Título:
Estrutura da vida cotidiana
Autor:
Agnes Heller
Este
material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998,
não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado
por: Yorhanna Soares
Adaptado
em: agosto de 2022.
Padrão
vigente a partir de março de 2022.
Observações:
erros ortográficos estão presentes no texto original.
Referência:
HELLER, Agnes. Estrutura da vida cotidiana. In: HELLER, Agnes. O cotidiano e a
história. São Paulo: Paz e Terra, 2016. Cap. 2. p. 26-53.
Recurso eletrônico.
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A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem
nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual
e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humano-genérica a
ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao contrário, não
há nenhum homem, por mais “insubstancial” que seja, que viva tão somente na cotidianidade,
embora essa o absorva preponderantemente.
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa
na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade. Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os seus sentidos,
todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus
sentimentos, paixões, ideias, ideologias. O fato de que todas as suas
capacidades se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que
nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe, em toda sua intensidade. O homem
da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e
receptivo, mas não tem nem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente
em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguçá-los em toda sua
intensidade.
A vida cotidiana é, em grande medida,
heterogênea; e isso sob vários aspectos, sobretudo no que se refere ao conteúdo
e à significação ou
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importância de nossos tipos de atividade. São partes orgânicas da vida cotidiana: a
organização do trabalho e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade
social sistematizada, o intercâmbio e a purificação.
Mas a significação da vida cotidiana,
tal como seu conteúdo, não é apenas heterogênea, mas igualmente hierárquica.
Todavia, diferentemente da circunstância da heterogeneidade, a forma concreta
da hierarquia não é eterna e imutável, mas se modifica de modo específico em
função das diferentes estruturas econômico-sociais. Assim, por exemplo, nos
tempos pré-históricos, o trabalho ocupou um lugar dominante nessa hierarquia;
e, para determinadas classes trabalhadoras (para os servos, por exemplo), essa
mesma hierarquia se manteve durante ainda muito tempo; toda a vida cotidiana se
constituía em torno da organização do trabalho, à qual se subordinavam todas as
demais formas de atividade. Em troca, para a população livre da Ática do século
v antes de nossa era ocupavam o lugar central da vida cotidiana a atividade
social, a contemplação, o divertimento (cultivo das faculdades físicas e
mentais), e as demais formas de atividade agrupavam-se em torno destas numa
gradação hierárquica. A heterogeneidade e a ordem hierárquica (que é condição
de organicidade) da vida cotidiana coincidem no sentido de possibilitar uma
explicitação “normal” da produção e da reprodução, não apenas no “campo da
produção” em sentido estrito, mas também no que se refere às formas de
intercâmbio. A heterogeneidade é imprescindível para conseguir essa
“explicitação normal” da cotidianidade; e esse funcionamento rotineiro da hierarquia
espontânea é igualmente necessário para que as esferas heterogêneas se
mantenham em movimento simultâneo.
O homem nasce já inserido em sua
cotidianidade. O amadurecimento do homem significa, em qualquer sociedade, que
o indivíduo adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana da sociedade (camada social) em questão. É adulto quem é capaz de
viver por si mesmo a sua cotidianidade.
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O adulto deve dominar, antes de mais
nada, a manipulação das coisas (das coisas, certamente, que são imprescindíveis
para a vida da cotidianidade em questão). Deve aprender a segurar o copo e a
beber no mesmo, a utilizar o garfo e a faca, para citar apenas os exemplos mais
triviais. Mas, já esses, evidenciam que a assimilação da manipulação das coisas é sinônimo de assimilação das
relações sociais. (Pois não é adulto quem aprende a comer apenas com as
mãos, ainda que também desse modo pudesse satisfazer suas necessidades vitais).
Mas, embora a manipulação das coisas seja idêntica a assimilação das relações
sociais, continua também contendo inevitavelmente, de modo “imanente”, o
domínio espontâneo das leis da natureza. A forma concreta de submissão ao poder
(da natureza) é sempre mediatizada pelas relações sociais, mas o fato em si da
submissão à natureza persiste sempre enquanto tal.
Se a assimilação da manipulação das
coisas (e, eo ipso, a assimilação do domínio da
natureza e das mediações sociais) é já condição de “amadurecimento” do homem
até tornar-se adulto na cotidianidade, o mesmo poder-se-á dizer - e, pelo
menos, em igual medida - no que se refere a assimilação imediata das formas do intercâmbio ou comunicação
social. Essa assimilação, esse “amadurecimento” para a cotidianidade, começa
sempre “por grupos” (em nossos dias, de modo geral, na família, na escola, em
pequenas comunidades). E esses grupos face
to face estabelecem uma mediação entre o indivíduo e os
costumes, as normas e a ética de outras integrações maiores. O homem aprende no
grupo os elementos da cotidianidade (por exemplo, que deve levantar e agir por
sua conta; ou o modo de cumprimentar, ou ainda como comportar-se em
determinadas situações etc.); mas não ingressa nas fileiras dos adultos, nem as
normas assimiladas ganham “valor”, a não ser quando essas comunicam realmente
ao indivíduo os valores das integrações maiores, quando o indivíduo - saindo do
grupo (por exemplo, da família) - é capaz de se manter autonomamente no mundo
das integrações
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maiores, de orientar-se em situações que já não possuem a dimensão do grupo
humano comunitário, de mover-se no ambiente da sociedade em geral e, além
disso, de mover por sua vez esse mesmo ambiente.
A vida cotidiana não está “fora” da
história, mas no “centro” do acontecer histórico: é a verdadeira “essência” da
substância social. Nesse sentido, Cincinato é um símbolo. As grandes ações não
cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e a
ela retornam. Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e
histórica precisamente graças a seu posterior efeito na cotidianidade. O que
assimila a cotidianidade de sua época assimila também, com isso, o passado da
humanidade, embora tal assimilação possa não ser consciente, mas apenas “em-si”.
A vida cotidiana é a vida do indivíduo.
O indivíduo é sempre, simultaneamente,
ser particular e ser genérico. Considerado em sentido naturalista, isso
não o distingue de nenhum outro ser vivo. Mas, no caso do homem, a
particularidade expressa não apenas seu ser “isolado”, mas também seu ser
“individual”. Basta uma folha de árvore para lermos nela as propriedades
essenciais de todas as folhas pertencentes ao mesmo gênero; mas um homem não
pode jamais representar ou expressar a essência da humanidade.
Que caracteriza essa particularidade
social (ou socialmente mediatizada)? A unicidade
e irrepetibilidade são, nesse ponto, fatos
ontológicos fundamentais. Mas o único e irrepetível
converte-se num complexo cada vez mais complexo, que se baseia na assimilação
da realidade social dada e, ao mesmo tempo, das capacidades dadas de manipulação
das coisas; a assimilação contém em cada caso (inclusive no do homem mais
primitivo) algo de momento “irredutível”, "único".
As necessidades humanas tornam-se
conscientes, no indivíduo, sempre sob a forma de necessidades do Eu. O “Eu” tem fome, sente dores
(físicas ou
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psíquicas); no “Eu” nascem os afetos e as paixões. A dinâmica básica da
particularidade individual humana é a satisfação dessas necessidades do “Eu”.
Sob esse aspecto, não há diferença no fato de que um determinado “Eu” identifique-se em si ou conscientemente com a representação
dada do genericamente humano, além de serem também indiferentes os conteúdos
das necessidades do “Eu”.
Todo conhecimento do mundo e toda
pergunta acerca do mundo motivados diretamente por esse “Eu” único, por suas
necessidades e paixões, é uma questão da particularidade individual. “Por que vivo?”, “Que devo esperar do Todo? - são
perguntas desse tipo. A teleologia da particularidade orienta-se - sempre para
a própria particularidade, ou seja, para o indivíduo.
Também o genérico está “contido” em
todo homem e, mais precisamente, em toda atividade que tenha caráter genérico,
embora seus motivos sejam particulares. Assim, por exemplo, o trabalho tem
frequentemente motivações particulares, mas a atividade do trabalho - quando se
trata de trabalho efetivo (isto é, socialmente necessário) - é sempre atividade
do gênero humano. Também é possível considerar como humano-genéricos, em sua
maioria, os sentimentos e as paixões, pois sua existência e seu conteúdo podem ser úteis para expressar e
transmitir a substância humana. Assim, na maioria dos casos, o
particular não é nem o sentimento nem a paixão, mas sim seu modo de
manifestar-se, referido ao eu e colocação a serviço da satisfação das
necessidades e da teleologia do indivíduo.
Enquanto indivíduo, portanto, é o homem
um ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais,
herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o representante do
humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração (tribo,
demos, estamento, classe, nação, humanidade) - bem como, frequentemente, várias
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integrações - cuja parte consciente é o homem e na qual se forma sua “consciência
de nós”.
Não é casual que acentuemos o elemento
“consciência”.
O indivíduo já pertencia à humanidade -
que é a integração suprema - mesmo quando ainda não se formara uma humanidade
unitária, uma história como história universal. (Não podemos aprofundar aqui a
questão das diferenças entre a relação mediatizada e a relação imediata com a
humanidade). Para o homem de uma dada época, o humano-genérico é sempre
representado pela comunidade “através” da qual passa o percurso, a história da
humanidade (e isso mesmo no caso em que o destino dessa integração concreta
seja a catástrofe). Todo homem sempre teve uma relação consciente com essa
comunidade; nela se formou sua “consciência de nós”, além de configurar-se
também sua própria “consciência do Eu”.
Nela explicitou-se a teleologia do
humano-genérico, cuja colocação jamais se orienta para o “Eu”, mas sempre para o “nós”.
O indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano-genérico que funciona
consciente e inconscientemente no homem. Mas o indivíduo é um ser singular que
se encontra em relação com sua própria individualidade particular e com sua
própria genericidade humana; e, nele, tornam-se
conscientes ambos os elementos. É comum a toda individualidade a escolha relativamente livre (autônoma) dos
elementos genéricos e particulares; mas, nessa formulação, deve-se sublinhar
igualmente os termos “relativamente”. Temos ainda de acrescentar que o grau de individualidade pode variar.
O homem singular não é pura e simplesmente indivíduo, no sentido aludido; nas
condições da manipulação social e da alienação, ele se vai fragmentando cada
vez mais “em seus papéis”. O
desenvolvimento do indivíduo é antes de mais nada - mas de nenhum modo
exclusivamente - junção de sua
liberdade fática ou de suas possibilidades de liberdade.
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A explicitação dessas possibilidades de
liberdade origina, em maior ou menor medida, a unidade do indivíduo, a “aliança” de particularidade e genericidade para produzir uma individualidade unitária.
Quanto mais unitária for essa individualidade (pois essa unidade, naturalmente,
é apenas tendência, mais ou
menos forte, mais ou menos consciente), tanto mais rapidamente deixa de ser
aquela muda união vital do genérico e do particular a forma característica da inteira vida. A condição
ontológico-social desse resultado é um relaxamento da relação entre a
comunidade portadora do humano-genérico e o próprio indivíduo, o qual - já
enquanto indivíduo - dispõe de um certo âmbito
de movimento no qual pode escolher sua própria comunidade e seu próprio modo de vida no interior
das possibilidades dadas. A consequência disso é uma certa distância, graças à qual o homem pode
construir uma relação com sua própria comunidade, bem como uma relação com sua
própria particularidade vivida enquanto “dado” relativo.
Mas nem mesmo nesse caso deixa essa
unidade individual de ser mera tendência, mera possibilidade. Na vida
cotidiana, a esmagadora maioria da humanidade jamais deixa de ser, ainda que
nem sempre na mesma proporção, nem tampouco com a mesma extensão, muda unidade vital de particularidade e genericidade. Os dois elementos funcionam em si e
não são elevados à consciência. O fato de se nascer já lançado na cotidianidade
continua significando que os homens assumem como dadas as funções da vida
cotidiana e as exercem paralelamente.
Os choques entre particularidade e genericidade não costumam tornar-se conscientes na vida
cotidiana; ambas submetem-se sucessivamente uma à
outra do aludido modo, ou seja, “mudamente”. Mas isso
não significa que a particularidade se submeta a uma comunidade natural; nesse
ponto, manifesta-se uma diferença de princípio entre a moderna estrutura da
vida cotidiana e a explicitação da estrutura que precedeu o nascimento da
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individualidade. Pois já não existem “comunidades naturais”. Com isso, aumentam as
possibilidades que tem a particularidade de submeter a si o humano-genérico e
de colocar as necessidades e interesses da integração social em questão a
serviço dos afetos, dos desejos, do egoísmo do indivíduo.
Esse aumento de possibilidade - essa
oportunidade de vitória espontânea da particularidade - suscitou a ética como
uma necessidade da comunidade social. As exigências e normas da ética formam a intimação que a integração específica
determinada (e a tradição do desenvolvimento humano) dirige ao indivíduo, a fim
de que esse submeta sua particularidade ao genérico e converta essa intimação
em motivação interior. A ética como motivação (o que chamamos de moral) é algo
individual, mas não uma motivação particular: é individual no sentido de
atitude livremente adotada (com liberdade relativa) por nós diante da vida, da
sociedade e dos homens.
Umas das funções da moral é a inibição,
o veto. A outra é a transformação, a culturalização
das aspirações da particularidade individual. Isso não se refere apenas a vida
do indivíduo, mas também a da humanidade. Por mais intenso que seja o esforço
“transformador” e culturalizador da moral, não se supera sua junção inibidora e essa se
impõe na medida em que a estrutura da vida cotidiana está caracterizada
basicamente pela muda coexistência de particularidade e genericidade.
A vida cotidiana está carregada de
alternativas, de escolhas. Essas escolhas podem ser inteiramente indiferentes
do ponto de vista moral (por exemplo, a escolha entre tomar um ônibus cheio ou
esperar o próximo); mas também podem estar moralmente motivadas (por exemplo,
ceder ou não o lugar a uma mulher de idade). Quanto maior é a importância da moralidade, do compromisso pessoal, da
individualidade e do risco (que vão sempre juntos) na decisão acerca de uma alternativa dada,
tanto mais facilmente essa decisão eleva-se acima da cotidianidade e
tanto menos se pode falar de uma decisão cotidiana. Quanto mais intensa é a
motivação do homem pela moral, isto é, pelo
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humano-genérico, tanto mais facilmente sua particularidade se elevará (através
da moral) à esfera da genericidade. Nesse ponto,
termina a muda coexistência de particularidade e genericidade.
É necessário o conhecimento do próprio Eu, o gnôthi seautón, o
conhecimento e a apaixonada assimilação das intimações humano-genéricas, a fim
de que o homem seja capaz de decidir elevando-se acima da cotidianidade. Kant
buscava no imperativo categórico o critério formal desse comportamento. Na
realidade, nenhum homem é capaz de atuar de tal modo que seu ato se converta em
exemplo universal, já que todo homem atua sempre como indivíduo concreto e numa
situação concreta. Mas o caráter paradigmático existe apesar de tudo, na medida
em que se produz aquela elevação até o genericamente humano.
Temos de introduzir aqui, contudo, duas
restrições. Por um lado, a elevação ao humano-genérico não significa jamais uma
abolição da particularidade. Como se sabe, as paixões e sentimentos orientados
para o “Eu” (para o Eu particular) não desaparecem, mas “apenas” se dirigem
para o exterior, convertem-se em motor da realização do humano-genérico, ou
então permanecem em suspenso - na medida em que inibem a ação moralmente
motivada - enquanto duram as ações correspondentes. Por outro lado, uma decisão
moral, no sentido aqui colocado, deve sempre ser considerada como uma tendência. Não é possível distinguir,
de modo rigoroso e inequívoco, entre as decisões e ações cotidianas e aquelas
moralmente motivadas. A maioria das ações e escolhas tem motivação heterogênea;
as motivações particulares e as genérico-morais encontram-se e se unem, de modo
que a elevação acima do particular-individual jamais se produz de maneira
completa, nem jamais deixa de existir inteiramente, mas ocorre geralmente em maior ou menor medida. Não há
“muralha chinesa” entre as esferas da cotidianidade e da moral. Apenas os
moralistas utilizam motivações morais “puras” e, mesmo eles, o fazem mais na
teoria que na realidade.
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Não se pode falar de “muralha chinesa”,
antes de mais nada, pelo fato de que a herança moral do passado da humanidade e
a exigência moral da época revelam-se ao homem até mesmo nos usos e normas
consuetudinárias da cotidianidade, cuja assimilação pode se produzir de modo
inteiramente espontâneo, sem nenhuma motivação moral. Mas, ainda que essas
normas contivessem motivos morais, a elevação acima da particularidade ou sua
suspensão não anularia o próprio movimento, nem sua existência estaria em
contradição com aquela “muda coexistência”.
Os conflitos extremos e puramente morais se produzem nos casos em que a
motivação moral toma-se determinante e seu impulso, sua finalidade e seu objeto
são entendidos como instrumento de elevação do humano-genérico. O caso
típico desse comportamento - ainda que não o único - é o serviço à comunidade.
Mas o motivo moral manifesta-se igualmente quando, com nosso comportamento
pessoal, representamos o comportamento “correto” do gênero humano (por exemplo,
na atitude do estoico diante da morte natural). O caminho desse comportamento é
a escolha (a decisão), a concentração de todas as nossas forças na
execução da escolha (ou decisão) e a vinculação consciente com a situação escolhida e, sobretudo, com
suas consequências. Numerosas etapas do “caminho” esboçado são também
características das decisões semicotidianas, nas
quais se realiza apenas parcialmente, ou nem mesmo parcialmente, a elevação ao
humano-genérico, a suspensão da particularidade. A escolha e a aceitação das
consequências, por exemplo, formam um só processo. Mas, na cotidianidade, não é
possível concentrar todas as
energias em cada decisão. Um
comportamento de tal tipo estaria em contradição com a estrutura básica da
cotidianidade. Também seria absurdo, de nossa parte, assumir conscientemente as
consequências de uma escolha não praticada pelo indivíduo inteiro. O “ato de
assumir” ou a aceitação são aqui mais ou menos passivos e combinam-se muito bem
com a pergunta característica da
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particularidade: “E por que isso haveria de acontecer precisamente comigo?” O herói da
escolha moral é seu próprio destino; e aquilo que lhe acontece só pode
acontecer a ele. O cume da elevação moral acima da cotidianidade é a catarse. Na catarse, o homem torna-se
consciente do humano-genérico de sua individualidade.
Em nenhuma esfera da atividade humana
(e não apenas no caso da elevação moral), é possível traçar uma linha divisória
rigorosa e rígida entre o comportamento cotidiano e o não cotidiano. (Estamos
pensando, naturalmente, no caso dos comportamentos em que seja possível uma
elevação consciente ao humano-genérico). Basta pensar na esfera política.
Tampouco fazem parte da cotidianidade as escolhas e decisões do amour passion,
por causa da intensidade com que se processam a escolha e a paixão; mas, uma
vez convertido em costume e talvez mesmo em rotina, o amor pode novamente
“dissolver-se” na cotidianidade. [nota 1]
As formas de elevação acima da vida cotidiana que produzem objetivações duradouras são a arte e a ciência. Remetemo-nos, nesse contexto, à profunda análise
realizada por Georg Lukács no capítulo introdutório de sua Estética [nota 2] De acordo com essa análise, o reflexo artístico e o reflexo científico
rompem com a tendência espontânea
do pensamento cotidiano, tendência
orientada ao Eu individual-particular. A arte realiza tal processo
porque, graças à sua essência, é autoconsciência e memória da humanidade; a
ciência da sociedade, na medida em que desantropocentriza
(ou seja, deixa de lado a teologia referida ao homem singular); e a ciência da
natureza, graças a seu caráter desantropomorfizador.
Nem mesmo a ciência e a arte estão separadas da vida do pensamento cotidiano
por limites rígidos, como podemos ver em vários aspectos. Antes de mais nada, o
próprio cientista ou artista têm vida cotidiana: até mesmo os problemas que
enfrentam através de suas objetivações e suas obras lhes são colocados, entre
outras coisas (tão somente entre outros,
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decerto), pela vida. Artista e cientista têm sua particularidade individual
enquanto homens da cotidianidade; essa particularidade pode se manter em
suspenso durante a produção artística ou científica, mas intervém na própria objetivação
através de determinadas mediações (na arte e nas ciências sociais, através da
mediação da individualidade). Finalmente, toda obra significativa volta à
cotidianidade e seu efeito sobrevive na cotidianidade dos outros.
O meio para essa superação dialética [.Aufhebung]
parcial ou total da particularidade, para sua decolagem da cotidianidade e sua
elevação ao humano-genérico, é a homogeneização.
Sabemos que a vida cotidiana é heterogênea, que solicita todas as nossas
capacidades em várias direções, mas nenhuma capacidade com intensidade
especial. Na expressão de Georg Lukács: é o “homem
inteiro” [ganze
Mensch] quem intervém na cotidianidade. O que
significa homogeneização? Significa, por um lado, que concentramos toda nossa
atenção sobre uma única questão
e “suspenderemos” qualquer outra atividade durante a execução da anterior
tarefa; e, por outro lado, que empregamos nossa inteira individualidade humana na resolução dessa tarefa.
Utilizemos outra expressão de Lukács:
transformamo-nos assim em um “homem inteiramente” [Menschen ganz]. E
significa, finalmente, que esse processo não se pode realizar arbitrariamente,
mas tão somente de modo tal que nossa particularidade individual se dissipe na
atividade humano-genérica que escolhemos consciente e autonomamente, isto é,
enquanto indivíduos.
Apenas quando esses três fatores se
verificam conjuntamente é que podemos falar de uma homogeneização que se eleva
totalmente acima da cotidianidade para penetrar na esfera do humano-genérico. O
tipo de homogeneização que só apresenta o primeiro fator, ou seja, a
concentração em uma única tarefa concilia-se ainda perfeitamente com a
cotidianidade, fazendo parte orgânica da mesma. Quando, por exemplo, temos de
assimilar um novo movimento no trabalho, não podemos “pensar em outra coisa”
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enquanto trabalhamos, como acontece, ao contrário, no exercício de movimentos já
assimilados, convertidos em algo mecânico; nesse caso, portanto, suspendemos
qualquer outra atividade. E, quando examinamos uma pessoa para qualificá-la em
algum campo profissional, também homogeneizamos espontaneamente, pois fazemos
abstração das demais propriedades da pessoa que temos diante de nós e
encaramo-la tão somente sob o aspecto de sua adequação ou inadequação para a
prática de um determinado trabalho. Mas, nesse caso, a concentração - a
momentânea homogeneização - não tem consequências posteriores para nós.
É evidente que em tal tipo de
homogeneização não atuou toda nossa inteira individualidade; por isso, a
concentração não implica numa suspensão de nossa particularidade. Mas os atos
de decisão podem igualmente ocorrer num plano “superior”, que ultrapasse em
maior ou menor medida a cotidianidade. Por exemplo: quando um camponês começa a
trabalhar numa fábrica e a assimilação dos movimentos do trabalho vai decidir
se ele é ou não adequado para o trabalho industrial, se poderá ou não abandonar
para sempre a sua aldeia, trata-se de uma prova cujos efeitos destinam-se a
afetar toda a sua vida; durante o exame a que for submetido, portanto, poderão
produzir-se conflitos, até mesmo conflitos morais. Em casos desse tipo, o “Eu”
desempenha um papel decisivo na ação e a decisão torna-se, em maior ou menor
medida, função da individualidade. Decisões desse tipo já transformam, mais ou
menos amplamente, o homem inteiro, apresentando efeitos posteriores: embora
ainda sem predominar, manifesta-se já a homogeneização que abre caminho para o
humano-genérico; nesse ponto, tem início a “saída” da cotidianidade, sem chegar
a consumar-se. A maioria das decisões que tomamos em nossa vida - a maioria das
decisões fáticas - realiza- se nesse plano.
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A homogeneização em direção ao
humano-genérico, a completa suspensão do particular-individual, a transformação
em “homem inteiramente”, é algo totalmente excepcional na maioria dos seres humanos. Nem sequer nas épocas
ricas em grandes comoções sociais existem muitos pontos críticos desse tipo na
vida do homem médio. A vida de muitos homens chega ao fim sem que se tenha
produzido nem um só ponto
crítico semelhante. A homogeneização em direção ao humano-genérico só deixa de
ser excepcional, um caso singular, naqueles indivíduos cuja paixão dominante se orienta para o humano-genérico e, ademais,
quando tem a capacidade de realizar tal paixão. Esse é o caso dos
grandes e exemplares moralistas, dos estadistas (revolucionários), dos artistas
e dos cientistas. De resto, a respeito do grande estadista, do revolucionário
profissional, do grande artista, do grande cientista, deve-se afirmar que não
apenas sua paixão principal, mas também seu trabalho principal, sua atividade
básica, promovem a elevação ao humano-genérico e a implicam em si
mesmos. Por isso, para tais pessoas, a homogeneização em “homem inteiramente” é
elemento necessário de sua essência, da atividade básica de suas vidas.
Mas não se deve esquecer que o artista,
o cientista, o estadista não vivem constantemente
nessa tensão. Possuem também, como todos os outros homens, uma vida cotidiana;
o particular-individual manifesta-se neles, tal como nos demais homens. Tão
somente durante as fases produtivas essa particularidade é suspensa; e, quando
isso ocorre, tais indivíduos se convertem, através da mediação de suas
individualidades, em representantes do gênero humano, aparecendo como
protagonistas do processo histórico global. O estadista que deve convencer as
pessoas do seu meio, a multidão, e levá-las consigo à ação, ou que tem de
influir nos soldados para que tendam a um determinado objetivo, ou de resolver
situações complicadas prevendo suas consequências, esse estadista eleva-se
acima de si mesmo, deixa-se levar (por
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assim dizer) por sua força “invisível” que, com frequência, chama-se de
inspiração, mas que é tão somente a força elevadora da decisão humano-
genérica. O artista parece guiado por uma mão “invisível”, de tal modo que
produz em sua obra algo diverso daquilo que se propunha produzir; é arrastado
pela força da objetividade, que extirpa da sua criação tudo aquilo que, em seu
projeto, pertencia ainda ao individual-particular.
Não podemos aqui estudar detalhadamente
a estrutura da vida cotidiana. Vamos nos limitar a aludir a alguns momentos
dessa estrutura que apresentem importância para os desenvolvimentos
subsequentes.
A característica dominante da vida
cotidiana é a espontaneidade. É
evidente que nem toda atividade
cotidiana é espontânea no mesmo
nível, assim como tampouco uma mesma atividade apresenta-se como identicamente
espontânea em situações diversas, nos diversos estágios de aprendizado. Mas, em
todos os casos, a espontaneidade é a tendência
de toda e qualquer forma de atividade cotidiana. A espontaneidade caracteriza
tanto as motivações particulares (e as formas particulares de atividade) quanto
as atividades humano-genéricas que nela têm lugar. O ritmo fixo, a repetição, a
rigorosa regularidade da vida cotidiana (que se rompem quando se produz a
elevação acima da cotidianidade) não estão absolutamente em contradição com
essa espontaneidade; ao contrário, implicam-se mutuamente. A assimilação do
comportamento consuetudinário, das exigências sociais e dos modismos, a qual,
na maioria dos casos, é uma assimilação não tematizada, já exige para sua
efetivação a espontaneidade. Pois, se nos dispuséssemos a refletir sobre o
conteúdo de verdade material ou formal de cada uma de nossas formas de
atividade, não poderíamos realizar nem sequer uma fração das atividades
cotidianas imprescindíveis; e, assim, tornar-se-iam impossíveis a produção e a
reprodução da vida da sociedade humana. Mas a espontaneidade não se expressa
apenas na assimilação do comportamento consuetudinário e do
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ritmo da vida, mas também no fato de que essa assimilação faz-se acompanhar
por motivações efêmeras, em
constante alteração, em permanente aparecimento e desaparecimento. Na maioria
das formas de atividade da vida cotidiana, as motivações do homem não chegam a
se tornar típicas, ou seja, as motivações, em permanente alteração, estão muito
longe de expressar a totalidade, a essência do indivíduo. O mesmo pode ser dito
da maioria das motivações explicitamente formuladas, embora em menores
proporções que no caso das motivações “mudas”.
Na vida cotidiana, o homem atua sobre a
base da probabilidade, da
possibilidade: entre suas atividades e as consequências delas, existe uma
relação objetiva de probabilidade. Jamais é possível, na vida cotidiana,
calcular com segurança científica a consequência possível de uma ação. Nem
tampouco haveria tempo para fazê-lo na múltipla riqueza das atividades
cotidianas. Ademais, isso nem mesmo é necessário: no caso médio, a ação pode
ser determinada por avaliações probabilísticas suficientes para que se alcance
o objetivo visado. Os conceitos de caso “médio” e segurança “suficiente”
apresentam, nesse contexto, a mesma importância. O primeiro indica o fato de
que são perfeitamente possíveis casos em que fracassam as considerações
probabilísticas. Nesses casos, podemos falar de catástrofes da vida cotidiana. Considerações probabilísticas
utilizamos, por exemplo, ao cruzar a rua: jamais calculamos com exatidão nossa
velocidade e aquela dos veículos. Até
agora nunca fomos parar debaixo de um carro, embora isso possa ocorrer;
mas se, antes de atravessarmos, resolvéssemos
realizar cálculos cientificamente suficientes, jamais chegaríamos a nos mover.
Também o conceito de “suficiência” indica uma fronteira dúplice. Significa que,
na cotidianidade, podemos efetivamente nos orientar e atuar com a ajuda de
avaliações probabilísticas, na medida em que, abaixo dessa linha, na esfera da
mera possibilidade, ainda não
podemos consegui-lo e, por cima da correspondente
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fronteira superior, na esfera da segurança científica, já não mais o necessitamos. Decerto, essa situação implica no risco
da ação baseada na probabilidade; mas não se trata de um risco autonomamente
assumido, e sim de um risco imprescindível e necessário para a vida.
Precisamente nisso ele se diferencia dos riscos da individualidade, que são
riscos morais.
Já a existência dessa ação realizada
sobre a base da probabilidade indica o economicismo da vida
cotidiana. Toda categoria da
ação e do pensamento manifesta-se e funciona exclusivamente enquanto é
imprescindível para a simples continuação da cotidianidade; normalmente, não se
manifesta com profundidade, amplitude ou intensidade especiais, pois isso destruiría a rígida “ordem” da cotidianidade. E, quando
efetivamente se manifesta com maior intensidade, dissolve fatalmente essa
ordem, tanto nos casos em que tende “para cima”, elevando-nos ao
humano-genérico, fato que jamais pode caracterizar a totalidade de nossa vida,
quanto naqueles em que tende “para baixo”, a ponto de - como aconteceu a Oblomov - incapacitar-nos para a vida.
O pensamento cotidiano orienta-se para
a realização de atividades cotidianas e, nessa medida, é possível falar de
unidade imediata de pensamento
e ação na cotidianidade. As ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam
ao plano da teoria, do mesmo modo como a atividade cotidiana não é práxis. A
atividade prática do indivíduo só se eleva ao nível da práxis
quando é atividade humano-genérica
consciente; na unidade viva e muda de particularidade e genericidade, ou seja, na cotidianidade, a atividade
individual não é mais do que uma parte
da práxis, da ação total da humanidade que, construindo a partir do dado,
produz algo novo, sem com isso transformar em novo o já dado.
A unidade imediata de pensamento e ação
implica na inexistência de diferença entre “correto” e “verdadeiro” na
cotidianidade; o correto é também
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“verdadeiro”.
Por conseguinte, a atitude da vida cotidiana é absolutamente pragmática.
Todavia, deve-se esclarecer e
complementar essa afirmação acerca da igualdade de correto e verdadeiro na vida
cotidiana. O pensamento cotidiano apresenta-se repleto de pensamentos
fragmentários, de material cognoscitivo e até de juízos que nada têm a ver com
a manipulação das coisas ou com nossas objetivações coisificadas, mas que se referem exclusivamente a nossa orientação
social. Na manipulação das coisas ou de nossas objetivações
coisificadas, a identificação espontânea do “correto” e do “verdadeiro” é a
problemática (pelo menos no plano da vida cotidiana, pois aqui não falamos da
ciência). Mas essa aproblematicidade termina quando
utilizamos o “correto” para avaliar a possibilidade de nos movermos num meio
determinado e de movermos esse mesmo meio determinado. Nesse caso, o correto é
verdade tão somente na medida em que, com sua ajuda, pudermos prosseguir na
cotidianidade com os menores atritos possíveis. Isso nada significa com relação
ao conteúdo veritativo
objetivo (independente de nossa atividade individual) do pensamento ou
do juízo em questão. (Naturalmente, a atividade individual é aqui muito poucas
vezes completamente individual;
em geral, é uma projeção das aspirações e dos interesses de uma camada ou
classe social). Até mesmo os juízos e pensamentos objetivamente menos
verdadeiros podem resultar corretos na atividade social, quando representarem
os interesses da camada ou classe a que pertence o indivíduo e, desse modo,
facilitarem a esse a orientação ou a ação correspondente às exigências
cotidianas da classe ou camada em questão. É indiscutível que uma ação
correspondente aos interesses de uma classe ou camada pode se elevar ao plano da práxis, mas nesse caso superará o da cotidianidade; a teoria
da cotidianidade, nesses casos, converte-se em ideologia, a qual assume uma certa independência relativa diante
da práxis cotidiana, ganha vida própria e, consequentemente, coloca-se em
relação primordial não
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com a atividade cotidiana mas com a práxis. Não será demais repetir aqui
que não existe nenhuma “muralha chinesa” entre a atividade cotidiana e a práxis
não cotidiana ou o pensamento não cotidiano, mas existem infinitos tipos de
transição.
Deduz-se, do exposto, que a fé e a
confiança desempenham na vida cotidiana um papel muito mais importante que nas
demais esferas da vida. Isso não significa, de modo algum, que a fé e a
confiança sejam aqui mais intensas
que em outros campos: a fé religiosa costuma ser mais intensa e mais
incondicional, assim como a confiança tem significação mais intensa e
emocionalmente maior na ética ou na atividade política. O que queremos dizer é
que esses dois sentimentos “ocupam mais espaço” na cotidianidade, que sua
função mediadora torna-se necessária em maior número
de situações. Os homens não podem dominar o todo com um golpe de vista em nenhum aspecto da realidade; por
isso, o conhecimento dos contornos básicos da verdade requer confiança (em
nosso método científico, na cognoscibilidade da realidade, nos resultados
científicos de outras pessoas etc.). Na cotidianidade, o conhecimento se limita
ao aspecto relativo da atividade, e, por isso, o “espaço” da confiança e da fé
é inteiramente diverso. Ao astrônomo, não basta ter fé em que a Terra gira em
redor do Sol; mas, na vida cotidiana, essa fé é plenamente suficiente. Não
basta ao médico acreditar na ação terapêutica de um remédio, mas essa fé é
suficiente para o enfermo (e precisamente na base de uma simples fé posta no
médico ou na medicina, com maior ou menor fundamento empírico). Esses exemplos
já são suficientes para indicar que não estamos aqui em face de contradições
insolúveis, mas de modos de comportamento “relacionados entre si”. Quando o
médico atua na base da confiança (coisa que ocorre frequentemente), está
atuando na base da cotidianidade. E, em troca, quando num dado momento da vida
cotidiana - o indivíduo começa a refletir acerca de uma superstição que
compartilhava, ou
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de uma tese que
assimilou da integração de que faz parte, passando a supor que nem uma nem
outra são aceitáveis porque contradizem a experiência, e, logo após, começa a
examinar o objeto posto em questão comparando-o com a realidade, para terminar
recusando-o, em tal momento o referido indivíduo elevou-se acima do decurso
habitual do pensamento cotidiano, ainda que apenas em tal momento.
Temos falado de fé e de confiança, até
aqui, de modo global. Neste contexto, não podemos analisar a questão da
diferença entre esses afetos, a qual se manifesta apesar da frequente
comunidade de função dos mesmos; limitar-nos-emos a precisar que a confiança é um afeto do indivíduo inteiro
e, desse modo, mais acessível à experiência, à moral e à teoria do que a fé,
que se enraíza sempre no individual-particular.
Dado que o pensamento cotidiano é pragmático,
cada uma de nossas atividades cotidianas faz-se acompanhar por uma certa fé ou
uma certa confiança. Não há lugar para a fé quando está em jogo a “justeza” da
manipulação ou da objetivação coisificada; em princípio, basta a experiência
para realizar as correções necessárias. Depende da totalidade, da
individualidade do homem e da situação social dada qual será o afeto
fundamental do movimento no meio social, no qual a unidade de correto e
verdadeiro manifesta-se de modo mais problemático.
O característico do pensamento
cotidiano é a ultrageneralização, seja em suas formas “tradicionais”,
seja como consequência da experiência individual. Os juízos ultrageneralizadores
são todos eles juízos provisórios
que a prática confirma ou, pelo menos, não refuta, durante o tempo em que,
baseados neles, formos capazes de atuar e de nos orientar. Se o afeto
“confiança” adere a um juízo provisório, não representa nenhum “preconceito” o
fato de se ter “apenas” juízos provisórios ultrageneralizados;
como vimos, nem sequer é possível formular a exigência, tanto no começo quanto
durante a ação, de
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juízos mais precisos, sob pena de perdermos a capacidade de ação. Mas, quando
já não se trata da orientação na vida cotidiana e sim de nossa inteira
individualidade de nossa integridade moral e de seu desenvolvimento superior,
caso em que só podemos operar com juízos provisórios pondo em risco essa
integridade, então deveremos ter a capacidade de abandoná-los ou modificá-los.
Isso poderá ser feito quando o juízo se apoiar na confiança, mas não quando se
basear na fé. Os juízos provisórios que se enraizam
na particularidade e, por conseguinte, se baseiam na fé são pré-juízos ou preconceitos.[nota 3]
Os juízos provisórios (e os
preconceitos) são meros exemplos particulares de ultrageneralização.
Pois é característico da vida cotidiana em geral o manejo grosseiro do “singular”. Sempre reagimos a situações
singulares, respondemos a estímulos singulares e resolvemos problemas
singulares. Para podermos reagir, temos de subsumir o singular, do modo mais
rápido possível, sob alguma universalidade; temos de organizá-lo em nossa atividade cotidiana, no conjunto de nossa
atividade vital; em suma, temos de resolver
o problema. Mas não temos tempo para examinar todos os aspectos do caso
singular, nem mesmo os decisivos: temos de situá-lo o mais rapidamente possível
sob o ponto de vista da tarefa colocada. E isso só se torna possível graças à
ajuda dos vários tipos de ultrageneralização. É
assim, por exemplo, que se recorre à analogia.
É através dela que, principalmente, funciona o nosso conhecimento cotidiano do
homem, sem o qual não poderíamos sequer nos orientar; classificamos em algum
tipo já conhecido por experiência o homem que agora queremos conhecer sob algum
aspecto importante para nós e essa classificação por tipos permite nossa
orientação. Tão somente a posteriori torna-se
“evidente” na prática que podemos dissolver aquela analogia e conhecer o
fenômeno singular - nesse caso, o homem em questão - em sua concreta totalidade
e, assim, avaliá-lo e compreendê-lo. Decerto, o juízo
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provisório de analogia pode se cristalizar em preconceito; pode ocorrer que já não
prestemos atenção a nenhum fato posterior que contradiga abertamente nosso
juízo provisório, tanto podemos nos manter submetidos à força de nossas
próprias tipificações, de nossos preconceitos. Desse modo, o juízo provisório
analógico é inevitável no conhecimento cotidiano dos homens, mas está exposto
ao perigo da cristalização (fossilização); e, embora inicialmente o tratamento
grosseiro do singular não seja prejudicial, pode converter-se num dano
irreparável se se conserva após ter cumprido sua função. Pode tratar-se de um
erro moral, caso em que a orientação na vida cotidiana não será “perturbada”;
mas também pode ser um erro capaz de acarretar uma das catástrofes da vida
cotidiana.
Algo parecido ocorre no caso do uso dos
precedentes. O precedente tem
mais importância para o conhecimento da situação que para o conhecimento das
pessoas. É um “indicador” útil para nosso comportamento, para nossa atitude.
(“Outros agiram nessa situação em que me encontro desse ou daquele modo”, “já
havia exemplos disso” etc.) Sem essa atitude, nós nos veremos constantemente na
situação do asno de Buridan. Por isso, em princípio,
não se trata de um “mal”. Essa atitude tem efeitos negativos, ou mesmo
destrutivos, apenas quando nossa percepção do precedente nos impede de captar o
novo, irrepetível e único de uma situação.
Não há vida cotidiana sem imitação. Na assimilação do sistema
consuetudinário, jamais procedemos meramente “segundo preceitos”, mas imitamos
os outros; sem mimese, nem o trabalho nem o intercâmbio seriam possíveis. Como
sempre, o problema reside em saber se somos capazes de produzir um campo de
liberdade individual de movimentos no
interior da mimese, ou, em caso extremo, de deixar de lado completamente os costumes miméticos e configurar
novas atitudes. Naturalmente, existem na vida cotidiana setores nos quais não é
necessária a individualização da mimese,
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bem como épocas nas quais ela se torna supérflua; ademais, os tipos e os
graus de individualização são necessariamente diversos nas várias esferas
vitais, nas diferentes épocas e situações.
A entonação tem uma grande importância na vida cotidiana, tanto na
configuração de nosso tipo de atividade e de pensamento quanto na avaliação dos
outros, na comunicação etc. O aparecimento de um indivíduo em dado meio “dá o
tom” do sujeito em questão, produz uma atmosfera tonal específica em torno dele
e que continua depois a envolvê-lo. A pessoa que não produz essa entonação
carece de individualidade, ao passo que a pessoa incapaz de percebê-la
é insensível a um aspecto importantíssimo das relações humanas. Mas
conservar-se preso a essa realidade tonal seria outro tipo de ultrageneralização, mais no terreno emocional, nesse caso,
que naquele dos juízos. Talvez fosse possível aplicar a esse fenômeno o termo
“preconceito emocional”. O fenômeno apresenta-se frequentemente ligado ao
preconceito baseado na ultrageneralização.
Todos esses momentos característicos do
comportamento e do pensamento cotidianos formam uma conexão necessária, apesar
do caráter aparentemente casual da “seleção” em que aqui se apresentam. Todos
têm em comum o fato de serem necessários para que o homem seja capaz de viver
na cotidianidade. Não há vida
cotidiana sem espontaneidade, pragmatismo, economicismo,
andologia, precedentes, juízo provisório, ultrageneralização, mimese e entonação. Mas as
formas necessárias da estrutura e do pensamento da vida cotidiana não devem se cristalizar em absolutos, mas têm
de deixar ao indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de
explicitação. (Isso tem grande importância para o que diremos mais adiante.) Se
essas formas se absolutizam, deixando de possibilitar
uma margem de movimento, encontramo-nos diante da alienação da vida cotidiana.
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Deve-se afirmar, antes de mais nada,
que alienação é sempre alienação em
face de alguma coisa e, mais precisamente, em face das possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da
humanidade. A mimese do mesmo tipo, fenômeno generalizado na época em
que ainda não se havia desenvolvido o indivíduo moderno, mas presente
formalmente também em nossos dias, nas mesmas proporções, deve ser entendida
como produto da alienação apenas nesse último caso, pois as possibilidades
configuradas na humanidade a partir daquele então exigem já uma orientação
amplamente individual.
A vida cotidiana, de todas as esferas
da realidade, é aquela que mais se
presta à alienação. Por causa da coexistência “muda”, em-si, de particularidade e genericidade,
a atividade cotidiana pode ser atividade humano-genérica não consciente, embora
suas motivações sejam, como normalmente ocorre, efêmeras e particulares. Na
cotidianidade, parece “natural” a desagregação, a separação de ser e essência.
Na coexistência e sucessão heterogêneas das atividades cotidianas, não há por
que revelar-se nenhuma individualidade unitária; o homem devorado por e em seus
“papéis” pode orientar-se na cotidianidade através do simples cumprimento
adequado desses “papéis”. A assimilação espontânea das normas consuetudinárias
dominantes pode converter-se por si mesma em conformismo, na medida em que
aquele que as assimila é um indivíduo sem “núcleo”; e a particularidade que aspira
a uma “vida boa” sem conflitos reforça ainda mais esse conformismo com a sua
fé.
Mas a estrutura da vida cotidiana,
embora constitua indubitavelmente um terreno propício à alienação, não é de nenhum modo necessariamente
alienada. Sublinhemos, mais uma vez, que as formas de pensamento e
comportamento produzidas nessa estrutura podem perfeitamente deixar ao
indivíduo uma margem de movimento e possibilidades de explicitação,
permitindo-lhe - enquanto unidade consciente do humano-genérico e do
individual-particular - uma condensação “prismática”, por assim dizer, da
experiência da
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cotidianidade, de tal modo que essa
possa manifestar-se como essência unitária das formas heterogêneas de
atividades próprias da cotidianidade e nelas objetivar-se. Nesse caso, o ser e
a essência não se apresentam separados e as formas de atividade da
cotidianidade não aparecem como formas alienadas, na proporção em que tudo isso
é possível para os indivíduos de uma dada época e no plano máximo da
individualidade - e, por conseguinte, de desenvolvimento do humano-genérico -
característico de tal época. Quanto maior for a alienação produzida pela
estrutura econômica de uma dada sociedade, tanto mais a vida cotidiana
irradiará sua própria alienação para as demais esferas.
Existe alienação quando ocorre um
abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e as possibilidades de
desenvolvimento dos indivíduos humanos, entre a produção humano-genérica e a
participação consciente do indivíduo nessa produção. Esse abismo não teve a
mesma profundidade em todas as épocas nem para todas as camadas sociais; assim,
por exemplo, fechou-se quase completamente nas épocas de florescimento da polis
ática e do Renascimento italiano; mas, no capitalismo moderno, aprofundou-se
desmesuradamente. Ademais, tal abismo jamais foi inteiramente insuperável para
o indivíduo isolado: em todas as épocas, sempre houve um número maior ou menor
de pessoas que, com ajuda de seu talento, de sua situação, das grandes
constelações históricas, conseguiu superá-lo. Mas, para a massa, para o grande
número dos demais, subsistiu o abismo, quer quando era muito profundo, quer
quando mais superficial.
Como dissemos, o moderno
desenvolvimento capitalista exacerbou ao extremo essa contradição. Por isso, a
estrutura da cotidianidade alienada começou a expandir-se e a penetrar em
esferas onde não é necessária, nem constitui uma condição prévia da orientação,
mas nas quais aparece até mesmo como obstáculo para essa última.
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Não se trata de afirmar que as
categorias da cotidianidade sejam alheias às esferas não cotidianas. Basta
aludir à função desempenhada pelos precedentes na atividade política, pela
analogia na comparação científica e artística, pela mimese ou pela entonação na
arte. Mas essa limitada comunidade ou universalidade de categorias jamais
significou uma identidade estrutural com, ou uma assimilação pelas,
formas de atividade e conteúdos da
cotidianidade. Em troca, a ciência moderna, ao colocar-se sobre fundamentos
pragmáticos, “absorve”, assimila a estrutura cotidiana; e, quando a arte
moderna decide escolher como temas as efêmeras motivações e resolve fazer
abstração da essência da vida humana, da constante oscilação e da interação
entre a cotidianidade e a não cotidianidade, a cotidianidade absorve inclusive
a arte. A aludida estrutura, que na cotidianidade não aparece como um fenômeno
de alienação, é necessariamente manifestação de alienação na arte, na ciência,
nas decisões morais e na política. E é evidente, com efeito, que a estrutura
cotidiana só começa a expandir-se “para cima” quando ela própria já é alienada.
Repetimos: a vida cotidiana não é
alienada necessariamente em consequência de sua estrutura, mas apenas em
determinadas circunstâncias sociais. Em todas as épocas, existiram
personalidades representativas que viveram numa cotidianidade não alienada; e,
dado que a estruturação científica da sociedade possibilita o final da
alienação, essa possibilidade encontra-se aberta a qualquer ser humano.
Mas isso não significa, de nenhum modo,
que a vida de qualquer homem torne-se humano-genérica
em sua atividade principal no trabalho e nas objetivações. Humanização da vida
cotidiana não quer dizer que os homens vão receber a inteligência de Planck, a
mão de Menuhin ou as capacidades políticas de Lênin.
Trata-se de algo que pode ser expresso com as palavras de
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Goethe: todo homem pode ser completo,
inclusive na cotidianidade. Mas de que modo?
Sabemos que a vida cotidiana tem sempre
uma hierarquia espontânea determinada pela época (pela produção, pela
sociedade, pelo posto do indivíduo na sociedade).
Essa hierarquia espontânea possibilita
à individualidade uma margem de movimento diferente em cada caso. Na época
iniciada com a explicitação da sociedade burguesa, essa margem se ampliou, pelo
menos em princípio. Possibilidades sempre existiram; mas, a partir do momento
em que a relação de um homem com sua classe tornou-se “casual” (Marx), aumentou
para todo homem a possibilidade de construir
para si uma hierarquia consciente, ditada por sua própria personalidade, no interior
da hierarquia espontânea. Contudo, as mesmas relações e situações
sociais que criaram essa nova possibilidade impediram, no essencial, seu
desenvolvimento; no momento da superação dialética do conjunto da sociedade, ou
seja, com o fim da alienação, poder-se-á contar com a máxima explicitação
daquela possibilidade. Ainda com as palavras de Goethe, podemos chamar de
“condução da vida” (Lebensführung) a construção dessa hierarquia da
cotidianidade efetuada pela individualidade consciente.
“Condução da vida”, portanto, não
significa abolição da hierarquia espontânea da cotidianidade, mas tão somente
que a “muda” coexistência da particularidade e da genericidade
é substituída pela relação consciente do indivíduo com o humano-genérico e que
essa atitude - que é, ao mesmo tempo,
um “engagement” moral, de concepção do mundo, e uma
aspiração à autorrealização e à autofruição
da personalidade “ordena” as várias e heterogêneas atividades da vida. A
condução da vida supõe, para cada um, uma vida própria, embora se mantendo a
estrutura da cotidianidade; cada qual deverá apropriar-se a seu modo da realidade e impor a ela a marca de
sua personalidade. É claro que a
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condução da vida é sempre apenas uma tendência de realização mais ou menos
perfeita. E é condução da vida porque sua perfeição é função da individualidade
do homem e não de um dom particular ou de uma capacidade especial.
Como vimos, a condução da vida não pode
se converter em possibilidade social universal a não ser quando for abolida e
superada a alienação. Mas não é impossível
empenhar-se na condução da vida mesmo enquanto as condições gerais
econômico-sociais ainda favorecem a alienação. Nesse caso, a condução da vida
torna-se representativa,
significa um desafio à desumanização, como ocorreu no estoicismo ou no
epicurismo. Nesse caso, a “ordenação” da cotidianidade é um fenômeno nada
cotidiano: o caráter representativo, “provocador”, excepcional, transforma a própria ordenação da
cotidianidade numa ação moral e politica.
Página notas
de rodapé
Nota 1,
página 27: O
conceito de “dissolução” não tem aqui sentido pejorativo, mas pretende apenas
caracterizar a diferença entre cotidianidade e não cotidianidade.
Nota 2, página 27:
Georg Lukács, Werke, vol. 11, Àsthetik I, t. 1, Luchterhand, Neuwied e Berlim, pp. 33-138. Probleme der Widerspiegelung
in Alltagsleben [Problemas do reflexo na vida
cotidiana].
Nota 3, página 37:
Estudei detalhadamente os preconceitos no livro Tarsadalmi nerep és
[Papel social e preconceitos], publicado em húngaro pela Akadémiai
Kiadó, 1996.