P. Dados do Material
Título: A educação musical e a aula de instrumento: uma visão crítica
sobre o ensino da flauta doce. Expressão, Revista do Centro de Artes e
Letras da UFSM, Ano 1, 1/2, 1997, pp. 25-32.
Autora: Viviane BEINEKE
Este material foi adaptado pelo Setor de Musicografia Braille e Apoio a
Inclusão da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, Capítulo IV, Artigo
46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com
deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com
fins comerciais.
Adaptado por: Verônica Alves
Data: 19/06/2023
Descrições de imagem por:
Revisado por: Camilo Soares
Data: 19/06/2023
SALA DE AULA
A educação musical e a aula de instrumento: uma visão crítica sobre o ensino da flauta
doce
BEINEKE, Viviane. A educação musical e a aula de instrumento: uma visão crítica sobre o
ensino da flauta doce. Expressão, Revista do Centro de Artes e Letras da UFSM, Ano 1, 1/2, 1997,
pp. 25-32.
Introdução
A Educação Musical contempla diferentes perspectivas e estratégias de ensino, de acordo com
as formas de interação musical propostas. Nesse sentido, podemos observar diversas áreas de
atuação do educador musical, segundo os objetivos e tipos de relação com a música que são
enfatizados, incluindo a educação musical escolar e o ensino instrumental. O presente estudo foi
motivado exatamente pelas interseções entre essas duas áreas. De acordo com SWANWICK:
Superficialmente, comparando com o ensino musical geral, a instrução instrumental
aparece como relativamente pouco complicada em relação a considerações sobre
conhecimento e valor. Eu toco um instrumento; logo posso mostrar para você ou para
qualquer um como se toca. (1994b, p. 142).
Essa visão equivocada do ensino instrumental também é discutida por SOUZA (1994) e
SANTIAGO (1994), que criticam algumas tendências na prática do professor, como a de seguir a
experiência própria como modelo ou utilizar métodos "pessoais" (SOUZA, 1994, p. 44-45). Sobre isso,
SOUZA coloca que, de um lado, a habilidade de dar aulas não melhora automaticamente com a prática
de longos anos e, por outro, não existe um método "pessoal". SANTIAGO (1996, p. 226) cita a
tendência de acomodação dos professores aos processos por meio dos quais eles próprios foram
educados, ocasionando "uma acomodação ao repertório padrão", que é repetido ano após ano.
Referindo-se ao professor de instrumento típico das instituições de ensino musical, a autora expõe
alguns mitos presentes no ensino instrumental, como o "mito da aprendizagem musical de ouvido", o
mito do "você não deve tocar música popular", o mito do "você não deve improvisar" e o "mito dos
virtuoses e dos não dotados" (SANTIAGO, 1994, p. 223).
A problemática exposta acima justifica o presente estudo, que propõe-se a discutir a
metodologia da aula de instrumento e, mais específicamente, o ensino da flauta doce para crianças,
o que não significa que alguns de seus questionamentos não se apliquem também a outros
instrumentos ou níveis de ensino. Relacionando alguns fundamentos teóricos básicos sobre a
construção do conhecimento musical com o ensino da flauta doce, objetivamos a ampliação e
integração de seus conceitos e princípios metodológicos, apontando algumas perspectivas e
alternativas para as aulas.
1. Análise de métodos de flauta doce
A análise de alguns métodos nacionais e estrangeiros de flauta doce, divulgados no Brasil,
revela, basicamente, duas posições em relação à abordagem do repertório. Na primeira, o ensino é
centrado na execução de uma coletânia de músicas organizadas seqüencialmente de acordo com as
dificuldades técnicas propostas e, na segunda, são mais enfatizados os exercícios técnicos isolados,
sendo o domínio destes considerado um pré-requisito para a execução do repertório instrumental
proposto. Em relação à instrumentação, a primeira categoria pode ser subdividida em duas: repertório
exclusivo para flauta doce, a uma ou mais vozes e repertório para prática de conjunto com
instrumentação variada.
Na primeira categoria podemos situar os métodos de SANTA ROSA (1993), que apresenta
músicas a uma única voz, TIRLER (1970) e FRANK (1980), os quais propõe, desde as primeiras aulas,
a execução de canções arranjadas a duas vozes, sendo a primeira voz escrita para ser tocada pelos
alunos e a segunda, pelo professor ou por alunos mais adiantados. Os métodos de HEILBUT (19??),
ROCHA (1986) e AKOSCHKY e VIDELA (1967) dão ênfase à execução de repertório a uma, duas ou
mais vozes, mas também incluem pequenos exercícios preparatórios para introduzir novos elementos
rítmicos e melódicos. Nesse último, os autores explicam que estes exercícios
preparatórios devem ser realizados por imitação professor-aluno. Em relação à instrumentação, as
propostas de AKOSCHKY e VIDELA (1967) e ROCHA (1986) incluem peças para a prática de conjunto
com utilização de instrumentação variada, apresentando arranjos que mesclam partes para flauta doce
e instrumentos de percussão de altura determinada (xilofones e metalofones) e indeterminada
(triângulo, tambores, pandeiro, clavas, etc), enfatizando o trabalho em grupo. O método de
MÖNKEMEYER (1976) diferencia-se dos anteriores por mesclar a coletânea de músicas para flauta
com exercícios técnicos, propondo que o trabalho com as músicas apresentadas seja antecedido por
exercícios específicos para o desenvolvimento da técnica instrumental. Nesse sentido, a técnica e a
literatura são abordadas separadamente, sempre nessa seqüência. MASCARENHAS (1978) também
propõe que a técnica instrumental anteceda a execução do repertório proposto, mas sua abordagem
difere daquela proposta por MÖNKEMEYER (1976) porque, ao invés de intercalar atividades de
técnica e literatura, MASCARENHAS (1978) coloca que, primeiramente, o aluno deve dominar toda a
escala de dó maior, para então iniciar o estudo do repertório.
Quanto aos estilos e gêneros musicais selecionados, em FRANK (1980) predominam as
canções didáticas compostas pela autora, sendo, gradativamente, introduzidas canções folclóricas de
vários países ocidentais. o repertório de TIRLER (1970) é composto, basicamente, por canções do
folclore brasileiro. SANTA ROSA (1993) propõe a execução de músicas folclóricas e populares. O
método de MASCARENHAS (1978) apresenta, na primeira parte, canções do folclore brasileiro, na
segunda são incluídas músicas do folclore alemão, francês, português, japonês, americano, italiano e
argentino, as últimas músicas do método são eruditas. HEILBUT (19??) utiliza músicas de autoria
própria e do folclore alemão. MÖNKEMEYER (1976) propõe um repertório orientado pela tradição
musical européia, incluindo músicas folclóricas e composições dos períodos renascentista e barroco.
Na edição brasileira também foram inseridas músicas do nosso folclore. O método de AKOSCHKY e
VIDELA (1967) apresenta um repertório bastante variado, incluindo rimas e adivinhações populares,
canções do folclore argentino e universal e músicas criadas por professores e alunos, sendo que todas
elas podem ser cantadas e/ou tocadas. O repertório proposto por ROCHA (1986), todo composto pela
autora, caracteriza-se por uma vivacidade rítmica, incorporando, desde as primeiras peças, elementos
bem característicos da música brasileira. A proposta de KÜNTZEL-HANSEN (1985) diferencia-se das
demais por incluir amplas experimentações sonoras com o instrumento e utilizar notações gráficas,
incluindo músicas que incorporam efeitos não convencionais da flauta doce utilizados na música do
século XX.
Quanto ao tipo de atividades musicais, a maior parte dos métodos analisados limita-se a propor
atividades de execução instrumental e/ou vocal (FRANK, 1980; MASCARENHAS, 1978;
MÖNKEMEYER, 1976; SANTA ROSA, 1993 e TIRLER, 1970). Já as obras de AKOSCHKY e VIDELA
(1967), HEILBUT (19??), KÜNTZEL-HANSEN (1985) e ROCHA (1986) incluem também atividades de
improvisação e composição musical. Apenas a obra de AKOSCHKY (1977), que complementa o
método de AKOSCHKY e VIDELA (1967) faz referência a atividades específicas de apreciação
musical. Este último também caracteriza-se por abordar as mesmas questões de formas variadas,
sendo as mesmas dificuldades (técnicas e musicais) trabalhadas de formas diferentes. As rimas e
adivinhações populares, por exemplo, são utilizadas para iniciar a execução por leitura, para
incorporar um novo ritmo e realizar pequenas orquestrações. Para fins de exercício auditivo também
algumas canções para serem transpostas e jogos de reconhecimento de melodias. Nesse método,
assim como no de ROCHA (1986), são alternadas atividades de execução por imitação e por leitura
de partitura.
Em relação aos objetivos e conteúdos, podemos observar duas tendências centrais nos
métodos analisados: (1) ênfase no domínio progressivo das técnicas de execução instrumental e
leitura musical e (2) ênfase na aprendizagem de conteúdos musicais amplos. Em relação a este
segundo enfoque, AKOSCHKY (1977) revela que sua obra persegue, como objetivo fundamental, a
vinculação do ensino instrumental com os conhecimentos musicais, destacando que, desde o início
do ensino as atividades não carecem de um sentido musical e de comunicação grupai. Nesse sentido,
observamos que todas as músicas apresentadas no método de AKOSCHKY e VIDELA (1967) têm
indicações de caráter expressivo, o que demonstra a valorização desse aspecto interpretativo-
musical. Para o planejamento de ensino, AKOSCHKY (1977) adota o modelo utilizado pelo Conselho
Nacional de Educação da Argentina, o qual é elaborado com base nas seguintes áreas: técnicas de
execução da flauta doce, som, canto, ritmo, melodia, harmonia, forma, gênero, estilo e caráter. As
obras de AKOSCHKY e VIDELA (1967) e AKOSCHKY (1977) demonstram a preocupação dos autores
em discutir alguns princípios que norteiam seu trabalho. Nos demais métodos citados, as concepções
de ensino do autor estão implícitas em sua abordagem metodológica, não sendo discutidos os
objetivos, conteúdos ou critérios utilizados pelo autor para selecionar o
repertório. De qualquer forma, a análise revela diferentes posições a respeito de questões
fundamentais do ensino, sendo a nossa reflexão direcionada para alguns princípios que podem nortear
a prática do professor de instrumento.
2. Perspectivas para o ensino da flauta doce
Discutindo o ensino instrumental, SWANWICK (1994a, p. 7) coloca que quando um aluno nos
procura para aprender a tocar um instrumento existem dois significados: "temos que ensinar o aluno
a dominar tecnicamente o instrumento mas também temos que ajudá-lo a tocar de forma musicalmente
expressiva". Nessa perspectiva, o autor defende que o ensino instrumental deve incluir a compreensão
musical.
Aprender a tocar um instrumento deveria fazer parte de um processo de iniciação dentro do
discurso musical. Permitir que as pessoas toquem qualquer instrumento sem compreensão musical -
sem realmente 'entender música' - é uma negação da expressividade e da cognição e, nessas
condições, a música se torna sem sentido. (SWANWICK, 1994a, p. 7).
De acordo com esse posicionamento, a abordagem dos métodos tradicionais de instrumento
não é suficiente, que o domínio técnico e de um amplo repertório não garante a compreensão
musical. As pesquisas na área cognitiva amparam esse ponto de vista, afirmando que a notável falta
de integração entre a percepção e a representação musical tornam a interpretação completamente
dependente da memória e a aquisição de um repertório com o instrumento se converte no único
modelo de conhecimento. Desta forma, o desenvolvimento musical não chega a incluir um conjunto
de conhecimento integrado (DAVIDSON e SCRIPP, 1991, p. 100).
Nos métodos de flauta doce analisados, observamos que a obra de AKOSCHKY (1977) está
mais próxima desta abordagem, incluindo atividades que visam a compreensão das obras executadas
e/ou apreciadas. Na mesma perspectiva, GANE (1996, p. 64) propõe que os alunos sejam encorajados
a compreender o contexto musical, cultural ou social da música que está sendo estudada. Além disso,
o professor pode ajudar a compreensão da estrutura pela apreciação de uma peça com o aluno e
conduzindo o estudo de escalas e arpejos para noções de transposição, formas intervalares,
harmonias simples, tonalidade e padrões melódicos, ao invés de tratá-los simplesmente como
exercícios para tocar. Dessa forma, pode-se direcionar as idéias musicais, através da tonalidade ou
estilo de execução, para peças em estudo, auxiliando na compreensão de interrelações musicais
(1996, p. 62). Sobre a importância de o aluno avaliar execuções ao vivo e de gravações, inclusive as
suas próprias, GANE (1996, p. 63) coloca que isso focaliza duas questões para o professor de
instrumento: em primeiro, a necessidade de incluir o acesso a uma série de músicas para discussão
e avaliação e, em segundo, a necessidade de adotar as faculdades críticas e visão autônoma do aluno,
uma vital não dependência do professor. A aula em grupo também favorece o desenvolvimento da
crítica musical, à medida que:
... fazer música em grupo nos infinitas possibilidades para aumentar nosso leque de
experiências, incluindo aí o julgamento crítico da execução dos outros e a sensação de se apresentar
em público. A música não é somente executada em um contexto social, mas é também aprendida e
compreendida no mesmo contexto. (SWANWICK, 1994a, p. 9).
Sobre o ensino coletivo da flauta doce, FRANK (1980, p. 5-6) escreve que, para as crianças,
as aulas em grupo são mais atraentes que as individuais, possibilitando a variação na execução das
partituras pelo uso da voz, da flauta, de outros instrumentos e de percussão. AKOSCHKY e VIDELA
(1967, p. 6) colocam que a flauta doce adapta-se muito bem às necessidades de classes coletivas de
crianças, jovens e adultos, constituindo um valioso apoio à formação musical e à educação auditiva.
Na perspectiva de SWANWICK (1979), as pessoas precisam ter múltiplas oportunidades de
encontro com a música, sob diversos ângulos, de forma a ficar ciente das suas riquezas e
possibilidades. Para tanto, o ensino deve contemplar três formas de engajamento musical ativo: a
composição, a execução e a apreciação, sendo estas apoiadas por outras duas atividades, a técnica
e a Iiteratura [Nota 2]. Para o autor, a técnica envolve o desenvolvimento
da percepção, controle técnico e habilidades de leitura e escrita musical. Já a literatura inclui o estudo
histórico e contemporáneo da literatura sobre música através de partituras e performances e também
crítica musical e literatura de música, histórica e musicológica.
Concordando com essa concepção de ensino, GANE (1996, p. 52) alerta que a exploração da
composição e da apreciação nas aulas de instrumento não representa puramente a adição de uma
matéria para atividades futuras, e sim, torna necessária uma mudança da filosofia de ensinar do ponto
de vista de que a criança é um aprendiz passivo sendo iniciado em um corpo de habilidades e
repertório pré-determinados, para uma visão de que a criança é uma parceira ativa na formação de
suas respostas e acesso à música. De acordo com a autora (1996, p. 63), compor não é somente uma
boa atividade em si própria, como uma forma imaginativa e criativa de manipular os materiais musicais,
mas também, inestimável ao professor de instrumento como uma ajuda à literatura e compreensão da
linguagem musical. Segundo SWANWICK (1979), a composição é a atividade onde o aluno tem mais
espaço para tomar suas próprias decisões musicais, o que, na nossa visão, é fundamental para o
desenvolvimento de um pensamento musical crítico e reflexivo.
Visando desenvolver, de forma integrada, as habilidades cnicas de execução e a composição
musical, GANE (1996, p. 61) propõe que escalas, arpejos e outros padrões sejam utilizados como
recursos para jogos de imitação, rondós e improvisações simples. As peças trabalhadas em aula, ao
invés de serem simplesmente tocadas, podem ser cercadas por idéias: o título, características
estruturais, padrões musicais, o humor, caráter expressivo ou qualquer outra característica pode ser
extrapolada e utilizada para discussões críticas ou manipulação musical em improvisações ou
composições. A obra de HEILBUT (19--) também apresenta algumas sugestões de atividades de
composição, propondo que os alunos componham pequenas peças tomando como base uma letra
pré-determinada ou escalas específicas, como a pentatônica. GANE (1996, p. 63) coloca que, ao
iniciar uma nova peça, por exemplo, o professor pode esconder uma parte dela, talvez a segunda
frase ou a sua conclusão, perguntando ao aluno "se você fosse o compositor, o que comporia aqui?".
Quando ele tiver composto sua versão da frase, ela pode ser comparada com a versão original.
A "audição interna", segundo SWANWICK (1994b, p. 155), é essencial para a formação de
imagens musicais e esta faculdade é desenvolvida através da interação entre a expressão musical
intuitiva e o exame analítico. Na concepção de PRIEST (1989), toda a execução musical é de ouvido,
aprendida às vezes por invenção, às vezes por imitação e às vezes pela combinação ou síntese dos
dois. De acordo com o autor (PRIEST, 1989, p. 187), há três fatores cruciais para o desenvolvimento
da musicalidade do intérprete: (1) tocar instrumento de ouvido de rias formas, incluindo nesta
categoria as execuções por partitura, porque estas só serão "musicais" se forem precedidas por uma
imagem aural, sendo esta imagem imitada - realizada em sons; (2) que as crianças toquem suas
próprias músicas no instrumento que estão estudando e (3) que a maior parte da aprendizagem ocorre
através da imitação, tanto da notação, quanto do professor. A partir desses três fatores, PRIEST
(1989) propõe um Modelo Pedagógico de Ensino Instrumental formado pela relação entre as
atividades de invenção e imitação, que expressam a experiência total da aprendizagem.
Outra questão abordada por SWANWICK (1994a) refere-se à proposição de que os alunos
devem ser incentivados a tocar uma mesma obra de maneiras diferentes. Dessa forma, ao invés de
uma peça ser repetida exaustivamente, o aluno pode explorar variações de caráter, dinâmica,
andamento, acentuação ou articulação na sua interpretação. Esses procedimentos, articulados com a
crítica musical, também favorecem a autonomia do aluno, que passa a dispor de mais opções para
tomar suas próprias decisões musicais e interpretativas. Segundo SWANWICK:
Inicialmente, isto favorece a perspectiva da compreensão intuitiva, que surge depois,
inconscientemente, nas diversas formas de tocar. Em segundo lugar, isto propicia
formas alternativas de análise, trazendo um repertório mais amplo de possibilidades
interpretativas à consciência. (1994a, p. 9).
Nessa perspectiva, "tocar de ouvido", sem partitura, também pode auxiliar o aluno a explorar,
com maior despreendimento, diferentes formas de execução de uma peça. GANE (1996, p. 63) propõe
que "tocar de ouvido" seja considerado como uma elevação para um nível de execução mais alto,
sugerindo que o professor encoraje os alunos a tocar canções populares do cotidiano de ouvido, grave
canções da sua comunidade local que eles são
capazes de cantar e depois arranje-as com os alunos para a aula.
Em relação ao repertório utilizado nas aulas de instrumento, GANE (1996, p. 53) coloca que,
tradicionalmente, este tem tendido a favor da música erudita ocidental de cerca de 1680 a 1900 e da
música impressa, em detrimento do jazz, da música popular, da música do século XX e de músicas
de tradições não ocidentais. Por trás disso, a autora indica a possibilidade de estar escondida uma
percepção hierárquica do tipo de música que é válido estudar, sendo a música erudita ocidental
julgada como inerentemente superior a outras músicas. Quanto a isso, a maior carência nos métodos
de flauta doce pode ser verificada no uso de obras que incorporem elementos da(s) música(s) do
século XX e de culturas não ocidentais. Quanto à utilização de grafias e sonoridades não
convencionais, que caracterizam uma das linguagens desenvolvidas pelos compositores
contemporâneos, o método de KÜNTZEL-HANSEN (1985) oferece algumas alternativas para a
inclusão destas formas de notação no ensino do instrumento. A pesquisa de SOUZA, HENTSCHKE e
BEINEKE (1997), que investiga a possibilidade do ensino coletivo da flauta doce ser incluído na
proposta curricular de Educação Musical [Nota 3] para a rede escolar desenvolvida por OLIVEIRA e
HENTSCHKE (1994), expõe outra alternativa para a questão do repertório, colocando que as
dificuldades relativas à seleção do mesmo poderão ser minimizadas com a habilidade dos professores
em lidar criativamente com a linguagem musical, estruturando composições ou adaptando peças para
o seu trabalho. Dessa forma, o próprio professor poderá suprir algumas carências no repertório.
A peça Flauteando (figura 1), por exemplo, foi construída com o objetivo de introduzir alunos
iniciantes no uso de sonoridades e grafias não convencionais da flauta doce, utilizando somente a
cabeça do instrumento na sua execução. A "bula" pode ser elaborada pelos próprios alunos, a partir
de suas explorações do instrumento e concepções de escrita musical.
Para introduzir músicas de diferentes culturas, GANE (1996, p. 62-63) sugere que o professor
utilize escalas modais, a escala pentatônica ou ragas indianos. Um som tocado por um aluno,
combinado com a improvisação em ritmo livre de outro, sobre um raga, por exemplo, é uma forma de
introdução indolor e expressiva ao raga indiano.
A vivacidade e riqueza musical intrínseca do repertório abordado em aula é outro critério de
seleção importante. Como coloca SWANWICK (1994a, p. 11), "é possível fazer boa música em
qualquer nível técnico". Para isso, o professor deve analisar o potencial musical das obras propostas
em aula. Nessa direção, SOUZA, HENTSCHKE e BEINEKE (1997) sugerem trabalhos com músicas
que abordem diferentes formas de estruturação do discurso musical. Na peça Ecos3 (figura 2), por
exemplo, um pequeno motivo de apenas três notas, sobreposto a um pedal, é abordado de forma
lúdica, sendo explorados procedimentos musicais de imitação, variação, repetição e textura, que
podem ser discutidos e analisados pelos alunos. Esses padrões também podem ser utilizados como
modelo para improvisações ou para a estruturação de pequenas composições.
A pesquisa de SOUZA, HENTSCHKE E BEINEKE (1997) também revelou que, muitas vezes,
a forma como o repertório é abordado em aula é mais importante que o seu gênero ou estilo,
verificando-se, em práticas correntes de educação musical, que grande parte do acervo musical é
excluído das propostas pedagógicas porque os alunos "não gostam". Ao contrário disso, as
pesquisadoras acreditam que devem ser buscadas aproximações sucessivas entre o que o aluno
conhece e o que pode ser acrescentado, o que é possível quando os processos musicais comuns
entre músicas de diferentes estilos, épocas ou lugares são relacionados, podendo-se, desta forma,
amenizar as rotulações culturais a que a música é exposta.
3. Conclusão
Acreditamos que as propostas para o ensino da flauta doce discutidas acima poderão gerar
novas discussões e pesquisas na área, de modo que os conhecimentos e habilidades musicais sejam
desenvolvidos de forma mais significativa. Segundo SLOBODA:
... a tarefa do professor na escola e fora dela é tornar a atividade musical o mais
significativa possível, a mais gratificante e esteticamente bela, a fim de gerar emoções
significativas, que por sua vez irão sustentar a motivação de longa duração no indivíduo
e irão compensar todo o esforço que é feito para consumir, entender e
divulgar música. (SLOBODA apud OLIVEIRA, 1996, p. 85).
Finalmente, lembramos que os nossos alunos não aprendem todos da mesma forma, não tem
a mesma relação com a música, estabelecem significações diferentes para o processo de
aprendizagem, fazem suas próprias escolhas. Da mesma maneira, nós, professores, a cada aula
encontramos soluções diferentes para a ação pedagógica. Através do estudo, da pesquisa, da reflexão
sobre a nossa prática e sobre o nosso próprio fazer musical poderemos construir alternativas
metodológicas mais eficazes, mais coerentes e aprender mais música. A cada aula poderíamos nos
perguntar: estamos fazendo música? Criando música? Ouvindo e analisando música? Construindo
conhecimento? Tomando decisões musicais de forma crítica?
NOTAS:
SWANWICK compreende como composição todas as formas de criação musical, como a
improvisação ou arranjo para um determinado tema. a execução musical diz respeito ao canto de
canções, à execução de um instrumento e à comunicação para um público, por menor ou mais informal
que seja. Isso envolve, normalmente, um elemento de risco, um preparo técnico e um senso do que a
música quer atingir (1979, p.44). Já a apreciação, para o autor, é a primeira na lista de prioridades de
toda atividade musical, referindo-se não apenas à apreciação de obras gravadas ou de uma execução
em particular, mas também, à apreciação envolvida na decisão de um timbre em certo momento da
composição, na afinação de um instrumento musical, ao tocar uma escala de forma uniforme, no senso
de um estilo musical, etc (SWANWICK, 1979, p.43).
2 Este conjunto de parâmetros de experiências musicais configuram o Modelo (T)EC(L)A de
Atividades Musicais de Swanwick (1979): (T) Técnica, E Execução, C Composição, (L) Literatura e A
Apreciação. [Voltar]
3 Para detalhamento sobre esta proposta curricular, sugerimos a leitura dos artigos de Liane
Hentschke e Alda Oliveira publicados na obra Música: pesquisa e conhecimento. Porto Alegre, Núcleo
de Estudos Avançados, Curso de Pós Graduação em Música da UFRGS, junho/1996. [Voltar]
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