Título: Capital, Estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento

Autor: Áquilas Mendes e Leonardo Carnut

Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

Adaptado por: Bruno Trindade

Adaptado em: Maio de 2025.

Padrão vigente a partir de março de 2022.

Observações gerais: Texto original apresenta alguns caracteres não identificados.

 

Referência: MENDES, Aquilas; CARNUT, Leonardo. Capital, estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento. SER Social: Estado, Democracia e Saúde, Brasília, v. 22, n. 46, p. 9–32, jan./jun.2020.


P. 9

 

SER Social

ESTADO, DEMOCRACIA E SAÚDE

Brasília, v. 22, n. 46, janeiro a junho de 2020

 

Capital, Estado, crise e a saúde pública brasileira: golpe e desfinanciamento

Capital, State, crisis and brazilian public health: coup and de-financing / Capital, Estado, crisis y la salud pública brasileña: golpe y desfinanciamiento

Áquilas Mendes [nota 1]

Leonardo Carnut [nota 2]

 

Resumo: O objetivo deste artigo é decifrar os sentidos da crise da saúde pública brasileira, por meio do seu insuficiente financiamento, explicitando a relação orgânica entre o Estado e o Capital, imbricando crises econômicas,

 


P.10

 

políticas e sociais. Ele está organizado em três partes. A primeira evidencia a crise capitalista contemporânea, apresentando as suas três tendências explicativas, com destaque para a tendência da queda da taxa de lucro, a centralidade do capital fictício nas relações econômicas e sociais e o papel do Estado, com ajustes austeros permanentes, à medida que é parte integrante das relações capitalistas de produção. A segunda, debate os movimentos da lógica do Estado capitalista na América Latina, com especial enfoque ao Estado brasileiro, apresentando o desdobramento do golpe recente de 2016. A terceira, aborda a trajetória do subfinanciamento do SUS como decorrente dos rebatimentos da crise do capitalismo, passando a se constituir em um processo de desfinanciamento.

 

Palavras-chave: capitalismo; Estado; financiamento da saúde; política; crítica.

 

Abstract: The article aims to decipher the meanings of the Brazilian public health crisis, through its inadequate financing, conceiving the organic relationship between the State and Capital, intertwining economic, political and social crises. It is organized in three parts. The first shows the contemporary capitalist crisis, presenting its three explanatory tendencies, highlighting the tendency of the fall in the rate of profit, the centrality of fictious capital in economic and social relations and the role of the State, with permanent austerity settings, as it is an integral part of capitalist relations. The second part discusses the movements of the logic of the capitalist state in Latin America, with a special focus on the State in Brazil, presenting the unfolding of the recent coup of 2016. The third part discusses the trajectory of SUS underfunding as a result of the rebuffs of the capitalism crisis, becoming a process of lack of investment.

 

Keywords: capitalism; State; health financing; politics; comment.

 

Resumen: El objetivo de este artículo es descifrar los sentidos de la crisis de la salud pública brasilena, a través de su insuficiente financiamiento explicitando la relación orgánica entre el Estado y el Capital, imbricando sus diferentes crisis. La primera parte evidencia la crisis capitalista contemporánea, presentando sus tres tendencias explicativas, con destaque a la tendencia de la caída de la tasa de ganancia, con la centralidad del capital ficticio en las relaciones económicas y sociales y el papel del Estado, con ajustes austeros permanentes, a medida que es parte integrante de estas relaciones. La segunda discute los movimientos de la lógica del Estado capitalista en América Latina, con especial atención al Estado brasileno, presentando el desdoblamiento del golpe reciente de 2016. La tercera aborda la trayectoria del subfinanciamiento del SUS como consecuencia de los rebatimentos de la crisis del capitalismo, pasando a constituirse en un proceso de desfinanciamiento.


P.11

 

Palabras clave: capitalismo; Estado; financiamiento de la salud; política; crítica.

 

Introdução

 

Parece não ser surpresa, no capitalismo contemporâneo, ocorrer permanentes ataques às políticas de direitos sociais, em particular à saúde pública universal no Brasil, intensificando a fragilidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de três décadas de existência desse sistema com recorrentes embates e sinais claros de redução de sua sustentabilidade financeira.

Recentemente, os brasileiros e as brasileiras foram comunicados sobre a perda de R$ 9,7 bilhões no financiamento do SUS, acumulado nos últimos dois anos de 2018 e 2019(SANTOS; FUNCIA, 2019), em plena vigência da Emenda Constitucional n° 95/2016 que congelou o gasto público por 20 anos. Entende-se, assim, que o já conhecido sistema de saúde subfinanciado, há três décadas (MENDES; CARNUT, 2018), desloca-se para uma nova trajetória, a de um “desfinanciamento”.

A pergunta que não deixa de ser importante fazer é: por que existe esse movimento de constante piora na garantia dos direitos sociais e do acesso universal à saúde, ao longo de tantos anos? Nosso raciocínio deve ir além de simples constatações conjunturais.

Não se trata apenas de uma crise restrita ao trágico desdobramento do golpe institucional de 2016, acompanhado de uma blindagem da democracia aos interesses dos setores populares (DEMIER, 2017). Não se trata de uma crise limitada à ofensiva conservadora do governo Bolsonaro contra os direitos sociais e democráticos (ARCARY, 2019). Trata-se de reconhecer a dimensão da crise na saúde pública como parte integrante da crise do capitalismo em suas formas sociais determinantes: a crise da forma mercadoria, no que diz respeito à acumulação e à valorização do valor; a crise da forma política estatal, sobre as crescentes “modalidades privatizantes de gestão das políticas sociais” e dos ajustes fiscais permanentes; e da crise da forma jurídica consoante com a forma política estatal, evidenciando


P.12

 

a crise da forma direito (PACHUKANIS, 2017; MASCARO, 2018), em particular, do direito à saúde.

É com este entendimento que o presente artigo tem como objetivo decifrar os sentidos da crise da saúde pública brasileira, por meio de seu frágil e poroso financiamento, ancorados na crise do capitalismo contemporâneo, em que se torna explícita a relação orgânica entre o Estado e o capital, imbricando crises econômicas, políticas e sociais.

O artigo está organizado em três partes. A primeira evidencia a crise capitalista contemporânea, apresentando as suas três tendências explicativas, com destaque para a tendência da queda da taxa de lucro, a centralidade do capital fictício nas relações econômicas e sociais e o papel do Estado capitalista, à medida que é parte integrante das relações capitalistas de produção. A segunda parte debate os movimentos da lógica do Estado capitalista na América Latina, com enfoque ao Estado no Brasil, apresentando o desdobramento do golpe recente de 2016 e as crises decorrentes. A terceira parte aborda a trajetória do subfinanciamento do SUS como decorrente da crise do capitalismo e da atuação do Estado capitalista, passando a se constituir num processo de desfinanciamento.

 

Capital e Estado na crise contemporânea

 

Já se passou mais de uma década em que as economias capitalistas vêm experimentando um período de “longa depressão” (ROBERTS, 2016) desde o crash de 2007/2008. Numa escala global, a recessão resultante do colapso do banco Lehman Brothers, em 2008, foi superada por um longo período que combina baixo investimento e reduzido crescimento da produtividade, em virtude de uma menor lucratividade dos setores produtivos e uma aceleração no campo da especulação financeira. A taxa de lucro nos Estados Unidos, particularmente no setor corporativo das empresas industriais e financeiras, reduziu-se de um pouco mais de 20%, em 1950, para menos de 7%, em 1982, passando a oscilar nessa posição, desde então, até os anos 2000. (KLIMAN, 2012).

A crise capitalista também ecoa no Brasil e não se percebe uma recuperação em relação ao período pré-crise (2014). Entre 2015-2016,


P.13

 

o Brasil apresentou uma contração de 7,5% em seu PIB real. Em 2017, o crescimento do PIB foi de apenas 1% e, em 2018, repetiu-se quase o mesmo comportamento de 1,5%. Dessa forma, o nível atual da economia, em média, é 5% inferior ao período anterior à crise (LACERDA, 2019). É importante acrescentar que a crise capitalista no Brasil também provocou um declínio da taxa de lucro entre 2003-2014, passando de 28% a 23%. (MARQUETI; HOFF; MIEBACH, 2017).

Ao se comentar a crise contemporânea do capitalismo, especialmente a partir dos anos 1970-1980, pode-se dizer que ela se ancora na articulação de duas principais tendências: a de queda da taxa de lucro nas economias capitalistas, com destaque para o período posterior da II Grande Guerra; e, como resposta a essa tendência, o sistema capitalista reforça a valorização financeira, com o capital fictício passando a ocupar a liderança na dinâmica do capitalismo, nesse período, apropriando-se dos fundos públicos. (CHESNAIS, 2016).

Ainda que, a partir de 1980, tenha sido possível observar uma leve recuperação da taxa de lucro, p. ex., na economia norte-americana, ela foi insuficiente para restaurar o patamar verificado nos primeiros anos do pós-II Guerra (KLIMAN, 2012). A existência da pequena recuperação da taxa de lucro, após a década de 1980, se deveu às políticas econômicas neoliberais, provocando redução dos salários dos trabalhadores e impondo condições de trabalho ainda bem mais precárias.

O entendimento da tendência da queda da taxa de lucro nas economias capitalistas exige que se recorra à explicação da contradição fundamental do modo de produção capitalista, denominada por Marx de “Lei da Queda Tendencial da Taxa de Lucro” (LQTTL) (MARX, 2017). A acumulação prolongada de capital, com introdução de progresso técnico, remete ao aumento relativo de parte do capital investida em meios de produção como máquinas e equipamentos e matéria-prima, isto é, “capital constante” ou mesmo “trabalho morto” para Marx (representado por c); e à diminuição da parte do capital investida em força de trabalho, “capital variável”, ou seja, trabalho vivo (representado por v), elevando a composição orgânica do capital. Como os lucros são provenientes do valor adicionado pela


P.14

 

força de trabalho, mantendo assim a taxa de exploração constante, a taxa de lucro (mensurada pela relação entre a mais-valia e o montante do capital total investido, c + v) tende a sofrer queda. No momento em que tal queda ocorre, constata-se uma crise de sobreacumulação e superprodução que é explicada, não pela insuficiência da demanda efetiva, mas pelo declínio do lucro. (ROBERTS, 2018).

Para Marx, a solução que o próprio sistema capitalista fornece a essa problemática decorre da própria crise, principalmente por meio de poderosas contratendências à LQTTL e, que, em certa medida, tem no Estado o seu agente catalisador (ALCANTARA FILHO, 2018). Destacam-se, dentre elas, a “elevação do grau de exploração do trabalho”, bem como o “aumento do capital acionário”, compensando a queda na taxa de lucro com juros oferecidos pelo mercado financeiro, por empresas ou por títulos do Estado. Esta contratendência está relacionada ao aumento da esfera financeira e se expressa como um fator crucial na discussão da crise contemporânea do capitalismo.

Marx, ao se referir à crise capitalista, nos orienta que a dinâmica do capitalismo sempre se desenvolve acumulando contradições e que periodicamente levam a crises (MARX, 2013). Ao seguir Marx, Callinicos (2014) insiste na ideia de que podemos encontrar nos três volumes de O capital não apenas uma articulada e completa teoria da crise, mas uma concepção multidimensional das crises econômicas, que podem ser agrupadas em três categorias. A primeira refere-se a fatores que possibilitam a erupção de crises, resultantes da troca de mercadorias, do moderno sistema de crédito de capitais e das condições de troca [reprodução ampliada] entre os dois principais departamentos de produção [bens de produção e bens de consumo]. A segunda categoria reúne fatores que “condicionam” o surgimento de desequilíbrios, decorrentes das interações entre flutuações nas taxas de salários e no tamanho do exército industrial de reserva, em conjunto com a rotação do capital fixo. A terceira categoria relaciona-se à “causalidade” das crises. Daí o tratamento de Marx em relação à lei que expressa o conflito entre as forças, as relações de produção e à forma mais fetichizada do capital, sendo a lei da tendência de queda da taxa de lucro e o ciclo de bolhas o pânico do mercado financeiro.


P.15

 

Para efeito de nossa análise, priorizamos a terceira categoria de Callinicos, a “causal”. Nessa perspectiva, torna-se fundamental acrescentarmos a segunda tendência da acumulação capitalista nos últimos 40 anos: o agigantamento da esfera financeira por meio do vertiginoso crescimento do capital fictício, tanto na forma de títulos públicos, de ações negociadas no mercado secundário ou como de derivativos de todos os tipos. Para se ter uma ideia, entre 19802014, os ativos financeiros globais aumentaram significativamente, passando de quase 12 trilhões de dólares a 294 trilhões, respectivamente. (CHESNAIS, 2016).

O fraco ritmo do crescimento do PIB mundial contrasta tanto com a intensidade da exploração do trabalho nas fábricas dos países industrializados e não industrializados, como com o montante do que é considerado dinheiro, movendo-se incessantemente pelo sistema financeiro mundial (CHESNAIS, 2016). O resultado disso é que a lógica de valorização fictícia, assegurada em última instância pelos estados, via emissão de títulos da dívida pública, vem se expandindo com crescimento substantivo do pagamento do serviço desta dívida.

Cabe reiterarmos que a interação destas duas tendências causais que explicam a crise contemporânea se articula com a forma política, ou o Estado, à medida que ela mesma é parte integrante das relações capitalistas de produção, de maneira a assegurar a forma valor do capital.

 

A crise e a forma política estatal, a forma jurídica e a forma direito

 

A análise do papel que o Estado desempenha no movimento do capital exige que se reconheça que a sua natureza é capitalista. O Estado é o garantidor da manutenção da relação de produção. Contudo, a troca mercantil e a extensão da forma mercadoria à força de trabalho levam a que essa relação de produção não apareça como tal. Desse modo, entende-se que o Estado está presente, assegurando que as regras da troca, aparentemente igualitárias, não sejam violadas. (PACHUKANIS, 2017).


P.16

 

Ao voltar a atenção para o Livro I de O capital, Marx (MARX, 2013) argumenta que dado o capital ser uma relação social, ela é atravessada por profundas contradições. Torna-se evidente a necessidade de uma instância reguladora - o Estado -, reparadora dos danos provocados por essas contradições. Trata-se “de uma instância que garanta a unidade da totalidade que é necessariamente cindida”. (ARAÚJO, 2018, p. 14).

Especificamente, na Seção I (Mercadoria e dinheiro), Marx deixa claro que o Estado está pressuposto (MARX, 2013). O entendimento aqui é que na circulação mercantil simples (M - D - M) os produtores individuais trocam mercadorias entre si, emergindo a categoria de propriedade e esta, por sua vez, não pode prescindir do Estado. Além disso, a elucidação da “pseudo” relação de igualdade entre o comprador e o vendedor mostra a natureza da relação de produção, evidenciando que o dinheiro, ao comprar força de trabalho, assume o caráter de capital. A sucessão das categorias “mercadoria / valor / dinheiro” não pode se encerrar na categoria “capital”. Isto porque se limitada à categoria “capital”, essa dedução lógica não permite apreender em sua totalidade as causas do movimento real da sociabilidade capitalista. O capital não pode ser concebido se se omite a categoria “Estado”. O Estado é deduzido, isto é, derivado da lógica do capital. (PACHUKANIS, 2017).

Iluminado por Marx, Pachukanis (2017) demonstra que o Estado desempenha seu papel de coerção para assegurar a sociabilidade capitalista. Tal coerção é “proveniente de alguma pessoa abstrata geral, como coerção realizada não no interesse do indivíduo do qual ela provém - pois cada homem na sociedade mercantil é um homem egoísta -, mas no interesse de todos os participantes do intercâmbio jurídico”. (PACHUKANIS, 2017, p. 175).

Mascaro (2013, p. 18) contribui dizendo: “[...] o Estado se revela como um aparato necessário à reprodução capitalista, assegurando a troca das mercadorias [...]”, na sua forma valor “[...] e a própria exploração da força de trabalho sob a forma assalariada”. Admite-se que “o Estado não é burguês por vontade de seus agentes, mas pela natureza material de sua forma social” (MASCARO, 2018, p. 26). Contudo, é


P.17

 

importante marcar que entre a forma valor e a forma política estatal não há um desdobramento lógico necessário, nem de total ligação funcional. Mascaro (2013) ainda argumenta que o político e o jurídico se estabelecem na totalidade das relações de produção, sendo entrelaçados de forma dialética.

Estas reflexões se referem à contribuição do debate da derivação dos anos 1970 que deduz (deriva) a “forma política” ou “forma estatal” das contradições da dinâmica do capital, em que a natureza desta relação atribui ao Estado sua natureza capitalista, assegurando a troca das mercadorias, na sua forma valor e a própria exploração da força de trabalho (BONNET; PIVA, 2017). Esse debate da derivação explicita como o Estado não constitui mero resultado da vontade da classe dominante, mas sim de um determinado modo de produção e das relações sociais que lhe são inerentes.

A compreensão da crise capitalista deve ser baseada nas duas formas determinantes da sociabilidade capitalista já analisadas até aqui, isto é, a forma mercadoria/forma valor e a forma política estatal, acrescentando, ainda, uma terceira: a forma jurídica (ou forma contratual) em sua conformação com a necessidade de assegurar as relações de produção. Esta última também entra em crise, colocando em cheque os direitos sociais - o direito à saúde -, isto é, reduzindo-os. Daí é que se pode referir aqui à crise da forma direito.

Antes de se abordar, particularmente, esta crise da forma direito no contexto contemporâneo, torna-se importante compreender, o que nos mostra Pachukanis (2017) a respeito do sentido da totalidade do desenvolvimento do direito na sociabilidade capitalista. Este autor argumenta que o direito privado e o direito público estão imbrica-dos: “na área do direito público, os esforços dos juristas são em geral brutalmente frustrados pela ‘realidade’, pois, dentro da sua atividade, o ‘poder’ não tolera qualquer interferência e não reconhece a onipotência da lógica jurídica” (p. 23). Pachukanis se refere à ‘realidade’ associada às relações sociais de produção capitalista e ao ‘poder’, como o poder do capital.

Deste modo, pode-se compreender as tensões da afirmação do direito à saúde no Brasil por meio do processo de políticas públicas


P.18

 

no contexto contemporâneo - reduções desse direito e sua mercantilização -, fazendo com que este direito se adeque à realidade do capitalismo em crise. A manutenção do direito à saúde nesse quadro torna-se um campo para infinitas controvérsias e intensas confusões, como as que viemos assistindo no período mais recente no Brasil, privilegiando a operação do direito privado à saúde. (MENDES; CARNUT, 2018).

 

O Estado capitalista no Brasil: crise e golpe institucional de 2016

 

Após ter sido feita uma caracterização mais geral do Estado capitalista, podemos refletir de forma mais direta sobre o Estado no Brasil. Antes de tudo, sugere-se que a análise do nosso país se circunscreva à natureza do Estado nos países latino-americanos subdesenvolvidos. Neste sentido, não é possível apenas deduzir o Estado nesses países à sucessão das categorias (mercadoria/valor/dinheiro/capital) (MATHIAS; SALAMA, 1983). Considera-se fundamental entender esses países na totalidade da lógica da acumulação capitalista, isto é, seu papel na divisão internacional do trabalho em relação ao próprio processo de reprodução do capital e na base das suas formações sociais. Mathias e Salama (1983) avançam na análise para além das categorias constitutivas da sociabilidade capitalista, introduzindo a inserção dos países subdesenvolvidos na “economia mundial constituída”, aprimorando ainda mais a perspectiva derivacionista do Estado.

Um dos principais objetivos destes autores é analisar as causas da amplitude da intervenção do Estado nos países subdesenvolvidos e, por sua vez, estudar as razões da multiplicação de regimes de legitimidade restrita (ditaduras civis e militares) nestes países. Mathias e Salama (1983) separam assim a necessidade da intervenção estatal que necessita do capital para garantir sua reprodução e a materialização da intervenção pública particular a partir dos governos. Em síntese, em que pese nos países desenvolvidos a intervenção estatal ser deduzida da categoria “capital”, nos países subdesenvolvidos, a intervenção relaciona-se com a sua inserção dos países na economia mundial.


P.19

 

Para estes autores, a manifestação concreta do Estado ocorre sob forma de “regime político”. Tal argumento nos conduz a dizer que a necessidade de regimes mais autoritários está intimamente e diretamente determinada pelas condições de reprodução do capital em nível global. Trata-se de dizer que o regime político não é o Estado, mas sim sua forma de existência na sociedade concreta.

Nota-se no processo histórico dos países subdesenvolvidos um Estado muito mais interventor e que atua, principalmente, por meio de um regime de legitimidade restrita. De acordo com Mathias e Salama (1983), as contradições internas às relações sociais capitalistas se manifestam de forma diferente nestes países. Não houve neles o desenvolvimento destas relações sociais, à medida que não passaram por um processo histórico que consolidou uma estrutura social específica. A estrutura social é condizente com sua condição histórica de colônia, o que, no caso do Brasil, deixa marcas profundas de atraso na sua formação social, entre elas: o sentido do comércio exterior, o peso da escravatura, o desenvolvimento desigual e combinado e o caráter autocrático da dominação burguesa. (IANNI, 2004; MATTOS, 2017).

Mathias e Salama (1983) argumentam que a maior intensidade da luta de classes nestes países, diante de uma relação imperialista entre nações, necessita de regimes políticos de “legitimidade restrita” para que se garanta a manutenção da condição subordinada dentro da divisão internacional do trabalho e, consequentemente, uma relação de dependência.

Partindo-se desses pressupostos é que podemos esboçar uma primeira aproximação sobre o sentido geral da chamada onda progressista latino-americana, o lugar que o Estado ocupou na desmobilização da classe trabalhadora e um balanço do sentido geral do movimento histórico recente e seu legado político (PRADO, 2017), especialmente quando se aponta para o golpe institucional de 2016 e que, em nossa análise, ainda está em curso. Para nossa reflexão, a situação vivenciada no bloco latino-americano, de processos políticos golpistas sucedâneos (Honduras, Paraguai, Brasil, e porque não citar aquele que está se avizinhando, Venezuela) se trata de um bem


P.20

 

arquitetado plano, em longo prazo, de um padrão de restituição do poder das oligarquias, em nível mundial.

Ora, é certo que a burguesia internacional nunca esteve fora, ou sequer sem o poder político-econômico nas mãos, mas é fato que o padrão de acumulação do capitalismo central com sua financeirização levou sua expansão para setores considerados anteriormente como não produtivos (saúde, educação, segurança etc.), promovendo a necessidade de readequação da estratégia ofensiva. A democracia, especialmente aquelas mais frágeis, com regimes políticos ainda em consolidação, é um importante espaço para expandir negócios e aprofundar a dependência. Neste sentido, em linha com os golpes em Honduras (2009) e no Paraguai (2012), o drama brasileiro é por muitos pensado como outro exemplo de uma renovada estratégia do imperialismo na América Latina (RIBEIRO, 2016). Por pouco a Argentina não padecia do mesmo problema, já que a eleição em 2015 do sociodireitista ianque Mauricio Macri (KATZ, 2019), parece ser outra indicação de que o giro à esquerda no Continente (se é que ele de fato ocorreu) está acabando.

Do ponto de vista analítico, há algum consenso de que Golpe de Estado, em termos conceituais, pode ser compreendido como a tomada inesperada do poder governamental pela força e sem a participação do povo, resultando de uma manobra política de ajustar a forma jurídica burguesa ao processo/padrão de acumulação necessário para manutenção do poder das classes dominantes e sua recuperação em função da queda da taxa de lucro. (CARDOSO, 2014).

Seja via processo eleitoral ou pelos “neogolpes” - aqueles que não necessariamente resultam da força física (aparato militar) ou da destituição da ordem burguesa legal (intervenção e fechamento de algum dos três poderes) e nem dependem necessariamente de apoio externo (LLANO; NOLTE; WEBER, 2012), o poder político precisava se reinventar para garantir a reprodução ampliada do capital. No Brasil, o afastamento presidencial é por nós considerado um golpe institucional (também de golpe brando, de outro tipo, ou de outro gênero). Já por sua posição de destaque, na América Latina, o Brasil tornou-se o alvo da rapinagem burguesa internacional. Para o alcance


P.21

 

de seus objetivos, manter o “manto de neutralidade” sobre a responsabilidade do Estado em relação à crise econômica e a sua forma jurídica, assim como tornar o devido processo legal “intocável” na argumentação sobre a validade do juízo político que se assolava os casos latino-americanos supracitados, tem sido a tônica vigente da tática de dominação dos terrenos férteis de expropriação de mais-valor.

O processo progressista vivenciado na América Latina e, especialmente no Brasil, está em consonância com o projeto de avanço burguês na região. Ora, se bem lembrarmos a “Carta ao Povo Brasileiro de 2002”, na eleição de Lula e no prosseguimento de seus governos de política econômica neoliberal, com breves nuances de socialdemocracia, entendemos que nunca houve um rompimento com os interesses burgueses, já que no processo de acumulação permanecia em curso uma espécie de “neodesenvolvimentismo” (SAMPAIO JR., 2012). Para Sampaio Jr. (2012), este neodesenvolvimentismo tem por finalidade última desenvolver o capital e não os direitos sociais, por mais que estes últimos sejam invocados como argumentos para manter a classe trabalhadora produtiva. Pode-se associar à ideia de um “desenvolvimentismo às avessas”, à medida que há uma ausência de transformações estruturais que caracterizariam o projeto desenvolvimentista das décadas de 1950 e 1960.

Por isso, reforçamos que esta perspectiva crítica marxista, como de Sampaio Jr., é a mais adequada para elucidar a crise em questão. Ela não parte dos indivíduos nem das querelas opinativas, mas sim das classes sociais e suas frações, seus múltiplos interesses e conflitos intra e interclasses pela riqueza social. O epicentro da crise política, e logo do golpe foi o conflito distributivo entre classes. O pesado ajuste fiscal para assegurar o capital rentista, o pagamento do serviço da dívida pública, a abertura e privatização da economia brasileira para atender ao capital internacional, além dos cortes aos direitos trabalhistas e sociais são os principais objetivos do golpe em curso. (BOITO JR., 2016).

Assim, tentando confirmar a tese de que o golpe vivenciado no Brasil é mais uma contratendência para destravar a acumulação capitalista e que conta com o Estado para remodelar a forma jurídica a


P.22

 

seu favor, é que se tem na democracia o seu principal alvo. Como reformatar sem desconfigurá-la? Como justificar uma ‘saturação’ do processo democrático sem eliminá-la? Uma transição democrática para outro regime político parece ser a tendência a se desenhar. Para isso, a história nos ajuda mais uma vez fornecendo-nos a evidencia necessária. Demier (2017) relata que, de longa data se apresentam os interesses da burguesia internacional na democracia dos países latino -americanos. Enquanto prescreviam uma reformatação da democracia liberal para a Europa e os Estados Unidos que permitisse reduzir drasticamente os gastos públicos e abrir outros espaços de investimentos ao capital via privatizações/mercantilizações dos serviços sociais, teóricos e cientistas sociais neoconservadores, vinculados à Comissão Trilateral, como Samuel Huntington, propuseram também que, na América Latina, começasse a se efetivar, “pelo alto”, mutações nos sistemas políticos nacionais, visando à constituição de sistemas democráticos do tipo “restrito”.

Assim, os regimes democrático-liberais pós-ditaduras deveriam apresentar um baixíssimo grau de mobilização popular, privando os espaços políticos decisórios de qualquer tipo de interferência de massas. A rigor, os teóricos neoconservadores indicavam para a América Latina a edificação de um regime democrático de tipo “procedimental” - estruturado em excessivas regras e procedimentos. (SAFATLE, 2017).

Remodeladas pelo neoliberalismo das duas últimas décadas, as democracias liberais dos países de capitalismo central substituíram uma política social reformista que as caracterizavam, por outra de corte nitidamente contrarreformista (BEHRING, 2018). No Brasil, especialmente no período petista, isso se conduziu sob uma aparente situação de ampliação dos espaços de participação popular e “transparência governamental”. Porém, contraditoriamente, a decisão política dos espaços participativos ia ficando cada vez mais alijada da classe trabalhadora e de suas reais representações. As consultas públicas tornaram-se meros rituais administrativos que consideravam, principalmente, as proposições que não ameaçassem nada que fosse importante. Neste sentido, concordamos com Demier (2017, p. 87) quando aponta que “essas configurações políticas altamente


P.23

 

restritivas se constituem na forma “ótima” da gestão burguesa da luta de classes”. E assim, estamos.

 

O sentido da saúde pública no capitalismo em crise: do subfinanciamento ao desfinanciamento

 

A discussão acerca do financiamento do SUS tem sido um processo difícil e tenso no contexto da barbárie do tempo histórico do capitalismo contemporâneo em crise. Nos últimos 30 anos, que coincidem com a existência do SUS, observa-se que o Estado brasileiro não deixou de conceder incentivo à iniciativa privada, impondo riscos à saúde universal. Para se ter uma ideia, nas três últimas décadas, o gasto privado cresceu de forma mais intensa que o gasto público, quando comparados em relação ao PIB. Enquanto o gasto público total (União, estados e municípios) foi de 2,8% do PIB, em 1993, o privado foi de 1,4%. Posteriormente, a situação se inverteu, sendo o gasto privado superior ao público. Em 2015, o gasto privado foi de 5,2% do PIB e o gasto público foi de 3,9% do PIB. (MENDES, 2017).

Por sua vez, o período de existência do SUS tem sido acompanhado por uma trajetória de persistência de reduzidos montantes de recursos, evidenciando um subfinanciamento estrutural deste sistema (MENDES; FUNCIA, 2016). Para uma ideia geral desse subfinancia-mento, se o art. 55 das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal fosse aplicado, 30% dos recursos da Seguridade Social deveriam ser destinados à saúde, mas isso nunca foi feito. Em 2018, o Orçamento da Seguridade Social foi de R$ 723,6 bilhões, sendo que se destinados 30% à saúde, considerando os gastos do governo federal, corresponderiam a R$ 217,1 bilhões, mas a dotação foi quase a metade disso. (FUNCIA; SANTOS, 2019).

As décadas de subfinanciamento do SUS podem ser melhor compreendidas a partir do tempo histórico da crise capitalista contemporânea, que tem o Estado capitalista atuando no sentido de restringir o orçamento público, em decorrência de ajustes fiscais adotados pelos governos. Tais ajustes respondem às exigências do capital portador de juros (financeiro), e de sua forma mais perversa, do capital fictício, que buscam se apropriar do fundo público para a


P.24

 

sua expansão rentista. Desta forma, revela-se a sintonia entre a crise da forma mercadoria, a crise da forma política estatal e a crise da forma direito, obstaculizando a possibilidade de se assegurar a efetivação do direito à saúde, à medida que se mantém a expropriação dos recursos do Orçamento da Seguridade Social, ao longo desse tempo de 30 anos de Constituição “Cidadã”.

Trata-se de reconhecer a histórica fragilidade financeira do SUS, de forma mais ampla, por meio de insuficiência de recursos e do baixo volume de gastos com recursos públicos; de indefinição de fontes próprias para a saúde; de ausência de maior comprometimento do Estado brasileiro com alocação de recursos e com melhor distribuição de recursos no interior do Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social); das elevadas transferências de recursos ao setor privado via recursos direcionados às modalidades privatizantes de gestão (OSs, Oscips, Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e Fundações Estatais Públicas de Direito Público/Privado com contratos celetistas). Todas incentivadas pela implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal (em vigor há 19 anos) que limita o aumento do gasto com pessoal, favorecendo o incremento das despesas com serviços de terceiros.

Além disso, é importante reconhecer que o contexto do capitalismo em crise vem contribuindo para os embates na história do financiamento do SUS, desde sua criação, passando pela vinculação de recursos federais para aplicação da saúde por meio da Emenda Constitucional (EC) 29/2000, com o frágil esquema baseado no montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB, até a Lei n° 141/2012 (regulamentação da EC 29) que não modificou essa base de cálculo (MENDES, FUNCIA, 2016). Sob essa perspectiva, nota-se que, entre 1995 a 2018, o gasto do Ministério da Saúde não foi alterado, mantendo-se 1,7% do PIB, enquanto que o gasto com juros da dívida representou, em média, 6,6% (FUNCIA; SANTOS, 2019). Percebe-se com esses dados, que a apropriação do fundo público na saúde pelo capital fictício manteve-se intensa, expropriando o direito à saúde, de forma a evidenciar sua crise.


P.25

 

Ainda cabe mencionar dois aspectos que vêm contribuindo para prejudicar o financiamento do SUS, ao longo da sua existência: a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e as renúncias fiscais, no setor saúde.

A introdução da DRU, criada desde 1994, renovada a cada quatro anos e, ainda, em pleno funcionamento, é bastante conhecida por estudiosos do orçamento público. Originariamente, instituiu-se que 20% das receitas do Orçamento da Seguridade Social (OSS) fossem retiradas e destinadas ao pagamento de juros da dívida, em respeito à já histórica política do governo federal de manutenção do superávit primário, sob as exigências do capital fictício dominante na fase contemporânea do capitalismo. A partir da EC 93/2016, houve alteração na alíquota desse mecanismo, passando para 30%, em vigor até 2023. Com a elevação do percentual de desvinculação, a subtração de recursos da Seguridade passou de uma média de R$ 63,4 bilhões, entre 2013 e 2015, para R$ 99,4 bilhões, em 2016, e R$ 113 bilhões, em 2017 (ANFIP, 2018). Em síntese, o significado da DRU ao longo de sua existência, correspondeu a uma perda de recursos para a Seguridade Social, entre 1995 e 2017, de R$ 980,0 bilhões.

As renúncias fiscais, na área da saúde vêm aumentando significativamente no período recente prejudicando que o SUS possa contar com recursos públicos mais elevados. Tais renúncias são referentes ao Imposto de Renda (pessoa física-IRPF e jurídica-IRPJ) que apresenta despesas com serviços de saúde privados e também às concessões fiscais às entidades privadas sem fins lucrativos (hospitais filantrópicos), além das relativas à indústria farmacêutica. O total das renúncias fiscais concedidas à saúde privada vem crescendo de forma considerável, passando de R$ 8,6 bilhões, em 2003; para R$ 32,3 bilhões, em 2015. Particularmente, no tocante ao montante da renúncia do IRPF e do IRPJ, no mesmo período, passaram de R$ 3,7 bilhões para R$ 11,7, bilhões e de R$ 1,2 bilhões para R$ 4,5 bilhões, respectivamente. (OCKÉ-REIS, 2018).

Após o embate de inúmeras propostas de alteração do financiamento federal do SUS, ao longo dos anos 2000 - posteriores as determinações da Lei n° 141/2012 (variação nominal do PIB) -, defendidas


P.26

 

pelas entidades do Movimento da Reforma Sanitária, juntamente com o Conselho Nacional de Saúde, não foi conseguido um resultado sustentavelmente satisfatório para o sistema. Ao contrário, o subfinanciamento do SUS foi intensificado com a aprovação da EC 86/2015. Ocorre a alteração da base de cálculo de aplicação do governo federal para 13,2% da Receita Corrente Líquida (RCL), em 2016 - menor que o percentual alcançado em 2015 -, elevando-se, de forma escalonada, até alcançar 15% da RCL, em 2020. Assim, registrou-se uma perda de R$ 9,2 bilhões para o orçamento do MS já neste ano. (MENDES; FUNCIA, 2016).

Vale registrar que o histórico desfinanciamento do SUS tem relação com as medidas implantadas no país, por meio do tripé macroeconômico ortodoxo - metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante -, adotadas pelo governo federal desde o de Fernando Henrique Cardoso (FHC) até o de Dilma Roussef (MENDES; CARNUT, 2018). Assiste-se à utilização de ajustes fiscais permanentes, levando à redução de recursos direcionados ao nosso sistema de proteção social.

Com o golpe institucional de 2016, que levou ao impeachment de Dilma, agudizou-se o processo de destruição dos direitos sociais e, na área da saúde, o esmagamento do financiamento do SUS parece ganhar um ritmo mais frequente. Intensificou-se no governo Temer a lógica da política econômica restritiva a uma potência, jamais perseguida nos últimos 30 anos. O Documento do MDB - partido que conduziu o processo do golpe de Estado -, intitulado “Uma Ponte para o Futuro”, de outubro de 2015, constitui peça-chave que vem orientando a avalanche de “perda de direitos sociais”. (FNCPS, 2017).

Nessa perspectiva, o subfinanciamento do SUS passou a ser transformado num processo de desfinanciamento, configurando um quadro de aniquilamento, “a conta-gotas” das tentativas de construção de nosso sistema universal. Trata-se, especificamente, da introdução da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, seguindo orientação do Documento “Ponte para o Futuro”.

A EC 95 foi promulgada pelo governo Temer com o objetivo de limitar a expansão dos gastos públicos (despesas primárias) pelos próximos 20 anos, mas não o fez para as despesas financei-


P.27

 

ras, mantendo o alto patamar de pagamento dos juros da dívida por parte do governo brasileiro. Para a saúde, essa mudança da regra do piso federal significou congelar o parâmetro de aplicação mínima no valor monetário correspondente a 15% da Receita Corrente Líquida (RCL) de 2017, atualizado anualmente tão somente pela variação do IPCA/IBGE, até 2036.

Alguns estudos apresentam o declínio do financiamento do SUS. Constata-se que a EC 95 levará a perdas acumuladas de 2017 a 2036 de R$ 162 bilhões a R$ 400 bilhões (conforme projeção anual do PIB de 1,0% e 2,0%, respectivamente) (VIEIRA; BENEVIDES, 2019). Num cenário retrospectivo, Funcia e Ocké-Reis (2018) estimam que se as regras da EC 95 estivessem em vigor no período de 2001 a 2015, em comparação aos valores efetivamente empenhados nesse período, as perdas acumuladas seriam superiores a R$ 100 bilhões, a preços de 2015. Em síntese, os recursos federais para o SUS seriam reduzidos de 1,7% do PIB até atingir apenas 1,1% deste, em 2015.

Na vigência da EC 95, a deterioração do gasto público com saúde é inegável. O subfinanciamento do SUS, que já vinha determinando um patamar insuficiente, passa a um processo de desfinanciamento descendo gradativamente seu valor em relação à arrecadação.

Os pisos federais de 2018 e 2019, calculados em acordo à regra dessa Emenda, representam, na realidade, uma redução de recursos para a saúde pública no Brasil. Isto porque, a base fixa é de 2017, sendo 15,0% da RCL (R$ 727,3 bilhões) desse ano, o que corresponde a uma aplicação de ações e serviços públicos de saúde de R$ 109,1 bilhões. A variação para os anos posteriores ocorre apenas por meio do IPCA/IBGE. Então, observa-se uma queda dos percentuais utilizados, sendo 13,95% em 2018 (R$ 112,3 bilhões), reduzindo em R$ 4,2 bilhões seu valor real em relação aos 15% da RCL (R$ 116,6 bilhões). Se somarmos a perda de 2018 com a de 2019 - (estimada), com base nos parâmetros apresentados na Lei Orçamentária de 2019 -, apura-se 13,85% da RCL (R$ 117,2 bilhões), atingindo o patamar de R$ 9,7 bilhões que são retirados da saúde em dois anos, já que nesse ano a relação aos 15% da RCL deveria corresponder a R$ 127,0 bilhões. (FUNCIA; SANTOS, 2019).


P.28

 

Assim, o SUS passa a enfrentar, ao lado de seu subfinanciamento de 30 anos, um processo crescente e contínuo de desfinanciamento, a partir de 2017, em decorrência de um ajuste fiscal que asfixia direitos fundamentais à saúde, evidenciando a intervenção da forma jurídica (regime político) do Estado, sob uma intervenção pública que busca cumprir o papel exigido pelo capital em crise. Para se ter uma ideia, o gasto público em ações e serviços públicos de saúde, em termos consolidados (União, estados, Distrito Federal e municípios), de aproximadamente R$ 3,60 por habitante/dia em 2017, equivalente a 4,0% do PIB, é metade da média de aplicação dos países com sistemas de saúde universal (Alemanha, Canadá, Espanha, França, Reino Unido e Suécia, principalmente), 8,0%.(MENDES; FUNCIA, 2016).

Esta austera EC 95 parece ser a forte expressão do Estado capitalista brasileiro em consonância com a lógica do capitalismo contemporâneo sob a dominância do capital financeiro, especialmente porque não estabeleceu limites para os juros e outras despesas financeiras. Sem dúvida, a escolha por essa política de austeridade tem grande efeito sobre o direito à saúde, evidenciando ainda mais sua crise.

 

Conclusão

 

Nestes tempos turbulentos, somos, a cada momento, surpreendidos no Brasil com as seguintes palavras: “a situação está cada vez pior”. Entretanto, a compreensão sobre esse quadro não pode se restringir a uma problemática recente de aniquilamento dos direitos democráticos e, na saúde, um processo de desfinanciamento do nosso sistema por meio da EC 95. Vivemos, há pouco mais de 30 anos, sob uma crise do capitalismo marcada pelas tendências de queda da lucratividade e a expansão do poder do capital fictício. Nestes difíceis tempos, o Estado capitalista tem desempenhado o papel-chave para assegurar contratendências à queda da lucratividade do setor produtivo, resultando em ajustes fiscais permanentes, materializando um processo de avalanche de perda de direitos sociais, inclusive o direito à saúde.

O golpe institucional de 2016 marca um ponto de inflexão na crise capitalista em nosso país. O Estado revela claramente sua forma


P.29

 

de manifestar-se na relação com o capital, por meio de uma blindagem democrática que aponta para um vindouro regime de legitimidade restrita. Tal quadro político e econômico não nos permite simplesmente aceitar o cenário no qual a EC 95, seja, de fato, o fim do mundo. A transição para uma nova era pode ser possível, efetivamente, de um tempo de vários fins, com maior violência, expropriação de direitos e conservantismo. Uma rota de contraposição a isto somente encontrará sentido se reconhecermos a importância da luta pela superação do Estado capitalista e por ideias-força contrárias ao mundo capitalista, em que se possa edificar uma saúde emancipada.

Artigo submetido em 21/06/2019

Aceito para publicação em 17/10/2019

 

Referências

 

ALCÂNTARA FILHO, José Luiz. Apontamentos para uma análise da relação entre o Estado capitalista e as crises econômicas no tempo presente. ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA, XXIII. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2018. p. 1-23.

ANFIP. Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. Análise da Seguridade Social 2017. Fundação Anfip de Estudos da Seguridade Social. Brasília: Anfip, 2018. 198 p. Disponível em: <https://www.anfip.org.br/ wp-content/uploads/2018/12/Livros_28_11_2018_14_51_18.pdf>.

ARAÚJO, Paulo Henrique Furtado de. As categorias classes sociais e Estado no Livro Primeiro de O capital. ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA. XXIII. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2018. p. 1-21.

ARCARY, Valério. Primeiro mês de Bolsonaro: cinco questões cruciais. Fevereiro de 2019. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2019/02/01/ primeiro-mes-de-bolsonaro-cinco-questoes-cruciais/>. Acesso em: 19/02/2019.

BEHRING, Elaine Rossetti. Estado no capitalismo: notas para uma leitura crítica do Brasil recente. In: BOSCHETTI, Ivanete; BEHRING, Elaine Rossetti; LIMA, Rita de Lourdes (Orgs.). Marxismo, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2018. Cap. 2, p. 39-72.

BOITO JÚNIOR, Armando. A crise política do neodesenvolvimentismo e a instabilidade da democracia. Crítica Marxista, v. 42, p. 155-162, 2016.

BONNET, Alberto; PIVA, Adrián. Prólogo. In: Bonnet, Alberto; Piva, Adrián (compiladores). Estado y Capital: el debate alemán sobre la derivación del Estado. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Herramienta, 2017.


P.30

 

CALLINICOS, A. Deciphering capital: Marx's capital and its destiny. London: Bookmarks, 2014.

CARDOSO, Renata de Oliveira. O processo de contrarreforma do Estado brasileiro e a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares: a privatização mascarada dos Hospitais Universitários. In: BRAVO, Maria Inês de Souza; MENEZES, Juliana Souza Bravo. A saúde nos governos do Partido dos Trabalhadores e as lutas sociais contra a privatização. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirius, 2014. p. 32-45.

CHESNAIS, François. Finance capital today. London: Historical Materialism Series, 2016.

DEMIER, Felipe. Da ditadura bonapartista à democracia blindada. In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.). Estado e formas de dominação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2017. p. 67-101.

FNCPS. Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde. O ilegítimo governo Temer e os ataques ao Sistema Único de Saúde. Nota da FNCPS. Rio de Janeiro: FNCPS, 2016. Disponível em: <https://goo.gl/JkSfj6>. Acesso em: 12/08/2017.

FUNCIA Francisco, SANTOS, Lenir. Do subfinanciamento ao desfinanciamento da saúde: descendo as escadas. Domingueira da Saúde, n° 04/2019. Disponível em: <http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-04-janeiro-2019>. Acesso em: 19/02/2019.

FUNCIA, Francisco; OCKÉ-REIS Carlos. Efeitos da política de austeridade fiscal sobre o gasto público federal em saúde. In: ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; OLIVEIRA, Ana Luíza Mattos de. Economia para poucos. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.

IANNI, Octávio. A ideia do Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.

KATZ, Claudio. Belicismo, globalismo y autoristarismo (II). 2017. Disponível em: <https://katz.lahaine.org/b2-img/ BELICISMOGLOBALIS MOYAUTORITARISMOII.pdf>. Acesso em: 10/03/2019.

KLIMAN, Andrew. The failure of capitalist production. London: Pluto, 2012.

LACERDA, Antônio Corrêa de. Se país não baixar juros e subir renda, PIB seguirá medíocre. Economia UOL, 2019. Disponível em: <https://economia.uol. com.br/noticias/redacao/2019/02/28/pib-crescimento-previsoes-2019-analistas. htm>. Acesso em: 28/02/2019.

LLANO, Mariana; NOLTE, Detlef; WEBER, Cordula Tibi. Paraguai: golpe ou voto de desconfiança? Conjuntura Austral, v. 3, n. 14, 2012.

MARQUETTI, Adalmir Antonio; HOFF, Cecília Rutkoski; MIEBACH, Alessandro Donadio. Lucratividade e distribuição: a origem econômica da crise política brasileira. ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA, XXII. Campinas: Unicamp, 2017.

MARX, Karl. O capital: contribuição à crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.


P.31

 

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017.

MASCARO, Alysson Leandro. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018.

MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

MATHIAS, Gilberto; SALAMA, Pierre. O Estado superdesenvolvido: ensaios sobre a intervenção estatal e sobre as formas de dominação no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1983.

MATTOS, Marcelo Badaró. Estado e formas de dominação no Brasil contemporâneo. In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.) Estado e formas de dominação no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2017.

MENDES, Áquilas; FUNCIA, Francisco. O SUS e seu financiamento. In: MARQUES, R. M. et al. Sistema de saúde no Brasil: organização e financiamento. Brasília: Abres/MS/OPAS, 2016, v. 1, p. 139-168.

MENDES, Áquilas. A saúde no capitalismo financeirizado em crise: o financiamento do SUS em disputa. Futuro do Brasil Ideias para Ação. Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. 2017. Disponível em: <www.cee.fiocruz. br/?q=node/611>. Acesso em: 27/01/2018.

MENDES, Áquilas; CARNUT, Leonardo. Capitalismo contemporâneo em crise e sua forma política: o subfinanciamento e o gerencialismo na saúde pública brasileira. Saúde e Sociedade, v. 27, p. 1105-1119, 2018.

OCKÉ-REIS, Carlo Otávio. Sustentabilidade do SUS e renúncia de arrecadação fiscal em saúde. Ciênc. saúde coletiva, v. 23, n. 6, p. 2035-2042. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.05992018>. Acesso em: 19/12/2018.

PACHUKANIS, Evguiéni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.

PRADO, Fernando Correia. Além do PT - A crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana. Lutas Sociais, v. 21 n. 39, p. 150-153, 2017.

RIBEIRO, Gustavo Lins. Gramsci, Turner e Geertz - O fim da hegemonia do PT e o golpe. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 8, n. 2, p. 11-20, 2016.

ROBERTS, Michael. The long depression: how it happened, why it happened, and what happens next. Chicago: Haymarket, 2016.

ROBERTS, Michael. Marx 200: a review of Marx's economics 200 years after his birth. London: Lulu.com, 2018.

SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.

SAMPAIO JÚNIOR, Plínio de Arruda. Desenvolvimentismo e neodesenvolvi-mentismo: tragédia e farsa. Serviço Social & Sociedade, n. 112, 2012.


P.32

 

SANTOS, Lenir; FUNCIA, Francisco. A inconstitucionalidade da EC 95 nos pisos da saúde à luz da matemática. Revista Domingueira da Saúde, n° 03/2019. Disponível em: <http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-03-janeiro-2019>. Acesso em: 19/02/2019.

VIERA, F. S.; BENEVIDES; R. P. S. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Nota Técnica Ipea n° 28. Rio de Janeiro: Ipea, set./2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_ nt_28_disoc.pdf>. Acesso em: 19/02/2019.


Página notas de rodapé

 

Nota 1, página 9: Doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor Associado da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: aquilasmendes@gmail.com

RETORNO NOTA 1, PÁGINA 9

 

Nota 2, página 9: Cientista Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-doutor em Saúde Pública (Ciências Sociais e Humanas em Saúde) pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Saúde. Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (Cedess). E-mail: leonardo.carnut@gmail.com.

RETORNO NOTA 2, PÁGINA 9