectivas, que mostram opressões que trazemos integradas como se tivessem nascido em nossa mente; estudam-se as relações sociedade-indivíduo. Podem ser terapêuticas, mas não terapia.

A terceira Copa é o Teatro Invisível, que iniciei quando exilado em Buenos Aires (1971-1973), com o Grupo Machete. Tenta sensibilizar a cidadania para opressões desapercebidas: é preciso desfamiliarizar a opressão para que se possa vê-la e combatê-la.

 

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Sua trama, embora não seja verdade sincrônica, é diacrônica: não é verdade que a cena esteja acontecendo espontaneamente aqui e agora, mas é verdade que acontece perto ou longe daqui, e pode estar acontecendo em outro lugar nesse mesmo momento.

A quarta Copa, Teatro Legislativo, foi desenvolvida com Curingas do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (Mandato de Vereador de 1993-i996). Consiste na simulação, após o Fórum, de uma sessão normal de uma assembleia legislativa. É sempre melhor que a lei, mesmo tão desrespeitada, esteja do nosso lado e não contra nós. Nele, a cidadania legisla, compreende os mecanismos da fabricação das leis. Mais de 15 leis já foram assim promulgadas na cidade do Rio de Janeiro.

No Teatro Fórum, no coração da Árvore, os oprimidos conscientes e os oprimidos conscientizáveis expõem opiniões, necessidades e desejos; ensaiam ações sociais concretas e continuadas, que é a Copa Soberana, meta maior do Teatro do Oprimido - a intervenção na realidade.

Uma mulher foi assassinada: por que homens matam suas mulheres em sociedades patriarcais? Que regime social, moral, que regime econômico permite espancamentos e mortes? Por que, sobre elas, cai o silêncio?

Nenhuma cena de Fórum deve ser exposta em escala microscópica sem que se vejam os elementos essenciais do Mapa da Situação; em ci­nema, isso se chama zoom out - não o close-up, mas a vista panorâmica. Como a câmera do cineasta que, ao se afastar do ponto cêntrico do objeto sendo filmado, inclui elementos que o circundam, assim também, em um conflito particular, não devemos descer às suas singularidades, conjunturais, mas subir ao estrutural: do fenômeno à lei que o rege, às suas causas - Ascese! [nota 4]

 

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Em uma escola, um professor exausto, criticado pelos alunos, que lhe pediam mais dedicação ao ensino, disse que não podia continuar trabalhando pela manhã, dando aulas de Geografia em uma escola, à tarde, lecionando Matemática em outra escola, passando em casa na hora do jantar para um beijo nos filhos e na mulher e, à noite, servindo de segurança em uma terceira escola. Os estudantes tinham razão e o professor também.

Mapa da Situação: colegas, professores, diretores, familiares dos alunos e dos mestres, Secretaria da Educação, governo... quem mais? Temos que levar em conta a totalidade daquele universo, não apenas a disputa professores-alunos; temos que subir ao macrocosmos — é quase sempre no alto da pirâmide que se encontram as origens dos males, as pressões necessárias que se devem fazer e as soluções possíveis.

Alternativas devem ser propostas pelos oprimidos porque do céu cai chuva, não soluções mágicas: no Recife, algumas mulheres trazem consigo apitos e apitam quando alguma ameaça vai se concretizar. Outras respondem, denunciando o agressor. Solidariedade ativa, não puramente formal! Na índia, mulheres vestidas com saris cor-de-rosa vão à casa do agressor tirar satisfações - vão muitas e vão armadas com paus para qualquer eventualidade... Assustam! Estas são ações concretas sociais continuadas, solidárias.

Shakespeare dizia que o teatro é um espelho que nos mostra nossos vícios e virtudes. O Teatro do Oprimido quer ser um espelho mágico onde possamos, de forma organizada, politizada, transformar a nossa e todas as imagens de opressão que o espelho reflita.

A imagem é ficção, mas quem a transforma não é. Penetrando nesse espelho, o ato de transformar transforma aquele ou aquela que o pratica. Um poeta se faz poetando, um escritor escrevendo, um compositor com­pondo, um professor ensinando e aprendendo, um Curinga curingando - um cidadão se faz agindo, social, política e responsavelmente.

O ato de transformar é transformador!

 

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Declaração Universal dos Direitos Humanos

Adotada e proclamada pela resolução 217 A (iii) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.

 

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,

Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa hu­mana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

 

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Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

 

A Assembleia Geral proclama:

A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo I — Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo II — Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Artigo iii — Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo IV — Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.

Artigo V — Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.

Artigo VI — Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.

Artigo vii — Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

 

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Artigo VIII — Toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Artigo IX — Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo X — Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.

Artigo XI — 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Artigo XII — Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Artigo XIII — 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar.

Artigo XIV — 1. Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XV — 1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.

 

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Artigo XVI — 1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.

Artigo XVII — 1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

Artigo XVIII — Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liber­dade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Artigo XIX — Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Artigo XX — 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pa­cíficas. 2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo XXI — 1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Artigo XXII — Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

 

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Artigo XXIII — 1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compa­tível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar para proteção de seus interesses.

Artigo XXIV — Toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.

Artigo XXV — 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas, dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Artigo XXVI — 1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

Artigo XXVII — 1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.

 

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Artigo XVIII — Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados.

Artigo XXIV — 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas.

Artigo XXX — Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

 

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Projeto Prometeu [nota 5]

 

Mídia e patrocinadores fazem supor que ser artista é um inalcançável dom divino; a vida real prova o contrário: somos todos artistas.

Só um nadador vai ser o primeiro a tocar a outra margem da piscina, mas todos podem nadar! Um goleador fez mil gols, mas fazer gols não é privilégio do rei do futebol.

Para pintar, basta pincel, tela e tintas: cada qual tem o seu jeito. Não sei cantar bemóis e sustenidos, mas não me calo: canto com minha garganta e a voz que tenho.

Esporte, arte, ciência e vida não são privilégios das classes confortáveis: cada qual tem sua medida. A monarquia artística faz parte da economia do mercado: nós, ao contrário, somos os citoyens da Revolução Francesa, que aboliu os títulos de nobreza - Cidadãos da Arte.

Com esse pensamento e desejo, o Centro do Teatro do Oprimido está desenvolvendo o Projeto Prometeu.

 

A palavra

Não buscamos transformar nenhum cidadão em escritor de best-sellers de aeroporto, mas permitir que todos tenham o domínio sobre a maior invenção humana: a palavra.

 

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Conquistar palavras e saber usá-las faz parte da luta de liberação. Nossa meta não é ajudá-los a superar Bandeira ou Carlos Drummond, mas a si mesmos.

Palavras evocam ideias, emoções, desejos. Quando uma empregada doméstica ouve a palavra Maria, essa palavra vem associada a uma or­dem: “Maria, faz o jantar”; “Maria, lava a roupa”; “Maria, varre a casa e a varanda”; “Maria, faz isso, aquilo, vai lá, vem cá”. Maria passa a ser prenúncio de ordem, que exige bater continência em posição de senti­do! Quando Maria, ela mesma, escreve seu nome em uma folha branca, ela se redescobre, se reinventa e associa seu nome ao amor, ao prazer, à política.

Maria assume seu nome e se assume como Sujeito.

Escrever significa dominar a palavra ao invés de ser por ela dominado. Quanto mais palavras dominarmos, mais rico será o nosso pensamento e ampla a nossa visão do mundo.

Não é fácil pedir a um operário, usuário da Saúde Mental ou a um presidiário que escreva um texto que revele seus desejos, emoções, ideias. Temos que mostrar concretamente que quem é capaz de falar pode tam­bém escrever o que fala.

Quando eu trabalhava em um programa de Alfabetização Integral no Peru, em 1973, um estagiário tinha acabado de comprar um dos pri­meiros gravadores de voz portáteis (Geloso) - parecia um paralelepípedo. Quando um dos participantes se recusou a escrever dizendo que não tinha talento para isso, nós lhe fizemos uma entrevista com perguntas sobre temas que ele conhecia. Suas respostas foram gravadas e depois copiadas em papel. No dia seguinte, lemos o que ele havia escrito (ao falar). Para sua surpresa, era um escritor nato... Escrever é falar de forma lenta, pensada, e falar é escritura oral! Conhecendo um maior número de palavras, melhor pensamos.

 

Três jogos de palavras

Declarações de identidade

Cada um declara quem é, três vezes e para três destinatários diferen­tes - a pessoa amada, a vizinha, o chefe do qual depende seu emprego, o presidente do país, o povo, o gato ou cachorro de estimação: tudo serve.

 

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A cada vez que declara sua identidade, como nossa identidade também nos é dada pela relação com os outros, o escritor descobre suas identidades em desuso, multiplicidade. Nenhum de nós é sempre o mesmo, nem para os outros, nem para si.

 

O que mais me impressionou nos últimos anos

Os participantes são convidados a escrever uma curta narrativa sobre um fato real impossível de esquecer. As declarações de identidade são voltadas para o interior de cada um; esta é uma reflexão sobre o mundo. Não basta narrar o fato - deve-se revelar de que maneira esse fato nos impressionou e relacioná-lo com a nossa vida.

Pode-se colocar os papéis na parede ou fazer circular os textos escritos entre os presentes, sem que conste a autoria da cada um. Pergunta-se qual o texto que mais impressionou cada participante e por quê. Só então se pergunta quem escreveu cada texto e pede-se que o autor comente os comentários feitos sobre a sua narrativa. Outros participantes devem intervir narrando fatos da mesma natureza, descobrindo semelhanças.

 

Somos todos poetas

Não é necessário ser poeta para escrever um poema, mas quem escreve um poema torna-se poeta. E o fazer que nos faz.

O tema pode ser os olhos da pessoa amada ou um buraco no sapato; o sorriso do recém-nascido ou os preços do supermercado; um discurso político ou a esmola a um mendigo. Cada um escreve uma página com

O que lhe desperta emoções, reflexões.

Sequência:

1 — Sugere-se ao poeta que as frases devem ser menores do que a largura do papel... a menos que... ela/ele queira fazer o que bem entender.

2 — Sugere-se que eliminem palavras inúteis, como costumam ser artigos, advérbios terminados em “mente” e superlativos.

 

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A poesia procura concentrar o máximo de significados com o mínimo de significantes: a arte de bem escrever é a arte de saber cortar, disse bem um poeta. Confiem.

3 — Sugere-se que os poetas organizem a frase de maneira a criar ritmo... a menos que...

Quando o poema estiver quase pronto, o poeta lerá seu texto em voz alta para si mesmo, procurando sentir suas palavras embaladas por um ritmo interno que lhe dê prazer. A musicalidade ajudará a eliminar o excedente. Poesia é música!

4 — Sendo desejável e possível, o poeta substituirá a última palavra de cada verso a fim de criar ritmo e rima, mesmo sabendo que rimas não são necessárias à poesia. Em arte, regras são sugestões, nunca leis imperativas.

5 — Um grupo à parte deve compor uma música, de preferência com instrumentos inventados, inspirada no poema; outro grupo, fazer pinturas ou esculturas; um terceiro, uma dança com a mesma inspiração. Quando prontos, faz‑se um espetáculo com os quatro elementos conjugados: poesia, artes plásticas, música e dança.

Para deixar claro que somos todos artistas, cada um à sua maneira, façamos este exercício demonstrativo simples:

1 — em círculo, os participantes escrevem em um papel a sua assinatura normal - aquela do dia-a-dia;

2 — passam os papéis para a pessoa do lado direito, que deve imitar a assinatura do companheiro;

3 — terminada a imitação, voltam os papéis para os seus donos, que comparam a pequena obra de arte que fizeram com a imitação: assinaturas revelam a personalidade do autor, são obras de arte inimitáveis, como as impressões digitais.

 

A imagem

Artes Plásticas são formas de reinventar o mundo - é natural que pinto­res e escultores, compositores e poetas, sintam-se deificados: corrigem o trabalho da natureza..

 

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Artes visuais artesanais

Escultura e pintura, colagens, instalações, desenhos etc.

SER HUMANO NO LIXO — Cada grupo produz uma escultura coletiva sob o título Ser humano no lixo, utilizando o lixo limpo de suas comunidades ou locais de trabalho, podendo usar cola, barbantes, arames, madeira e o que for necessário para fixar a Imagem. O tema é a figura humana no lazer, no amor, em diálogo ou solidão. Outros temas podem ser: Esperança, Futuro, Meu lugar no mundo, Crise financeira de 2008 em diante, Violência nas comunidades pobres, Deu no jornal de ontem...

Outros participantes escrevem poemas ou narrativas sobre as escul­turas assim produzidas, outros procuram descobrir seus ritmos, outros, sua música e suas danças... A sinestesia faz ver e ouvir o que passaria desapercebido sem esse cruzamento de artes.

Ao escolherem objetos existentes para inventar uma imagem, os participantes são estimulados a ver o que olham, e não apenas sobrevoar realidades sem senti‑las. Quando escolhem lembranças de coisas ou fatos, selecionam o que lhes é essencial e desprezam o acessório - vivenciam o que viveram.

Quando conhecemos uma cidade nova, as imagens e sons que nela se produzem causam surpresas; depois, tudo se torna tão familiar que apenas olhamos imagens sem vê-las, ouvimos sons sem escutá-los - te­mos pressa.

Segundo alguns neurologistas, até na conversação diária, apenas metade das palavras que pronunciamos é conscientemente percebida pelo nosso interlocutor. As outras são supostas.

RE-FORMANDO A FORMA (AS BANDEIRAS) — Participantes pintam duas vezes o mesmo modelo: na primeira vez, reproduzindo com exatidão uma imagem conhecida.

Pode ser a bandeira nacional, por seu caráter emotivo e simbólico, o Pão de Açúcar ou Corcovado, a silhueta de uma garrafa de refrigerante nociva à saúde, marca de fast-food que provoca doenças graves como a obesidade, ou item publicitário que associa um corpo de mulher a uma bebida alcoólica.

 

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Pode ser o Parthenon na Acrópole ateniense, a Torre Eiffel, de Pisa ou as destruídas Gêmeas de Nova York, os massacres em Ruanda, Congo e Sierra Leona, a Catedral de Brasília, o Taj Mahal ou favelas em palafita. Algo familiar sobre o que se tenha uma opinião emotiva, intensa.

O participante vê o que olha, reproduz seu modelo com o máximo de semelhança - a obrigação de similitude será a mola retesada que apri­sionará sua criatividade, forçando a perfeição mimética. Na segunda vez, o participante deverá libertar a imaginação pintando o que quiser, de maneira a dar uma opinião emotiva e ideológica sobre o modelo.

OURO NATIVO NA GANGA IMPURA (Olavo Bilac) — Cada partici­pante desenha algo bem conhecido. Depois, acrescenta traços e cores de tal maneira a camuflar o desenho original, mas sem modificá-lo. Pede- se aos outros participantes para reconhecerem o desenho original. Isto é: garimpar o desenho original. Olavo Bilac, poetando sobre a língua portuguesa, escreveu: “Ouro nativo que na ganga impura, a bruta mina entre os cascalhos vela”. Comparam-se os desenhos.

Estes exercícios são propostos como exercícios. Sua finalidade não é necessariamente incluí-los em nenhum espetáculo.

Quando se trabalha na preparação de um Modelo de Teatro-Fórum, o mesmo processo pode ser usado, escolhendo-se, porém, o tema da peça em vez dos exemplos citados e fabricando-se cada Objeto Quente segundo a visão do grupo.

Todo objeto que entra em cena deve ser portador de um sentimento e de uma opinião. Também assim toda palavra e todo som. Repito: arte não é reprodução do real, mas sim a sua representação. Esta é ideológica, consciente ou não.

 

Artes visuais eletrônicas

Fotografia, cinema e computador

As mãos, depois do cérebro, são o que de mais humano existe em cada um de nós. Cada participante deverá fazer ou pedir que façam três fotos das suas mãos ou das mãos de pessoas que trabalham na sua profissão ou vivem na mesma comunidade.

 

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Que fazem as mãos? Trabalham com enxada, volante, foice ou vassou­ra? Teclado de computador ou teclas de piano? Acariciam um rosto, um copo, um corpo? Lavam pratos, agridem, gesticulam ou jogam cartas?

O fotógrafo deve fazer o que o fotografado pede e não o que ele próprio gostaria de fazer.

Outros temas possíveis são os pés calçados ou descalços, a casa onde moro, minha família, meu mundo, meu trabalho, meu lazer, e até temas abstratos como liberdade, medo, imperialismo, futuro... Lembro o me­nino peruano que, quando o tema era opressão, fotografou um prego na parede que ele alugava ao dono de um bar para ali pendurar seus instrumentos de trabalho: era engraxate e não podia voltar de ônibus para casa com tamanho trambolho. Outro menino fotografou o nariz de uma criança mordida pelos ratos - vivia em uma miserável cabana ao lado do rio e do lixo...

 

Som e dança

A música é a forma pela qual o ser humano organiza sua relação sonora com o lugar em que vive e com o Universo, seus ritmos, melodias e sons harmônicos, ruídos, rumores, estrépitos, alaridos e barulhos; é como se relaciona consigo mesmo, com seus ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (o sono e a fome, p.ex.) e a melodia do sangue nas veias.

Por essa razão bastante, o poder econômico encarcera a música em festivais, empresas fonográficas, impondo ritmos padronizados que pos­sam dominar. O que deveria ser harmonia entre o humano, a sociedade e o mundo, torna-se arma de sujeição.

A Estética do Oprimido busca redescobrir os ritmos internos de cada um, ritmos da natureza, do trabalho, da vida social. Não da hit-parade. A partir dos jogos A imagem da hora, Jogo das profissões, Máscaras e Rituais,[nota 6] podemos escolher qualquer atividade mecanizada das nossas vidas profis­sionais ou cotidianas e transformá-la em dança. Ver o que fazemos sendo dançado, além de ser um prazer, revela nossas mecanizações - algumas necessárias, outras absurdas.

 

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Podemos usar instrumentos conhecidos, mas também inventá-los a partir de objetos ao nosso redor. No começo da transformação de um objeto qualquer em instrumento musical, é natural que o som ainda não se distinga do ruído, ou venha com ele misturado: necessário é purificá-lo até a sua limpidez possível.

Tudo que existe esconde ou pode produzir um ritmo: é necessário descobri-lo e desenvolvê-lo até construir um novo instrumento. No norte da Argentina, usei um cavaquinho feito com carapaça de tatu, o charango - é lindo e soa belo. Já vi orquestras de percussão em copos de vidro cheios de água em níveis diferentes, soando notas musicais; folhas de flandres, zinco, bambus, barris, vassouras, latas, pratos, pane­las, papéis, chicotes, cadeiras, canos de plástico, folhas de zinco, caixas de fósforos... mil objetos que escondiam seu som, que lá estavam. Na Internet, vi um músico asiático tocando flauta de brócolis... O som não se comparava ao de um violino Stradivarius, concordo, mas não deixava de ser bonito...[nota 7]

Tudo tem som, e todo som pode se transformar em música.

A dança é o casamento feliz entre a música e o corpo. Os movi­mentos da vida cotidiana são prenúncio de dança ou nela se podem transformar.

1 — Bailarinos mostram em câmara lenta e gestos mudos repetidos os movimentos do corpo no seu trabalho profissional ou em qualquer ati­vidade mecanizada: primeiro só os braços, depois, quadris, pernas, pés e cabeça; depois, movimentando o corpo inteiro e ocupando o espaço cênico.

2 — Escolhem gestos essenciais e ampliam esses gestos, eliminando o que não é significativo e variando o andamento do ritmo desses movimentos.

 

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Não se deve buscar a cópia do gesto realista, mas permitir que os gestos essenciais se assenhorem de todo o corpo do bailarino, expulsando o residual, mas mantendo a lembrança dos gestos originais.

Cada um deve mostrar como cada movimento atua sobre o seu corpo, estimula ou faz sofrer, e não apenas reproduzir o óbvio. Esses movimentos sequenciais serão a espinha dorsal da dança.

3 — Introduzem som e ritmos - sons que brotem do corpo como água da fonte, sem preconceitos.

Os músicos devem produzir música em harmonia com essa dança e sons, usando instrumentos criados com objetos em uso nos locais de trabalho ou na comunidade do grupo.

4 — Tendo já a sequência de gestos rítmicos, improvisa-se uma cena da vida desses personagens: encontro amoroso, aumento de salário, casa­mento, greve na fábrica, reunião familiar, jogo de futebol...

VARIANTE (na criação da dança): outros participantes podem ser convidados a entrar em cena e mostrar com seus corpos o que mais chamou sua atenção, dançar a dança que sentem existir nos movimentos que viram. Quando o grupo original retomar sua dança, aceitando essas sugestões ou não, terá visto alternativas.

5 — O grupo faz movimentos em câmara lenta, depois acelera. Quando existir som, que seja o mais baixo possível, apenas audível; depois, o mais alto que se possa alcançar. A passagem de um extremo a outro deve ser lenta, não aos solavancos. Aquele ou aquela que conduz o processo, como diretor, deve marcar uma coreografia sem alterar o já construído.

6 — Durante a improvisação, os bailarinos podem pronunciar uma só palavra, que seja a essência do que sentem; depois, frase inteira; depois, diálogo entre eles.

7 — Sinestesia: os poetas escrevem poemas usando as palavras que ouvem. Os pintores pintam imagens que veem ou imaginam.

8 — Os pintores colocam no chão seus quadros, o grupo troca ideias. Os poetas escolhem o quadro que mais parece combinar com seus poemas.

9 — Diante de todos, o poeta lê seu poema e o pintor segura seu quadro. Comentários.

 

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Sinestesia

Como já vimos, sinestesia é a percepção simultânea de sensações diferen­tes ou a tradução de uma sensação em outra. Ao ver um quadro ou foto, escrevemos um poema ou texto inspirado nessa foto ou quadro. Ao ler um poema, inventamos música. Ouvindo música, pintamos sons. Toda atividade sinestésica estimula a totalidade da atividade psíquica.

Exemplo: escolhe-se uma palavra que nos provoque uma certa emoção. Distribuem-se as palavras e cada participante deve escolher um outro meio para representá-las: um som musical, dança, quadro ou uma pequena escultura.

 

Fóruns urgentes em comunidades

No trabalho prático com comunidades, quando fazemos exercícios da Estética, que desbloqueiam e estimulam a criatividade, falta tempo para preparar o Modelo de Fórum.

Na construção da Imagem da Cena que prepara o espetáculo, os participantes sentem-se intimidados e inseguros, porque quando se pede que façam a Bandeira ou o Ser humano no lixo têm um modelo diante de si. Na preparação da Imagem da Cena (coisas, roupas etc.), não têm nenhum modelo visível; apesar de terem ideias e sentimentos, defrontam-se com o vazio físico.

Não existe técnica capaz de resolver este problema. Vale explicar a importância social e política do evento, superior e excludente de uma valoração individual de cada um. Se os atores forem convencidos desta verdade, o problema se abranda.

Uma confusão intimidatória se faz também com o uso de palavras como estética e estilo. O corpo de um ator entrando em cena transmite informações sensoriais: já é a Estética. Duas cadeiras e uma mesa no meio da cena já promovem comunicações sensoriais, portanto Estética. Estética pobre, mas Estética. Uma toalha branca em um chão preto pode ser tudo o que necessitamos para a nossa cena, que será esteticamente mais rica do que a cena cheia de caixas e caixotes, trapos e objetos sem significados.

 

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Repito: todo objeto que aparece em cena só deve estar aí se for necessário. Deve conter, na sua forma — cor, traço, volume, posição no espaço — um significado pertinente ao tema.

Por essa razão estética, devemos construir a cena a começar pelo Objeto Quente principal, temático; depois o segundo, o terceiro e todos os demais, mas só os que forem absolutamente necessários.

Nenhum objeto deve ser rotulado ou explicado aos espectadores: seria o fim da comunicação estética em benefício da palavra simbó­lica. Palavras escritas em cena, a menos que a sua forma tenha valor estético e não sejam mera informação, obnubilam a percepção da Imagem. Legendas penduradas no pescoço dos personagens - patrão, policial, operário, chinês etc. - ao invés de enriquecerem, empobre­cem a comunicação. Figuras chavões como o tristemente célebre Tio Sam (I Need You!) são clichês que devem ser evitados como nocivos à Estética.

Por outro lado, estilos são coerências formais particulares.

No que concerne à Imagem, nossa Estética possui dois estilos funda­mentais e, entre eles, o arco-íris de todas as combinações possíveis, desde que coerentes: estilo não pode ser prisão.

1 — Realidade, não realismo — Uma obra de arte não é a reprodução da realidade objetiva - é a sua representação. Isto significa que a apresen­tação das coisas (objetividade) deve ser feita de forma a revelar também a subjetividade da percepção que tem o grupo da situação dramática apresentada: mostrar a coisa e uma opinião emotiva sobre essa coisa. Na interpretação dos atores, deve revelar a ideologia dos personagens e uma opinião emotiva sobre cada um. Não exageros, muito menos caricaturas, mas sim magnificar os elementos ideológicos essenciais - nas coisas e nos comportamentos dos personagens.

2 — Realismo seletivo — Usam-se objetos como eles se encontram da realidade. Os atores interpretam da forma mais próxima à do compor­tamento cotidiano. Este estilo deve ser usado quando o grupo sente que é necessária uma visão exata do comportamento dos personagens e de todas as coisas existentes onde se passa a ação.

 

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Em resumo: nossa Estética comporta pelo menos dois estilos principais. Para realizá-los materialmente podemos usar três possibilidades:

1 — Objeto encontrado: fazemos uso de objetos encontrados nas comuni­dades ou locais de trabalho, guardando as propriedades naturais desses objetos ou dando-lhes significados diferentes: uma garrafa pet pode ser um revólver, guarda-chuva, pão francês etc. Esta é a forma menos rica em possibilidades porque os objetos assim usados dificilmente farão es­quecer sua origem e suas qualidades de origem: a garrafa pet será sempre garrafa pet.

2 — Objeto transformado: transforma-se e deforma-se fisicamente o objeto encontrado de maneira que ele assuma a forma daquele que se quer mostrar e usar - elimina-se a função de origem dos objetos. Usa- se cor, que pode unificar todos os objetos em cena, mesmo quando de cores diferentes.

3 — Objeto criado: a partir da matéria-prima - papel, madeira, massa etc. -, o grupo cria o objeto que deseja dando-lhe a forma que revele sua importância ideológica e emotiva. Los Teatreros Ambulantes de Puerto Rico, de Rosa Luísa Marquez e Antonio Martorell, criaram um espetáculo em que todos os personagens se vestiam com papel branco de bobinas de jornais: bispos, generais, noivos etc. - tudo em papel, que era destruído a cada espetáculo e recriado no espetáculo seguinte.

É importante só colocar em cena objetos, inclusive roupas, que sejam imprescindíveis para que cada coisa adquira sua importância, significado e esplendor. Certos grupos sofrem a tentação de acumular um pouco de tudo, poluindo e tornando confusa a Imagem, que deve ser econômica, seletiva e não pletórica.

O         certo e o errado: nas salas egípcias do Museu do Louvre, em Paris, cada múmia de reis e rainhas é apresentada solitária, com iluminação pró­pria, que ressalta todos os detalhes do seu corpo e suas vestes - podemos ver e fruir cada centímetro quadrado daquela preciosidade histórica. Já no Museu Nacional do Cairo existem mais múmias do que as do Louvre, talvez até mais importantes historicamente, mas estão empilhadas de tal maneira que nos dão a impressão de uma sala do Instituto Médico Legal depois de brutal chacina, ruas salpicadas de cadáveres. Só falta o cheiro do formol!

 

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A maneira de apresentar uma obra de arte e valorizá-la pode ser tão importante quanto a obra em si. Até mais: já vi uma lata de lixo caseiro ser apresentada em museu como arte, design! Não deixa de ser...

Também a distância é necessária para a completa apreciação estética: a imensa estátua dourada do grande Buda deitado que jaz no templo de Wat Fhra Jerupon, em Bancoc, capital da Tailândia, talhada em ouro e ornada de madrepérola, mal pode ser admirada porque por suas di­mensões - quarenta e cinco metros de comprimento e quinze de altura - ocupa quase todo o volume do galpão onde está aprisionada; religiosos e apreciadores da arte mal podem caminhar sem se esfregarem uns nos outros, provocando constrangimentos... Quando lá estive, consegui ver pedaço por pedaço, mas não logrei ver o todo.

Na construção dos personagens, devemos ser sintéticos, sem minúcias desnecessárias. Teatro é arte de concentração.

Na criação dos personagens Opressores, surge a dicotomia caráter versus função. Para que cumpra seus objetivos sociais, é importante enfatizar a função social opressora e não detalhes psicológicos. Ao fazê-lo, não devemos criar personagens caricaturais, nocivas, porque nos fazem acreditar que os opressores sejam apenas ridículos. Durante a Guerra Fria, quando se dizia que o imperialismo era um tigre de papel, alguém respondia: “Sim, mas tem os dentes atômicos...” Por essa simples razão, não se deve construir personagens de uma só dimensão, mas, ao mesmo tempo, temos que ter cuidado para não absolvê-los tentando “humaniza‑los”.

Os ditadores mais cruéis são, em geral, excelentes avôs... para seus próprios netos. Esse carinho que demonstram pelos seus não pode se sobrepor às atrocidades que cometem contra seus adversários.

Outra dúvida comum surge quando se deve trabalhar algum tipo de conflito não-antagônico: pais e filhos, casais, professores e alunos etc. Nestes casos, conciliação ou reconciliação são possíveis, diferentemente dos conflitos antagônicos, em que se torna necessário fazer desaparecer ou enfraquecer o poder econômico, social ou político do Opressor: torturador, racista, sexista, grileiro de terras etc.

 

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Para superar o problema da exiguidade do tempo de preparação do Modelo, podemos experimentar uma sequência mais rápida e menos intimidante:

1 —  Alongamento e alguns exercícios do Arsenal do to.

2 — Discussão e escolha do tema sobre o qual será o Modelo para o Fórum.

3 — Cada participante faz sua Imagem do Tema. Esta etapa já é Estética: através da Imagem, o participante mostra sua relação ideológica e emocional com o tema, que, ao ser enunciado, é apenas abstração: palavras.

Em seguida, para pluralizar a Imagem - Ação: cada ator deve fazer, em câmara lenta, os movimentos adequados ao seu personagem na Imagem, tentando se libertar, uns, e outros aumentando a opressão. Ou ainda fugindo, mostrando indiferença, seja o que sinceramente for.

4 — Depois que todos tenham mostrado suas imagens dinamizadas e sem comentários verbais, cada um deve usar a Palavra, escrevendo: a) O que mais me impressionou naquilo que eu vi; b) um poema sobre o que viu ou uma Declaração de Identidade na qual se dirige a um dos personagens da Imagem, ou a alguém fora dela que tenha relação intensa com o que foi mostrado.

5 — Comentários gerais do grupo.

6 — O grupo escolhe uma história e desenvolve uma sequência de ações dentro da estrutura de dramaturgia usual, dando atenção clara a cada um dos seus elementos: protagonista revoltado, consciente; contrapre- paração; crise: desenlace.

7 — Primeira improvisação livre. Livre mesmo, mas tendo-se em mente que todo personagem é verbo e não adjetivo, e que a teatralidade vem da ação, do confronto de vontades, e não está contida neste ou naquele personagem isolado, tal como o raio é a eletricidade que salta entre o polo positivo e o negativo e não repousa adormecida em nenhum dos dois.

Nossos parceiros, geralmente, estão influenciados pela interpretação televisiva, onde os atores se comportam de forma plastificada, cada um prestando atenção à câmera e não ao interlocutor, enquanto a inter-relação é a essência da teatralidade, a única que pode revelar todas as dimensões de um conflito entre os personagens. E preciso insistir na inter-relação: aí está o teatro!

 

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8 — Imagem das coisas: a partir da primeira improvisação livre, o elenco decide qual o Objeto Quente prioritário e quais os Objetos Quentes es­senciais. Sempre pensando na economia de meios e contra a poluição. Objeto Quente é aquele que revela ideologias.

9 — Instalação do Espaço Cênico neutro, que limite a fluidez do Espaço Estético. Nele serão colocados os Objetos Quentes observando-se as dis­tâncias que também são significantes e têm significados.

10 — Improvisação total com todos os elementos teatrais: personagens, objetos, espaços etc.

11 — Técnicas de ensaio, começando pela Imagem das Coisas, Imagem Cinética, Ensaio Para Surdos. Tudo isto é Estética. Quanto a desenvolver a Palavra, Pára e Pensa! e Fala Mais! são as melhores técnicas de ensaio.

12 — Som, com a utilização prioritária de instrumentos fabricados por nós mesmos e inspirados na cena e nos personagens.

13 — Fórum.

 

Usei, neste texto, várias vezes a palavra ideologia, sempre no seu sen­tido original (Desmond de Tracy): ideias recebidas sensorialmente pelos cidadãos, que sequer passam pelas suas consciências, mas determinam comportamentos: maneiras de falar, de agir, de pensar.

Nosso objetivo estético é mostrar essas ideologias camufladas de opi­niões e revelá-las para que possam ser destruídas, quando for o caso.

 

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Conjunturas, estruturas e vida real

Em uma sessão de Teatro-Fórum, a lucidez do Curinga deve ajudar a plateia, através de perguntas (maiêutica), a passar de uma compreensão conjuntural do problema a uma visão estrutural, tentando soluções mais abrangentes. Do que acontece uma vez ao que acontece sempre.

Em uma cena de Teatro-Fórum em uma escola na qual alguns alunos não apresentavam a mesma facilidade para aprender como os demais, aventou-se a hipótese solidária de que os mais adiantados deveriam ajudá-los depois das aulas. Bela alternativa, porém conjuntural. Em uma cena em que um recém-desempregado não sabia o que fazer da vida, sugeriu-se que os que mantinham seus salários pudessem lhe dar uma ajuda financeira. Era uma alternativa humanitária louvável, mas... conjuntural.

Esses exemplos de solidariedade são maravilhosos, mas quando um problema só encontra soluções conjunturais sendo de natureza estrutural, é provável que não seja resolvido nunca e que a origem do mal perma­neça intacta. Cabe ao Curinga observar a natureza dessas intervenções e tentar estimular a ascese em direção ao segundo nível do Teatro-Fórum: alternativas de caráter estrutural.

Nos casos citados, é a escola que deve ser obrigada a contratar pro­fessores que auxiliem os menos capazes e é nessa direção que se devem realizar ações sociais concretas e continuadas. No segundo caso, é a empresa que deve ser pressionada para que não ponha seus funcionários na rua a fim de obter maiores lucros para seus acionistas! As ações concretas devem pressionar a empresa a manter seus funcionários, pois os seus lucros causarão miséria às famílias operárias. Soluções conjunturais, também bem-vindas, resolvem o problema no instante apenas, como a esmola a um mendigo na porta da igreja, mas a longo prazo vão permanecer disfarçando os problemas financeiros dos oprimidos.

 

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Uma vez encontradas alternativas de ação, conjunturais e estruturais, este é o primeiro passo. O segundo é a extrapolação: vamos à prática! O Curinga deve ajudar os participantes a prepararem a extrapolação na vida real, pois este é o destino do Teatro do Oprimido!

 

Multiplicação: um grão de areia é um grão. Milhões, são a praia

Cada grupo de to deve colaborar em alguma ação coletiva da comunidade onde se apresenta. Após um evento artístico, não devemos abandonar o local como uma companhia itinerante que deixa saudades, em trânsito para outra cidade: temos que manter contato, formando redes de apoio. Não devemos nem podemos tomar o lugar dos oprimidos; ajudá-los, sim, sempre.

Grupos que praticam to na índia, organizados pelo Jana Sanskriti, depois de cada espetáculo perguntam em que podem ajudar e ajudam: faz parte do seu fazer teatral. Pode ser uma ação contra o alcoolismo, denunciando a existência de alambiques clandestinos na região - Jana já ajudou a fechar alguns! - ou uma intervenção dialogal com maridos violentos, mostrando a irracionalidade de sua prepotência. Seja qual for a opressão, colaboram para eliminá-la ou diminuí-la.

Grupos de to, especialmente na Europa, apresentam espetáculos em escolas e partem no fim do espetáculo. Vale a pena aquele instante! Melhor, no entanto, será que esses grupos organizem outros grupos, aos quais possam transmitir o aprendido, buscando o efeito multiplicador, criando redes.

Grande opressão é a solidão. Temos que ensinar o que aprendemos, por solidariedade e até em proveito próprio: ensinar expande e fixa o conhecimento, reavaliando o aprendido ao explicá-lo. Aprende-se ensinando. Este é o círculo virtuoso: Só aprende quem ensina, só ensina quem aprende!

A Solidariedade é a pedra de toque do Teatro e da Estética do Oprimido por motivos filosóficos, políticos e pedagógicos! Devemos promover palestras, testemunhos, teses, diálogos etc., não na forma curricular das escolas, mas dentro das condições reais em que, e com quem, trabalhamos.

 

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Temas importantes como a época dos filósofos pré-socráticos, que revelavam a inquietude dos seres humanos em relação ao sentido da vida, aos valores morais, às relações humanas e à substância do Universo; as invasões ibéricas no século XVI nas Américas, que resultaram no geno­cídio de várias civilizações ameríndias; o acordo de Bretton Woods, que instituiu o dólar como moeda universal, mas que só os Estados Unidos podem fabricar; a guerra do Iraque e a do Vietnã; as reais causas da crise econômica mundial. Todos estes temas são essenciais para que possamos entender as engrenagens do mundo em que vivemos.

Quando se pensa em Solidariedade, é impossível não pensar em Che Guevara e Albert Schweitzer como símbolos dessa Solidariedade Sublime. Exemplos tão maiúsculos podem nos assustar.

Che era médico, de família de classe média alta na Argentina, aban­donou sua cômoda vida para se internar nas montanhas de Sierra Maestra lutando contra a ditadura de Batista. Presidente do Banco Nacional de Cuba, abandonou sua poltrona ministerial para a romântica tentativa de libertar a Bolívia de uma interminável série de ditadores castrenses. Deu sua vida.

Schweitzer, médico alsaciano, filósofo e grande intérprete de Bach, na segunda década do século passado abandonou seus clientes franco-alemães para se internar na pequena aldeia de Lambaréné, no Gabão africano, instalou seu consultório onde antes havia sido um galinheiro e, durante décadas, cuidou de crianças e adultos infectados pelas doenças da pobreza extrema. Morreu ao lado dos seus doentes, em 1965, dois anos antes de Guevara.

A maioria de nós não é capaz de dar nossas vidas em tais sublimes gestos de solidariedade. Nada impede que cada um faça sua parte possível. Se não podemos dar tudo que temos, podemos dar o que podemos dar, colaborar da forma que pudermos colaborar - é o caminho. A correção da caminhada é mais importante do que o tamanho do passo!

Che Guevara dizia que ser solidário é correr o mesmo risco. Eu penso que existem graus na solidariedade possível e nem todos atingem o grau sublime a que ele chegou. Nem por isso devemos nos abster: já que não podemos tudo, não façamos nada... Não! Ser solidário é fazer tudo, inte­gralmente, tudo que cada um pode fazer. E não deixar de fazer!

 

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Madre Teresa de Calcutá dizia que “O que fazemos é apenas uma gota d’água no oceano, mas, se não o fizéssemos, ficaria faltando, no oceano, a nossa gota d’água”.

Não sei se é poético ou melodramático, de bom ou de mau gosto, mas sei que é verdade - a necessária verdade!

Joguemos nossos baldes d’água no oceano!

 

Ações sociais concretas e continuadas

A meta principal do to é, através dos meios estéticos, descobrir e conhecer a sociedade em que vivemos e, sobretudo, transformá-la. Sempre. Em todas as intervenções que fazemos, esse é o nosso desejo. Por essa razão, dizemos que um espetáculo ou evento do to não termina quando acaba: sempre procura deixar raízes.

Sobre o trabalho que fazemos em prisões, Bárbara Santos, coorde­nadora do cto-Rio, escreveu:

 

[Início de citação] Certa vez, num presídio em Presidente Prudente, São Paulo, quando nos preparavamos para uma apresentação em praça pública, um preso me perguntou: “Você garante nossa integridade?” Ao que respondi: ‘Não, não tenho esse poder’. E ele continuou me questionando: ‘Então, o que você pode garantir?’ E eu disse: ‘Garanto que o espetáculo está bem montado, que a pergunta é clara, que causará impacto, que chamará a atenção da sociedade, que o diálogo com os espectadores será produtivo, que eu estarei lá com vocês do começo ao fim. E que, depois, caso haja algum problema, farei tudo que estiver ao meu al­cance, que não é grande e que é de fora para dentro, para ajudar. [Final de citação]

 

Bárbara se referia a um espetáculo que teve aspectos exemplares: os presos, livres no palco; os livres, presos na plateia (temporariamente). Até então aquela cadeia era considerada temida como se fosse leprosário, vergonha da cidade. Veio o Fórum e os presos convidaram os livres para se libertarem no palco, atuando suas opiniões: o que poderia ser feito na situação que era mostrada no palco e que terminava em derrota. Um a um, os espectadores subiram ao palco e improvisaram soluções, eles e os presos. Diálogo entre a liberdade aprisionada e a prisão, naquele momento, liberta.

 

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Esse encontro amigável, pensado, ajudou os habitantes da cidade, através do teatro e do diálogo, a não temerem os apenados, que algum crime, certamente, havia cometido, mas que não eram casos perdidos para a sociedade: estavam pagando suas penas e dali sairiam para ser outra vez cidadãos. Esta foi uma ação social concreta que teve continuidade.

Em outra prisão, um indivíduo, encarcerado desde mais de um ano, encenou sua vida inocente: havia sido preso por engano. Por coincidência, na plateia estava uma juíza, que mandou libertá-lo, e o rapaz saiu do palco para sua casa sem sequer passar pela cela para buscar sua escova de dentes.

Conta Helen Sarapeck, bióloga, atriz e coordenadora do Projeto TO na Educação:

 

[Início de citação] - Eu tenho uma ideia! Posso entrar em cena? - perguntou um menino de oito anos.

- Não temos oficina para crianças.

Negamos por muitos anos o Teatro do Oprimido como método eficaz para crianças. Na verdade, faltava-nos experiência e coragem para arriscar.

O primeiro contato que tive com elas foi quando Boal era vereador na cidade do Rio de Janeiro. Foi no Chapéu Mangueira. Experimentava jogos e exercícios, desenhos e pinturas, uma forma de distrair as crianças e me iludir que fazia TO. Um tiroteio entre a polícia e os traficantes paralisou o encontro e aumentou a distância entre as crianças e o to.

Hoje, em todos os estados nos quais trabalhamos, existem crianças fazendo to, cada vez em maior número, querendo gritar seus desejos.

Não tomaram o espaço de ninguém: conquistaram o delas.

Crianças preocupadas com a Estética, com o preconceito, com a injustiça na sociedade e nas relações familiares. Descobrimos o mundo do ponto de vista delas: humilhações, prisões, espancamentos, estupros. Um mundo em nada parecido com o dos parques de diversões, pirulitos, bolas e bonecas. [Final de citação]

 

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A entrada das crianças em cena em igualdade de condições com os adultos é uma ação social concreta e continuada: é preciso que os adultos escutem suas vozes. Este é um dos diálogos que estamos praticando.

Às vezes, é difícil encontrar os meios para ajudar nossos parceiros com uma ação concreta. Além das conversas em seminários, usamos também os diálogos pela Internet.

Um dia, um menino de menos de dez anos contou que, quase todos os dias, um policial o cercava perto da escola e batia nele, porque seu primo traficante havia sido assassinado.

 

[Início de citação] Tem dia que ele chega a me tirar da escola e me leva pra um campinho que tem aqui perto, me bate e faz um monte de coisas comigo. [Final de citação]

 

Improvisaram a cena. Mais tarde, conversamos, entre Curingas, pela Internet.

Boal — Não podemos correr, nem fazer com que nossos parceiros corram riscos evitáveis. Não devemos incitar nossos parceiros a que sejam heróis de causas perdidas, nem abandonar uma causa quando os crimes que chegamos a conhecer têm caráter tão sórdido e tão continuado. Temos sempre que perguntar aos nossos parceiros quais as soluções que acham viáveis, quais desejariam tentar com possibilidades de êxito - não devemos nunca dar soluções que podem ser boas para nós, mas não para eles. Neste caso, temos que buscar soluções também fora do teatro!

— Temos que estudar e construir o mapa da situação, que inclui o Secretário de Educação e também o da Segurança, a família do menino e de outros meninos, Juizado de Menores e deputados estaduais, o governo estadual e membros de associações de direitos humanos. Conversar com a diretora, professoras, colegas, vizinhos, sem abrir o assunto em seus detalhes e dimensões, com nomes etc. Temos que ter consciência de que isto não pode continuar e é nossa obrigação ética intervir.

 

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Bárbara — Acho imprescindível nossa ação concreta. Nesse caso específico, somos parceiros da Secretaria de Segurança do Estado. Eu, Helen e a coordenadora local do projeto estivemos reunidas pessoalmente com o subsecretário de segurança em carne e osso. Esse menino conseguiu um espaço de confiança para gritar por socorro! E nós temos todas as condições de escutar esse grito. Podemos ser o amplificador do som da voz dele, que deve ecoar no escritório do subsecretário, responsável pessoal pelo desenvolvimento deste projeto. Acho que o Teatro foi fundamental abrindo o espaço de expressão. Agora temos que ir além, tomar as pri­meiras providências junto à Secretaria de Segurança, à qual temos acesso direto. Depois, temos que montar essa cena, da maneira que acharmos mais adequada, para mostrar que a violência está sendo alimentada por todos os atores sociais, inclusive por aqueles que deveriam combatê-la.

Claudia — Podemos pedir ajuda a um conselheiro tutelar da região. que pode nos orientar legalmente.

Helen — Estou muito chocada com o que leio, mas quando esti­vemos nessa escola e vimos os policiais, deu pra imaginar o clima de tensão que aqueles jovens vivem. Concordo, apoio e assumo que temos de fazer uma ação concreta! Impossível calar diante disso! Lembro do rosto do menino... meu Deus! Vamos ter calma. O desespero não ajuda. Vejo duas coisas a serem feitas com urgência: apoiar os Multiplicadores e falar com o Secretário. Quero fazer isso pessoalmente. Com calma e reflexão vamos encontrar a melhor forma de ajudá-lo. e vamos ajudá-lo. Parada eu não fico!

Bárbara — Teatro-Fórum, em situações como esta, é um desafio porque a representação da realidade precisará se distanciar do realismo. Ao mesmo tempo em que temos que enfrentar essa tristeza, podemos desfrutar da alegria de termos a chance de contribuir na busca de alter­nativas de transformação que podem ser paradigmáticas para muitos outros casos.

Helen — Fiz contato com várias instituições de defesa dos direitos da criança que me informaram que só podem fazer algo se receberem uma denúncia formal. Me indicaram o Conselho Tutelar. Todos com os quais fiz contato insistiram sobre a necessidade de conversar com o menino e receber uma denúncia. Então liguei para o Multiplicador e pedi que falasse com o menino.

 

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Multiplicador — Oi Helen, conversei com o menino ontem. Expliquei que havíamos levado o assunto até vocês e que tinha aparecido essa oportunidade de fazer alguma coisa em relação ao que aconteceu com ele, que me informou que o policial foi transferido. Falei também sobre o Conselho Tutelar.

Boal — Eu não penso que serão as crianças que realizarão Ações Concretas eficazes por conta própria - já o teriam feito! —, embora delas participem necessariamente. Mas acredito que possam dar ideias, principalmente quando interpretadas no que dizem e fazem. Penso que, quando tratamos com parceiros como elas, nossa obrigação é bem maior: somos nós mesmos que devemos buscar soluções. Este problema é agora um central no to e no cto, pois não basta conhecer a realidade, é preciso transformá-la! Brevemente vou fazer perguntas, primeiro aos nossos próprios Curingas, depois aos que aqui vieram no último seminário, e a outros, na tentativa de estabelecermos um quadro de aplicação geral que possa ter um caráter orientador nessa pesquisa, nesse processo investigativo.

Bárbara — Em relação às cenas de violência doméstica, sugiro a troca de comunidades. Grupos de uma comunidade apresentam nas outras e os das outras apresentam naquela. Como várias das peças são sobre violência doméstica, os temas serão abordados, e os pais e as mães violentas terão oportunidade de se ver em cena sem que a raiva dos pró­prios filhos possa ofuscar o conteúdo. Creio que os jovens se sentiriam mais seguros e satisfeitos por saberem que poderão ajudar outros jovens e serão ajudados por eles. Nossa cultura histórica do ESQUECIMENTO não nos deixa enfrentar a discussão da mentalidade escravocrata que permeia nossa sociedade e do autoritarismo herdado do regime militar. Fazendo Teatro do Oprimido tiramos o véu histórico.

Boal — Acho a ideia ótima e totalmente compatível com a função dos Diálogos. Eu me lembro de uma vez, quando o nosso grupo de estudantes negros, cenun, foi até o Morro do Chapéu Mangueira para dialogar com um grupo de TO local que tinha um problema sério com seu posto de saúde - repassagem de verbas etc. Pois foi um dos estudan­tes negros que, ao entrar em cena, sugeriu que, ao invés de depender de uma outra ong que obstaculizava o repasse e aumentava ainda mais a burocracia, sugeriu que os próprios habitantes criassem sua própria ong com essa finalidade. A Distância Estética permitiu que aquele estudante pudesse ver soluções com maior clareza do que aqueles que estavam intimamente ligados ao problema, com o nariz colado à realidade: eis o poder do Teatro e Metáfora.

 

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Esses diálogos nos trouxeram pistas de como proceder para estimular o trabalho local sem expor ninguém ao risco. Estabelecer parcerias com o movimento social para criar rede de proteção e ação compartilhada, promover diálogos entre grupos para que um se apresente na comuni­dade do outro e realizar sessões de Teatro Legislativo são algumas das ações concretizadas.

Flávio Sanctum, Curinga do CTO trabalhando nas prisões, escreveu: “Em uma apresentação no presídio feminino, a cena falava de uma presa deficiente física que não podia se locomover nem nos momentos de ba­nho de sol, pois não havia acesso a cadeiras de rodas. Nos momentos de higiene pessoal ela precisava se arrastar pelo chão para chegar à privada, pois nada era adaptado para deficientes.

Estavam assistindo, convidados da sociedade civil, advogados e o diretor da unidade. No Fórum, ele entrou em cena e se comprometeu a fazer rampas em todo o presídio. Na próxima visita que fizemos, o presídio já estava todo adaptado para deficientes”.

O apoio que de forma contínua temos dado ao MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em diferentes manifestações são claras formas de ações sociais concretas. O MST usa o Teatro-Fórum não só para preparar atividades importantes, como a ocupação pacífica de terras improdutivas, como para analisar seus próprios problemas internos, referentes, por exemplo, à educação e à cultura, e às relações de gêneros: usa o Teatro Invisível quando, em centros comerciais superlotados de fregueses, desdiaboliza a imagem que a mídia procura colar às suas ações pacíficas; o Teatro-Procissão, quando marcha sobre Brasília reclamando seus direitos à posse de terras inúteis.

O CTO mereceu, em janeiro de 2009, receber o Prêmio Luta Pela Terra, oferecido pelo MST em reconhecimento a essa estreita colaboração.

 

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O Teatro Legislativo é já uma ação social concreta que tem efeitos continuados. Após uma sessão de Teatro-Fórum, arma-se uma Assembleia Legislativa com todos os seus elementos: mesa, tribuna, debates contra­ditórios, encaminhamentos. Não basta exercer os rituais: necessário é contatar legisladores para que façam aprovar, no verdadeiro plenário, as ideias surgidas na ficção teatral.

Além das treze leis que conseguimos promulgar durante o nosso mandato de quatro anos na Câmara dos Vereadores - entre elas, a mais importante, a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas de crimes, a lei que obriga todos os hospitais municipais a terem um certo número de leitos reservados à Terceira Idade, a lei que obriga escolas a manterem creches etc. -, já conseguimos, através de legisladores de diferentes par­tidos em ação, promulgar mais cinco leis de porte municipal.

E pouco, mas são leis. Ao nosso lado e não contra nós.

 

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Experiências iniciais no campo da saúde mental

Delírio, alucinação, ritmo, e as formas delirantes da arte

 

Nosso campo de ação é limitado. Queremos estimular a saúde mental que ainda exista em cada usuário. Não tratamos a doença: estimulamos a saúde. Aquilo que o usuário pode fazer, queremos estimulá-lo a mais poder. Não somos especialistas em problemas mentais ou neurológicos, e não queremos trabalhar longe do olhar científico daqueles que se dedicam às artes da medicina. Somos artistas - apenas isso... e tudo isso.

Com os usuários, trabalhamos arte, música, pintura e sobretudo arte teatral, que estrutura imagens da sociedade. Importante é estruturar e a essas estruturas dar significados.

Não sabemos o que é a doença nem o que é a saúde em cada um. Suspeitamos que a saúde é a capacidade que tem cada um de nós de transformar em ato - ato-alisar - as potencialidades do seu corpo e sua mente. Ser capaz de levar a limites máximos as atividades corporais e psíquicas. Essa é a saúde máxima - a doença máxima é a morte!

Com nossos parceiros, ditos “normais”, não queremos atravessar li­mites. Com os usuários temos maior cuidado: mais lentamente, testamos onde estão os limites confiáveis, seguros.

A realidade dita objetiva é inacessível porque nós a percebemos através dos sentidos físicos, imperfeitos, que são os primeiros organizadores da nossa subjetividade, que é instável.

Podemos, porém, falar em objetividade porque as pequenas diferen­ças perceptivas verificáveis por diferentes observadores permitem supor a existência de uma grande semelhança entre as nossas percepções e as alheias.

Ao não termos acesso às realidades concretas, flutuamos sobre o real, flutuação aceitável que permite o diálogo e a compreensão mútua, mas assume, na arte ou no delírio, a feição de voos siderais.

 

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Quando um poeta, imerso em imaginações, escreve seu poema; quando um pintor, alheio ao mundo, pinta seu quadro; quando um compositor escuta sons que transcreve em partituras sem que ninguém os ouça; quando o ator sobe ao palco e finge ser quem sabe que não é, e os espectadores fingem acreditar e acreditam — estas são formas delirantes da percepção estética. Delírio organizado.

Aceitamos como sendo verdadeiras as realidades fingidas, sabendo- as tais:

 

[Início de citação] O poeta é um fingidor;

finge tão completamente,

que chega a fingir que é dor

a dor que deveras sente [Final de citação]

— Fernando Pessoa.

 

Finge sentir o que de fato sente: distância entre vivenciar e viver. [nota 8] Metaxis (Methexis): a imagem do real é real enquanto imagem. Pertencimento a dois mundos simultaneamente: o ator é o cidadão e, ao mesmo tempo, é o personagem.

A existência de estilos nas artes de cada época e de cada artista mostra que os artistas, mesmo no auge da sua subjetividade, obedecem a regras que os prendem à realidade da qual fogem. Disciplina no desvario.

Só para citar estilos fundamentais, temos uma progressão impres­sionante de contínuos afastamentos da realidade dita objetiva à qual, no entanto, continuam ligados:

 

Naturalismo — o artista busca a maior aproximação possível com a percepção coletiva e se anonimiza, isto é, procura não revelar suas ideias e sentimentos como se fosse dos personagens - sua meta é a total veros­similhança com a realidade. Essa desejada identidade, o artista jamais poderá alcançar porque a obra de arte tem limites físicos e dela nos distancia - embora real em si mesma, a obra é metáfora do real-modelo, não é o modelo;

 

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Realismo — despreza o fortuito, é seletivo; torna denso o sentido e a forma da obra, para magnificar sua percepção e induzir os observadores a que vejam exatamente o que viu o artista;

Expressionismo — revela a particular visão deformada que tem o artista, ou seus personagens, das realidades que mostram ou vivem - mantém-se, na obra de arte, uma estrutura lógica, certa coerência;

Surrealismos — quebram-se as usuais relações estruturais e orgânicas da realidade, mas perdura a consistência das emoções, mesmo que vagos elos racionais estruturantes ainda existam ou possam ser supostos.

Quando dirigi Nada a Calingasta, de Júlio Cortázar, no Schauspielhaus de Graz, Áustria, no início dos anos oitenta, como diretor fui o mais stanislavskiano possível, buscando a lógica-ilógica que existia no absurdo da trama... e que foi encontrada. Em outras palavras, o espetáculo foi montado realisticamente dentro de um enredo onírico.

O surrealismo guarda tênue coerência formal - e, no caso do teatro e do cinema, coerência também dos personagens, mesmo incoerentes -, por mais subterrânea que seja essa coerência. A improvável história da peça e a realidade vivida estão afastadas, mas podem interagir - ambas existem. Alguns atores austríacos, espantados, me perguntavam: “Esta cena, você quer que eu a interprete assim ou assim?” - e eu respondia: “Quero isto... e aquilo!” Causava espanto, mas o elenco acabou se acos­tumando comigo e com Cortázar...

Bem diferente foi quando, pouco depois, dirigi a primeira versão completa[nota 9] de El Público, de Garcia Lorca, no Schauspielhaus de Wuppertal, Alemanha: constatei que não se tratava de surrealismo, mas de nonsense. Lorca era amigo de famosos surrealistas, como o cineasta Luís Bunuel, e queria fazer uma experiência nesse estilo, que admirava nos outros, mas para o qual estava totalmente desqualificado: seu grande talento eram peças sanguíneas, como Bodas de Sangue...

Dadaísmo — puro nonsense. Sabemos que toda arte é produzida pelo cérebro humano.

 

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Ainda que o dadaísmo proclame a destruição da razão e exalte o aleatório, o acidente, o ocasional, alguma razão existe no artista e em sua obra para que pense assim, e essa razão que propõe a desrazão é estruturada em uma linguagem racional. O dadaísmo se explica e, ao se explicar, nega sua essência.

Todas estas formas delirantes diferem dos delírios porque são socialmente aceitas como arte - são Arte - e são bem estruturadas: têm lugar, modo e hora. São disciplinadas e estruturantes também para seus espectadores, nunca postos em perigo; por maior que seja a selvageria em cena de certos espetáculos improvisados, no final do espetáculo baixa o pano (quando existe), sob aplausos, sorrisos e abraços.

No delírio patológico, ao contrário, o sujeito não é capaz ou é pouco capaz de controlar seu delírio; incapaz de compreendê-lo e compre­ender-se.

Entre os delírios patológicos quero incluir o racismo, sexismo e todas formas de extremismo religioso, fanatismo esportivo e sectarismo políti­co - todos estes são blindagens psicológicas que expulsam a inteligência e a sensibilidade.

Xenófobos que incendeiam moradias de estrangeiros, profanam ce­mitérios e destroem sepulturas de mortos de outras culturas; uxoricidas que assassinam parceiras; religiões e seitas que praticam o genocídio de outras seitas e religiões porque adoram outros deuses, ou os mesmos deuses de formas diferentes; torcidas organizadas que usam armas de fogo e matam; hordas de massas fanatizadas incapazes de pensar de forma abrangente e que nada veem nem ouvem além da voz do seu caudilho, a letra da sua cartilha... - todas estas são patologias sociais, doenças graves que devem ser tratadas como tal.

Torturadores são doentes mentais graves. O torturador é, antes de tudo, um covarde: jamais tortura sozinho, sempre acompanhado de seus iguais. Não tortura um combatente em luta franca: tortura prisioneiros desarmados, solitários. Mesmo sendo doenças, não merecem perdão: são doenças culposas e dolosas que não inocentam criminosos!

Os cleptomaníacos que invadem os três poderes da República são doentes, certo, mas não merecem compaixão, merecem cadeia!

 

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O louco Nero, que incendiou Roma, houvera merecido um tratamento psiquiátri­co intensivo antes do incêndio; praticado o crime, só um bom remédio existiria na panóplia médica: grades bem grossas!

Devemos ter compaixão com os que sofrem, não com os que, conscientemente e em proveito próprio, fazem sofrer.

As formas delirantes da arte são diferentes porque os delírios são repetitivos, limitados a poucas interpretações do real, empobrecedores, enquanto as formas delirantes são criativas, imaginosas, rompem limites. Limites que devem ser estruturados e, nos ensaios, repetidos para serem mais bem compreendidos e dominados pelo usuário.

Por essa virtude de romper limites, as formas delirantes da arte correm o risco de se transformarem em alucinações[nota 10] que nos fazem ver o que não existe, perseguindo o voo livre da imaginação. Isto acontece nos transes de certas religiões animistas, tanto quanto no animismo de certas religiões, e nos transes estéticos de certos artistas no momento da criação.

Formas delirantes da arte e alucinações patológicas são maneiras espe­ciais com as quais o sujeito organiza e expressa sua percepção do mundo - nisso se assemelham. São diferentes porque, na alucinação patológica, o sujeito torna-se vítima do descontrole perceptivo e, nas formas delirantes, o sujeito se permite atingir os limites desse descontrole sem ultrapassá-lo. Assemelham-se ainda porque são aventuras investigatórias da mente.

 

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Quando as formas delirantes da arte se transformam em alucinações estéticas, o artista sente ou simula sensações ativando os clarões neuronais da memória viva ou submersa e os clarões expansivos da imaginação, amalgamando o real e o onírico.

A alucinação estética, semelhante ao estado hipnagógico, [nota 11] é controlável pelo artista, ao contrário da alucinação patológica, senhora do paciente.

Que elos poderão ser criados entre a alucinação estética, controlada, e a alucinação patológica que talvez seja, em alguns casos, controlável? Se ambas são estruturas perceptivas que se afastam do consensual, como será possível amalgamá-las e construir, na enfermidade que a desorganiza - mas não           destrói - uma percepção convivial do mundo?

Quando usamos palavras como doentes, usuários e pacientes, ou, depreciativamente, loucos e malucos, estamos compactando, em palavras simples, realidades complexas. Algumas dessas pessoas sofrem problemas neurológicos congênitos; outras, transtornos psicológicos suaves. Não podemos confundir autistas, melancólicos, psicóticos, neuróticos e es­quizofrênicos, pois cada indivíduo é uma vida, e só aquela.

Com que usuários podemos trabalhar? Só a nossa sensibilidade poderá responder... com a aquiescência médica.

Devemos entender que os distúrbios psicológicos podem ter origem psicológica, social ou neurológica - não podemos atuar, com culposa inocência, como se ignorássemos individualidades e especificidades. Só podemos trabalhar com aqueles que ainda podem, conosco, dialogar: ouvir. Ouvi-los com respeito é essencial ao nosso trabalho, mas preci­samos ser ouvidos!

Penso que a arte teatral pode ajudar no tratamento mental se o diretor (Curinga) compreender que o usuário não é um rascunho de ser humano que precisa ser corrigido pelo professor, mas alguém com suas idiossincrasias específicas, que o tornam inadaptado e infeliz no seu meio social.

 

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O Curinga deve ser capaz de estimular o paciente a encenar seu delírio ou alucinação na condição de sujeito e não objeto do processo teatral, organizando imagens da cena, dando indicações aos persona­gens - inclusive ao seu, papel protagônico - e assumindo as funções de verdadeiro diretor. Mostrando, com ele próprio entrando em cena, atuando, como devem interpretar os personagens da sua peça delirante, inclusive o seu próprio papel. Ao fazê-lo, supõe-se que se deve instalar a dicotomia pessoa-personalidade, objeto-sujeito, dentro do mesmo indivíduo: o usuário, tornado comandante de si mesmo.

O         Curinga deve saber funcionar como apoio indutor, sempre fazen­do perguntas, levantando dúvidas onde houver certezas - se houver -, oferecendo certezas onde houver dúvidas - que sempre existem. Deve ter o especial cuidado de evitar que, ao ser encenado na ficção teatral, o delírio se instaure na realidade.

Ao suspeitar que isso possa acontecer, deve ele próprio oferecer al­ternativas de comportamento aos personagens, sempre perguntando ao usuário: “Eu tive uma ideia; você quer isto ou aquilo? Assim ou assim?” Necessita ter sensibilidade e inteligência para fortalecer os vínculos do usuário com o real. Ao perguntar - e se o contato (Contrato) se mantém ou cria - ele, Curinga, é o vínculo com o real.

O usuário, mostrando aos atores da sua peça como devem interpre­tar seus personagens, cria a distância necessária à compreensão do seu drama real.

Esta distância estética se obtém com o uso de duas técnicas principais:

1 — Câmara lenta: o paciente mostra fisicamente tudo que deseja que o ator faça no seu lugar, porém muito lentamente, observando ele mesmo cada momento dos seus movimentos;

2 — Repetição: o diretor pede que o paciente repita fragmentos de cada cena, sem permitir que a emoção decole e voe. Fragmentado e lentamente, cada momento importante da encenação do delírio torna-se observável pelo paciente, pelo Curinga e pelos médicos.

O diretor deve ter presente que todas as formas e técnicas do Teatro do Oprimido têm, como objetivo último fundamental, a transforma­ção do real social, com a eliminação de todos os tipos de opressão.

 

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Se queremos que sofram menos, é para que possam, mais e melhor, agir nesse processo liberatório.

Na Arvore do TO, todas as suas frondes levam à copa soberana, que são as Ações Sociais Concretas e Continuadas.

Ao encenar o seu próprio delírio (ou alucinação), o sujeito estará criando uma metáfora dessa alucinação ou delírio. Podemos supor que o delírio estético estetizará também o delírio patológico; podemos ainda supor que abrirá novas alternativas de comportamento e de enredo para a história vivida e contada.

Este é um campo de uma investigação que vai em meio.

Alucinação patológica, alucinação estética e formas delirantes da arte... do sonho ao despertar... é um projeto! Se pudermos amarrar o sonho patológico a uma realidade objetiva reconhecível pelo paciente, será esse despertar possível?

Tão mais possível será se, pela constante prática artística, estimular­mos o Pensamento Sensível a estruturar-se a si mesmo e ao Pensamento Simbólico, traduzindo palavras em sons e imagens harmônicos, imagens e sons em palavras.

O artista, criando sua obra, assemelha-se e se diferencia do paciente delirante. O artista é senhor de sua obra e seus caminhos; o paciente, escravo do seu delírio. Se o enfermo conseguir criar como artista, transfor­mando seu delírio em produto visível, audível e palpável—pintura, dança, escultura, música, poesia, cinema ou cena teatral -, poderá ver-se a si mesmo, pois que se verá refletido em sua arte. Sujeito da sua criação, recriando-se a si mesmo ao criar sua obra.

Se o artista pode ficar doente, o doente pode tornar-se artista!

E uma hipótese!

Estamos entrando em terreno delicado, campo minado. Quando tra­balhamos com grupos de pessoas ditas normais - operários ou camponeses, estudantes ou professores, empregadas domésticas ou classe média... -, sabemos que nesses grupos existem graus de normalidade, personalida­de e caráter. Nenhum participante é igual a outro. Ninguém é igual a ninguém, cada qual tem suas expectativas e necessidades. Pacientes dos caps não são apenas usuários: são gente.

 

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Cuidado e delicadeza são necessários. Nosso Método Teatral, por mais estimulante e benfazejo que seja, não é panaceia universal. Podemos trabalhar com usuários em certas faixas de disfunções, mas não em todas. Não substituímos terapeutas, apenas trazemos uma metodologia auxiliar que tem se mostrado útil.

 

[Início de citação] Jamais tomaremos o lugar dos médicos: não temos o seu saber, nem a sua experiência. Não trabalhamos com a doença, mas com o que ainda exista de saúde em cada indivíduo, por mais afetado que tenha sido, e procuramos fortalecer essa parte saudável, por menor que seja, para que ocupe um espaço maior na vida desse cidadão ou cidadã. [Final de citação]

 

Dentro destes limites, as possibilidades do TO são ótimas.

A Obra de arte é uma forma coerente de organização do nosso mundo incoerente.

Mesmo no surrealismo, os rituais da arte impõem seu tempo, lugar e substância. Pintando, não jogamos um aleatório balde de tinta na tela: escolhemos cor e forma - mesmo os artistas que fazem assim, escolhem a tela e a cor da tinta. Poetando, não baralhamos palavras como bolas de sorteio: escolhemos a palavra justa, respeitamos a personalidade de cada palavra, que é, de todas outras, diferente. Interpretando um personagem de teatro, em cena ou da vida diária, não vagamos a esmo pelo espaço: aceitamos os limites do palco, o momento de falar ou calar, frases a dizer, ações a realizar...

“Na sua loucura existe Método”, dizia Polonius referindo-se a Hamlet. Existe razão na desrazão, coerência na incoerência! Até certo ponto, em certos casos, de certa forma... Mas existe. O fantasma de Hamlet era o seu próprio inconsciente, condenado a “vagar de noite... epurgar os crimes que cometi em vida...” - disse o Fantasma. Hamlet sentia angústia em sonhos noturnos, quando despertavam suas culpas, e acordava em manhã melancólica enquanto dormiam culpas.

A Arte existe como objeto criado em lugar determinado, com peso e forma na pintura e na escultura; no tempo, fluido instante, na música; em tempo e lugar, em todas as formas teatrais, inclusive ópera e dança. Devemos ajudar os usuários a buscar os elos existentes - ou criá-los - entre alucinação e arte: ambas são, essencialmente, visões estéticas.

Da mesma forma como Einstein recorria ao violino para organizar reflexões matemáticas, pacientes de um Centro de Ajuda Psicossocial podem recorrer a outras artes para tentar fazer dialogar seus delírios com as estruturas lógicas e sólidas das formas delirantes da arte.

 

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“Não existe certeza de cura, mas existe tratamento, com certeza” - dizia Hélio Peregrino.

Tratamentos tradicionais, ou caídos em semidesuso, como o eletrochoque, procuravam sacudir as redes neuronais do usuário, desorganizá-las, para que se reestruturassem por si mesmas. Nenhuma destas duas formas de tratamento apresenta, no entanto, o mesmo que na Arte sobeja: estrutura temporal e espacial.

Arte é uma forma de Conhecimento.

 

A experiência rítmica

O ritmo que mais nos interessa é, em primeiro lugar, o próprio ritmo individual de cada um, que deve transformar sons em ritmos, ritmos simples em música. Não tentamos repetir ritmos conhecidos, tocados pelas rádios, mas, indo fundo em si mesmas, nós ajudamos as pessoas a tentar descobrir os ritmos que delas brotam com maior simplicidade. Tentamos ajudar na busca, ou na invenção, desse ritmo íntimo, sabendo que cada um de nós está impregnado de ritmos culturais impostos.

A solidão é alucinógena. Nos exercícios e jogos rítmicos, com a partici­pação de mais de uma pessoa, cria-se uma estrutura social, sedimenta-se o grupo. Para poder jogar este jogo é necessário o diálogo, é preciso olhar no rosto uns dos outros, solidariedade, conivência.

Do ritmo passamos à imagem, e nosso arsenal tem vários exemplos de jogos de imagens. Tentamos ajudar os usuários a transformar tudo em imagem. Se um usuário ouve um cão ladrar todas as vezes que tira os sapatos e por isso não quer tirá-los nunca, devemos pedir que desenhe ou pinte o animal, que faça o som de ladrar e tente variantes. Neste proceder, ele estará dominando sua alucinação (ou delírio) e não sendo por ela dominado.

Som, ritmo e artes plásticas (desenho, pintura, escultura, modelagem) expandem a percepção do sujeito.

Todo o nosso trabalho consiste em ajudar para que o usuário se trans­forme em sujeito ativo e criador, e não em objeto, e mais: em sujeito social.

 

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Mais uma vez, a subjuntiva Maiêutica, a arte de perguntar, a arte do Se, a arte de oferecer alternativas, mostra-se essencial e insubstituível.

Dos ritmos e das imagens, idealmente, passamos às palavras, pois é pelas palavras, dado o seu alto grau de abstração e polivalência, que os usuários se perdem, se assustam e se tornam solitários na sua doença.

O usuário Hamilton recorre ao seu violão para controlar crises ner­vosas; compõe canções que transformam seus transtornos psicológicos em bem organizados sons e palavras. Faz música até com o texto de bulas de remédios.

Algo tem a ver com Aristóteles, que pela primeira vez usou a palavra catarse para designar o esvaziamento dos transtornos rítmicos expurgados do paciente quando estimulado a dançar até a exaustão o seu próprio ritmo interno desorganizado - esta desorganização rítmica seria a origem da doença! Esse intenso ritmo era tocado em robustos instrumentos por músicos-terapeutas, andamentos cada vez mais velozes, devolvendo o indivíduo a uma temporária sanidade.

Ritmo é a organização do som no tempo. E organização.

Estes são os caminhos da experimentação que estamos fazendo:

 

1. — Jogos e exercícios: praticando jogos, os participantes exercitam sua liberdade criadora dentro dos limites sociais consensuais - ensaio para a vida social. Pedimos aos usuários que se lembrem de um dos jogos ou exercícios que já praticaram em nossas oficinas e que dirijam o grupo, eles mesmos, um de cada vez.

2. — Ritmo e melodia: será verdadeira a hipótese de que o ritmo e a melodia, como acreditava Aristóteles e acredita Hamilton, são capazes de estruturar o ritmo que acompanha o delírio ou a alucinação e lhes dão suporte? Testamos alguns exercícios e jogos do to:

 

i. — Círculo de ritmo: cinco ou sete pessoas (não mais) em círculo; a primeira inicia um movimento simples, que deve ser repetido por todos; a segunda pessoa acrescenta outro movimento, que se soma ao primeiro, e todos repetem os dois movimentos várias vezes, e assim por diante até que o círculo inclua ritmos resultantes da colaboração de todos;

 

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ii. — Máquina de ritmo: um a um, entram em cena todos os par­ticipantes, formando uma máquina de ritmos corporais e sonoros; pode ter um tema: trabalho, caps, transporte etc.;

iii. — Diálogo de ritmo: face a face, duas filas: um participante pensa uma frase e a traduz em ritmo, que os da mesma fila imitam duas ou três vezes; a pessoa em frente responde e os seus imitam, até a última pessoa, que responde à primeira - depois os membros de uma fila dizem o que pensaram entender do parceiro em frente e, para terminar, cada participante diz a frase que realmente pensou;

iv. — Ritmo da hora (variante da imagem da hora): o Curinga diz momentos do dia e os participantes fazem o ritmo daquele momento: acordar, café da manhã, o trabalho, almoço, chegada ao caps, ir para a oficina de teatro, conversa com alguém de que gosta, que não gosta, crise, consulta médica, medicação, dormir;

v. — Ritmo de cada um: cada participante repete os movimentos rít­micos que realizou no exercício anterior; os demais tentam descobrir qual é o ritmo essencial e mostram esse ritmo com o seu corpo em movimento normal e em câmara lenta.

Alguns dos jogos desta série podem ser feitos com os atores emitindo um som mais melódico e longo, não necessariamente rítmico, que traduza o pensamento, a frase que está pensando.

 

A experiência literária

3 — A poesia da crise: será possível ao usuário dominar sua crise e transformá-la em palavras? Que tipo de ajuda necessita para escrever seu poema ou narrativa? Ou: “O que mais me impressionou nos últimos anos ?

Em alguns casos de analfabetismo ou de outras incapacidades, pode ser necessário gravar eletronicamente as palavras do usuário para depois transcrevê-las em papel para sua leitura e para receber suas impressões.

 

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A experiência teatral

4 — Normalmente, metaforizamos a realidade de um grupo na peça que serve de Modelo ao Fórum. Como será o processo de tentar uma outra forma de metaforizar, tentando enquadrar os enredos do delírio (ou alu­cinação) nas estruturas de um espetáculo teatral? Como escolher o estilo mais adequado? Será o naturalismo minucioso, baseado naquilo que o usuário “quer contar”, ou a construção de uma fábula? Uma história de ninar, canção infantil, lenda ou mito, ou reportagem de jornal?

5 — Na Casa das Palmeiras, anos a fio, desde quando a doutora Nise da Silveira introduziu em seu trabalho médico a arte como terapia e até hoje, os usuários pintam para criar elos com sua nebulosa percepção da realidade. As artes plásticas, neste campo de pesquisa, têm vantagem sobre a linguagem escrita e falada: esta deve ser aprendida, enquanto a organização sequencial do vocabulário das cores, traços e volumes fica a cargo da criatividade do próprio usuário, que deve inventar seu léxico e sua sintaxe.

6 — Geo Britto, coordenador dos nossos programas nos caps, conta que, em 1997, uma senhora que havia sido interna de um Hospital Psiquiátrico durante mais de 25 anos falava com voz quase inaudível, pescoço dobrado, olhando o chão. Um dia, ela começou a participar de um elenco de teatro formado por outros pacientes em um centro hospitalar. Aquela senhora se propôs a representar uma personagem inspirada em sua própria irmã, com a qual se dava de mal a pior. Improvisando cenas para a criação da peça, a velha senhora revelava uma força insuspeitada, levantando a voz e o rosto, gritando furiosa, denunciando, teatralmente, o caráter agres­sivo da personagem-irmã. Ao terminar seus enérgicos extravasamentos, retornando aos costumeiros olhos baixos e voz meiga, de volta ao seu natural, perguntava: “Eu estive bem?”

 

Ela utilizava o mesmo processo de todo ator stanislavskiano, que usa a memória emotiva para encontrar a forma dos seus personagens - voz, expressões e movimento; ideia, emoção e forma.

Somos tridimensionais: temos uma personalidade que é uma severa redução da nossa pessoa - esta é um caldeirão onde fervem todos os desejos humanos, bons e maus, qualidades e potencialidades.

 

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É nessa caldeira borbulhante que vamos buscar nossos personagens, que, dentro de nós, estão domesticados ou revoltados.

Aquela senhora tinha, na sua pessoa, um personagem valente e cora­joso: era necessário desenvolvê-lo e acrescentar boa parte desse potencial à sua personalidade tímida e retraída, pela repetição e pelo ensaio teatral             frequente - espécie de ginástica emocional e psíquica -, para tentar, se não a cura dos seus males, menos dor.

A frase “Sou capaz de fazer isto... no teatro!” contém uma importante revelação: “Sou capaz de fazer isto!” Se no teatro faço, fiz. Falta fazê-lo na vida real, o que só se consegue pela repetição constante, ensaios e análise - o Pensamento Simbólico traduzindo o Sensível.

Em outro registro, Julián Boal, em Salford, Inglaterra, trabalhando com jovens menores de vinte anos, alunos de uma escola para portadores de problemas psicológicos e/ou físicos, propunha os jogos mais difíceis do repertório do TO e não os mais fáceis. Por exemplo: os alunos, divididos em duas equipes, eram convidados a representar uma história fantástica, escrita em um papel por seus companheiros da outra equipe; sem falar, usando apenas o corpo e objetos disponíveis, deviam transformar a narrativa em enredo visual.

Disso os alunos gostavam, fascinados em ler palavras nos papéis e traduzi‑las em imagens na cena. Quando algum jogo mais fácil era pro­posto, diminuía o interesse do grupo. Os jovens usuários sentiam mais facilidade e prazer em falar a linguagem visual que eles próprios podiam criar, e não as línguas cujas palavras nem sempre tinham o mesmo valor para todos.

 

Outras experiências estéticas

Arte, mesmo a mais cândida, mesmo um só passo de dança, se for com constância praticada, pode ser a ponte a ser construída entre o delírio de um indivíduo e a mais genérica percepção do mundo que temos nós, os normais.

Todos os exercícios e jogos, todas as técnicas que são usadas normal­mente com os normais, devem ser experimentados com os usuários, judiciosamente.

 

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Não vamos jamais pedir que façam alguma coisa que obviamente não podem fazer, mas não vamos, por outro lado, pressupor que são incapazes sem antes termos experimentado.

Já trabalhei com cegos que, mesmo sem ver, eram perfeitamente capazes de realizar a Máquina de Ritmos, baseados apenas nos sons que ouviam vindo de algum lugar: não podiam ver, mas, sim, sentir. Já trabalhei com surdos-mudos com os quais me comunicava com gestos e expressões faciais - não falo línguas de surdos-mudos. Já propus a cadeirantes fazerem exercícios como o “Empurrar um ao outro”, que normalmente são feitos com as mãos, costas e quadris: eles o adaptaram e fizeram com suas cadeiras.

Os jogos, exercícios e técnicas, normalmente, se adaptam.

Somos chamados de normais porque estamos de acordo com um certo conceito de normalidade que justifica guerras, etnocídios, lucros exorbitantes e fome... Não devemos esquecer que vivemos em sociedades comandadas pelo poder do mais forte.

A anormalidade é perfeitamente normal se considerarmos que mui­tos indivíduos não se adaptam à normalidade ficcional que nós, normais, aceitamos, às vezes com sofrimento. Por isso...

... Arte é o caminho!

 

Da teoria à prática teatral

Entre as variadas formas de opressão, [nota 12] uma das mais cruéis é a exclu­são social que atinge pobres e miseráveis, estrangeiros e não-conformes, mulheres e crianças. O Teatro do Oprimido não pode se limitar à luta de operários e camponeses, não podemos selecionar parceiros e excluir os oprimidos mais difíceis.

Entre os excluídos, vítimas até mesmo de outros excluídos, estão os portadores de dificuldades mentais.

 

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Neste campo, nossa Ética nos leva a ajudá-los a transformar suas realidades opressivas, reais ou imaginárias.

Esta é uma atitude política consciente - não temos o direito de, entre os excluídos, excluir. Tampouco temos o direito de imaginar que o nosso Método seja uma panaceia universal: temos que saber quais os limites entre os distúrbios passíveis de serem trabalhados com arte e teatro e aqueles em que o deterioro psicológico ou neurológico já está de tal forma avançado que escapa à nossa possível ajuda.

Não podemos esquecer que nosso trabalho é artístico e que, para que seja feito sem perigos ou danos, necessitamos do apoio de médicos, enfermeiros, que não podem estar ausentes da nossa atividade teatral, já que não podemos assumir responsabilidades terapêuticas. Necessitamos também da participação das famílias porque cada membro da família faz parte da vida física e psíquica do usuário.

No entanto, tratar a saúde mental como tema puramente médico e não político seria miopia, como se tratássemos o sistema prisional como caso de polícia sem causas sociais, ou problemas educacionais como res­tritos aos domínios da Educação, o latifúndio como coisa que resolvam lá entre eles, e os operários que se entendam com seus patrões porque nós não temos nada com isso. Seria um grave erro político.

Nisto este trabalho não diferencia qualquer outra categoria de oprimi­dos, já que a todos respeitamos como pessoas e como artistas. A escolha de jogos e técnicas será feita a partir das necessidades ditadas pela prática e não por colarmos na testa de cada um a palavra “usuário”.

Ao iniciarmos nosso trabalho com qualquer grupo social, temos que nos identificar e pedir que se identifiquem. Não podemos ignorar quem são nossos parceiros, até mesmo para a escolha dos jogos e técnicas que devemos usar. Mas não podemos rotulá-los - este é operário, aquele, classe média; este é professor, aquele, um usuário. Esse proceder criaria limitações na nossa própria capacidade de compreendê-los.

Saber quem são nossos parceiros é necessário, até mesmo pelos cuidados que devemos tomar e pelas propostas que devemos fazer; mas colar legendas em suas testas é erro grave.

Temos igualmente que ter o cuidado de não reproduzir na estrutura dos nossos elencos a mesma hierarquia existente na realidade do tratamento, onde cada um tem função definida: médico, enfermeiro, funcionário, familiar ou usuário.

 

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No nosso trabalho, as funções sociais devem ser as da peça criada pelos usuários, não as da vida cotidiana - esta, é certo, também deve ser respeitada.

Não devemos limitar a escolha dos temas àqueles relacionados à saúde mental - tratar os usuários de usuários já é, de certa forma, uma opressão. Usuário, doente, paciente, enfermos, portadores de deficiências etc. são Cidadãos com os mesmos direitos básicos de qualquer Cidadão, e alguns específicos da sua condição.

Os usuários têm problemas de transporte, alimentação, desemprego, racismo, sexismo, corrupção etc. Sem ignorar a doença, na qual temos que pensar com atenção e criatividade, e ter muito cuidado, devemos estimular temas que se refiram à vida social. Demasiada ênfase na doença pode impregná-la como legenda na testa do usuário.

Quando um grupo teatral de caps escolheu para o seu espetáculo o tema do Maculelê, os usuários compreendiam em imagens a relação entre o preconceito racial e a geração de conflitos psicológicos que poderiam ter, como defesa, o delírio. Uma sociedade racista delirante causava respostas delirantes, não normais. O racismo, esse, era considerado normal... Temos que pensar na patologia do racismo, do fascismo, da Bolsa de Valores, da opressão econômica, da ganância... São enfermidades graves!

Se os delírios reduzem a possível percepção do real, falar e criar arte sobre a nossa História e sobre preconceitos do dia-a-dia ajuda a expan­dir o entendimento do mundo que têm os usuários. Se os delírios se afastam do real, falar da realidade, ainda que fantasiada, pode tender a trazê-los de volta. Não podemos cair no simplismo causa-efeito, mas não podemos deixar de ressaltar conexões que existem entre delírios sociais e individuais.

Outro grupo capsiano tratou do preconceito dentro do preconceito, narrando em Teatro-Fórum o preconceito que existe entre os próprios usuários, que discriminavam outro usuário por sua orientação sexual. A ascese aqui também é terapêutica: temos ou não, todos nós, o direito de decidir nossa própria sexualidade? Discutíamos a democracia e não apenas um caso ou tema isolados.

Falar sobre problemas políticos expande o mundo psíquico e social dos participantes, não limitando sua atenção ao seu próprio sofrimento.

 

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Normalmente não surgem problemas neste campo porque o caráter lúdico do teatro permite a convivialidade.

As dificuldades que os usuários sentem em criar personagens, im­provisar falas e movimentos, não são diferentes, embora maiores, do que as de qualquer outra comunidade, mesmo as de atores profissionais. E o fato de serem capazes de criar personagens-em-situação já produz benéficos efeitos, pois os usuários percebem que, se são capazes de re­presentar um papel, em tese serão também capazes de adotar esse papel, quando ensaiados.

Este é o processo que devemos e temos usado: metaforizar em for­ma teatral a visão que o oprimido tem do mundo, fazê-lo vivenciar seu personagem e descobrir variantes para o seu comportamento, no Fórum. Devemos ajudar o usuário a descobrir, teatralmente, que algumas de suas opressões não são produtos de alienação, mas existem na realidade da família, do trabalho e da sociedade.

Temos que submeter as histórias contadas a um processo investigativo antes de aceitá-las tal como são contadas, usando Técnicas de Teatro Imagem e Técnicas de Ensaio.[nota 13]

Mesmo em situações delicadas, procuramos experimentar procedi­mentos estéticos que nos permitam integrar delírios ou alucinações dentro de formas delirantes da arte; estas, tendo regras precisas, são continentes, suportes.

Uma experiência muito interessante foi feita por um grupo de tea­tro do Hospital Pinel, no Rio de Janeiro, que criou um Bloco Sujo no Carnaval de 2007. Foliões fantasiados entraram no Bloco do Pinel e era impossível distinguir quem era usuário, quem não.

As pessoas normais dançavam como autênticos integrantes do Bloco. Para tristeza geral, essa assimilação durou o tempo do desfile: depois, os normais não queriam mais ser confundidos, pois eram gente séria e tinham um nome a zelar... Podiam mostrar que eram loucos, mas só quatro dias por ano.

 

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Quando os delírios sociais se confundem com os patológicos, ou os delírios patológicos se dissimulam nos sociais - como naquele Carnaval! -, já não podemos nomear, mesmo sabendo que são diferentes, o que é loucura ou sanidade: os sãos de espírito exercitam sua loucura, e os loucos exercitam sua sanidade. Esse encontro e essa troca são saudáveis para todos.

No meu livro Arco-íris do desejo, narro uma cena de Teatro-Invisível que fiz em Lille, na França, quando um enfermeiro assumiu o papel de usuário e este, o daquele, e foram os dois fazer compras em um centro comercial. Os funcionários do centro chegavam a ter conversas explicativas com o usuário no papel de enfermeiro sobre a necessidade de afastar daquele centro comercial o enfermeiro no papel de usuário porque assustava os fregueses...

Quando as verdadeiras identidades foram reveladas, ninguém mais acreditou nem na ficção nem da realidade.

Arte é forma delirante de percepção do mundo, regulamentada porque é reconhecida como ficção; permitida como exercício da imaginação. Delírio e alucinação fogem dos regulamentos. [nota 14]

O artista vivencia sua imaginação protegido por claras regras, que são respeitadas; o usuário vive seu delírio de fluidos limites. O usuário- artista, entre os dois, transita!

Não seria a saúde mental igualmente contagiosa? Gente normal não contagia sua normalidade?

 

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Sabemos, desde já, que a linguagem estética, para que seja útil, não pode ser episódica - não basta fazer teatro de vez em quando -, é preciso constância. O Teatro do Oprimido é linguagem para ser usada sempre, não evento excepcional: é linguagem. Se falamos português com tanta frequência, por que não falarmos teatro mais amiúde? Como nunca pa­ramos de falar e ouvir, não devemos, nunca, parar de fazer teatro e ver.

Teatralizar problemas individuais, por si só, já traz benefícios e saudá­veis alegrias aos usuários-atores e suas famílias - disso temos exemplos.

A alegria do oprimido, quando consciente, é terapêutica porque é expansiva; a tristeza é retraída. A alegria questiona valores tidos como absolutos pela tristeza, que eterniza situações que a alegria torna transi­tórias. A alegria é dinâmica e veloz, social e crítica; a tristeza tende a ser imobilista e solitária e fatalista. O que não impede que a tristeza possa produzir magníficas obras de arte, como tem feito.

Arte é metáfora do real, não é o real: transubstanciação. Uma bela negra pintada por Di Cavalcanti representa uma mulher atraente e sensual, mas não é a modelo. A moça, em carne e osso, foi transubstanciada em cores e traços. Entre o real e a sua representação pictórica, metafórica, subsiste certa identidade. Mas não se conhece nenhum espectador que tenha tentado namorar um dos quadros de Di Cavalcanti esperando reciprocidade em seus afetos, embora se saiba que Miguelangelo, ao terminar a estátua de David, atirando-lhe no joelho o cinzel, teria gritado “Parla!” diante de tamanha perfeição.

Uma cena da vida real trasladada para o teatro permanece reconhecível em sua essência na forma teatral que a metaforiza. Essa dicotomia é arte. Fazer teatro significa ver-se em cena estando-se na plateia: ver-se vendo e agindo. Ver-se vivendo. Quando descobrimos onde estamos, podemos imaginar para onde ir. O fatalismo do beco sem saída, que tantas vezes se instaura em nossas vidas, é substituído pela paleta das opções imaginadas. Podemos ensaiá-las, segui-las

O Teatro do Oprimido é o contrário do fatalismo, do conformismo e da resignação.

Neste processo, que tem objetivos estéticos e ensaia propósitos te­rapêuticos, o teatro é essencial não porque seja melhor que outras artes, mas porque é a soma de todas!

 

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Todas as artes fazem parte do teatro. Pintura e escultura estão pre­sentes na imagem da cena; a dança, no movimento dos atores; a música, no ritmo e melodia das vozes e instrumentos; a poesia, nos diálogos.

O Teatro não reproduz - representa a realidade. Não realidade estática, como a fotografia, a escultura e a pintura, mas em movimento, como o cinema; não como o cinema, registro eletrônico de uma representação viva, mas viva, como a dança; não muda, como a dança, mas com o sustento da palavra, como a poesia; não com a ambiguidade interpretativa que a poesia permite, mas com a precisão que lhe confere a multiplicidade dos meios que emprega.

Por todas essas razões... Arte é o caminho.

 

Dois exemplos que se contradizem

Nenhuma hipótese deve se basear em dois ou três casos isolados: cada novo evento é uma experiência nova que deve ser tratada com os cuidados que dispensamos ao imprevisível. Quero contar dois casos relacionados a este tema. O primeiro aconteceu em Niterói, no Hospital psiquiátrico de Jurujuba.

Cláudia Simone, Curinga do CTO-Rio, [nota 15] dirigia um espetáculo com usuários daquele hospital. Um deles, José, tinha frequentes delírios. Andando de ônibus, conversava com o seu Anjo da Guarda, com o qual mantinha amistosas relações. Como a conversa era suave, os passageiros achavam graça e nada temiam.

Um dia, José e seu Anjo brigaram feio e, a partir dessa briga, os pas­sageiros se assustavam com a violência das suas altercações. Chamavam a polícia, que conduzia José à delegacia, onde ele passava a noite em companhia do Anjo ou era mandado de volta ao hospital.

Cláudia teve uma ideia: convenceu José a não mais brigar aos gritos com o seu Anjo da Guarda e, quando na iminência de nova briga, con­vencê-lo a ir para o teatro onde ensaiavam.

 

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No palco, José era o diretor e o Anjo, seu ator principal. Obedecendo às regras convencionais dos ensaios, o Anjo seria obrigado a fazer o que lhe pedia (ou mandava!) seu autoritário diretor, José.

E assim foi: a partir dessa data, mal começava uma briga pública, José persuadia o Anjo a ir para o teatro, e a briga acabava em frutuosa conversa, transformada em tema da peça que estavam ensaiando, ele e o Anjo. Ensaio é troca de ideias, percepções e opiniões. A cada crise, novo ensaio. Não se curou ninguém, mas paliou-se o mal.

Nem sempre, porém, o encontro do delírio com as formas deliran­tes é tão fluido. Em Nova Viçosa, Bahia, um povoado ao lado do mar, na década dos sessenta, havia um rapaz conhecido como Zé do Rádio porque andava pelas ruas com um fictício rádio pendurado na orelha, conversando com seus cantores preferidos.

“Louco manso” - diziam. Quando lhe perguntavam quem eram os artistas, Zé respondia com sons incompreensíveis e guardava o segredo - seriam artistas importantes.

A população gostava dele, dava-lhe comida, roupas usadas e rotas, enfim, fazia caridade: afinal, é bom ter um louco na família ou na cidade porque nos faz sentir que somos sãos de espírito. Louco é fundamental para o bom equilíbrio social e para as definições de sanidade...

Um dia, um político local comprou o primeiro aparelho de TV de Nova Viçosa, coisa que jamais se havia visto naquelas bandas, e colocou o aparelho no meio da praça para que a população pudesse conhecer a novidade.

Zé do Rádio veio ver. Espanto: seu segredo havia sido revelado, e também sua mentira. Os artistas do vídeo não combinavam em nada com os que Zé tinha na sua imaginação delirante. Para ele, suas personagens eram verdadeiras, e a TV mentia com imagens falsas. Seu coerente mundo radiofônico foi destruído pela invasão televisiva.

Revelado o segredo, Zé perdeu a audiência e a identidade: todos agora podiam ver a cara dos artistas, ouvir suas vozes. Zé não servia para mais nada. Desesperado, Zé do Rádio, jogando-lhe pedras, tentou quebrar o mentiroso aparelho de TV e teve que ser confinado várias vezes durante os programas dominicais. Zé gritava contra a televisão, dizia os piores palavrões, tornou-se agressivo e desagradável.

 

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Abandonado pela população que, em lugar de risos afetuosos, mostrava-lhe caras carrancudas, Zé passou a andar sujo e maltrapilho, até faminto. Zé do Rádio não conseguia se transformar em Zé da Televisão...

Um dia foi encontrado morto, atropelado na estrada. Nunca se soube se foi acidente ou castigo: loucos são bons em certa medida, quando representam diversão, e não perigo.

Zé do Rádio morreu irreconciliável com o tv, amando a verdade das suas visões radiofônicas e odiando as mentiras da tv. Em parte, tinha razão... Imagino que, se ao Zé do Rádio fosse dada a oportunidade de encenar seu desvario e colocá-lo em palco iluminado, a extravagante cena do seu delírio radiofônico, transformada em teatro, talvez mostrasse o delírio de tais programas e a realidade do seu delírio.

Em parte... talvez eu tenha razão. Mas certamente tenho razão ao dizer que...

... Arte é o caminho!

 

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Observações complementares

 

Educação, pedagogia e cultura

O Teatro e a Estética do Oprimido são de natureza educativa e pedagó­gica — duas palavras que se completam, mas não são sinônimos.

Educar vem do latim educare, que significa conduzir. Educar signifi­ca a transmissão de conhecimentos inquestionáveis ou inquestionados. Significa ensinar o que existe e é dado como certo e necessário. Pedagogia vem do grego paidagógós, que era o indivíduo, geralmente escravo, que caminhava com o aluno e o ajudava a encontrar a escola e o saber.

O educador-pedagógico deve ter a sensibilidade de notar que nenhum conhecimento inquestionado é, na verdade, inquestionável. Cada nova descoberta da História ou invenção da Ciência recoloca a dúvida sobre todos os saberes.

Educação significa a transmissão do saber existente. Pedagogia, a busca de novos saberes.[nota 16] Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico, não-investigativo, nem descobriremos jamais novos saberes sem conhecer os antigos.

A educação pode ser pedagógica ou, ao contrário, como nas ditadu­ras cívico‑militares, autoritária. Em muitas escolas de antigamente - e de hoje, em certos países -, castigos físicos são utilizados para inculcar conhecimentos julgados necessários na memória dos alunos, mesmo que estes nada compreendam do que lhes é ensinado: para este tipo de educação mesquinha, o importante é lembrar, não é entender. Educação pelo medo: robotização!

 

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A verdadeira e prazerosa educação, porém, é pedagógica: estímulo ao aprendizado, às alegrias das descobertas.

Educação e pedagogia são duas irmãs que, ao mesmo tempo, são mães e filhas da cultura. Filhas, porque a cultura existe em cada sociedade em que vivemos e se manifesta através do saber que ensina e do saber que busca. Mães, porque através delas nasce uma nova cultura, sempre em trânsito.

Trânsito para que futuro? Surgem os conceitos de Ética e Moral. Esta vem do latim mores, que significa costumes. Quaisquer costumes, mesmo os mais bárbaros e odiosos, podem fazer parte da moral de um lugar e de uma época. A escravidão já foi moral no Brasil, e os escravos que lutavam por sua liberdade eram chamados de fujões e rebeldes - hoje, sabemos que foram heróis e eram sábios.

Nenhuma moral social deve ser aceita só porque faz parte dos costumes e da cultura de um infeliz momento. Não podemos aceitar o latifúndio e a corrupção, nem a fartura vizinha da fome - males da pátria contra os quais temos que lutar.

Não podemos aceitar certos direitos adquiridos, como aqueles alega­dos pelos escravocratas, que, ao pagar o preço ajustado nos mercados de escravos, adquiriam o direito à posse de seres humanos. Direitos adquiridos contrários a uma ética de solidário humanismo não são direitos: máculas!

Moral refere-se ao passado que sobrevive no presente; ethos, ao presen­te que se projeta no futuro. Moral, do latim mores, costumes. Ética, do grego ethos, tendência de perfeição. Aristóteles, em sua Poética, contrariava Platão, para quem existiam dois mundos sem diálogo entre si,[nota 17] um lá outro cá. Ethos: desejo ou tendência de evolução que existe em cada ser, em cada coisa. Esta é uma interpretação válida que se baseia nos textos desses filósofos, e não na voz corrente.

 

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Não queremos o Brasil como foi nem como é, mas como queremos que seja? Queremos um Brasil em que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e não se pode ser pleno sem os fundamentos da Educação, sem as audácias criativas da Pedagogia, sem uma cultura plural que tenha a cara do nosso país mestiço[nota 18] e cafuzo,[nota 19] mameluco,[nota 20] zambo[nota 21] e cariboca.[nota 22] Sem uma ética de combate a todas as formas de opressão, por mais enraizadas que estejam na moral vigente.

Não somos imorais nem amorais, somos antimorais naquilo que a moral do dia impede o florescer de uma Ética da Solidariedade.

A Terceira Guerra Mundial já começou e já estamos perdendo essa guerra subliminal que não se manifesta apenas em suas formas espeta­culares e teatrais, com invasões e genocídios aos quais estamos assistindo pela tv e pelos jornais, mas, precisamente, através desses mesmos meios de comunicação, autoritários e imperativos.

Autoritários na sua intransitividade; imperativos quando nos obrigam a acreditar na mentira. Só poderemos nos defender dessa Invasão dos Cérebros usando armas de igual poder, com sinal trocado. Temos que criar condições materiais para que a população possa desenvolver a sua própria criatividade e deixar de ser vítima passiva da comunicação, assumindo-se como seu agente ativo e transformador. Isto desde a escola.

Segundo a Teoria dos Neurônios Estéticos, quando um ser humano é bombardeado diariamente com as mesmas informações dogmáticas repetitivas — sejam elas de cunho religioso, político ou esportivo; belicista, sexista, racista ou de qualquer outra ordem -, essas informações, por absurdas que sejam, cravam-se em nossos cérebros e formam impe­netráveis e agressivas coroas de neurônios fundamentalistas, que rejeitam qualquer pensamento contraditório e transformam suas vítimas em seres sectários da religião, do esporte, da arte e da política. Transformam seres humanos em estações repetidoras de conceitos que não entendem e de valores vazios.

 

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A Cultura, a Educação e a Pedagogia, através do diálogo e do escambo, ativam nossos neurônios estéticos - aqueles que são capazes de processar ideias abstratas e emoções concretas, como faz a Arte - e promovem a mais ampla percepção do mundo e a abertura de veredas e caminhos, pois, como disse o poeta espanhol Antonio Machado, o caminho não existe, o caminho quem o faz é o caminhante ao caminhar.

Uma verdadeira educação pedagógica, que contribua para a criação de uma autêntica cultura popular brasileira, deve, necessariamente, in­cluir todas as formas estéticas de percepção da realidade e de invenção - Arte - como parte da luta contra a Invasão dos Cérebros que há tantas décadas estamos sofrendo. Temos que combater aliens e alienígenas em todas as frentes: na escola, no campo e na cidade, no trabalho e no lazer; no cinema, no teatro, na rádio e na tv, nos cds e dvds. Sobretudo, já nas escolas.

Temos que criar defesas contra a escravidão estética que há tantas décadas nos estão impondo - a Estética poder ser perigosa! Temos que descobrir o nosso rosto, escrever a nossa palavra e ouvir a nossa voz - a Estética pode ser libertadora!

Arte é o caminho!

 

Linguagens informativas e linguagens cognitivas

Linguagens são criadas para permitir a comunicação. Se um dos interlocutores não conhece os significados atribuídos a cada elemento de uma linguagem, esta deixará de ser linguagem e se tornará apenas um conjunto vazio de gestos, sons, sinais, traços e cores: significantes sem significados.

Toda linguagem tem, como função primeira, transportar informações. Toda linguagem é informativa, inclusive as cognitivas. Informativas são simbólicas; Cognitivas, sinaléticas[nota 23] - estas são o domínio da Arte.

Informações são percebidas pelos sentidos. Conhecimento é um processo psíquico que relaciona as informações recebidas com outras já existentes, o que lhes dá sentido específico para cada indivíduo, a cada momento.

 

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Nas linguagens cognitivas, o conhecimento é a própria linguagem. Música, fotografia, dança, escultura, pintura e outras artes são conhe­cimento que, como Pensamento Sensível, não necessita ser verbalizado. Como linguagem, tem que ser articulado: é razão expressa por meios não-verbais.

A palavra pronunciada é informativa pelo significado que transporta; e cognitiva pela voz que a pronuncia.

Uma foto que mostre a imagem das ondas do mar revolto não ne­cessita de explicações verbais para que se compreenda esse prenúncio de tempestade. Cada observador, porém, terá sua percepção particular do mar caso seja pescador, dono da peixaria, cozinheiro, fabricante de barcos ou simples passante. “Vai chover!” é informação pouco importante para quem está aconchegado em sua cama; é assustadora em alto-mar.

A linguagem informativa pode ser traduzida em cognitiva. O Código Morse e uma partitura musical são linguagens que informam: o código, pontos e traços; a partitura, sons, ritmos, claves. Um poema, porém, enviado em Morse, torna-se linguagem cognitiva quando traduzido em palavras que transportam conhecimentos e são conhecimento. O pianista que executa ao piano uma canção tirada de uma partitura silenciosa cria música - linguagem cognitiva.

O quadro de um pintor é conhecimento, ainda que nada se explique a seu respeito. O conhecimento histórico do quadro, das circunstâncias em que foi pintado etc. pode nos trazer conhecimentos adicionais, fazer ver o mesmo quadro em outra dimensão; o quadro, no entanto, já era conhecimento.

Se nos disserem os nomes de cada uma das pessoas que serviram de modelos às figuras humanas da Descida da Cruz de Rubens, pintada em 1612 - todas bem conhecidas em sua época e lugar -, esse saber histórico pode nos oferecer novos ângulos de observação dessa obra, provocando novas reações e sentimentos. A bela pintura, porém, já nos havia pro­porcionado conhecimento, isto é, sua integração dentro do quadro mais amplo de valores que já possuíamos anteriormente.

E certo que informação e conhecimento não são categorias puras: toda informação contém conhecimentos, e todo conhecimento é feito de informações orquestradas.

 

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Arte é um conjunto de linguagens informativas e cognitivas. Por essa razão, indispensável em todas as atividades humanas! A arte deve ser totalmente integrada em toda a nossa vida social.

Arte é o caminho!

 

Os três espaços teatrais

Em sala onde se vai realizar uma sessão de teatro, ou na rua, existem três espaços teatrais superpostos: físico, estético e cênico. E importante ter consciência desses três espaços porque eles estão sempre ativos, indepen­dentes da nossa vontade.

ESPAÇO FÍSICO - Comprimento, largura e altura. Em espaços abertos, esta última dimensão é infinita, podendo ser limitada pela iluminação.

ESPAÇO ESTÉTICO - Imaterial, não tem existência concreta: pura concentração da energia observadora dos espectatores em um ponto ou área determinada, para onde se dirige a atenção dos espectadores, que suspendem sua necessidade de agir transferindo sua energia para essa área.

Como essa atenção é vadia, fluidos são os limites desse espaço. Para intensificá-lo, temos que escolher sua localização. Exemplo: em um es­paço físico quadrangular, devemos colocar a cena em uma das paredes laterais maiores e não no fundo da sala, reduzindo a distância espectadores-atores. A plateia deve ser colocada em ferradura, à volta do palco ou arena.

O palco italiano, que simula um quadro na parede, com personagens em movimento, distantes, é invenção da burguesia renascentista, que privilegiava os indivíduos possuidores da virtú maquiaveliana, aqueles que tentavam tomar o poder da nobreza, mas sem se solidarizar com o povo, ao qual, economicamente, estavam fadados a explorar também. Privilegiava o indivíduo excepcional, capaz de tudo, o virtú-oso, e não todos os indivíduos.

O lugar onde se faz a representação teatral é ideológico: é conteúdo, não simples forma. Nossos espetáculos, sem abolir a força do palco, de­vem democratizá-lo, estimulando o trânsito palco-plateia!

 

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ESPAÇO CÊNICO [nota 24] - O cenário traça limites visíveis para conter e vestir o espaço estético. Ao construí-lo, devemos pensar em traço e cor.

Exemplo: os locais onde habitam nossos parceiros são, quase sempre, cinzas, escuros, como cor; poluídos, como traço. Para que o espaço cêni­co adquira vida vibrante, é bom simplificar o traço em contraste com o meio confuso; usar cores vivas em contraste com as cores sombrias dos espaços físicos onde atuamos.

Se, o espaço cênico não se destacar do espaço físico pelo traço e pela cor, o espaço estético continuará vagueante. A construção da imagem da cena - também chamada cenário, figurinos, adereços etc., denominações que recuso em virtude de sua origem em um certo tipo de teatro que prefiro recusar - deve começar com o espaço vazio, totalmente vazio e neutro, e deve ser construída a partir de objetos quentes, um a um: objetos a serem manuseados, a servirem como móveis, portas, paredes etc. Tudo que entrar nesse espaço deve ser trabalhado pelo grupo de oprimidos, que deve também escrever e musicar a peça. Sempre com a ajuda dos seus Curingas: cada coisa deve conter também uma opinião emocional e ideológica sobre essa coisa.

Normalmente, peço aos meus alunos ou espectadores para que se aproximem de mim quando falo: quero que o espaço estético no meu entorno seja limitado por um espaço cênico concentrado. Quero um palco - embora invisível, denso. Não por narcisismo, mas para que minhas palavras sejam mais bem compreendidas, e não dissolvidas e rarefeitas.

O anfiteatro grego era mais convivial, aberto em três direções, com uma parede ao fundo - mesmo assim, excludente. O palco italiano, inventado pelo cenógrafo italiano Serlius por volta de 1600, é mais ex­cludente ainda. Aos protagonistas da cena, donos do poder, ele ilumina, e a nós, mergulha nas trevas da plateia.

Arquiteturas teatrais fixas são autoritárias - por isso é necessário derrubar o muro que separa espectadores de atores, democratizar esse poderoso espaço estético. Não queremos destruir a separação palco-plateia, apenas democratizá-la.

 

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Quando nosso olhar vagueia ao léu, podemos escolher o que que­remos ver. Assistindo a um espetáculo que se desloca pelas ruas e pelos campos, como a Vida de Cristo na cidade de Nova Jerusalém, os Cantos ditirâmbicos na Grécia do século vi ac, o bloco de Carnaval de rua no Brasil de ontem e hoje, estruturados no espaço e no tempo, ainda assim podemos segui-los e escolher o ângulo pelo qual queremos vê-los.

Quando somos imobilizados nas arquibancadas de um teatro, está­dio ou sambódromo, já não podemos escolher nossos ângulos de visão: temos que ver aquelas imagens que nos são impostas pela iluminação e pela coreografia.

No cinema, que vai além, vemos imagens das imagens que o diretor quer que vejamos e da maneira que ele assim deseja: não há a mínima escolha do mínimo detalhe.

No Teatro do Oprimido, ao contrário, temos que promover todas as formas de trânsito, interatividade, conversa, diálogo, dialética, debate, reviramento, reviravolta, resmuda, escambo, troca, feira de opiniões...

Arte é o caminho!

 

A busca de parceiros

Um Centro ou Grupo de Teatro do Oprimido não é partido político, não obedece a programas impostos; não é igreja ou seita, não obedece a dogmas; não é táxi-teatro, não vai onde manda o patrocinador - tem seus caminhos. Nenhum patrocínio justifica que se levem mensagens do patrocinador.

Ao praticarmos to, temos que excluir qualquer aliança com opres­sores antagônicos em conflitos irreconciliáveis - esta não é lei divina, é bom senso humano.

Se trabalhamos com um governo cuja política, no fundamental, apoiamos, juntam-se forças. O cto-Río tem trabalhado com ministérios do atual governo brasileiro (2003-2010) sem sofrer qualquer coerção; sem nenhum problema, salvo a espantosa burocracia herdada da dita­dura. Jamais trabalharíamos com a ditadura que enxovalhou nosso país por mais de 20 anos...

 

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O CTO trabalha com camponeses, jamais para latifundiários. Com operários, jamais para seus patrões. Com oprimidos, jamais para opressores.

Nos conflitos não antagônicos em que o diálogo é possível, podemos trabalhar com adversários que buscam o encontro. Pais e filhos, professores e alunos, casais, quando assim o queiram, certos confrontos étnicos em estágios reversíveis, e alguns mais. O to não joga gasolina em todas as fogueiras, mas também não é bombeiro, nem anestesista.

Alguns grupos desonestos usam pedaços amputados ao Método para, obedientes, ajudar opressores: é traição.

Alguns grupos de atores profissionais apresentam espetáculos de Teatro Fórum nas escolas: não é mal, é bom, muito bom, mas pouco: a ambição do TO é tornar-se linguagem a ser usada pelos oprimidos cons­cientes; trabalhamos para multiplicadores, não para consumidores. Somos inspirados pelo provérbio chinês: damos a vara e ensinamos a pescar, mas não damos o peixe pronto para ser servido.

O TO, na sua forma soberana, é o teatro dos Oprimidos, para os Oprimidos e sobre os Oprimidos. Suas técnicas não podem ser desvin­culadas da sua filosofia, da sua árvore.

 

Cabeça nas alturas, pés no chão e mãos à obra

Quando escrevo que a palavra é um meio de transporte; que, ao nome­armos a coisa, essa coisa já é outra coisa, e nunca mais será a mesma; que eu sou eu, mas a cada instante sou diferente e igual; que flutuamos sobre o real sem a ele termos acesso - isso não nos impede de conhecer e enfrentar, não a verdade absoluta, mas as verdades terrenas. Não a misteriosa Grande Verdade Eterna, mas a eternidade de cada instante fugaz de nossas vidas,[nota 25] trânsito do parto à sepultura.

 

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Quando os cientistas afirmam que o corpo humano é constituído por setenta por cento de água, isso não significa que vamos verter nossa cabeça, tronco e membros em copos e jarras. Quando a Física Quântica jura que a matéria não existe e o espaço é vazio - matéria feita de átomos não sólidos; átomos feitos de núcleos, prótons e elétrons que não são sólidos, quarks são feixes de energia não sólida, nada é sólido... - isso pode ser verdade, mas mesmo que sejamos apenas um espaço vazio no grande vazio do Espaço, apesar de tudo, abramos a porta antes de entrar: convém não bater com a cabeça na porta fechada.

Tudo é trânsito, mas nossa própria transitoriedade eterniza cada um dos nossos instantes: nossa vida é eterna naquele segundo que nos foge.

Vivemos com os pés na realidade concreta, não na estratosférica verdade. A especulação metafísica amplia a nossa capacidade de pensar, estimula a sensibilidade além dos limites do sensível, mas não devemos permitir que substitua a ação no mundo social e político pela especu­lação abstrata.

Nossa cabeça pode estar nas alturas, mas com os pés no chão e... mãos à obra.

O fascismo, o imperialismo e o colonialismo, a exploração de classes, a humilhação das castas e a escravidão aberta ou disfarçada, o racismo e a xenofobia, a tirania sexual, a histórica e universal subjugação da mu­lher e a devastação do meio ambiente, todas essas epidemias políticas e sociais não são a Verdade Eterna - são verdades temporais que devem ser combatidas sem respiro.

O ser humano é binário: predatório e solidário. Temos que libertar o ser humano do seu instinto predatório, remanescente animal.

Arte é o caminho! E preciso reconquistá-la para o fortalecimento da cidadania!

ícaro tinha a cabeça nas alturas, o camponês tinha os pés na terra firme... Ele também sonhava, mas com os pés no chão e as mãos no arado!

 

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Em branco.

 

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Livro composto em Adobe Garamond Pro 12/15 pt em papel off-set 90 g/m2, impresso pela Vozes no inverno de 2009.

 

Início das notas de rodapé:

Nota 1, Página 16: Para que se compreenda com clareza que existem tantas estéticas quantos grupos sociais organizados, comparem estas duas imagens: Jesus, com seus apóstolos vestidos com andrajos e com a alegria passional daqueles que sentem que dizem verdades; do outro lado, o Papa, envolto em ouro e ouropéis, no seu papamóvel blindado, cercado de guardas suíços, vestidos pela griffe Michelangelo, cercado pelos seus príncipes, ornados como ele.

Jesus e o atual cristianismo têm pouca coisa em comum... Ou vocês acham que esses dois grupos estariam usando a mesma e única estética universal? Ou seriam seus caminhos tão exclusivos dos interesses e propósitos de cada grupo? Para que eu possa começar a acreditar em alguma coisa que ele diga, quero ver o papa quase nu, despojado de artifícios, pregando nas ruas e nos campos. Isso, sua estética não permite; a minha, exige!

Nota 2, Página 21:  Pequena cidade suíça onde se reúnem os homens mais ricos do planeta, na mesma época em que, no Brasil e em outros países, se reúne o Fórum Social Mundial, de ideias completamente opostas.

Nota 3, Página 21:  A República, Platão, Livro 7. Sei que estou fazendo uma comparação de ponta cabeça do pensamento de Platão. E consciente. Para ele, o mundo concreto do qual eu falo, e que temos que descobrir e conhecer, era apenas sombras de uma realidade que pertenceria ao platônico mundo das ideias perfeitas. Hoje, as sombras que vemos e nos escondem as verdades são as das TVs, rádios, jornais, e todas as formas de convencimento de massas usadas pelos opressores.

Nota 4, Página 25: Essa palavra já existia na Grécia, como nota Houaiss: “Do grego aisthétós,ê,ón – ‘perceptível pelos sentidos, sensível’ –, por oposição a noétós,ê,ón – ‘percebido pela inteligência’”. Eu afirmo que Estética e Noética sempre estiveram unidas, e ambas são inteligentes; siamesas, uma não existe sem a outra. Afirmo que a Estética também é inteligente, e a Noética, sensível.

Nota 5, Página 25:Dizia minha mãe que todo sapo ama sua jia, que salta desajeitada, e despreza a elegante flaminga, de pernas longas que ondulam, flutuam.

Nota 6, Página 27:Ideologia, para ele, significava o conjunto de ideias recebidas pelas sensações, de forma consciente ou não. Essa, como todas palavras, na batalha semântica, ganhou outros significados, laudatórios ou pejorativos.

Nota 7, Página 30:As discussões entre Freud e Jung sobre se as crianças são perversas polimorfas ou não, se o seu corpo é orientado sexualmente desde o ato de mamar no seio materno, parecem-me, hoje, infantis. A criança não tem moral, portanto nenhum adjetivo moralizante pode ser atribuído ao seu comportamento, muito menos uma intenção ética. A criança apenas sente e deseja. Com o tempo, aprende tudo aquilo que a sua cultura lhe ensinar, permitir ou obrigar – ou se torna marginal.

Nota 8, Página 31: Disse um filósofo que somos porcos-espinhos gregários: necessitamos ficar juntos, aconchegados, mas, ao fazê-lo, nós nos espetamos. Como disse Píndaro, poeta grego de antanho, o ser humano é uma sombra que sonha.

Com que sonha a sombra? Talvez com quem a projeta; talvez com     levantar-se e andar por conta própria. Talvez sonhe com a precariedade da sua e da nossa existência. Talvez sonhe, um dia, ter sua própria sombra, ser alguém.

Nota 9, Página 33: O monoteísmo tem a mesma finalidade principal da globalização: a centralização do poder. As várias religiões politeístas são mais democráticas: permitem que nos aliemos a alguns deuses para nos defendermos da ira de outros deuses. Quando, porém, existe apenas um solitário e todo-poderoso Deus... que deus nos acuda, estamos sós e indefesos!

Nota 10, Página 35:            Desregulamentação significa eliminar as leis que deveriam reger os mercados: passa a valer tudo. Exemplificando: é como se, em uma luta de boxe desregulamentada, um dos lutadores tivesse o direito de descarregar rajadas de metralhadoras no adversário e em mais de três ou quatro milhões de trabalhadores que perderam seus empregos graças ao neoliberalismo, isso só no segundo semestre de 2008.

Nota 11, Página 35:            Quimera, na mitologia grega, monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão. A esfinge egípcia, com a cabeça humana e corpo de leão, e o Minotauro, também grego, com corpo de homem e cabeça de touro, são exemplos clássicos de quimeras.

Nota 12, Página 36: Para sermos exatos, deveríamos chamar a esse fenômeno cultural de culturofagia, pois não se come o homem e sim sua obra. Escolheu-se, por metonímia, a palavra mais bonita – assim seja, também está certo.

Nota 13, Página 39:Este conceito de ética, diferente da moral, baseia-se na interpretação que dela dá Aristóteles em sua Poética. Mais adiante o leitor encontrará este parágrafo, que convém ler agora: “Contrariando Platão, Aristóteles dizia que o sonho de perfeição residia no coração do mundo imperfeito, era o motor do seu movimento para a Perfeição. Nesse sentido, a moral é a imperfeição daquilo que é como é – mores: costumes. No seio da moral, nasce a ética, aquilo que deve ser: a busca, o sonho de perfeição”. Hoje, uma sociedade sem opressão, repressão e depressão.

Nota 14, Página 39:Desde o Código de Hamurabi (cerca 1750 AC) até a Declaração do Direitos Humanos da ONU (1948), alguns países, nações e clãs têm buscado definir normas de comportamento para toda a humanidade. Viveríamos em um mundo feliz... se os governos respeitassem a Carta de 48.

Nota 15, página 46: Existem também as Auras Prosaicas, temporais, como aquela que envolve o sapato atirado contra Bush no Iraque, no último mês do seu lamentável mandato. Dizem que aquele par de sapatos atingiu um valor tão alto nos leilões, que a empresa produtora daquela marca passou a vender cem vezes mais; na caixa, referências foram escritas relativas àquele episódio jornalístico - todos os pares de sapatos, saídos do mesmo forno, conservavam algum resíduo aurífero. O feito heroico, por ter sido praticado por um homem valente, indefeso mas indignado, suplantou o célebre sapato com o qual Kruchev, o líder soviético, espantou seus pares, batendo repetidamente na mesa durante um discurso adversário em plena sede das Nações Unidas.

Existe também a Aura Fetiche, como a bola do milésimo gol de Pelé, as meias pretas de Marilyn Monroe e as calcinhas de Mae West.

Nota 16, página 50: Conhecimento que não depende e é anterior à experiência prática, como o tempo e o espaço. Isso, na opinião do filósofo alemão Kant (1724-1804), não na minha: tempo e espaço também, aos poucos, se aprendem, claro que sim.

Nota 17, página 50: Metade dos que foram produzidos desde o nascimento; os da outra metade, não tendo sido capazes de se integrar em redes neuronais, perderam-se pelo caminho e morreram - destino dos eremitas.

Nota 18, página 51: Até certo ponto e com muitas exceções e maiores complexidades, as diferentes funções da linguagem estão localizadas em diferentes partes do cérebro. Assim, a área de Broca (região frontal esquerda do cérebro, ao lado do córtex motor, que coordena os movimentos da fala — lábios, língua e cordas vocais —, assim chamada em homenagem a Paul Broca, cientista francês, 1824‑1880, um dos pesquisadores da doença chamada afasia) — concentraria a produção das palavras. A dificuldade de falar, ou a fala frag­mentada ou incompleta que torna impossível o entendimento, é chamada de afasia de Broca. A área de Wernicke, no lobo temporal ao lado do ouvido, córtex auditivo, (Carl Wernick, 1848‑1905), parece ser a área de compreensão dessas palavras. A afasia de Wernick se refere àquelas pessoas que conseguem articular perfeitamente bem as palavras e as frases, sem, no entanto, entender o que estão dizendo... E doença mais comum do que parece ser nos dias de hoje... pode até passar desapercebida... Na TV, principalmente, e nos discursos políticos, é o que mais se vê: mesmo os doentes graves da afasia de Wernicke passam desapercebidos.

Um feixe de circuitos neuronais faria a ligação entre essas duas áreas. Essa teoria não deve ser tomada ao pé da letra, pois a produção e a compreensão da linguagem verbal não se devem a sistemas totalmente independentes. Entre essas duas áreas, os mesmos neurônios são usados para produzir e para compreender a mesma palavra: são os neurônios-espelhos — experiências de laboratório mostram que esses neurônios são estimulados tanto quando se pronunciam como quando se ouvem palavras.

E preciso ter em mente que Stanislawski baseou o seu Sistema de Interpretação do Ator na memória afetiva, compreendendo que o significado de uma palavra não está apenas no seu enunciado no dicionário, mas vem sempre acompanhado de memórias sensoriais, emocionais e intelectuais: uma palavra que se pronuncie, ou um evento importante que se evoque, acendem redes de clarões espalhados por todo o cérebro e não se encerram em compartimentos isolados, celas de segurança máxima.

Nota 19, página 54: Diz a sabedoria popular que a vida é uma doença transmissível sexualmente, com taxa de mortalidade de cem por cento... Não é otimista, mas é verdadeira.

Nota 20, página 57: Literalmente, “engana-olho” - geralmente uma pintura em paredes ou no chão que nos faz ver o que não existe, como escadas e portas, enganando a nossa percepção visual.

Nota 21, página 58: A primeira que se fixará para sempre na última camada bem escondida do seu in­consciente é a da mãe, o que explica o fascínio do sorriso da Mona Lisa. Este é o meu sentimento, mas sei que, no mundo em que vivemos, esta idílica imagem materna não é frequente Já ouvimos falar até de mães que jogaram seus bebês no lixo (rj, sp, mg), ou que os assaram em micro-ondas (usa, 07/07).

Nota 22, página 60: Ouvindo Bach, por exemplo, o bebê se inicia na arquitetura harmônica dos sons; ouvindo Dolores Duran, ele sente a suave “alegria de um barco voltando”. Com Pixinguinha, aprende a ser carinhoso. Tudo isto dentro do mundo cultural em que vive a criança — nada é automático. Ouvindo música, o bebê tem todo o direito de ter seus próprios gostos e até discordar de mim, pode gostar de barulhos estranhos... esse é um problema dele, depois não se queixe.

Ouvindo techno, essa contrafação da música, inicia-se na brutalidade das máquinas de quebrar pedra, que reduzem a compreensão do mundo à violência física e necrosam os canais da percepção. Sei que há controvérsias, mas digo o que penso.

Nota 23, página 62: Moro em um terceiro andar. Vou à janela e olho o calçadão lá embaixo: vejo o meu amigo Vicente, que tem apenas um ano de idade e poucos meses. Quando me vê, puxa a mão de sua mãe, que empurra o carrinho e, com o dedo indicador da mão direita, aponta para mim na janela. Quer me ver - é o que o seu rosto mostra. Vicente está pensando, está falando, comunicando seus pensamentos, desejos. Ainda não conhece as palavras, que logo virão. Enquanto não as sabe usar, usa o Pensamento Sensível e alguns símbolos manuais que já domina com perfeição.

Nota 24, Página 70: Outros animais, como pássaros, sapos e até certos peixes, emitem sons que também são significantes com significados, sons diversos mas que não são moduláveis ou fracionados ao bel-prazer; são como o grito de quem martela o dedo - ninguém fraciona esse grito.

Nota 25, Página 71: Escreveu o grande filósofo das Leis que estas são “les rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses” (O espírito das leis).

Nota 26, Página 73: Na obra-prima de Michael Moore, Sicko-SOS Saúde, bombeiros voluntários que sacrificaram suas vidas para salvar vidas alheias na tragédia das torres gêmeas, justamente por serem voluntários, não estavam na folha de pagamento do governo - por isso, embora tenham contraído graves doenças provocadas pelo fogo e pela fumaça, foram deixados sem socorro pela Saúde Pública. Foram heróis - o governo não nega -, mas não estavam na folha... Essa burocracia odiosa não levou em conta o bem maior, que é a vida e a solidariedade. Michael Moore levou esses bombeiros estadunidenses para serem bem tratados... em Cuba.

Em outro dos seus filmes, Moore mostra um soldado morto em serviço no Iraque no dia 25 do mês: sua família recebeu o cheque do seu salário daquele mesmo mês descontado de cinco dias: o soldado não havia conseguido trabalhar nesses dias... Estava morto.

Nota 27, página 78: E pela posse do dinheiro como símbolo e senhor de todos os territórios onde pe­lejamos nossas vidas.

Nota 28, página 80: “Volver a ser de repente /tan frágil como un segundo/volver a sentir profundo / como un nino frente a Dios” (“Tornar a ser de repente / tão frágil como um segundo / tornar a sentir profundo / como menino diante de Deus”).

Nota 29, página 80: Cultural Constraints on Grammar and Cognition in PirahãAnother Look at the Design Features of Human Language, by Daniel L. Everett.

Nota 30, página 84: Lenni Riefenstahl foi estigmatizada por causa da sua explícita adesão ao nazismo. Diretores mais clássicos, em formas igualmente belas, também transmitiam ideias de perpetuação das injustiças sociais, como Fritz Lang, com a sua celebrada Metropolis. Este filme promove, ingenuamente, o casamento do Trabalho (um operário) com o Capital (o patrão) através da filha deste (o coração). Como se fosse possível: os operários daquela fábrica eram mais de mil, e a filha do patrão, uma só...

Lang, no entanto, foi procurado por Goebbels a mando do próprio Hitler, em uma sexta- feira à tarde, para lhe oferecer o posto de cineasta oficial do regime. Lang não hesitou em arrumar as malas no fim de semana e se exilar bem longe da Alemanha, antes da segunda-feira... (Entrevista a Sérgio Augusto em 100 Anos de Cinema, livro organizado por Amir Labaki — Rio de Janeiro: Imago, 1995).

Nota 31, página 90: Para reconquistar o artista que somos, temos que sentir tudo que toca o nosso corpo e sentir o corpo; escutar os sons que ouvimos, sons da memória e da imaginação. Temos que redescobrir o corpo: temos um corpo. Temos que reaprender a ver a coisa no espaço, o espaço da coisa e o espaço do espaço feito coisa — temos que ver o espaço vazio, cheio de si mesmo.

Nota 1, página 98:   O poeta português Fernando Pessoa escreveu:

“Entrevi, como uma estrada por entre árvores, / E que talvez seja o Grande Segredo, / Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam. / Vi que não há Natureza / Que Natureza não existe / Que há montes, vales, planícies, / Que há árvores, flores, ervas, / Que há rios e pedras, / Que não há um todo a que isso pertença / Que um conjunto real e verdadeiro / É uma doença das nossas ideias. // A Natureza é partes sem um todo. / Isto é talvez o tal mistério que falam. / Foi isto o que sem pensar nem parar / Acertei que devia ser a verdade / Que todos andam a achar e que não acham / E que só eu, porque a não fui achar, achei.”

Nota 2, página 98:   Unicidade é o conjunto das qualidades de uma unidade.

Nota 3, página 99: El arroyo de la sierra me complace más que el mar (O riacho da serra me agrada mais que o mar) — versos de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionário cubano, herói da guerra de libertação nacional contra os espanhóis

Nota 4, página 99:   Os conjuntos organizam-se inicialmente pelos próprios sentidos. Mais tarde, através da palavra e dos símbolos, formam estruturas sociais ficcionais, imaginárias: conjuntos de conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: estrutura moral, política, social, familiar, ritual, comportamental etc. As estruturas sociais se sustentam pelas relações de poder em suas variadas formas — políticas, sociais, psicológicas, culturais, carismáticas, sexuais etc. —, que determinam valores que, embora sejam abstrações, determinam comportamentos concretos. As relações sociais de poder representam, no campo humano, o mesmo papel das forças do universo (gravitacional, eletromagnética, e as chamadas interações forte e fraca) que ocorrem nos núcleos atômicos.

Nota 5, página 100: Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, século v-vi ac, dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes: na segunda, já serão outras águas que por ele estarão rolando, já não será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito, dizendo que ninguém pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão sempre em movimento: em que água estará entrando?

Eu extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa o rio?

Isto que digo vai frontalmente contra o pensamento eleático de Parmênides, que afirmava a unicidade do Ser. Falo de um Ser fragmentado ao infinito, onde o Não-Ser também É. Matéria é energia, energia é granulada, grânulos são matéria, que é energia, que são grânulos... Se falamos de Infinito, vamos levá-lo a sério!

Nota 6, página 107: “Navegar é preciso, viver não é preciso” — frase pronunciada pelo general romano Pompeu, que viveu no primeiro século antes de Cristo — “Navigare necesse; vivere non est necesse” —, estimulando os marinheiros medrosos de enfrentar o mar e a tempestade, levando trigo aos romanos famintos (Plutarco, Vida de Pompeu). Dizem que o general deu o bom exemplo e foi o primeiro a embarcar: os tempos mudaram... ai que saudade!

Nota 7, página 101: Substantivos nomeiam o caminhante; adjetivos e advérbios são opiniões, fluidas como quem opina; verbos, imprecisas impressões genéricas que englobam múltiplas formas de ser, acontecer, fazer; artigos, interjeições, e o que mais se queira, são partículas ao vento.

Nota 8, página 102: “ We few, we happy few, we a band of brothers; / For he to-day that sheds his blood with me / Shall be my brother; be he ne’er so vile, / This day shall gentle his condition: / And gentlemen in England now a-bed / Shall think themselves accursed they were not here.” Tradução mais ou menos livre: “Nós, poucos que somos, somos irmãos, porque aquele que derramar seu sangue junto ao meu, o dia de hoje lhe dará esta condição: será meu irmão, por mais vilão que tenha sido. E os senhores da Inglaterra que estão agora dormindo em suas camas pensarão que são amaldiçoados por não estarem agora aqui, lutando ao nosso lado”

Nota 9, página 104: Os índios guarani-kaiowas são homens de palavra. A invasão dos brancos latifundiários que, com violência, ocupam suas terras, faz com que sintam que não podem mais dizer sua palavra, afirmar o que sentem, proibidos de expressar seu pensamento. Muitos, como forma simbólica de revolta,    entregam-se ao Jejuvy — uma forma de suicídio ritual, por enforcamento ou veneno, com testemunhas, mas sem derramamento de sangue, para que as palavras não se esvaiam —, destinado a aprisionar a palavra dentro do seu corpo para que um dia, talvez, se expanda e se afirme. A palavra Jejuvy significa aperto na garganta, voz aniquilada, palavra sufocada, alma presa. Suicídio à espera de um possível renascimento da sua fala (cf. http://www.diplo.uol.com.br/2008-02,a2I68).

Nota 10, página 106: Cotovia em campo de trigo.

Nota 11, página 106: Monet pintou vários quadros da mesma Catedral de Rouen em diferentes horas do dia e estações do ano. Ao olhá-las lado a lado, vemos o Tempo.

Nota 12, página 106: “As ideias dominantes em cada sociedade são as ideias da classe dominante” - disse, em alemão, Marx. Bem pensado! Se fosse ao contrário, o mundo virava de ponta cabeça!

Nota 13, página 108: Algumas estruturas psicológicas, genericamente chamadas loucura, fazem parecido: penetram conjuntos, mas se perdem na percepção de cada um dos seus elementos, sem formar novos conjuntos, que seriam as obras de arte. Doentes há que veem nossos poros como peneiras, incapazes de ver a pele que protege o corpo.

O amante busca o uno, mesmo Don Juan, que não ama ninguém: ama o amor, ama amar. Narciso, outro caso clínico sério, ama a si mesmo, onde se busca e não está. Na morte, encontra-se consigo.

Nota 14, página 111: A árvore não deve esconder a floresta, como disse um poeta, mas a floresta também não tem o direito de esconder cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, cada ramo de flores, nem cada pétala de cada flor.

Nota 15, página 112: Seria tolo imaginar um infinito apenas para fora e para longe... Se é verdade que o infinito existe, não é mero conceito, não pode ter limites para dentro; não pode ser infinito para além das estrelas e limitado em cada átomo do nosso corpo. O átomo, apesar do seu nome — a-tomo, indivisível —, é um universo de quarks; estes, universos de feixes de energia granulada; cada grânulo é um novo universo. O infinitamente grande é igual ao infinitamente pequeno. O infinito destrói conceitos de grande e pequeno, longe e perto. Tudo está perto porque é longe, tão pequeno sendo tão grande.

Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas, objetos siderais atraídos por vorazes buracos negros. Não podemos cair no erro de Parmênides (515 A.C. — ?), filósofo grego que afirmava que o Universo era infinito em todas as direções, teria um ponto de partida e... seria esférico. Ora, se tinha começo e forma precisa, seria finito, pois a forma é o limite do ser com o não-ser e, como sabemos e Parmênides se esqueceu por uns instantes o que ele mesmo disse, o não-ser não é...

Pisando o chão, pisamos terra, respiramos ar e, mais alto, vem o vazio. Mais alto ainda, o próprio vazio se ausenta... O infinito é a vertigem do pensamento!

Nota 16, página 114: Ver A User 's Guide to the Brain, de John J. Ratey.

Nota 17, página 115: Cada neurito tem um só axônio, mas pode ter até dez mil dentritos, o que fez um cientista calcular que existem mais possibilidades de formação de redes neuronais no cérebro de um só indivíduo do que existem átomos em todo o Universo conhecido - só não explicou como se contam os átomos universais.

Nota 18, página 116: A extrema delicadeza e a complexidade das células chamadas neurônios obrigaram a natureza a fazer uma exceção curiosa: todos os demais ossos do nosso corpo estão dentro do próprio corpo e lhe dão sustento; na cabeça, porém, a ossatura envolve o cérebro e lhe dá proteção. Alguma coisa importante deve haver lá dentro.

Nota 19, página 118: Os neurônios motores que nos permitem mover o dedão do pé são bem mais simples. Lula perdeu o dedo mindinho da mão esquerda, foi eleito Presidente da República, e passa bem; Roosevelt perdeu a capacidade motora de suas pernas e continuou dirigindo o país; o cientista Stephen Hawking, imobilizado em uma cadeira de rodas, continua escrevendo livros, mesmo tendo afetada uma boa parte do seu cérebro. Mas, se algum deles tivesse perdido o cérebro inteiro, o mundo estaria à beira de uma catástrofe... como de fato está.

Nota 20, página 120: Ver Feeling and Form, 1953.

Nota 21, página 121: Cf. Nature, setembro 2004.

Nota 22, página 127: From Thales to Plato. Chicago: Phoenix Book, The University of Chicago Press, 1934, 1956, p. 61.

Nota 23, página 129: Os gregos, naquele tempo, não falavam de suas emoções e sentimentos — às vezes nem mesmo de suas opiniões — como se fossem seus, como se fizessem parte deles: era sempre uma paixão autônoma, desejos que vinham de fora (um deus ou deusa) ou de suas entranhas (coração, fígado etc.) que ordenavam ações.

Nota 24, página 129: Inclusive usando uma linguagem chã que eu tenho certeza que não era a do verda­deiro Sócrates, como, por exemplo, comparando os trovões celestes aos peidos terrenos, preocupações bem distantes do filósofo.

Nota 25, página 131: Havia, sim, esboços de democracia na Grécia, que era uma democracia seletiva, exclusiva dos homens livres — não das mulheres, dos escravos, meteques, estrangeiros, crianças e velhos... Se se pode chamar a isso democracia, então, seja.

Nota 26, página 133: Arnold Hauser, Social History of Art.

Nota 27, página 134: Um belo exemplo das diferenças entre metáfora e realidade é uma pintura de Magritte, La condition humaine, pintada em 1933, cujo tema é uma paisagem bucólica vista pela janela de uma sala. A pintura mostra um quadro colocado exatamente no vão dessa janela, impedindo a vista da realidade verdadeira, que o quadro reproduz transubstanciada em óleo.

Outro exemplo são quadros que Van Gogh pintou em Arles, no sul da França, mostrando os jardins do hospício onde esteve internado e a fachada do bar que frequentava. Nestes casos, porém, podemos ver, lado a lado, telas, jardim e a fachada do bar. Quando as cores do bar fenecem, pintores refazem-nas imitando as cores do quadro, que imitavam as cores originais — eis a diferença entre arte e artesanato, ambas majestosas criações humanas, mas diferentes. Quando, porém, fenecem cores e flores do jardim... jardineiros arrancam flores e cores.

Nota 28, página 136: Encycloptzdla Universalis.

Nota 29, página 142: Uma quermesse na igreja, por exemplo, estimula, além da visão, a audição (música ambiental), o paladar e o nariz, com suas guloseimas, o tato, com suas danças.

Nota 30, página 143: Sinal é um estímulo sensorial (som, imagem etc.) convencionado entre pessoas ou de ilação automática, que carrega um significado preciso, limitado: isto quer dizer aquilo! E uma advertência. Já o símbolo, também convencionado, não tem limites. O verde no trânsito é sinal que permite a passagem, enquanto a cor verde é um símbolo de esperança. Pode-se dizer que uma árvore caída da estrada é sinal de que ventou forte, enquanto a mesma árvore caída, pintada em uma tabuleta na beira da estrada, é símbolo de perigo, embora seja sinal de trânsito. O sinal pode também ter adquirido seu significado pela memória: uma nuvem negra é sinal de chuva. Ao signo, atribuem- se poderes mágicos, como aos do horóscopo, ou mnemônicos, como aos heráldicos. Uma insígnia, reveladora de status e de condição social, pode ser fabricada com sinais, símbolos e signos.

Nota 31, página 152:(Famoso massacre em uma escola dos Estados Unidos, onde um estudante, menor de idade, matou dezenas de colegas e professores. Em Virginia Tech (2007) foram mortos)

Nota 32, página 152:(estudantes e professores por um estudante favorável à venda livre das armas de fogo. Depois deste, é triste lembrar, outros assassinatos em massa foram cometidos, sem motivo aparente. Em novembro 2004, noticiou-se que nos Estados Unidos havia sido lançado um novo videogame no qual o usuário se coloca na posição onde estaria Lee Oswald, suposto assassino do presidente, e atira no carro em movimento de John Kennedy: quando acerta o alvo, o sangue se esparrama pelo asfalto virtual...)

Nota 33, página 161: Claro que a maioria dos seres humanos não é, sempre, predatória; a civilização, ainda que de forma desigual em cada país e continente, avançou, está se humanizando - temos que reconhecer avanços. Nem todos, mesmo com os genocídios e hecatombes que temos visto, conservam essa herança malsã dos animais predadores: existem bons governantes, bons maridos, pais e professores, bons juízes e advogados... Nem todos são opressores. Mas temos que evitar a regressão que nos ameaça e avançar com esperanças de maior humanização. Temos que entender que, desde os princípios da História, o mundo foi para a frente ou para trás levado pelas forças sociais em conflito. Nada é estável neste mundo.

Nota 34, página 168: Técnicas latino-americanas de teatro popular. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 1973.

Nota 35, página 169: Quando o CTO começou suas atividades no Brasil em 1986, em comunidades pobres, eram poucos os que se dedicavam a tarefas similares: hoje, dezenas de ONGs se dedicam a programas artísticos semelhantes aos que já existem para a classe média, revelando jovens talentos que vão fazer carreira em telenovelas, bailarinos que vão continuar seus estudos até no Bolshoi de Moscou. Isso é ótimo que aconteça, mas não faz parte dos nossos objetivos.

A aplicação, em comunidades pobres, dos mesmos métodos utilizados pela classe mé­dia e alta, traz no seu bojo a mesma ideologia competitiva e o elogio ao mais capaz: o campeão. Queremos, ao contrário, preparar Multiplicadores de Arte, segundo a nossa máxima de que “Só aprende quem ensina”! Nosso objetivo é atingir todo o tecido social, não revelar talentos excepcionais. Mesmo que os revele.

Nota 36, página 170: Definição do Dicionário Aurélio.

Nota 37, página 170: Julián Boal, em seu ensaio A dança do trabalho, cita pesquisadores que mostram que os movimentos realizados pelos trabalhadores durante o trabalho foram, em muitos casos, a origem de danças bem conhecidas, como a claquete, que vem do som dos passos dos escravos norte-americanos quando pisavam no chão de madeira das casas dos seus senhores, calçando sapatos com ruidosas ferradurinhas, e com o som que produziam conversavam entre si em uma espécie de Código Morse; ou os graciosos movimentos helicoidais das mãos das bailarinas andaluzas dançando flamenco, originados nos movi­mentos de colher frutos das árvores. O malambo, dança argentina, conserva até mesmo as boleadoras, cordas com bolas nas extremidades que os dançarinos usam dançando, como as usadas durante a lida com os cavalos. A capoeira reproduz alguns movimentos dos camponeses cortando cana. O mundo está cheio desses criativos exemplos.

Nota 1, página 184: Existia também o Ethos negativo, como a soberba de Édipo, que desafiava Zeus, criando um conflito ético.

Nota 2, página 185: Como o Cajueiro de Natal, que se estende por uma superfície maior que o estádio Maracanã no Rio de Janeiro, mais de oito mil metros quadrados de superfície, crescido durante 125 anos de paciência. Este fenômeno se explica porque muitos galhos penetram na terra e dela surgem como troncos poderosos, alguns atingindo o lençol freático, hidratando todo o conjunto, mesmo sem chuva. Obra dos multiplicadores criativos!

Nota 3, página 188: Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: Hucitec, 1975.

Nota 4, página 189: Ascèse, askesis, palavra de origem grega que significa treino, exercício mental, com o objetivo de se atingir a compreensão mais ampla dos fenômenos, subir ao mais geral, para melhor se compreender cada caso particular. Não confundir com asceta e ascetismo, que têm a mesma origem grega e são repletas de vestígios e tonalidades religiosas.

Nota 5, página 197: Prometeu: homenagem a um dos Titãs — mais que homens, menos que deuses que ensinou os humanos a fazer o Fogo, que ele havia roubado aos deuses do Olimpo, que o queriam só para si. Foi castigado por Zeus, o supremo ditador celeste, a ser acorrentado em um penhasco onde todos os dias os abutres vinham comer seu fígado, que todas as noites se refazia para tornar o tormento infindável. Prometeu é símbolo daqueles que lutam pela democratização do saber.

Nota 6, página 203: Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

Nota 7, página 204: No dia 16 de maio de 2006, um Stradivarius conhecido pelo nome de The Hammer, fabricado em Cremona, Itália, em 1707, pelo famoso luthier Antonio Stradivarius, foi vendido pela firma Christie's, em Nova York, pela soma de três milhões e meio de dólares, fora do alcance dos nossos grupos populares... Um bom brócolis de feira livre, tamanho médio, sai muito mais barato, embora não tenha a mesma sonoridade...

Nota 8, página 223: Quando assiste a um evento e dele participa, a pessoa vive esse evento; quando conta aos outros o que viveu, vivencia. Como a testemunha diante do juiz.

Nota 9, página 224: Três cenas importantes haviam-se perdido e foram achadas - assim, essa foi a primeira.

Nota 10, página 226: O delírio interpreta erroneamente a realidade que existe — coisas e sons, por exemplo atribuindo-lhe valores e funções que reconhecidamente não são verdadeiros ou não se coadunam com a usual interpretação da percepção coletiva. Em geral, são persecutórios e atribuem a alguém intenções malévolas inexistentes. A alucinação, mais livre, cria uma realidade fictícia — imagens e sons que inexistem e, portanto, não são registrados pelos sentidos, mas estavam bem guardados na memória. Visões de óvnis são delírios, pois algum objeto iluminado apareceu no céu, mesmo que apenas refletido. Santos e demônios, ou a visão de mortos queridos ou temidos, são alucinações.

Delírio e alucinação fazem parte do mesmo processo desvinculante da realidade tal como ela é coletivamente aceita. O delírio pode ser uma forma de racionalizar — dar razão — à alucinação, que pode ter sido o seu estágio anterior, mas pode, igualmente, provocá-la: alucinógeno produto da alucinação.

As formas delirantes afastam-se da realidade objetiva, cuja interpretação é por todos compartida, e instalam-se em uma realidade imaginada, para a qual a todos convida (como no teatro, em um concerto musical ou espetáculo de dança) ou das quais a todos exclui, como no momento criativo solitário do pintor e do compositor.

Nota 11, página 227: Quando o sujeito ainda não está adormecido mas já não se encontra em vigília. Ao acordar, fenômeno semelhante chama-se hipnopômpico.

Nota 12, página 236: Todas as opressões que se exercem na realidade social refletem-se na subjetividade do sujeito, são internalizadas e passam a fazer parte dela. Podemos carregar em nós nossos próprios opressores, coisa que fazemos com perfeição.

As técnicas do arco-íris do desejo devem fazer parte do estudo de opressões claramente sociais e políticas. Do mais íntimo de cada um de nós, devemos chegar às ações concretas.

Nota 13, página 239: Ver Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

Nota 14, página 240: Certos delírios coletivos e históricos, quando socialmente aceitos, podem adquirir feições de verdades dogmáticas. As mitologias religiosas são o melhor exemplo, desde as mais antigas, em que cada fenômeno natural, sentimento ou paixão, cada desejo e cada medo, era representado por um deus ou deusa que personificava essas paixões, desejos etc., até as mais sofisticadas mitologias religiosas modernas, baseadas em impossibilidades científicas, como a geração imaculada de um filho de Deus; o parto pelas axilas de outro deus feito homem; as aparições e revelações secretas de um deus a certos profetas escolhidos, sempre em lugares ermos, inacessíveis, e sem testemunhas que pudessem confirmar esses misteriosos encontros... Curioso é que, aqueles que adotam uma destas crenças recusam todas as outras que têm semelhantes fundamentos mitológicos.

Essas mitologias podem ser entendidas como delírios coletivos estruturados em formas delirantes míticas que, apesar e contra a razão, são socialmente encorajadas, pois, além de darem uma explicação final e imperativa do mundo em que vivemos — a um só tempo, lógica e fantasista —, ajudam a estruturar politicamente a sociedade pelo seu poder anestésico e intimidatório — perpetuando a opressão.

Nota 15, página 242: O Centro do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro desenvolve atualmente um Programa de Teatro do Oprimido na Saúde Mental. CTO‑Rio, Av. Mem de Sá, 31, Lapa, Centro, Rio (021) 2232 5826 (Endereço eletrônico: ctorio@ctorio.org.br).

Nota 16, página 245: Por isso, pode-se educar alguém, mas não se pode pedagogizar ninguém. Pode-se, pedagogicamente, ajudar.

Nota 17, página 246: De certa forma, dois mundos existem, sim: este livro pertence ao mundo das ideias, inspiradas no mundo concreto das sociedades em que trabalho. Os dois mundos são metaxiais — dialogam. Em nós, humanos, um não existe sem o outro.

Nota 18, página 247: Pessoa que provém do cruzamento de pais de raças diferentes.

Nota 19, página 247: Negro e índia, ou vice-versa.

Nota 20, página 247: Branco com índia, ou vice-versa.

Nota 21, página 247: índio com negra, ou vice-versa.

Nota 22, página 247: índio com branca, ou vice-versa.

Nota 23, página 248: Nestas, significantes e significados são indissociáveis — o significado é o próprio significante! Em uma fisionomia de prazer ou dor, o significado não passa pelo sim­bólico da palavra.

Nota 24, página 251: Temos que distinguir também o espaço dramático, fechado em si mesmo, do espaço para o drama, que exige complemento. O primeiro pode ser exemplificado por uma exposição de estátuas em um museu: estátuas e espaço se completam, nada falta. Já o espaço para o drama é aquele em que falta a entrada em cena da figura humana que virá completá-lo.

Nota 25, página 253: Breughel, o Velho (1528-1569), pintou um quadro que muito tem a ver com o que aqui estou dizendo: A queda de Ícaro. Nele, vê-se um camponês arando a terra fértil, enquanto, de ícaro, a única parte que se vê é uma das pernas do seu corpo que se afoga.

Final das notas de rodapé.