P. Dados do Material
Título: Pedagogia da Música: experiências de apreciação musical
Autor: Esther Bayer e Patrícia Kebach (Organizadoras)
Este material foi adaptado pelo Setor de Musicografia Braille e Apoio a
Inclusão da Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, Capítulo IV, Artigo
46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com
deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com
fins comerciais.
Adaptado por: Verônica Alves
Descrições de imagem por: Camilo Soares
Revisado por: Camilo Soares
Data: 27 Junho de 2022
P. Capa
Educação e Arte 11
PEDAGOGIA DA MÚSICA
Experiências de apreciação musical
Esther Beyer e Patrícia Kebach
Organizadoras
Editora Meditação
P. Orelha de Capa
A música invade o nosso cotidiano. Os avanços da tecnologia, cada vez
mais, possibilitam a crianças, jovens e adultos escolherem as músicas de sua
preferência para que sejam sua companhia permanente em todos os lugares.
Essas escolhas podem tornar-se mais ricas e significativas à medida que
tiverem a oportunidade de conhecer e apreciar músicas diversas e de diferentes
culturas. A intenção das autoras deste livro é de revelar a importância de
experiências de apreciação musical nas escolas e universidades.
Por meio dessas experiências, os alunos têm a oportunidade de
expressar diferentes sentimentos e opiniões sobre o que ouvem, ampliando seu
repertório musical, conhecendo novos instrumentos, diferentes processos de
criação, formas musicais, ritmos e harmonias.
São atividades prazerosas que podem abranger tanto músicas do
repertório familiar dos alunos como músicas de diferentes povos e culturas.
O livro aborda um tema atual e prioritário, uma vez que ressalta a
importância da educação musical nas escolas do país, tendo como referência,
além disso, a autoria de renomadas arte-educadoras do país.
Educação Arte
PEDAGOGIA DA MÚSICA experiências de apreciação musical
Esther Beyer
Pós-Doutora em Semântica Musical pela Universidade de Münster na
Alemanha.
Patrícia Kebach
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
(Organizadoras)
Editora Mediação
2ª Edição
Porto Alegre
2012
Coordenação Editorial: Jussara Hoffmann
Coordenação da Coleção: Susana Rangel Vieira da Cunha
Vera Lúcia Bertoni dos Santos
Assistente Editorial: Luana Aquino
Projeto Gráfico da Capa: Ângela Pohlmann e OGGI/GRAPHI
Revisão de Texto: Rosa Suzana Ferreira
Capa e Editoração: Camila Tubino Bandeira
Setor Editorial Mediação
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
P371 Pedagogia da música: experiências de apreciação musical / organização
de Esther Beyer e Patrícia Kebach; Ana Claudia Specht ...et al. -
Porto Alegre: Mediação, 2011. (2. ed. atual, ortog.)
160 p. (Coleção Educação e Arte; v.ll)
ISBN: 978-85-7706-036-8
1. Educação musical. 2. Apreciação musical. 3. Música. 4. Dança.
5. Cantigas de ninar. 6. Língua de sinais. 7. Prática pedagógica.
I. Beyer, Esther. II. Kebach, Patrícia. III. Specht, Ana Claudia.
IV. Série.
CDU: 78:37.013.43
Bibliotecária: Denise Selbach Machado - CRB 10/720
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Mediação Distribuidora e Livraria Ltda
Av. Taquara, 386/908
Bairro Petrópolis
Porto Alegre RS
CEP 90460-210
Fone/Fax (51) 3330 8105
editora.mediacao@terra.com.br
www.editoramediacao.com.br
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização
expressa do Editor.
© by Organizadoras e Autoras, 2008
Printed in Brazil/Impresso no Brasil
Dedicatória
Dedicamos este livro a todos aqueles, que, como nós, amam a música,
esta forma de expressão artística fluida, intangível, que se esvai, jamais se
apresenta da mesma forma a cada execução e, tampouco, a cada apreciação.
Também dedicamos esta obra aos professores e alunos de música, que
de uma forma ou outra nos mobilizaram a refletir e escrever os textos aqui
contidos.
SUMÁRIO
Introdução 07
Esther Beyer
Patrícia Kebach
1. Cantigas de ninar: fadas e bruxas de mãos dadas para um sono
tranquilo 13
Ana Paula Melchiors Stahlschmidt
Maria Luiza Feres do Amaral
Regina Finck
2. Apreciação musical: conceito e prática na educação infantil 27
Kelly Stifft
3. Apreciação musical através do gesto corporal 37
Márcia Cristina Pires Rodrigues
4. A música e suas significações 51
Flávia Garcia Rizzon
5. A atividade de apreciação na construção do cantar 69
Ana Claudia Specht
Denise Sant’Anna Bündchen
6. O que esta música sugere para você? 79
Ângela B. Crivellaro Sanchotene
7. Apreciação musical: onde está o significado da música? 87
Katia Renner
8. Processos de interação social em ambiente de educação musical 97
Patrícia Kebach
9. Makunaimando e o Hino de Roraima: contexto de criação/recepção
109
Rosangela Duarte
10. Apreciação musical por músicos experientes 123
Esther Beyer
11. A língua de sinais e os sons: uma apreciação estética 135
Ana Luiza Paganelli Caldas
12. Apreciação musical e subjetivação 145
Patrícia Kebach
Viviane Silveira
P. 7
INTRODUÇÃO
Esther Beyer [Nota 1]
Patrícia Kebach [Nota 2]
Ouvir música é uma atividade cotidiana do ser humano. A música está
presente em vários momentos do dia a dia: nas rádios, na televisão, como
música de fundo, na musicalidade do cantar dos pássaros, nos ruídos
tecnológicos, aos quais podemos atribuir musicalidade, ou não. Enfim, os sons
invadem o ambiente e nosso rebro seleciona aquilo que queremos ouvir.
Através da tecnologia moderna (computadores, aparelhos eletrônicos de som,
rádio) podemos escolher as músicas de nossa preferência. Temos opção para
ouvir aquilo que nos prazer, tranquiliza, energia, que gostamos em
determinados momentos e em outros não, enfim, realizamos nossas escolhas
sonoras de acordo com nossos gostos pessoais. Essas escolhas estão
atravessadas pela cultura, a qual pertencemos. Quanto mais fechados para a
diversidade, menos amplas serão nossas escolhas, quanto mais abertos à
diferença, maiores serão as opções para escolhermos a trilha de nosso dia a
dia. Desse modo, as ações humanas estão imersas em uma realidade social,
cujas lacunas afetivas e instrumentos materiais e espirituais derivam do
contexto de valores culturais, que demandam do sujeito ações e motivações.
Essas ações inserem-se em um quadro de possibilidades de objetos e sua
época.
Com esta obra, pretendemos demonstrar o quanto a educação musical
tem um papel importante na abertura de possibilidades de diferentes escutas e
compreensão das variedades de organizações sonoras produzidas
P. 8
na diversidade cultural, gerando valores que privilegiem a abertura a novos
possíveis, em termos de organização sonora.
Traremos aqui vários enfoques dados às atividades de apreciação
musical. Portanto, o leitor terá, a partir desta obra, a possibilidade não de
refletir acerca da importância de uma escuta ativa nos vários tipos de ambientes
de musicalização propostos, mas também, sobre ideias múltiplas a serem
adaptadas, conforme suas realidades.
Ana Paula Melchiors Stahlschmidt, Maria Luíza Feres do Amaral e
Regina Finck trazem o texto “Cantigas de ninar: fadas e bruxas de mãos dadas
para um sono tranquilo”, cujo enfoque é dado para a apreciação musical das
cantigas de ninar que, segundo as autoras, remetem a sentimentos cuja origem
em nossas vivências pode ser muito antiga. As autoras procuram refletir sobre
a presença das ambiguidades e contradições na letra das cantigas de ninar,
porém enfatizam a evidência da eficiência destas canções em sua função de
favorecer o ambiente propício ao sono, permitindo simultaneamente a
expressão dos sentimentos de ambivalência dos pais em relação ao bebê. As
autoras procuram explicar que a aparente agressividade das letras dessas
canções tem uma função subjetiva, e seu conteúdo, entendido como agressivo,
não é privilégio do imaginário infantil brasileiro. Do mesmo modo, segundo as
autoras, não ocorre, na presença destas canções, um incremento da violência
doméstica ou da incidência de maus-tratos em famílias. Esse texto é um convite
ao pensamento acerca da expressividade subjetiva existente nas cantigas de
ninar e sua utilização no cotidiano familiar e nos ambientes de musicalização
de bebês.
O capítulo de Kelly Stifft, “Apreciação musical: conceito e prática na
educação infantil”, traz as diferentes abordagens de alguns autores sobre a
importância das atividades de apreciação musical na educação infantil. A
autora procura explicar os diferentes conceitos, como audição, escuta musical
ou ouvir musical, que estão relacionados à apreciação. Neste capítulo, a autora
propõe, em suas reflexões, com base em vários autores e em uma observação
prática com seus próprios alunos, que a apreciação permita a construção de
esquemas mentais que possibilitem novas produções sonoras. Considera,
ainda, que esse tipo de prática abrange a função de complemento das demais
experiências, como as de execução e criação musical no ambiente de
musicalização infantil.
P. 9
No capítulo “Apreciação musical através do gesto corporal”, Márcia
Cristina Pires Rodrigues pretende responder a algumas perguntas tais como:
qual a relação estabelecida entre a música e a dança? Como a dança pode
contribuir para as aprendizagens em música? Como podemos apreciar uma
obra musical através do gesto expressivo? A autora pretende, assim,
desenvolver e refletir sobre um possível entrelaçamento entre as
aprendizagens da música e a dança, sem preconceitos e através de uma
sensível leitura por parte do educador e do sujeito/artista, que deverá conceber
uma identidade gestual nessas duas áreas, resultando no crescimento das
possibilidades expressivas.
No texto “A música e suas significações”, Flávia Garcia Rizzon procura
diferenciar os conceitos de ouvir e escutar, fazendo uma reflexão também sobre
o discurso simbólico musical. Como observação empírica, a autora realizou
uma atividade de apreciação musical com algumas professoras da rede
municipal de ensino de Porto Alegre e algumas crianças dessas mesmas
escolas. Como proposta de atividade, escolheu uma temática e apresentou
para indivíduos. No momento seguinte à audição, esses sujeitos tiveram que
relatar suas impressões e sentimentos, definindo uma temática para cada
música. A questão essencial para a autora, neste artigo, é investigar quais
elementos da linguagem musical contribuíram para sugerir o assunto temático
das melodias ouvidas, ou remeteram o ouvinte ao mesmo significado que o
compositor atribuiu à obra. A autora propõe que o lado afetivo se enreda a uma
teia de vivências culturais e pessoais, de onde surgem as significações que
cada pessoa atribui às coisas.
Através do texto “A atividade de apreciação na construção do cantar”,
Ana Claudia Specht e Denise Sant’Anna Bündchen pretendem refletir sobre os
processos de aprendizagem do canto, à luz das atividades de apreciação
musical realizadas com alunas de um projeto de canto coral. As autoras
investigam neste capítulo os aspectos que podem favorecer a construção do
cantar. Concebem a apreciação como uma atividade integrante e fundamental
no desenvolvimento musical na proposta de canto coral e propõem que a
educação musical e o desenvolvimento da performance se dão a partir de uma
pedagogia relacionai, capaz de fornecer ao professor de canto e ao educador
musical “situações em que os alunos participem ativamente, explorando a sua
voz, descobrindo seu corpo, conhecendo melhor seu funcionamento e suas
possibilidades”, segundo as autoras.
P. 10
Ângela B. Crivellaro Sanchotene trabalha a apreciação musical com
adolescentes em seu capítulo “O que esta música sugere para você?” - que é
justamente o questionamento que a autora faz aos ouvintes atentos. Escolhe
como tema a ser apreciado musicalmente o protesto. Seu objetivo é o de
verificar se os alunos conseguem identificar os significados implícitos em obras
de diferentes estilos, porém com temáticas semelhantes. A autora propõe que
os adolescentes dificilmente prestam atenção ao significado implícito nas
obras, embora a presença da música em suas vidas seja constante.
“Apreciação musical: onde está o significado da música?” é o texto de
Katia Renner, que, levada pela curiosidade em saber o que se passa na mente
de alguém quando está entregue à tarefa de buscar significado à audição de
uma obra musical instrumental, reflete sobre a percepção musical e propõe que
essas precepções estão bastante ligadas ao caráter e sensações subjetivas
que permeiam essas obras. A autora procura sugerir, em seu texto, formas de
se proporcionar momentos de apreciação musical, através de uma atividade
realizada com adultos.
O texto de Patrícia Kebach, “Processos de interação social em ambiente
de educação musical”, contribui para as reflexões na área de musicalização
coletiva de adultos. A autora aborda a importância de proporcionar interações
coletivas entre os sujeitos durante as atividades de apreciação musical, como
forma de atribuição de significados, realização de trocas de pontos de vista,
mobilização de sistemas de significação e, portanto, estruturações
progressivas em termos de desenvolvimento musical. Esse texto remete à
importância das reflexões em grupo nas atividades de musicalização e, mais
especificamente, nas tarefas de apreciação musical em ambiente de educação
musical coletiva.
Rosangela Duarte, no texto “Makunaimando e o Hino de Roraima:
contexto de criação/recepção”, contribui para as reflexões sobre a
compreensão da atividade de apreciação e seus múltiplos significados
desencadeados em um contexto de sala de aula. A autora traz a realidade do
estado de Roraima em sua análise sobre uma atividade de apreciação feita em
duas escolas públicas, com crianças e jovens na faixa etária do ensino
fundamental e médio. A partir das ideias deste capítulo, o leitor terá a
oportunidade de refletir sobre o papel do professor como um “agente em
potencial que, através de sua prática, pode transformar o fazer em sala
P. 11
de aula num espaço de criação de diferentes formas de pensar o mundo”,
segundo a proposição da autora.
No capítulo de Esther Beyer, “A apreciação musical por músicos
experientes”, o leitor terá a oportunidade de verificar a importância de se
proporcionar atividades de apreciação musical com músicas de várias culturas
em todos os níveis de ensino musical. A autora traz também uma investigação
sobre a apreciação de músicas de diferentes culturas, realizada com
estudantes experientes na área de educação musical e relata que há algumas
diferenças entre os sujeitos mais e menos experientes nesta área ao
diferenciarem as propriedades de uma trama musical. Entretanto, a
interpretação sobre os significados independe do nível de aprofundamento de
um sujeito sobre o universo musical. Para aprofundar essas diferenças ou
semelhanças, resta ao leitor mergulhar no texto da autora.
Ana Luiza Paganelli Caldas, no texto “A língua de sinais e os sons: uma
apreciação estética”, propõe-se a refletir junto ao leitor a apreciação dos sons
da e pela Língua de Sinais (LS). A autora, em seu artigo, pretende pensar o
som sob outros pontos de vista, rompendo com a ideia de um conceito centrado
na capacidade sensorial e física de ouvir, refletindo sobre as demais
capacidades de senti-lo, vê-lo, imaginá-lo.
Finalmente, Patrícia Kebach e Viviane Silveira articulam em conjunto o
texto “Apreciação musical e subjetivação”. As autoras pretendem realizar neste
texto um diálogo entre a psicanálise e a epistemologia genética procurando
explicar as relações entre o egoísmo constituinte do sujeito nas atividades de
apreciação, do ponto de vista lacaniano, e o egocentrismo, de um ponto de
vista piagetiano, expresso nas falas dos sujeitos ao referirem-se às sensações
provocadas por uma apreciação musical ativa. Portanto, a estruturação
psíquica, predominantemente subjetiva, derivada das atividades de apreciação
musical, é o foco deste capítulo.
Este livro é o resultado das reflexões coletivas dos integrantes do Grupo
de Pesquisa em Educação Musical (GEMUS), vinculado ao programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Os textos marcam a especificidade das áreas de atuação de cada
integrante. Esperamos poder contribuir com o leitor para aprofundar suas
práticas, a partir das reflexões provocadas pelas diferentes abordagens sobre
apreciação musical deste livro.
P. 13
1 CANTIGAS DE NINAR: FADAS E BRUXAS DE MÃOS DADAS PARA
UM SONO TRANQUILO
Ana Paula Melchiors Stahlschmidt [Nota 1]
Maria Luiza Feres do Amaral [Nota 2]
Regina Finck [Nota 3]
A imagem de uma mãe embalando seu bebê, ao som de um acalanto...
Quem entre nós não associaria tal cena a sensações de bem-estar e prazer?
Talvez universalmente, a mesma remete à ideia de ternura e amor da mãe pelo
seu filho. Afinal, seja na sociedade contemporânea, seja em tribos perdidas no
tempo e na distância, encontramos, constantemente, nas canções de ninar
[Nota 4] um elemento importante, tanto do ponto de vista da relação da mãe
com seu bebê, com as respectivas trocas que ali se realizam, quanto do ponto
de vista cultural, expressando os valores e a concepção de infância construída
por cada sociedade, bem como o imaginário que a permeia, com seus
monstros, deuses, bruxas e fadas, entre outros.
P. 14
A apreciação musical das cantigas de ninar certamente nos remete a
sentimentos cuja origem em nossas vivências pode ser muito antiga. Talvez
possamos mesmo experimentar, ao escutá-las, uma certa sensação de
tranquilidade, fruto de lembranças remotas de nossa própria infância. Isso pode
ser atribuído ao fato de que, dentro do desenvolvimento normal, o bebê, neste
momento inicial de sua vida, percebe-se e percebe o mundo através do adulto
que o toma em seus cuidados, normalmente a mãe, que buscará oferecer-lhe
um ambiente com o mínimo de disrupturas e o máximo de tranquilidade
possível, garantindo ao filho, portanto, proteção e segurança. Os elementos
que remetem a esse tempo inicial, ainda que não possam ser considerados
como memória, que dizem respeito a um período pré-representacional,
evocam a experiência de unidade com a mãe e, consequentemente, conforto e
segurança.
Também tomando como referencial nossa memória mais recente e nos
remetendo a imagens de mães com as quais convivemos, que cantam para
seus filhos, dificilmente nos ocorrerá que outros sentimentos, além dos
relacionados à ternura e ao amor, possam estar presentes. Entretanto, se
analisarmos mais atentamente as canções de ninar de que podemos nos
lembrar, encontraremos muitas vezes não apenas um discurso que remete ao
carinho materno, mas também referências a monstros, cucas, bois e outros
seres aterrorizadores, mencionados muitas vezes como uma ameaça à criança
que não quer dormir. Segundo Florestan Fernandes (apud Jorge, 1988), esses
temas não seriam terríveis em si, mas permitiriam, pelo acalanto folclórico, a
revelação de um medo de teor convencional, em que “os temas apavorantes
dos acalantos ofereciam, no fundo, mecanismos reguladores de disfarce e
manipulação de medo real” (op.cit., p.46). Assim, o teor sinistro de muitas letras
de cantigas de ninar se explica, pois, pela força da palavra, “o ser do medo
pode, sendo nomeado, desaparecer” (op. cit., p.30). Premissa que permeia a
magia oral ou encantamento, os exorcismos, a técnica psicanalítica e, também,
os acalantos.
Por outro lado, a apreciação musical das cantigas de ninar nos levará a
perceber que elementos agressivos e personagens aterrorizadores fazem parte
de um texto cantado ao som de melodias suaves e tranquilas, de forma a
favorecer a necessária monotonia que permite o adormecer. Almeida (apud
Jorge, 1988) justifica o emprego da monotonia, que consiste na repetição do
motivo musical sem variações, considerando esta essencial
P. 15
para fazer a criança adormecer. Para o autor, a monotonia vem com a função
de paralisação do perseguidor, afastamento ou exorcismo do perigo mágico,
pelo uso de algo sonoro que o representa, isto é, a criança não dorme até que
aquilo que está sendo sugerido pela letra esteja imobilizado, apaziguado.
E o que poderia parecer mais surpreendente, os monstros, bruxas e
outros seres aterrorizadores, conjugados às melodias suaves das cantigas de
ninar, normalmente são realmente eficazes na tarefa de tranquilizar a criança,
permitindo que o sono venha...
Jorge (1988) discute amplamente este fato, analisando as contradições
entre letra e sica que podemos encontrar nessas canções. A autora
questiona como o terror poderia fazer uma criança adormecer calmamente e
tece algumas hipóteses sobre o tema, recorrendo à teoria psicanalítica. A partir
desta, analisa os fatores que estariam implicados no ato de acalentar um filho,
fazendo-o adormecer, a função materna e os sentimentos mobilizados na mãe
neste processo. Discute, ainda, a ambivalência com que o filho pode ser
percebido pela mãe. Seria uma lição do desencanto despertando o sentimento
de melancolia na mãe, para quem o filho passa a ser uma sobrecarga. Além
disso, esta, mesmo amando-o, precisa separar-se do bebê para cumprir seus
afazeres, devendo, portanto, ser capaz de também suportar esta separação.
Amor e ódio: a ambivalência materna nas canções de ninar
A ideia da ambivalência materna, ainda que possa suscitar polêmicas e
discórdias, não é recente na psicanálise. Mesmo porque, para esta teoria,
afetos como amor e ódio, embora percebidos como contraditórios, podem
coexistir pacificamente e, muitas vezes, mesmo ser direcionados
simultaneamente para um mesmo objeto. Tentaremos mostrar como a
ambivalência materna pode ser expressa nas canções de ninar, permitindo à
mãe, por um lado, expressar seu amor e carinho por seu filho através da
suavidade das melodias que escolhe para cantar e, por outro lado, manifestar
os sentimentos agressivos que este lhe suscita, através dos textos destas
canções.
Tomemos como exemplo as tradicionais cantigas de ninar “Tutu
Marambá”, “Bicho Papão” (cantigas de ninar tradicionais) e “Acalanto” (Dorival
Caymmi):
P. 16
Tutu Marambá
Tutu Marabá
Não venhas mais cá
Que o pai da menina
Te manda matar
Bicho papão
Bicho papão
Sai de cima do telhado
Deixa o menino
Dormir sossegado
Acalanto
É tão tarde a manhã já vem
Todos dormem a noite também
Só eu velo por você, meu bem
Dorme anjo, o boi pega neném
Lá no céu deixam de cantar
Os anjinhos foram se deitar
Mamãezinha precisa descansar
Dorme anjo, papai foi lhe ninar
Boi, boi da cara preta
Pega este menino que tem medo de careta
Nestas canções, ao som de uma melodia suave, expressam-se também
sentimentos agressivos, materializados na ameaça “te manda matar” ou de que
o boi “pegue” a criança que tem medo. Ficam claras, portanto, a ambivalência
e a contradição contidas no acalanto, fazendo a criança adormecer ante a
ameaça.
Mas, aceitando que tal ambivalência realmente exista, a que poderíamos
creditá-la? Os motivos para amar um bebê não parecem obscuros, mas quais
seriam as razões para odiá-lo? E seria esse ódio, expressado claramente
nessas canções, um elemento patológico, nocivo na relação da mãe com seu
filho e na constituição da criança?
Para discutirmos essas questões, compreendendo o papel das canções
de ninar no desenvolvimento do bebê, podemos remeter-nos à Donald
Winnicott (1975; 1993), com suas postulações sobre a ambivalência materna e
as razões para que esta exista, bem como aos conceitos de objeto e fenômenos
transicionais, discutidos por este autor.
P. 17
Pediatra e psicanalista inglês, cujos trabalhos mais importantes foram,
em sua maioria, escritos entre 1950 e 1970, Winnicott contribuiu enormemente
para a formulação dos conceitos que embasam a psicanálise infantil. Dentro da
“British Psychoanalytical Society”, fez parte do denominado “Middle Group”
(Phillips, 1988), que se estabeleceu entre as teorias de Melanie Klein e Anna
Freud, valorizando tanto a ênfase conferida ao mundo interno pela primeira,
como a importância do ambiente destacada pela segunda. Para Winnicott,
portanto, tanto o mundo interno do bebê como o ambiente que lhe circunda são
considerados importantes, e levados em consideração no entendimento dos
fatores que envolvem sua relação com as figuras parentais. Essa disposição
em valorizar elementos diferentes, conciliando teorias, em alguns pontos até
mesmo contraditórias, talvez explique a importância dos conceitos
“winnicottianos” na compreensão das funções da música na relação mãe-bebê
e desta forma de expressão artística para o ser humano em geral, uma vez que
abre a possibilidade para o não compreendido, para o contraditório, para o
paradoxo. Mas como se daria o processo que faz da música um elemento tão
importante para o ser humano?
Pensemos, inicialmente, nas primeiras relações da mãe com seu filho.
No momento inicial do seu desenvolvimento, como mencionamos
anteriormente, a criança não se concebe como separada da mãe e, desde que
esteja alimentada, aquecida etc., acredita que tudo é ela. Entretanto, ao longo
de seu desenvolvimento, é inevitável que se depare com pequenas frustrações,
por exemplo, ao chorar de fome e verificar que a mãe não a atende
imediatamente. Quando isso acontece, a criança percebe que existe algo “não
eu”, descobrindo a existência da mãe e do ambiente que a cerca. Aos poucos,
vai, então, podendo se conceber como ser separado de sua genitora e do
ambiente.
Como ressaltam Davis e Wallbridge (1982, p.71), “a maturidade (...)
envolve uma aceitação do mundo do ‘não eu’ e uma relação com o mesmo”.
Explicando como Winnicott postulou a articulação necessária entre a área de
realidade e a de fantasia, a partir desta diferenciação da criança com seu
mundo externo, esses autores mencionam a concepção de uma terceira área
de experiência, além das duas anteriormente citadas, caracterizada como uma
área de ilusão, na qual, a partir da onipotência, o bebê pode experimentar a
sensação de criar, conciliando elementos externos e
P. 18
internos. Esta área, denominada “espaço potencial”, é considerada por
Winnicott (1975) o espaço no qual pode acontecer realmente o viver criativo, e
que, mais tarde, na vida adulta, cresce para conter vários fenômenos, cuja
compreensão não permite uma análise exclusivamente objetiva e explicações
inequívocas, como a experiência religiosa ou a arte. Nos momentos iniciais do
desenvolvimento, esse espaço permite ao bebê também criar o que o autor
chamou objetos transicionais, mencionados pela primeira vez em 1951
(Chemama, 1995) e descrevendo o processo em que, para lidar com a
ansiedade provocada pela separação da mãe, as crianças recorrem a
pequenos objetos, como paninhos, bichinhos de pelúcia, travesseirinhos, entre
outros. Winnicott salientou, ainda, que para a criança esses objetos não são
externos, nem internos, uma vez que estão nesta terceira área de experiência
e, neste momento inicial, poderiam ser considerados pré-simbólicos, pois para
a criança não apenas representam a e, mas são percebidos como se fossem
esta. Dentre esses objetos, o autor coloca as canções que os pais cantam para
seus filhos, e mais especificamente, as cantigas de ninar. Tomando essas
como elementos que permitem ao bebê suportar a separação e a ausência
concreta da mãe, não é difícil compreendermos a sensação de segurança a
que normalmente estas nos remetem quando as escutamos posteriormente,
quer na infância quer na vida adulta.
Enfatizando a importância dos objetos transicionais e do espaço
transcional, também chamado espaço potencial, Winnicott frisa, ainda, que
neste último é exercitada a criatividade, considerada em um sentido amplo, e
relacionada não apenas à experiência artística, mas à possibilidade de viver de
forma realmente autêntica. As canções de ninar, portanto, poderiam contribuir
em grande parte para o estabelecimento deste espaço entre a mãe e seu filho
e, consequentemente, para a possibilidade de exercício da criatividade.
Com base nos elementos até aqui mencionados, podemos pensar na
importância da música, e em especial das canções que a mãe canta, para o
desenvolvimento da criança. Permaneceria obscura, porém, a compreensão
dos motivos relacionados às letras agressivas dessas canções, ainda que
cantadas sobre melodias suaves, o que nos remete novamente à ambivalência
materna.
Ao abordar esta questão, Winnicott (1993) lembra que, por mais que uma
mãe ame seu filho, ele representa alterações fundamentais em sua vida.
Explicando mais detalhadamente a ambivalência, cita dezoito
P. 19
motivos para que uma mãe odeie seu bebê, entre os quais estão a diferença
entre sua própria concepção mental do filho e o que ele de fato é, as
preocupações que lhe traz, os perigos que representa para sua própria saúde
e para seu corpo durante a gravidez, suas recusas em relação a ela própria,
entre outros.
Exemplificando os sentimentos agressivos que envolvem a relação da
mãe com seu filho, encontramos não apenas as canções de ninar, mas outras
tantas manifestações. Quem não viu, por exemplo, uma mãe morder seu
bebê, dizendo no tom mais carinhoso frases como minha pestinha? É evidente
que o conteúdo discursivo dessas expressões nada teria de amoroso, mas a
entonação com que são enunciadas, assim como a suavidade das melodias
em que são envolvidos os textos, muitas vezes agressivos, das canções de
ninar, tornam estas expressões, ao mesmo tempo, manifestações de carinho e
de ódio, e abrem a possibilidade de expressão concomitante de afetos como o
amor e a raiva que o bebê provoca em seus pais.
Exemplificando os elementos discutidos, temos a canção “Dorme em
paz”.
Dorme em paz
Paulo Tatit e Luiz Tatit
Só a noite satisfaz
Fim do dia, que alegria
É bom demais.
Vê se dorme em paz
Vem a noite, devagar
Pelo menos deixa o sono te levar
Até despertar
Você levanta todo o dia detonando
Não dá trégua um só minuto
Simplesmente
Vai dizendo que é o chefe do seu bando
E que é herói da nossa gente
Pra nos salvar você nem pensa
Vem e arrasa
Hoje de tarde cê acabou com a nossa casa
Ainda disse que a missão não tá completa
E só parou porque quebrou a bicicleta
Dorme logo
Dorme em paz
P. 20
Dá um tempo
Que amanhã, eu sei
Tem mais
Santo Deus!
Que gás!
Nesse texto, chama a atenção algo que poderíamos entender como um
elemento novo além da agressividade da letra, ou seja, a queixa explícita de
que o bebê “acabou com a nossa casa”, referindo-se ao menino agitado que
não para e tumultua o ambiente doméstico. Da mesma forma, essa música,
composta recentemente, possui um andamento mais acelerado do que o
normalmente empregado em canções de ninar. Diferente da tradição envolvida
nestas últimas e, ao contrário do esperado, quem canta não é uma mulher, uma
mãe, mas um homem, um pai. Como outro exemplo deste novo modo de
acalentar um filho, sendo colocada nesta função, que poderíamos considerar
uma função materna, um homem, provavelmente o pai da criança, temos
também a canção “Pro neném nanar”.
Pro neném nanar
(Paulo e Zé Tatit)
O que um pai pode fazer
Pro nenê nanar
O que é que um pai pode fazer
No meio da noite
Pro nenê nanar
Venha cá no colo
Pequenina tão manhosa
Que eu canto a velha bossa nova
Que o papai pode fazer
Pro nenê nanar
O que é que um pai pode fazer
No meio da noite pro nenê nanar
Agora está sequinha
Mamou toda a camomila
Só falta uma voltinha até a esquina
O que mais posso fazer
Pro nenê nanar
P. 21
O que um pai pode fazer
No meio da noite pro nenê nanar
Ouça essas canções
Da tua fita de ninar
Ela foi feita pra dançar
O que um pai pode fazer pro nenê nanar
Assumindo outras funções: o papel do pai na canção de ninar
Considerando a inclusão do pai nesta função de acalanto, que diferenças
poderíamos observar em relação às canções originais? Haveria modificações
nas letras ou melodias cantadas por um pai para fazer seu filho adormecer,
como observamos na canção anterior? Dito de outra forma, poderíamos
esperar diferenças entre os sentimentos provocados pelo bebê em seu pai ou
em sua mãe?
Para responder a essas questões, temos que recorrer novamente aos
personagens que compõem a canção infantil: cucas, monstros, deuses e
demônios. Que papéis desempenhariam esses personagens no imaginário da
mãe e de seu filho? Sendo assim, é importante mencionar Florestan Fernandes
apud Jorge (1988). Para ele o medo gerado por esses seres não provém, direta
ou indiretamente, dos temas abordados nas cantigas de ninar. Com frequência,
a criança tem medo do escuro ou da solidão. Ela encontra no acalanto e nas
cantigas de ninar, graças às relações com os adultos, uma espécie de conforto,
de segurança e de proteção, que a amparam no ajustamento a essa delicada
fase da rotina diária, do que o autor conclui que a interação humana constitui o
principal fator psicodinâmico do controle do medo.
Ao analisar as funções dos personagens aterrorizantes e míticos, Jorge
(1988) situa-os como terceiros na relação na qual inicialmente existem dois:
uma mãe e seu bebê. A autora ressalta, a partir de Lacan, a importância desse
terceiro, após o estabelecimento de um olhar da mãe sobre o seu filho, o que
Winnicott (1975), sob outro enfoque, também marca como importante, uma vez
que é através deste olhar que o bebê pode passar a ter alguma percepção de
si. Ou seja, se o olhar da mãe espelha seu afeto, o bebê pode perceber-se
como desejado, querido. Do ponto de vista do bebê, entretanto, neste
momento, e e bebê são percebidos como um. Em que momento haveria
dois, então? Ogden (1996) aborda bem esse processo ao relatar que, uma vez
que mãe e
P. 22
bebê inicialmente são vistos como um do ponto de vista do bebê, existirão
dois a partir da inclusão de um terceiro, que marque para o bebê a diferença
entre ele e o ambiente, que poderíamos pensar como um além mãe bebê,
representado normalmente pelo pai, cuja função seria justamente intervir na
relação da mãe com seu filho, representando um corte nesta relação.
A função paterna, nas canções de ninar, portanto, é normalmente
representada pelos seres que vêm separar a mãe do bebê: o boi que vem
pegar, a cuca, o bicho-papão ou mesmo o trabalho da mãe, que vai para a roça.
Podemos pensar, entretanto, que no momento em que é o pai quem canta
essas canções, sua função de interdição entre a mãe e o filho aparece no
próprio ato de acalentá-lo, ainda que neste momento esteja exercendo os
cuidados que caracterizam a função materna. Poderíamos supor, assim, que
neste momento o pai conjuga, em seus atos, função materna e paterna?
Muitas dessas perguntas permanecem sem resposta, abrindo espaço
para questionarmos e repensarmos o tão rico universo que compõe as canções
de ninar. Dessa forma, fazendo-se uma análise das cantigas de ninar
folclóricas, bem como de outras mais atuais, observa-se que o conteúdo das
letras mudou. Antes, era o embalar da mãe aconchegando o filho em seu colo
que fazia a criança dormir. Hoje, na própria letra das canções, não
subterfúgios. Fala-se abertamente sobre as complicações de se ter uma
criança em casa. Além disso, percebe-se, nessas canções, as mudanças
sociais assumidas pela figura paterna. É o caso do pai perguntando-se “o que
pode fazer para o nenê nanar” ou, saindo para dar “uma voltinha até a esquina”
na esperança de adormecê-lo. Fica evidente, também, que as canções de
ninar, modernas ou não, continuam sendo importantes nos laços do bebê com
seus pais, suas funções na constituição da criança como sujeite, e seu
significado para o desenvolvimento de sua criatividade, bem como na
transmissão de valores culturais.
Apreciação de canções de ninar: as contradições do ponto de vista
de um grupo de alunos
A partir de colocações feitas sobre as contradições presentes nas
canções de ninar e da discussão de conceito: como ambivalência, funções
materna e paterna e outros aspectos da relação pais/bebê, foi solicitado a um
grupo de alunos de um seminário do PPG-EDU/UFRGS que analisasse a
canção “Dorme” (Arnaldo Antunes) interpretada por Arnaldo Antunes e Zaba
Moreau.
P. 23
Dorme
(Arnaldo Antunes)
Para-raio, dorme
Temporal, dorme
Vaga-lume, dorme
Abajur, dorme
Ambulância, dorme
Camburão, dorme
Travesseiro, dorme
Meu amor, dorme
Luiz Gonzaga, dorme
Sentinela, dorme
General, dorme
Caravela, dorme
Carnaval, dorme
Candelária, dorme
Candomblé, dorme
Cambalhota, dorme
Bambolê, dorme
Pensamento, dorme
Os alunos identificaram as seguintes contradições:
- voz masculina, com registro grave, diferente do que normalmente se
espera na execução de uma canção de ninar;
- palavras usadas na letra evocando elementos assustadores, como, por
exemplo, temporal, camburão, sol e carnaval, contraditórios à expectativa da
tranquilidade e convite ao sono;
- frase musical monótona e repetitiva, induzindo ao sono, em contraste
com os conteúdos do texto. Voz grave em movimento descendente
contrastando com a suavidade da voz feminina;
P. 24
- as primeiras palavras dos versos caracterizam-se como substantivos,
havendo troca destes para cada nova frase. A contradição aparece na
sequência com o emprego do verbo, no caso, dormir, sendo que este se repete
do início ao fim, no modo imperativo;
- os versos da canção são caracterizados em diferentes categorias:
1. tátil;
2. visual;
3. auditivo;
4. abstrato;
5. espiritual;
6. poder;
7. coletivo;
8. religioso;
9. brincadeira;
10. abstrato;
11. relaxamento;
- há contradição quanto ao significado nas seguintes palavras da letra:
1. para-raio - protege do temporal.
2. ambulância salva - camburão prende.
3. sentinela - cargo inferior ao do general.
4. candelária Igreja - candomblé ritual.
5. cambalhota - movimento circular diferente do realizado pelo bambolê.
6. pensamento razão - sensação emoção.
Considerações finais
As análises dos alunos apontam para a presença das ambiguidades e
contradições, discutidas pelos autores e anteriormente mencionadas, entre
texto e melodia nas canções de ninar, evocando também a presença dos
elementos agressivos descritos por estes autores.
Por outro lado, fica evidente, também, a eficiência dessas canções em
sua função de favorecer o ambiente propício ao sono, permitindo
simultaneamente a expressão dos sentimentos de ambivalência dos pais, em
relação ao bebê.
P. 25
Tais considerações tornam-se relevantes quando nos deparamos, em
diversos segmentos do contexto cultural e educacional brasileiro, com
preocupações quanto aos efeitos das canções infantis e seus conteúdos,
considerados eventualmente por pais e profissionais como agressivos e,
portanto, inadequados ao universo infantil. Com frequência nos deparamos
com esta questão, trazida por pais e professores: as letras das canções infantis,
ao evocar seres aterrorizadores e ações agressivas, não poderiam estimular a
violência?
Diante de um contexto em que a violência torna-se uma das principais
preocupações de pais e professores, surgem adaptações visando a uma
suavização dos elementos considerados agressivos, e o “Atirei o pau no gato”,
por exemplo, ganha versões com o texto modificado para “Não atire o pau no
gato, por que isso não se faz, o gatinho é seu amigo, não devemos maltratar
os animais”.
Ao mesmo tempo, circulam na internet textos diversos,
responsabilizando as letras agressivas pela condição econômica e a
desigualdade social presentes no país, alertando para o risco de sua
reprodução pelas crianças.
Sobre isso, é preciso salientar, em primeiro lugar, que o conteúdo das
canções, entendido como agressivo, não é privilégio do imaginário infantil
brasileiro. Como lembra Winnicott (1993, p.352), uma das canções, na língua
inglesa, mais conhecidas e antigas, diz, em sua tradução: “Balance o bebê, no
topo da árvore, quando o vento soprar o berço vai balançar, quando o galho
quebrar, o berço cairá, e o bebê vai cair, com berço e tudo”.
Como podemos observar, não ocorre um incremento da violência
doméstica ou da incidência de maus-tratos em famílias, cujas canções estão
presentes. Ao contrário, o ato de cantar para o bebê permite um fortalecimento
dos laços entre este e seus cuidadores, especialmente se considerarmos a
similaridade entre a música e o “manhês”, modo de falar utilizado por adultos
em posição materna na comunicação com os bebês (Stahlschmidt, 2002).
Muito antes de um estímulo à violência, as canções de ninar representam, para
uma mãe que as canta para seu bebê, uma forma de inseri-lo na cultura e nos
significantes que compõem a história familiar, uma vez que a escolha do que
cantar remete, em grande parte dos casos, às próprias vivências de quem
canta.
Por outro lado, como podemos perceber diante dos aspectos
mencionados pelos autores que abordam o tema, bem como na análise
realizada pelos alunos frente à audição de uma canção de ninar
contemporânea, a apreciação musical não se dá baseada unicamente no texto.
Letra e música devem ser analisadas conjuntamente, o que leva o grupo de
alunos men-
P. 26
cionado neste trabalho a ressaltar, apesar dos elementos percebidos como
contraditórios, o prazer proporcionado na audição.
O “Boi da cara preta”, assim como o personagem de “Atirei o pau no
gato”, são, antes de seres ameaçadores ou ameaçados, parte importante do
universo infantil e do folclore brasileiro. Antes do terror e da violência, trazem,
portanto, o contexto cultural de que fazem parte. Mais importante do que a
preocupação com o conteúdo das canções, portanto, é o estímulo ao contato
com a música que pais e professores podem proporcionar aos bebês e crianças
pequenas através do canto. Nesse contexto em que, assim como no sonho e
no inconsciente, contradição e ambivalência são esperadas e mesmo
necessárias, cucas, monstros, deuses, bruxas e fadas, seres protetores e seres
aterrorizadores, podem estar de mãos dadas, permitindo à criança lidar com
suas ansiedades, transformadas em medo através da canalização para um
personagem e, ao mesmo tempo, tomar contato com o rico imaginário de que
fazem parte e que, geração após geração, compõe histórias e canções
presentes na cultura brasileira.
Referências
DAVIS, M.; WALLBRIDGE, D. Limite e espaço: uma introdução à obra de D.W.
Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
JORGE, A. L. C. O acalanto e o horror. São Paulo: Escuta, 1988.
OGDEN, T. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
PERES, S.; TATIT, P. Canções de ninar. Coleção Palavra Cantada,
1994. I CD, digital estéreo.
PHILLIPS, A. Winnicott. Cambridge: Harvard University Press, 1988.
STAHLSCHMIDT, A. P. M. Enquanto soa o prelúdio: as canções e sua função
na relação mãe-bebê. In: BERNARDINO, L.; ROHENKOHL, C. M. F.
(Orgs.). O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
WINNICOTT, D. W. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1993.
______. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
P. 27
2 APRECIAÇÃO MUSICAL: CONCEITO E PRÁTICA NA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Kelly Stifft [Nota1]
É proposição compartilhada entre professores de música e teóricos da
área que o currículo de música deve incluir atividades de execução, criação e
apreciação. Este tripé pode ser encontrado, por exemplo, no modelo (T)EC(L)A
de Swanwick onde execução, composição e apreciação consistem nos
parâmetros ou atividades indispensáveis para o desenvolvimento dos
conhecimentos musicais, sendo a técnica e a literatura elementos
complementares neste processo (Swanwick apud Hentschke, 1996, p. 13).
Segundo esse autor, uma vivência musical pode dar-se em três grandes
dimensões. Na dimensão material, a atenção está voltada para as qualidades
do som em si, para a forma pela qual os sons são manipulados; na dimensão
expressão, a atenção volta-se para os aspectos expressivos da música, seu
caráter alegre ou triste, leve, denso etc.; na terceira dimensão, chamada forma,
a atenção volta-se para a organização dos sons no tempo, para as relações
entre os gestos musicais, para a estrutura da música - frases, períodos, partes
(Hentschke; Del Ben, 2003, p. 179).
Frega (1997) também inclui, em seu modelo curricular, atividades de
audição, além de outras, como canto, percussão corporal, movimento e
atividade instrumental considerando-as situações de aprendizagem em que
serão desenvolvidas habilidades específicas como escutar a música, cantar e
emitir a voz corretamente, ter destreza na execução de instrumentos musicais
e hábitos de trabalho em conjunto. Brito, por sua
P. 28
vez, citando Ferraz, (2003, p.57) considera o fazer musical “o contato entre a
realização acústica de um enunciado musical e seu receptor, seja este alguém
que cante, componha, dance ou simplesmente ouça”. Assim, vemos que
diferentes autores incluem esse aspecto da experiência musical em suas
abordagens de ensino e, mesmo utilizando termos diferentes entre si, como
audição, escuta musical ou ouvir musical, podemos perceber que se tratam de
reflexões sobre apreciação.
Apesar dessas e outras propostas curriculares que buscam uma
experiência musical ampla, a prática apresenta ainda certa defasagem, e o
equilíbrio entre estas três grandes dimensões da experiência musical, a saber,
execução, criação e apreciação [Nota 2], não é a realidade em todos os
espaços de educação musical. Escolas mais tradicionais, por exemplo,
enfatizam a execução ou performance, o que é visto na valorização de grupos
instrumentais ou vocais e na relevância conferida aos recitais. Os cursos
alternativos de música, em suas propostas arrojadas, frequentemente
valorizam a criação, contrapondo-se radicalmente ao modelo tradicional. O
problema desta prática é que, algumas vezes, ela consiste apenas em um
espaço de expressão de emoções e ideias através da música, aproximando-se
da tendência do maturacionismo (Beyer, 2000, p.45).
Considerando-se a tríade execução, criação e apreciação como
principais modos de interação com a música, a apreciação talvez encontre
menor espaço nas práticas atuais. Possivelmente a causa desta utilização
menos expressiva da apreciação (falando em termos quantitativos) seja pelo
fato de que seu produto é menos visível em relação à execução e à criação, ou
talvez a causa esteja na carência de definição do que é a apreciação. Desta
forma este capítulo se propõe a revisar alguns trabalhos cujo tema é apreciação
bem como refletir sobre a apreciação na educação infantil (bebês até crianças
de seis anos).
A apreciação, segundo Larousse, é o ato de apreciar; estima, avaliação;
julgamento, observação. Consiste então em uma atividade de base, de
reflexão, de atribuição de significados à música e à prática musical.
P. 29
Brito (2003, p. 187) vem falar a respeito de apreciação, ou escuta sonora e
musical, dizendo que “faz parte do processo de formação de seres humanos
sensíveis e reflexivos, capazes de perceber, sentir, relacionar, pensar,
comunicar-se”. Bastião (2004, p. III5) utiliza o termo “audição musical ativa”
dizendo ser este o termo mais frequentemente empregado para referir “a uma
escuta mais consciente da música, considerando, sobretudo, o envolvimento
efetivo e inventivo do aluno nas diversas maneiras de perceber e reagir à
música escutada”.
A referida autora reflete também sobre uma forma mais aprofundada de
se trabalhar com apreciação. Para Bastião a apreciação musical pode ser bem
mais abrangente e significativa, se além de desenvolvermos o senso crítico e
analítico do aluno, possibilitemos que o mesmo também responda à música de
formas diferenciadas, com aquilo que pensa, sente e vivência na sua
experiência pessoal com a música. Esta é uma contribuição importante para a
educação musical, na medida em que amplia o olhar do educador para o
planejamento de atividades de apreciação de modo que ele possa focar tanto
o senso crítico (estético) e analítico (forma, tonalidade, estilo, etc.), quanto os
aspectos de significação pessoal (pensamentos, sentimentos, vivências) a
partir da obra apreciada.
No entanto, ao revisarmos propostas de apreciação musical, podemos
observar que, frequentemente, elas não se apresentam tão amplas quanto a
proposta de Bastião. De modo geral, prioriza-se apenas um dos aspectos, o
crítico, o analítico ou o pessoal. Segundo Schroeder e Schroeder (2004, p.996),
as propostas de apreciação estão calcadas em duas concepções, ou dois
modos de olhar a música. O olhar de dentro que é mais analítico e preconiza a
produção, a técnica, o fazer musical e o olhar de fora, que descreve as
condições em que a obra foi feita, seu contexto, abrangendo curiosidades e
fatos históricos e geopolíticos sobre a obra. Para os referidos autores, como
para Bastião, a apropriação da música só é possível quando ela passa a fazer
sentido. Assim, sua proposta de apreciação musical considera os sentidos
contextuais (informativos), técnicos (gramaticais), mas principalmente os
sentidos estéticos, aquilo que torna a arte diferenciada das demais produções
culturais (Schroeder; Schroeder, 2004, p.996). Embora os autores utilizem
termos diferentes, podemos observar uma correspondência entre o aspecto
crítico e o sentido contextual, entre o aspecto analítico e o sentido técnico e,
finalmente, entre o aspecto pessoal e o sentido estético.
P. 30
Lazzarin (1999, p.78), citando Meyer, aponta dois tipos de significado
musical, assemelhando-se aos dois modos de olhar a música citados por
Schroeder e Schroeder. o significado designativo que “refere-se a algo
diferente do estímulo em espécie” e o significado agregado que corresponde
ao estímulo proposto.
Mas o que é apreciação como processo de construção do conhecimento
musical? Bamberger (1994, p. 131) considera que ouvir música é um processo
instantâneo de resolução de um problema perceptual, ou seja, um processo
ativo de dar sentido a algo. Para a autora, ouvir de um modo novo, diferente, é
uma forma de enriquecer a compreensão musical. Ouvir é uma atividade tanto
criativa como receptiva entre a música (matéria) e o ouvinte, que é quem
significa e personaliza a matéria musical (op. cit. p. 133). Santos, citando
Delalande, reafirma esta ideia da dinâmica na audição musical (mão dupla)
quando diz que “a música é um conjunto de condutas de produção e recepção
convergindo em um objeto onde condutas e objeto se determinam
conjuntamente” (Santos, 2004, p.342), ou seja:
no caso da produção, ao mesmo tempo em que o compositor
forma ao objeto, ele também regulariza sua conduta sobre
o objeto que está sendo feito. E, do ponto de vista da recepção,
pode-se dizer que a escuta se conforma à música, sem dúvida,
mas, em contrapartida, ela compõe o objeto à sua maneira.
Atividades de apreciação podem ser realizadas até mesmo antes do
nascimento. De Casper (Klaus; Klaus, 1989, p.59) mostrou, através de
diferentes experimentos, que recém-nascidos reconhecem músicas ou
histórias que lhes foram contadas repetidamente antes do nascimento. Neste
capítulo, no entanto, vamos abordar a apreciação após o nascimento
procurando refletir sobre a construção do conhecimento nesta área, em
diferentes etapas da infância.
Realizamos um estudo de observação de diferentes grupos de educação
infantil, a saber: Grupo A (bebês entre um e seis meses), Grupo B (bebês entre
18 e 24 meses), Grupo C (crianças entre dois e quatro anos), Grupo D (crianças
entre quatro e seis anos), Grupo E (crianças entre cinco e seis anos com ampla
estimulação musical). Os bebês dos grupos A e B foram observados a partir de
fitas de vídeo coletadas durante aulas do programa Música para Bebês
(UFRGS/IA/Extensão em Música).
P. 31
As crianças dos grupos C e D foram observadas em suas respectivas aulas de
música em uma escola regular privada de Porto Alegre. O grupo E é formado
por alunos de uma escola de música de Porto Alegre que têm experiências
musicais formais (em grupos de estimulação) desde bebês e, atualmente,
iniciam o aprendizado de um instrumento específico, além de ter aulas de
musicalização e de música em suas escolas de educação infantil.
Esses diferentes grupos participaram de uma atividade de apreciação da
música “Tenho uma boneca”, tradicional da Argentina, encontrada no CD
Felices Juegos, com duração de 2’45”. Cada grupo foi observado respeitando
as características da idade. Dessa forma, nos bebês dos grupos A e B focaram-
se os diferentes movimentos, olhares, respostas corporais; nas crianças entre
dois e seis anos buscou-se, nas falas sobre a música, os dados para a
pesquisa. Partimos da premissa de que a construção do conhecimento musical
através da apreciação está diretamente ligada a dois fatores: desenvolvimento
geral da criança e suas vivências musicais específicas.
Nos grupos A e B, a proposta foi ouvir a música e observar os
movimentos de balões coloridos em um grande plástico transparente que era
balançado sobre as crianças. Pudemos verificar que os bebês entre um e seis
meses evidenciaram uma postura de inatividade alerta ou de atividade alerta.
Esses termos foram criados por Wolff e Prechtl (apud Klaus; Klaus, 1989, p.
18), os quais descreveram seis estados de sono e vigília no bebê, segundo
características típicas observadas nos mesmos. No estado de inatividade
alerta, os bebês se movem muito pouco, mantêm um olhar fixo, e canalizam
toda sua energia para ouvir. no estado de atividade alerta, os bebês se
movimentam com frequência, fazem vocalizações, movimentos de olhos, de
pernas e braços, corpo e face. Durante a audição pudemos observar alguns
bebês caracterizando o estado de inatividade alerta, permanecendo quase
imóveis, com os olhos fixos no plástico com balões, com uma expressão facial
de concentração parecendo desejar absorver todas as informações do mundo
externo. Outros bebês revelaram um estado de atividade alerta com constantes
movimentos de braços e pernas, a cabeça e os olhos buscando ativamente
captar informações.
No grupo B, com bebês de 18 a 24 meses, houve uma modificação nas
ações. Alguns dos bebês desse grupo haviam participado desta atividade
anteriormente quando eram menores. Os bebês do grupo B espontaneamente
levantaram-se e passaram a balançar o plástico com balões
P. 32
imitando os adultos. Sua apreciação apresentou características de autonomia,
de jogo imitativo, de corporalidade.
Após ouvir a música “Tenho uma boneca” perguntei às crianças de dois
a quatro anos (Grupo C) o que elas gostariam de dizer sobre a música. Então
elas verbalizaram as seguintes frases:
- Tem um Power Ranger.
- Tem um lobo.
- A música é legal.
- Eu gostei de deitar.
- Eu gostei daquilo que tava pingando.
- Eu gostei do barulho que faz pimpimpim.
- Por que não tá terminando?
(Depoimentos das crianças)
Vemos nessas falas que as crianças, algumas vezes, se reportam a
elementos extramusicais como um Power Ranger ou um Lobo, ou verbalizam
situações do seu contexto como ouvir a música deitado, ou mesmo sua
inquietação pela demora da música. Tal reação foi descrita por mim em
trabalhos anteriores (Stifft; Beyer 2004; 2005), em que aponto que as crianças,
ao ouvirem uma canção de ninar, referem-se a aspectos da própria imaginação,
à função da música, a sentimentos, lembranças e desejos pessoais, a sua
impressão da música e a situações significativas do seu contexto evocadas
pela audição. Para esta análise, ainda é importante observarmos que, ao falar
de determinados sons apreciados, estas crianças também utilizam elementos
extramusicais, mencionando um determinado som como “aquilo que tava
pingando” ou “o barulho que faz pimpimpim”.
As crianças de quatro a seis (Grupo D) também se expressaram
verbalmente após a audição da música:
- Parece de dormir.
- Eu adorei a música. Ela é de bebê, né?
- Não gostei!
- Eu acho que tinha metalofone.
- Eu gostei dos pinguinhos, dos pinguinhos que batiam...
- Eu achei a música bem educativa. Porque ela tem a ver com
educação.
- Eu achei que ela ensina a criança a escutar melhor as
músicas.
(Depoimentos das crianças)
P. 33
Suas falas revelam ideias semelhantes às das crianças do Grupo C, com
elementos extramusicais como os “pinguinhos que batiam”, porém, com mais
expressão de opinião sobre a obra e busca de contextualização (parece de
dormir; é de bebê). Apenas uma criança mencionou um instrumento musical
ouvido durante a apreciação, o metalofone.
Neste momento, podemos inferir que a hipótese de que a construção do
conhecimento musical através da apreciação, parece estar diretamente ligada
ao desenvolvimento geral da criança está correta, pois pudemos verificar que
as respostas das crianças se modificam conforme a idade, tornando-se mais
complexas e vinculadas com a obra apreciada na medida em que a idade
aumenta.
A análise das respostas do grupo E, por sua vez, vem confirmar a
hipótese de que, além da idade, as vivências musicais específicas da criança
são um fator relevante para o desenvolvimento nesta área. Este último grupo
observado mostrou-se muito mais voltado para os elementos musicais, mais
especificamente para os instrumentos percebidos na obra, sem desconsiderar
a opinião pessoal e a contextualização da obra. Suas falas:
- E de xilofone, eu acho que tem flauta no final.
- Eu ouvi um piano, acho que é só isso.
- Eu acho que tem um piano, um pianinho bem fraquinho e um
sino.
- Ela era bonita, parecia que estavam tocando flautas.
- Me parece xilofone.
- Eu imaginei um bebê engatinhando no quarto dele.
(Depoimentos das crianças)
Nem todas as respostas estão corretas quanto aos instrumentos
utilizados na obra, porém nosso interesse neste momento está no fato de que
essas crianças utilizaram termos da música para falar sobre a música,
revelando que possuem alguns subsídios para expressarem-se nesta área
sem necessitar de recursos figurativos como os pinguinhos ou barulhos
utilizados pelas crianças dos grupos C e D, as quais tiveram menor estimulação
musical específica.
Este último grupo (E) participou ainda de outra proposta de apreciação.
Nesse segundo momento propusemos uma canção para ser apreciada.
Escolhemos a música “Ciranda”, de Sandra Peres e Tatit, do CD Canções
de Brincar, da Palavra Cantada, com duração de 3’44”. As
P. 34
crianças participaram de diferentes modalidades de apreciação. Inicialmente
ouviram a sica deitados, em seguida dançaram, acompanharam a música
com instrumentos de percussão, fizeram desenhos individuais e verbalizaram
suas impressões sobre a canção no grupo.
No momento do registro gráfico, as crianças ficaram numa disposição
em que não podiam ver os demais desenhos, para assegurar que não
houvesse influência entre os registros. Todos os desenhos coletados
apresentaram os instrumentos utilizados para acompanhar a canção,
evidenciando o interesse destes alunos pelos elementos musicais. Mesmo
tendo uma letra como primeiro plano (tratava-se de uma canção), eles voltaram
suas atenções para a parte instrumental.
As falas também estão relacionadas ao aspecto instrumental da canção
e incluem ao mesmo tempo algumas ideias do texto ou impressões pessoais
sobre a música:
- Tem flauta, uma mulher cantando, pandeiro, piano, chocalho.
- Violino, piano, flauta, violão e a cantora, eu acho que tem isso.
Uma escola com alunos e que tá cantando uma música. Ela tá
num sol, do lado de fora.
- Cantando que tem gente pegando os brinquedos dela, dele.
- É uma cantora e ela tá tocando piano, tinha um sol dentro, na
música, o palco.
- Uma mulher cantando com uma voz fina sobre emprestar os
brinquedos
(Depoimentos das crianças)
Concluímos retomando a ideia de Bamberger, concordando que as
crianças que participaram desta proposta de apreciação buscaram ativamente
dar sentido à música apreciada. Vimos neste estudo que à medida que as
vivências musicais são ampliadas, o sentido atribuído à música torna-se
também mais musical. As ideias aqui trabalhadas propõem-se, dessa forma, a
estimular as vivências musicais para bebês e crianças pequenas, pois isso é,
como argumenta Bamberger, “uma forma de enriquecer a compreensão
musical”.
As escolas de educação musical infantil devem estar atentas para essa
questão, oportunizando que mesmo as crianças bem pequenas possam ouvir
música e agir sobre ela de diferentes maneiras: dançando, ouvindo deitadas
com os olhos fechados, fazendo comentários pessoais sobre a música,
participando de exercícios que trabalhem a forma ou o caráter ou a tonalidade
ou outros elementos em evidência na obra apreciada,
P. 35
desenhando sobre a música, com a música... Uma mesma obra musical pode
ser trabalhada em vários momentos, privilegiando em cada momento um
aspecto da apreciação.
A apreciação permitirá às crianças construírem esquemas mentais que
possibilitem novas produções sonoras, ou seja, organizações posteriores sobre
forma, timbres, ritmos, intensidades e variações na dinâmica para obter
determinados resultados em execuções ou criações, como terminar uma
criação, etc. A apreciação é, como dito anteriormente, uma atividade de base,
que, além de ser em si mesma uma dimensão da experiência musical, abrange
a função de complemento das demais experiências (execução e criação).
Referências
BAMBERGER, J. Corning to hear in a new way. In: AIELLO; SLOBODA.
Musical perceptions. New York/Oxford: Oxford University Press, 1994.
BASTIÃO, Z. A. Pontes educacionais: uma proposta pedagógica em
apreciação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 13., 2004, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2004. CD-ROM.
BEYER, E. Tendências curriculares e a construção do conhecimento
musical na primeira infância. In: ENCONTRO ANUAL DAABEM. Anais... Belém,
2000.
BRITO, T. A. de. Música na educação infantil: propostas para a formação
integral da criança. São Paulo: Peirópolis, 2003.
FREGA, A. L. Metodologia comparada de Ia educación musical. Buenos
Aires, 1997.174p. Tese (Doctorado em Música) - Collegium Musicum de
Buenos Aires.
HENTSCHKE, L. Um estudo longitudinal aplicando a teoria espiral de
desenvolvimento musical de Swanwick com crianças brasileiras de faixa etária
de 6 a 10 anos de idade. In: Música: pesquisa e conhecimento. Porto Alegre:
NEA/UFRGS, 1996.
HENTSCHKE, L.; DEL BEM, L. Aula de música: do planejamento e
avaliação à prática educativa. In: Ensino de música: propostas para pensar e
agir em sala de aula. São Paulo: Moderna, 2003.
KLAUS, M.; KLAUS, P. O surpreendente recém-nascido. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
P. 36
LAZZARIN, L. F. Ouvir música com significado: um desafio possível. In:
BEYER, E. (Org.). Ideias em educação musical. Porto Alegre: Mediação, 1999.
SANTOS, F. C. Aquatisme: uma experiência de escuta com crianças.
ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 13., 2004, Rio de Janeiro. Ana/s...Rio de
Janeiro, 2004. CD-ROM.
SCHROEDER, S. C. N.; SCHROEDER J. L. Conversas sobre música:
uma experiência de apreciação musical junto a educadores. In: ENCONTRO
ANUAL DA ABEM, 13., 2004, Rio de Janeiro. Anais....Pão de Janeiro, 2004.
CD-ROM.
STIFFT, K.; BEYER E. O significado das canções de ninar para adultos
e crianças. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COGNIÇÂO E ARTES
MUSICAIS, I., 2005, Curitiba. Anais... Curitiba, 2005.
_____. Canções de ninar: refletindo sobre o seu significado. In:
ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 13., 2004, Rio de Janeiro. Anais...Pão de
Janeiro, 2004. CD-ROM.
P. 37
3 APRECIAÇÃO MUSICAL ATRAVÉS DO GESTO CORPORAL
Márcia Cristina Pires Rodrigues [Nota 1]
É comum, nas aulas de música, que os educadores utilizem como
recurso pedagógico o gesto, o movimento corporal para trabalharem com seus
alunos alguns fatores relevantes para a construção do conhecimento musical,
sendo o gesto corporal umas das formas de vivenciarmos a música.
Ao apreciarmos uma música, ao reproduzirmos uma obra, ao criarmos
acordes, estamos envolvidos pelo movimento. Todo o controle neuromuscular
necessário para executarmos satisfatoriamente qualquer instrumento musical
ou cantarmos uma canção está ligado ao conhecimento do movimento
específico da ação realizada. Esse mesmo conhecimento é buscado pela
dança em cada gesto expressivo, o corpo em ação poética traduzindo, através
da sincronia entre música e movimento, todo o potencial expressivo destas
duas artes complementares.
Qual a relação estabelecida entre a música e a dança? Como a dança
pode contribuir para as aprendizagens em música? Como podemos apreciar
uma obra musical através do gesto expressivo?
Este texto tem por intenção refletir sobre essas questões, procurando
contribuir para o trabalho dos educadores, tanto da música como da dança,
trazendo uma forma diferente de apreciação musical.
Estabelecer uma relação entre estas duas artes, procurando perceber
suas significações, é extremamente complexo, pois cabe o amparo de
P. 38
leituras de várias áreas do conhecimento, como a filosofia, a antropologia, a
linguística e a semiologia. Na verdade, o que nos importa no momento é a
inegável ligação entre a música e a dança e a relevância de um trabalho que
as envolva, explorando os benefícios característicos de cada uma delas.
Música e dança: artes afins?
Pelas palavras de Dionísia Nanni, podemos pensar no corpo como um
instrumento musical, não só pela voz, mas também pela manifestação do ritmo
através do movimento corporal: “a dança é o impulso vital do movimento
biológico, é uma necessidade intrínseca do ser humano de manifestar ritmo, de
comunicar-se com seus semelhantes através do físico, do mental e do
emocional” (1995, p. 132). Todo o corpo envolvido pela musicalidade do gesto,
traduzindo a reconstrução dessa necessidade intrínseca que é o movimento.
De acordo com Feist, no livro “Pequena viagem pelo mundo da arte”
(2003), quem diga que a dança é a arte mais antiga do mundo. Apesar deste
fato não ter sido comprovado, as pinturas pré-históricas encontradas na
caverna de Lascaux instigam nossa imaginação. Se havia dança, havia
também, mesmo que intrínseco, algum ritmo? O que pode ter surgido primeiro,
o gesto instigado pela musicalidade do corpo, ou os sons da natureza que
produziram o impulso para o movimento?
O movimento, muitas vezes, é provocado pela música, ambos
caminhando juntos, um completando o outro. Dançar sem música não libera os
estímulos espontâneos e ouvir uma música e não se movimentar é quase
impossível, pois as ligações das raízes dos nervos auditivos estão largamente
espalhadas pelo nosso corpo e são mais longas que quaisquer outros nervos.
Entretanto, podemos nos questionar: a dança acontece com a música, pela
música ou, ainda, apesar da música?
Sim, a dança pode acontecer apesar da música, mas estes gestos
expressivos acontecerão por uma musicalidade própria, provocada por ritmos
espontâneos, corporais, referentes a quem está executando. Portanto, não
a música incita o movimento, como também, o movimento poderá produzir a
sua música.
Susanne Langer, em seu livro “Filosofia em nova chave” (1989), expõe
a crença no poder dos efeitos da música sobre o físico. Na verdade,
P. 39
não nenhum registro autêntico sobre o assunto, o que se sabe é que a
música é capaz de alterar o ritmo da pulsação e da respiração, facilitando ou
perturbando a concentração, excitando ou relaxando o organismo enquanto
durar o estímulo. Além disso, provoca impulsos de cantar, tamborilar, ajustar o
passo ao ritmo musical.
Quando observamos as relações existentes entre a música e a dança,
além de constatarmos uma forte ligação, não podemos negar também que
estas artes apresentam contribuições mútuas em seu processo de ensino.
Para analisarmos o envolvimento entre a música e a dança é importante
conhecermos os possíveis significados vinculados atribuídos a elas.
Primeiramente, tanto a música quanto a dança são intraduzíveis em palavras,
pois assim, certamente estaríamos reduzindo suas dimensões. Em relação à
música, Langer (op.cit.) coloca que esta possui uma ambivalência de conteúdo
que as palavras não podem ter.
Outro autor que aborda esta condição não verbalizável da música é
Wisnik (1989). Para ele, a música proporciona a plena entrada nos aspectos
mental, corporal, intelectual e afetivo, exercendo um grande poder sobre o
corpo, de forma consciente e inconsciente. Nesse caso, a música pode não ser
traduzível em palavras, mas nos faz pensar na possibilidade de ser traduzível
em gestos.
na dança, um importante teórico desta arte, Laban (1978) aborda
amplamente esta questão do significado, colocando que existem
características específicas que identificam uma forma particular de dança. Para
esse autor, a dança tem um conteúdo mímico perceptível, nem sempre
apresentando um matiz dramático, mas frequentemente musical, sofrendo
influências do conteúdo emocional e da estrutura da música que a acompanha.
Portanto, os gestos apresentados na citada “dança musicada” produzem no
espectador reações em nível de sensações. No caso de danças que
apresentem um conteúdo dramático, estas solicitam ao espectador a sua
participação na solução dos conflitos apresentados, sendo que seus
movimentos podem ser descritos em palavras, mas seus significados são
verbalmente inexprimíveis.
A influência da música sobre o movimento é iniciada nas suas
respectivas gêneses, pois quando Wisnik (op.cit.) explica o pulso na música,
utiliza para isso uma metáfora corporal, colocando que o universo sonoro e a
música passam por padrões somáticos e psíquicos, trazendo à tona uma
P. 40
ideia fundamental: a música como um fenômeno corporal. Outro exemplo
trazido pelo autor está na relação de um som grave com movimentos pesados
e vibrações lentas, e a associação de movimentos leves e rápidos com os sons
agudos.
Desta forma, muitos educadores, para ensinar música, associam o
movimento aos conceitos musicais, assim como acontece no ensino da dança.
Sempre me questionei a respeito da proximidade da dança e da música,
percebendo conceitos que as mesclam e permeiam, não sendo surpresa a
constatação que tive ao conhecer importantes autores da música, como Emile
Jaques-Dalcroze, Carl Orff e Edgar Willems [Nota 2], percebendo inúmeros
aspectos compartilhados por estas artes. Um aspecto fundamental que une
esses autores é a importância do movimento no aprendizado da música, tendo
os dois últimos sofrido grande influência do primeiro. Dalcroze criou um método
educativo próprio, a “rítmica”, apresentando dois pilares: o solfejo, no aspecto
da linguagem teórica e prática, e o movimento, como a capacidade de sentir e
fazer, objetivando as futuras compreensões musicais.
A finalidade da “rítmica” consiste em colocar seus adeptos, ao
terminar os estudos, na situação de poder dizer “eu sinto” em
lugar de “eu sei”; e, especialmente, despertar neles o desejo
imperioso de expressar-se, depois de haver desenvolvido suas
faculdades emotivas e sua imaginação criadora (Dalcroze,
apud Frega, 1997, p.42).
A educação musical deve associar-se à arte do movimento, explorando
amplamente as possibilidades corporais, utilizando-se da expressão corporal
como um meio de desenvolvimento do esquema corporal, dos esquemas
motores básicos, da estruturação do tempo e do espaço e da expressão de
significados, sentimentos e emoções através do gesto.
Pederiva (2005) elaborou uma reflexão sobre o papel do corpo no
desenvolvimento cognitivo musical. Para esta autora, a motricidade, os
aspectos corporais, sob uma perspectiva cognitiva, colaboraram para ampliar
o aprendizado da música. Pelo nível corporal, através do gesto, o músico pode
dominar o ruído necessário para a expressão sonora.
P. 41
Ao observarmos a construção dos conceitos musicais na criança,
perceberemos que estas vivências acontecem através do corpo, dos sentidos,
produzindo gestos, sendo estes uma das formas de expressar o que é
percebido do universo sonoro.
Esta educação musical pelo movimento é abordada por Seeliger (2003).
A autora coloca que a criança vivência a sica de modo diferente do adulto,
ela absorve a música com seus sentidos e com o seu corpo. Em diversas
situações, o movimento está ligado à construção dos conceitos musicais, sendo
o movimento mais um campo de ação apresentado pela criança, assim como o
ouvir, o criar, o imitar e o refletir. Todas essas vivências no campo musical
moldam a base do trabalho de dança com crianças pequenas, pois é a partir
do desenvolvimento musical que a dança irá se consolidar, através da
construção de conceitos próprios e da relação destas aprendizagens com
outras formas de expressão.
Portanto, para pensarmos na construção do conhecimento em dança,
devemos, primeiramente, analisar como as crianças reagem ao ouvir música.
Seeliger coloca que a criança pequena expressa a música pelo movimento,
expressões faciais, mímicas, muitas vezes procurando adequar-se ao ritmo da
música com palmas, balanceios e marchas. A coordenação dessas
experiências vai depender do seu processo de maturação interna e de suas
possibilidades motoras. Contudo, de acordo com Gembris (apud Seeliger,
2003), crianças a partir dos dois anos e meio estabelecem ligação métrica
entre a música e o movimento. Além disso, provavelmente estas reações
podem demonstrar que a criança reconhece uma determinada melodia, pois,
ao reconhecer a música, repete movimentos que fez quando ouviu da
primeira vez.
As capacidades musicais aprendidas pelo bebê somam-se às novas
experiências, sendo que todas as vivências e estímulos que a criança recebe
dependem do ambiente e das pessoas de relação. Concomitantemente com o
desenvolvimento musical, a dança surge, inicialmente, como uma identificação
por parte do bebê, dos estímulos musicais aos quais este é exposto,
entendendo-se a dança, nos primeiros anos de vida, como a movimentação do
bebê quando canta ou ouve uma determinada música.
A criança por volta dos três anos tem um acréscimo no seu
desenvolvimento com a chegada do simbolismo. É pela imaginação que a
criança utiliza a sua fantasia enriquecendo suas experiências motoras. Nesta
etapa
P. 42
da construção do conhecimento em dança, é fundamental valorizarmos os
gestos espontâneos criados pelos alunos, sendo a partir destes que terá início
a formação de gestos mais complexos em dança. Certamente, para que se
construam esses gestos expressivos é necessária a produção de uma escuta
atenta, profunda e que convide ao movimento.
A escuta
Tanto a música quanto a dança partem da escuta, ou seja, o ato
psicológico, não só o fenômeno fisiológico ouvir, mas sim a escuta que procura
captar, decifrar códigos, signos,
escutando uma composição (a palavra deve ser tomada
em seu sentido etimológico) de Cage, escuto cada som,
um após o outro, não em sua extensão sintagmática, mas
em sua significância bruta e como que vertical: ao
descobrir-se, a escuta exterioriza-se, obriga o indivíduo a
renunciar à sua intimidade (Barthes, 1990, p.256).
Como coloca Barthes, rios sentidos para a audição. Pode-se
pensar na audição ligada às noções de avaliação espaço-temporal, também a
uma escuta que decodifica, estando ligada, de infinitas e indiretas formas, a
uma hermenêutica: escutar é colocar-se em posição de decodificar o que é
obscuro, confuso ou mudo, para fazer com que venha à consciência o “lado
secreto” do sentido.
A música pode ser analisada como sendo duas artes diferentes de
acordo com as ideias de Barthes, uma que executamos e uma que escutamos.
A música que executamos, pouco ligada à atividade auditiva e muito ligada a
uma atividade manual, é uma música executada com o corpo, o corpo fabrica
som e sentido: é o escrevedor, e não o receptor, o captador. Nesse sentido, a
música que ouvimos pode ser analisada de três maneiras, primeiramente, uma
escuta que percebe o que é implícito, indireto, possui o poder de varrer espaços
desconhecidos, em segundo lugar, uma escuta livre, que, por sua mobilidade,
rompeu com aquela rigidez que predominava nas sociedades tradicionais. Por
último, o que é escutado não é um significado, objeto de reconhecimento ou
decifração, mas sim, a chamada significância, ou seja, a escuta produz sem
cessar novos significantes sem que desapareça o sentido.
P. 43
Pensando em uma apreciação musical através do gesto, devemos
perceber essa escuta decifradora ou criadora de significações como um ponto
fundamental e gerador de sentido, estando presente na criação e execução de
cada movimento.
A escuta para a dança é um dos elementos que traz inspiração, que
sugere movimentos, fazendo da dança a poesia da música. Ela é iniciada com
o primeiro contato que o coreógrafo tem com a música. A escuta inicial suscitará
um universo cinético que resultará em uma construção coreográfica, a partir
daí, caso este objeto coreográfico seja interpretado por um bailarino, este o
reconstruirá com suas próprias percepções. Cada vez que a dança for
apresentada, o espectador atribuirá as suas percepções à obra artística,
reconstruindo novamente o objeto coreográfico. Pois, assim como a música, a
dança possui algo subjetivo, passando pelo consciente/inconsciente,
apresentando variados sentidos, de acordo com o olhar de quem a constrói,
executa ou aprecia.
Apreciação musical através do gesto corporal
A apreciação musical é fundamental tanto para um trabalho em música,
como para um trabalho de formação corporal em dança. Na música sua
relevância é indiscutível, pois a apreciação é um dos pilares da educação
musical, juntamente com a execução e a composição, consistindo em rica fonte
de compreensão e de construção de conhecimento musical.
Em relação à dança, quando vamos iniciar um trabalho com o aluno, é
relevante promovermos uma escuta inicial da obra musical escolhida, como
forma de suscitar no aluno identificações somáticas com esta determinada
obra. Além disso, é interessante para um trabalho em dança a exploração da
estrutura musical, ou seja, a altura, a duração, a intensidade, a identificação
dos timbres dos instrumentos, enfim, tudo o que se relaciona com a música em
questão. Esta escuta somática é uma forma interessante de se trabalhar a
apreciação musical, pois, através dela, podemos visualizar, e até mesmo
interpretar, o movimento realizado pelo aluno. Sendo a música um fenômeno
corporal, o gesto expressivo, liberado de forma espontânea, pode configurar-
se em uma maneira diferente de o aluno entrar em contato com a música, uma
nova experiência em apreciação musical.
P. 44
Podemos pensar a experiência de apreciação musical de diferentes
formas. Um estudo interessante é relatado no artigo de Del Ben (2000), em que
a autora coloca a influência das novas tecnologias na forma como as crianças
e os adolescentes apreciam música. Suas conclusões foram as de que as
experiências musicais das crianças e dos adolescentes estavam permeadas de
imagens e movimentos, demonstrando também uma associação com o próprio
movimento corporal. Nesse estudo pôde-se observar que os sujeitos
pesquisados não se referiram, como diz a autora, à matéria musical em si
(altura, duração, intensidade, timbre, estrutura e expressão), mas aos
significados convencionados socialmente sobre música.
Este texto confirma a prática diária de sala de aula, na qual podemos
perceber que a escuta musical está voltada, de uma forma geral, para o
movimento. Entretanto, podemos utilizar este dado de forma positiva, fazendo
com que essa escuta esteja impregnada de significado. Dessa forma, podemos
estabelecer um cruzamento interessante entre a música e o movimento,
introduzindo uma maneira diferente de ouvir música ou de se movimentar com
a música.
A criança estabelece a sua interação com o mundo e com as demais
crianças através do seu corpo, sendo assim, por que não utilizar os gestos do
corpo para acessar o significado da música?
Uma experiência interessante foi feita com um grupo de seis meninas,
com idade entre oito e nove anos, integrantes de um grupo de danças. Destas
seis alunas, duas dançam apenas cinco meses, enquanto que as outras
quatro têm experiências formais em dança três anos. Inicialmente, foi
solicitado às meninas que ouvissem a música atentamente, buscando perceber
o que esta música significava para elas.
A música apresentada foi “Bicicleta/Cozinha da bicicleta”, do CD “Pé com
pé”, da Sandra Peres e do Paulo Tatit, faixa 10. Esta música é composta com
o ritmo de “Bumba meu boi” do Maranhão, sotaque [Nota 3] de “Boi de matraca”,
de Pindaré. Neste sotaque destacam-se os instrumentos de percussão, a
matraca, os tambores-onças, sendo o ritmo mais lento e os pandeiros menores.
Na música em questão, além dos
P.45
instrumentos característicos do ritmo do boi, foram utilizados, também, a
guitarra, o violoncelo e o piano, somados a efeitos de teclado, bicicleta e chapa
de metal.
Após uma escuta atenta à obra musical, com o objetivo de promover
identificações somáticas com esta, em uma nova reprodução, as alunas
puderam movimentar-se livremente, de acordo com o que a música produzia
em nível de movimento. Elas poderiam utilizar os materiais disponíveis na sala
de aula, sendo que assim, espontaneamente e aos poucos, elas utilizaram
bambolês enfeitados com fitas metálicas coloridas na sua movimentação.
Após esta nova experiência de escuta da música com o corpo, as
meninas foram questionadas sobre alguns aspectos da obra musical
apresentada, são estes:
- Qual nome você daria a esta música?
- O que você sente ao ouvir esta música?
- Quais os instrumentos que você percebe nesta música?
- De que país esta música se origina?
As respostas foram muito interessantes, sendo possível observarmos
características comuns entre o conteúdo da música em questão e os
movimentos apresentados pelas alunas.
Nomes das alunas
Qual nome você daria
para a música?
O que você sente
ao ouvir esta
música?
Quais
instrumentos
você percebe
nesta música?
De que país se origina?
Fabi
Que som é esse?
Sons de animais
Chocalhos,
insetos, garça
Brasil
Juli
Sons
Muitos
instrumentos
Amazonas
Vic
Solitário
Passos de uma
pessoa sozinha
Pássaros, fontes
Amazonas
Juju
Mistura de músicas do
Brasil
Energia da dança
Tambor
Brasil
Manu
Floresta selvagem
Floresta com
animais e uma
tribo/uma luz que
liga e vai
aumentando
Piano
Brasil
Duda
Sons da vida
Sons de animais,
floresta, água
Teclado
Amazonas
P. 46
Depois da expressão gestual foram apresentados às meninas o título
autêntico da música, o seu ritmo e o possível significado atribuído pelos
autores. Este fato trouxe muita surpresa, pois não acharam que a música
lembrava uma bicicleta.
As meninas participaram ativamente, tanto da movimentação quanto da
reflexão, apresentando durante esta alguns pensamentos comuns, como a
conexão da música com elementos da natureza, os sons de animais, da água
e a mesma origem para a música.
Apenas uma aluna, a Juli, apresentou uma movimentação contida e
limitada. Este feto refletiu-se no momento das perguntas, quando suas
respostas foram dispersas, sendo sempre a última a responder. Esta aluna é
uma das meninas com pouca experiência em dança no grupo, apresentando
dificuldade na execução dos exercícios cnicos e nas coreografias trabalhadas
durante as aulas.
Através da comparação da movimentação produzida pelas alunas com
suas respostas, tornam-se evidentes alguns aspectos:
- o som dos animais, principalmente dos pássaros, com o movimento
ondulatório dos braços, sua amplitude e a riqueza de seus deslocamentos;
- a sincronia na mudança da movimentação em acordo com a mudança
do andamento e do motivo melódico da música;
- a execução dos passos básicos do “Bumba meu boi”, mesmo sem
reconhecer o ritmo maranhense, já vivenciado por elas em outras aulas;
- a riqueza gestual demonstrada na realização dos movimentos em
diferentes direções, planos, níveis, amplitudes e velocidades;
- a utilização do bambolê teve um duplo aspecto, primeiramente, atuando
de forma positiva como um instrumento de apoio, facilitando na desinibição e
soltura dos movimentos e enriquecimento das evoluções. Por outro lado, um
fator que pode ter sido negativo, é o de que os movimentos sem o bambolê
poderiam apresentar mais afinidade com o conteúdo musical, mas isto somente
poderia se confirmar com uma nova proposta, sem materiais.
Após toda esta expressão gestual e todas as reflexões posteriores sobre
a música, as alunas assistiram às filmagens, sendo pedido a elas que
mostrassem a qual significado aqueles movimentos referiam-se.
P. 47
A aluna Juli não quis assistir ao vídeo, disse estar envergonhada, mesmo
depois de ter sido motivada por elogios das colegas e da professora sobre suas
movimentações. Dessa forma, não fez nenhuma consideração sobre seus
movimentos.
Durante a exibição do vídeo, foi importante a valorização da
movimentação das meninas, com o objetivo de ressaltar a riqueza dos
movimentos, colocando às alunas a relevância de se prestar atenção nos
elementos musicais, como os instrumentos utilizados, seu andamento,
intensidade, sendo estes fatores determinantes no momento da improvisação
e da interpretação na dança.
Este gestual espontâneo é despertado por certa leitura da música em
questão, a criança vai apropriando-se da música aos poucos, até que o ouvir
passe pelo sentir e se expresse no dançar.
Fux (1983) pensa que a apreciação musical nunca poderia ser estática,
pois a música é uma experiência de mobilização pessoal que o corpo absorve
em sua totalidade. O movimento propicia uma compreensão da música
diferente de quem apenas a ouve ou se move sem escutar. Esta colocação da
autora traz uma outra perspectiva de apreciação musical, diferente de uma
escuta sem movimentação corporal, servindo-se do vocabulário gestual para
enriquecer ainda mais a apreciação.
A dança proporciona às crianças o conhecimento do seu próprio corpo,
do ritmo interno e externo, possibilitando-lhes o contato com outras crianças,
objetos e a exploração ampla do espaço. Para que estas pos-
Nomes das alunas
Fabi
Juli
Vic
Juju
Manu
Duda
P. 48
sibilidades sejam alcançadas, é necessário valorizar os gestos espontâneos
criados pelos alunos. Muitos educadores não dão o devido valor às atividades
que exploram estas expressões espontâneas, preferindo trabalhar movimentos
estereotipados ou enfatizando apenas aspectos técnicos, diminuindo, assim, a
construção de um vocabulário gestual próprio.
Para que possamos realizar um efetivo trabalho de apreciação musical
através do gesto corporal, é imprescindível a realização de um trabalho de base
com o aluno, de autoconhecimento corporal, com o objetivo de facilitar e
ampliar as possibilidades de movimento. É claro que, se pedirmos para um
aluno se movimentar ao som de uma determinada música, dificilmente ele
movimentar-se-á se não houver um trabalho anterior de conscientização do
movimento, do próprio corpo, devendo-se criar um ambiente propício para que
este movimento aconteça. Este é um trabalho que deve ser construído de forma
gradual, respeitando-se a individualidade do aluno, pois somente assim, após
várias práticas, é que conseguiremos alcançar respostas satisfatórias, travando
um verdadeiro diálogo entre a música e o corpo.
Conclusões
Cada sujeito tem uma forma particular, individual de se movimentar. Esta
verdadeira “identidade gestual” está presente em todas as nossas ações e é
construída de acordo e ao longo de nossa existência. Quando nos referimos à
arte, neste caso, à música e à dança, essa identidade gestual deve ser
explorada e ampliada, resultando no crescimento de nossas possibilidades
expressivas.
É claro que esse gestual, para configurar-se em dança, deve apresentar
o fator estético. A identidade gestual traz para a dança uma verdadeira poética,
pois, como coloca Dantas (1999), o gesto deve ser construído, sendo que o
bailarino impregna este movimento com a sua marca, dando a este o seu traço,
a sua poética. Para a música, cada gesto explorado e ampliado proporciona
maior interpretação, musicalidade, dinamismo, melhora da técnica e execução
da obra musical.
Poderíamos supor que a música seria menosprezada ao abordarmos
sua apreciação pelo gesto? Sendo assim, certamente não estaríamos
suscitando todo o potencial desta tradução da linguagem musical em gestual
expressivo.
P. 49
Nesse caso, a participação do educador é fundamental para a efetivação
dessa experiência de apreciação, pois é através de uma correta proposição que
o aluno se sentirá envolvido afetiva e cognitivamente pela atividade. A
apreciação musical, através do gesto corporal, traz uma nova forma de
vivenciar os possíveis significados da música, enriquecendo as interações do
sujeito tanto com o objeto música, como com o objeto dança.
Esta ideia de apreciação musical traz para a música o universo do
movimento, presente na educação musical das crianças, mas, algumas vezes,
trabalhado de forma displicente pelos educadores.
Quando penso no entrelaçamento da música com a dança, em um
sentido pedagógico, lembro das palavras de um dos maiores mestres da dança,
Wosien (2000), para quem música e coreografia formam uma unidade, e
participam da formação humana. Como a música e a dança são artes afins,
completando-se em gesto e sentido, é necessário um novo olhar sobre ambas,
desprovido de preconceito, carregado de uma sensível leitura por parte do
educador e do sujeito/artista.
Referências
BARTHES, R. O Óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1990.
CUNHA, M. Dance aprendendo: aprenda dançando. Porto Alegre:
UFRGS; MEC/SESu/PROEDI, 1988.
DANTAS, M. Dança: o enigma do movimento. Porto Alegre: UFRGS,
1999.
DEL BEN, L. Ouvir-ver música: novos modos de vivenciar e falar sobre
música. In: SOUZA, J. (Org.). Música, cotidiano e educação. Porto Alegre:
UFRGS, 2000.
FEIST, H. Pequena viagem pelo mundo da arte. 2. ed. São Paulo:
Moderna, 2003.
FREGA, A. L. Metodologia comparada de Ia educación musical. Buenos
Aires, 1997.174p. Tese (Doctorado en Música) - Collegium Musicum de Buenos
Aires.
FUX, M. Dança, experiência de vida. São Paulo: Summus, 1983.
LABAN, R. O domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LANGER, S. K. Filosofia em nova chave. Rio de Janeiro: Perspectiva,
1989.
P. 50
NANNI, D. Dança-educação: princípios, métodos e técnicas. Rio de
Janeiro: Sprint, 1995.
_____. Dança-educação: da pré-escola à universidade. Rio de Janeiro:
Sprint, 2003.
PEDERIVA, P. O papel do corpo no desenvolvimento cognitivo musical.
SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS, 2005,
Curitiba. Anais... Curitiba, 2005.
SEELIGER, M. Trad. parcial de Esther Beyer. Das musikschiff; kinder
und eltern erleben musik. Regensburg: Conbrio, 2003.
SHINCA, M. Psicomotricidade, ritmo e expressão corporal: exercícios
práticos. São Paulo: Manole, 1991.
WISNIK, J. M.O som e o sentido: uma outra história das músicas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
WOSIEN, B. Dança: um caminho para a totalidade. São Paulo: Triom,
2000.
P. 51
4 A MÚSICA E SUAS SIGNIFICAÇÕES
Flávia Garcia Rizzon [Nota 1]
Minha intenção neste capítulo é relatar um trabalho realizado para o
Seminário “A construção de conceitos e significados na música”, ocorrido no
Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, em que a sica foi
discutida como possibilidade de um discurso simbólico.
Ao distinguir três níveis de sentido, Barthes (1982, p.43) contempla o
enfoque de uma semiótica em uma obra de arte:
- um nível informativo (o nível da comunicação), no qual estão
os elementos que fornecem a obra, que a constituem;
- um nível simbólico: no seu conjunto é a significação de uma
semiótica ligada às ciências do símbolo (psicanálise,
dramaturgia);
- o nível de um terceiro sentido: que é o nível da significância,
no qual não se sabe o seu significado.
Denominado por Barthes como uma captação poética, esse terceiro
sentido debruça-se sobre a leitura da obra, não sobre a intelecção; uma leitura
que “incide precisamente sobre o significante, não sobre o significado”.
Entende-se aqui que a importância desse sentido está no que se reflete além
do nível simbólico. É muito mais, por exemplo, a sensação emocional da visão
de um quadro do que saber que determinada cor, naquele contexto, significa o
amor.
P. 52
A leitura capaz de captar o significado de determinada cor como
representando determinado sentimento refere-se a um sentido do segundo
nível, o simbólico, sendo o sentido que capta o que claramente se apresenta
como um signo completo, buscando um destinatário. Por ter essa
característica, é denominado como sentido óbvio. Contrastando a ele está o
sentido obtuso, no qual se insere o terceiro sentido: não está situado
estruturalmente e não se pode descrevê-lo, já que ele não existe na linguagem
articulada. Sendo um sentido que é descontínuo, indiferente ao sentido óbvio,
tão vazio quanto incapaz de esvaziar-se, e presente como uma espécie de
cicatriz, é o sentido que perturba, é a metalinguagem.
Para abordar o campo da escuta, Barthes classificou três tipos que
podemos transpor para a audição musical. Antes, torna-se necessário fazer a
distinção entre o ouvir e o escutar. Conforme o autor, ouvir é um fenômeno
fisiológico, pois as condições físicas podem ser descritas “pelo recurso à
acústica e à fisiologia do ouvido”, já, escutar, define-se pelo seu desígnio. A
seguir, os três tipos de escuta:
1. a audição é orientada para indícios, o que determina que homem e
animal estejam no mesmo nível quanto à escuta, pois o cão, por
exemplo, escuta um ruído que o põe em alerta da mesma forma que a
criança escuta os passos da mãe e também se põe em alerta;
2. é uma decodificação, o que nos diferencia dos animais, pois apenas
o homem pode captar signos e escutar através da leitura desses
códigos. Por exemplo, um trecho musical, em que a leitura de um som
de flauta executando uma melodia é o canto de um pássaro;
3. é uma abordagem que não visa ou espera signos determinados,
desenvolve-se num espaço intersubjetivo, apenas concebível com a
determinação do inconsciente. O que é escutado,
não é a vinda de um significado, objeto de um reconhecimento
ou uma decifração, é a própria dispersão, a cintilação dos
significantes incessantemente introduzidos na corrida de uma
escuta que produz incessantemente novos significantes, sem
nunca parar o sentido: a este fenômeno de cintilação chama-
se significância (distinta da significação) (Barthes, 1982,
p.211).
Como podemos ver, a classificação dos níveis de escuta de Barthes tem
uma grande proximidade com a classificação dos níveis de sentido,
P. 53
por ele proposta. O que seria interessante ressaltar é parecer que nenhum nível
interpõe-se com mais importância que os outros, acontecendo uma sucessão
de diferentes níveis de escuta para uma mesma obra.
A observação do terceiro sentido, que numa apreciação musical aparece
como a terceira escuta, nos faz interpretar que está intimamente ligado com a
emoção sentida ao nos depararmos com uma obra de arte. Ou seja, o
inconsciente determina a terceira escuta e é na forma de emoção que ela se
manifesta na consciência, o palco das funções mentais. A emoção, assim,
torna-se um veículo da significância, podendo tornar-se linguagem, muito
embora também possa estar mudando o sentido e o significado do que capta.
Mas mesmo assim, a emoção constitui “uma roupagem fundamental que
qualifica e modula nossa vida mental” (Del Nero, 1997, p.254).
A importância de abordar a apreciação musical pela via da emoção é
que, através dela, também se pode usufruir uma experiência estética, atingindo
cinco características conforme Jennings (1998): estar atento; dar-se conta de
formas como partes inter-relacionadas; perceber qualidades como belo,
diferente; enxergar a unidade que há em um conjunto; sentir uma gratificação
intrínseca.
Com essa abordagem, haveria valorização em aspectos como a
curiosidade, a busca do envolvimento, a admiração, a inventividade e
provavelmente uma posterior vontade de aprofundar-se nesse tipo de
experiência. A possibilidade de significar a apreciação musical primeiramente
através da emoção é uma porta de entrada para que muitas outras abordagens
venham a acontecer posteriormente. Deve-se aos poucos, utilizando-se de
variados materiais sonoros musicais, ampliar a escuta, buscando uma
crescente valorização da música como um campo de conhecimento a ser
explorado e uma possibilidade do desenvolvimento do senso crítico.
Essa foi uma constatação na realização da dinâmica proposta para este
trabalho, em que a disposição inicial das ouvintes adultas mostrou-se muito
pequena no início da atividade e, ao terminar a sessão, estavam todas
animadas e participantes ao relatar suas impressões. No começo, haviam
enfatizado várias vezes que não entendiam de música, como se estivessem se
desculpando pelo que devolveriam por escrito.
P. 54
Proposta de trabalho
A proposta era, após ser escolhido um tema, pesquisar músicas
compostas com a mesma temática e apresentar para indivíduos que não
tivessem conhecimento do tema. No momento seguinte à audição, relatariam
suas impressões e sentimentos, definindo uma temática para cada música. A
questão essencial seria investigar quais elementos da linguagem musical
contribuiriam para sugerir o assunto temático das melodias ouvidas, ou
remetessem o ouvinte ao mesmo significado que o compositor atribuiu à obra.
A escolha das músicas, depois de selecionado o tema, partiu do princípio
de que deveriam ser apenas instrumentais ou com vocal em língua estrangeira
(justamente para que não fosse sugerido pela letra o tema escolhido) e
deveriam, se possível, ser de culturas e estilos diversos.
As músicas
Considerando-se relevante confirmar o que o título da obra sugere, a
escolha do tema partiu de uma música intitulada “Mato”, de Ângelo Primon. O
fato de este ser um compositor contemporâneo e contatável contribuiu para
identificar exatamente qual o tema e significado de sua obra, pois se constatou
não ser inusitado encontrar uma obra sobre um determinado tema que tem um
título sugerindo outro. Na música “The trees” (Rush), por exemplo, é contada
uma história de árvores pequenas reivindicando mais luz às grandes árvores
que capturam toda luminosidade do sol. Pela letra, denota-se que seu
significado tem maior aproximação de algum contexto social e político do que
de floresta. Aqui, uma floresta foi usada como elemento figurativo para narrar
uma situação social que não é especificamente de uma floresta. Se a música
fosse apenas instrumental, pelo título não se saberia qual significado o
compositor atribui a ela. Dessa forma, procurou-se selecionar músicas que
estivessem o mais próximo possível da temática escolhida, a qual está inserida
no seguinte universo: mato, floresta, plantas.
A seguir apresenta-se uma relação das seis obras utilizadas com uma
pequena análise de cada uma delas. Dentro do possível, buscou-se abordar
em que contextos estão situadas, pois assim seu significado essencial pode ser
melhor destacado.
P. 55
“Mato” (Ângelo Primon): é uma música instrumental que faz uma
estilização do maracatu, tocada em ternário ao invés de quaternário. Tem na
instrumentação piano e violão em uníssono, violoncelo, contrabaixo (que é o
centro estrutural da música) e percussão. Apresenta compassos alternados e
em dado momento uma flauta faz uma melodia simples sobrepondo a quebra
de ritmo. A partir daí, os instrumentos realizam pergunta e resposta. O término
da música se com um acorde suspenso, fora do tom. O autor fala de sua
obra:
Está em sintonia com todo o resto do CD que tem aquela coisa
do princípio humano em tentar fazer os sons da natureza,
sendo ao mesmo tempo a busca de uma verdade interna. No
meu caso, tem a tentativa de buscar os sons da natureza
através dos instrumentos, através de sensações de timbragens
diferentes dos cruzamentos desses instrumentos, como a
região aguda do piano com a flauta (que lembra um assobio),
o violoncelo junto com a flauta em uníssono com os atabaques
por baixo, a quebra de ritmo lembrando o inusitado da
natureza. Posso definir “Mato” como uma floresta de sons e
dentro dessa floresta estão algumas estruturas musicais. Mas
a minha ideia não era traduzir o som das coisas da natureza de
forma descritiva ou convencional, e sim adaptar isso ao
instrumento, fazer com que a partir disso se criasse uma
brincadeira, uma sensação, como essas junções de
instrumentos. Por exemplo, o piano tem um dedilhado
completamente diferente porque ele está tocando exatamente
o que o violão faz, então o timbre do náilon do violão junto com
o brilho do piano dá uma sensação espacial de amplitude. De
todo o CD, é a música mais complexa do ponto de vista das
minhas estruturas internas e mais trabalhada em suas
especificidades técnico-musicais. Compus pensando em todos
os instrumentos, na funcionalidade deles, adaptando à
característica dos músicos. Sutilmente, tento falar na minha
música das minhas raízes indígenas e de toda força e energia
vital que uma árvore representa, que é a mesma força que
teríamos que ter para nos relacionarmos com o outro, com nós
mesmos e com o planeta. Para mim, talvez o símbolo do
planeta seja a árvore, que é capaz de trazer das entranhas da
terra, através de suas raízes, a energia que vai alimentar o
mundo com odores, sabores, a própria fotossíntese... Ela tira
das entranhas da terra a sua energia, se alimenta disso e ainda
devolve isso ao planeta (Primon, comunicação pessoal em
31/05/2004).
“Araucárias” (Horacio Salinas): do grupo chileno Inti-lllimani, apresenta
um tema que se repete, a música é tocada em violão, flauta, guizo, fazendo
marcação rítmica, e tiple, um instrumento considerado por alguns músicos um
precursor do violão. O tiple tem cordas triplas que resultam em uma sonoridade
P. 56
de maior volume, próprio para lugares abertos. Ao longo da exposição,
cortes na execução para depois recomeçar exatamente igual. No último
recomeço, uma flauta faz uma pequena variação do tema, agregando-se aos
outros instrumentos. “Araucárias” resgata origens indígenas, como as vastas
matas de araucárias no sul do Chile. vivem as últimas comunidades
mapuches, indígenas que sobreviveram à expansão inca, à colonização
espanhola e que ainda hoje resistem a invasões da etnia branca, buscando
preservar suas terras e suas tradições. Na cultura mapuche não supremacia
do homem sobre a natureza, ele convive em harmonia com seus rios e seus
bosques formados por araucárias milenares, árvores que fornecem com seus
frutos a base da alimentação mapuche. Ainda hoje, essa comunidade realiza
sua mais tradicional festa, a “nguilatum”, que dura três dias. Nesse evento,
rodeado pela mata de araucárias, as mulheres fazem oração agradecendo a
colheita e pedindo proteção para a lavoura.
“The two trees” (Loreena MacKennitt): apresenta uma introdução com
sonoridade de instrumentos antigos, como gaita de foles, num pequeno trecho
melódico que se repete, entrando depois outro tipo de instrumentação, como
cordas e piano. Após a introdução a melodia passa de modal para tonal, com
um tratamento estético do som próximo de típicas baladas românticas
americanas e é também quando inicia a parte vocal, cantando uma poesia de
Willian Butles Yeats, exaltando o espírito da amada e suplicando-lhe que não
se amargure, sempre usando elementos da natureza como metáfora. A melodia
simples se repete durante toda a poesia, cantada em inglês, num andamento
lento e caráter suave. Essa música, composta por uma descendente de
escoceses, evidencia algumas características célticas: a instrumentação antiga
na introdução e a relação íntima com a natureza, como os celtas que cantavam
para festas, para a caça, para a natureza, a qual consideravam dotada de
espírito próprio. Muitos de seus rituais estavam ligados à celebração da
natureza, aos ciclos das estações do ano e às atividades agrícolas.
“Forest song” (Sadao Watanabe): música instrumental composta por um
saxofonista japonês, tendo na instrumentação saxofone, trombone, piano,
contrabaixo, bateria. Tem características jazzísticas como improvisação
melódica e rítmica e re-harmonização de um determinado tema. Sax e
trombone começam com o tema enquanto os outros instrumentos gravitam ao
redor improvisando. Sax improvisa e sempre volta ao tema. Esse improviso
P. 57
se com uma re-harmonização por via melódica, isto é, ao improvisar sobre
um acorde, por exemplo, este é remontado com suas inversões a partir de
pequenas melodias, sempre respeitando a quadratura estrutural.
“Alvorada na floresta tropical” (Heitor Villa-Lobos): trabalho orquestral,
lírico, descritivo e clássico na forma. Um tema tranquilo sugere o primeiro raio
de sol sobre a paisagem e outros temas originais são constituídos sobre
escalas ameríndias. Em sua obra evocação dos sons de pássaros tropicais,
gritos e danças exóticas, conduzindo a um clima magistral e a uma visão
panteística da natureza. A vasta produção musical de Villa-Lobos está ligada à
observação em suas viagens, em que ouviu as vozes da natureza e dos povos
da região. Na Amazônia coletou temas e impressões que traduziu em obras
musicais como esta, na qual recria todo um universo natural que viu, ouviu e
vivenciou em sua viagem.
“Celebration of the forest” (Milton Trott e David Erskine): do CD “A música
em harmonia com a natureza”, a obra apresenta no início sons da natureza
(pássaros, água) captados em seu local de origem e mesclados com o
elemento musical: uma melodia realizada por uma flauta sintetizada começa
em meio aos sons do ambiente e assim vai até o final da música, como fundo
ao panorama sonoro natural, tornando-se bastante descritiva quanto à
temática.
Dentre essas obras, “Mato”, “Araucárias” e “The two trees” são as que
parecem ter um universo de significação muito próximo. Em sua afirmação de
que “talvez o símbolo do planeta seja a árvore”, o compositor de “Mato”, Ângelo
Primon, deixa transparecer o peso do significado que este elemento da
natureza tem em sua vida, relacionando isso às suas raízes indígenas e a sua
busca de livre expressão dos anseios e sentimentos. Esta busca de uma
verdade interna, como definiu Primon, através de sua música, revela estreita
ligação com os mesmos princípios das comunidades mitológicas referidas
anteriormente, os celtas e os mapuches. A forma de uma quase reverência às
árvores, floresta e outros elementos naturais permeia estes três eixos do
trabalho.
Participantes e dinâmica
Participaram do trabalho, além de quatro professoras de uma escola
pública municipal de Porto Alegre, uma turma de A10 (jardim), com crianças
P. 58
de cinco e seis anos. Das professoras convidadas a participar, todas eram
leigas em música. Pensando em não tornar muito extenso e repetitivo o
desenvolvimento do trabalho para as turmas de crianças, utilizou-se apenas a
música “Mato”, pois se levou em consideração um possível prejuízo à dinâmica
da investigação caso fosse empregado todo o material selecionado, visto que
foi usada como critério a audição completa da(s) obra(s) aplicada(s) em cada
reunião.
O trabalho realizado com a turma de A10 (jardim) contou com duas
etapas. Numa audição filmada, a turma foi orientada para que escutasse a
música e imaginasse sobre o que ela falava, para ser posteriormente relatado.
Foi colocado que era como se a sica contasse alguma coisa através dos
sons, as palavras da música seriam os sons. Na segunda audição, após quatro
semanas e com igual orientação, não foi especificado que a obra ouvida era a
mesma e dessa vez, ao invés de relatarem, deveriam representar com um
desenho o que a melodia havia sugerido.
Respostas das crianças
Na primeira audição com a turma, as respostas dadas pelas crianças
sobre o que representava a música seguiram mais ou menos o mesmo padrão.
Algumas crianças identificaram um dos instrumentos (violão) ou citaram um
estilo musical que não era o da obra, mas, provavelmente, da vivência pessoal
delas (pagode). Aparentemente, algumas apenas repetiram as respostas que
ouviram dos colegas. Durante essa primeira audição, as crianças
movimentaram-se todo o tempo, com exceção de um pequeno grupo que ficou
inibido pela presença da câmera filmadora, sendo que uma destas crianças
identificou uma mudança de andamento num trecho da música. Nenhuma delas
relatou uma história, cena ou assunto que colocasse o aspecto musical em
segundo plano. Na segunda audição, as crianças ouviram em seus lugares,
pois foi pedido que não se movimentassem para que prestassem atenção no
que os sons da música falavam. Nesta ocasião nenhuma criança manifestou
ter lembrança de ter ouvido a obra, apesar de grande parte delas darem, num
primeiro momento, o mesmo tipo de resposta citada anteriormente: “É um
violão”. O timbre de cordas chamou muita atenção e vários quiseram desenhar
um violão ou
P. 59
cavaquinho. Também apareceram nos desenhos flauta, pandeiro e tambores.
Nos desenhos, os instrumentos estavam em um contexto, com personagens,
cenários ensolarados e arborizados, em sua maioria. Aqui estão algumas falas
das crianças sobre seu registro:
- Um sol brilhando e uma pessoa brincando.
- Imaginei uma música saindo de um castelo.
- Banda de rock.
- Ele está escolhendo qual violão quer. Ele está vendendo e
esta vai para a festa com ele.
- Aqui é a sombra, o sol e a noite.
- Um tocando violão e outro flauta.
- Esse homem está tocando violão e essa mulher está pegando
bergamota.
- E o girassol.
(Depoimentos das crianças)
Seguindo vão algumas ideias mencionadas enquanto ouviam a obra
sem ainda estarem desenhando:
- As coisas da música lembram os índios.
- Já sei, é o Sítio do Pica-pau amarelo.
- Parece que é o Tarzan na selva.
- Vou fazer uma pessoa tocando violão.
- Eu, meu pai e minha mãe na Redenção.
(Depoimentos das crianças)
Em sua maioria, podemos notar que os relatos e registros lembram, de
uma forma ou de outra, o universo temático escolhido para o trabalho e é
importante salientar a movimentação feita na primeira audição, numa tentativa
de acompanhar ritmicamente a melodia. Essa ação motora automaticamente
realizada evidencia que a atribuição de um significado à obra constitui-se
também à medida que esta propicia uma movimentação corporal, pois nessa
idade a criança ainda constrói suas aprendizagens e conceitos muito através
do que pode sentir, vivenciar e experimentar corporalmente. Segundo Piaget,
nas idades de dois a oito anos, em média, a criança está numa transição da
inteligência sensório-motora para o pensamento conceptual, que consiste no
fato de que a criança ainda
P. 60
não consegue de imediato refletir, em palavras e em noções,
as operações que sabe executar em atos; e, se não pode
refleti-las, é porque está obrigado, para adaptar-se ao plano
coletivo e conceptual em que doravante o seu pensamento se
move, a refazer o trabalho de coordenação entre a assimilação
e a acomodação efetuado na sua anterior adaptação
sensório-motora ao universo físico e prático (Piaget, 1978,
p.336).
Em outras palavras, a movimentação ocorrida na primeira audição faz
parte também do processo de construção de uma significação para a sica
ouvida. As crianças tiveram real necessidade de se movimentarem para atribuir
um significado à melodia. Assmann (1993, p.91) afirma que, quando pensamos
em valorizar o enfoque-movimento, nossa tendência é recortar o conceito de
movimento, representando-o apenas como deslocamento. Sob essa ótica, é
como se nosso corpo fosse somente um invólucro de órgãos, ossos, músculos
e sistemas específicos de funções, sendo ignorado o ir e vir de inúmeras
energias auto-organizantes no corpo. Os processos auto-organizativos
corporais têm importância vital, pois são eles que nos oferecem constante
mediação para que possamos atingir o real e ser atingidos pela realidade.
Dessa forma, toda aprendizagem consiste numa cadeia complexa de saltos
qualitativos da auto-organização neuronal da corporeidade viva, cujo
organismo individual se auto-organiza, enquanto se mantém estreitamente
ligado ao seu entorno, tornando assim o conhecimento uma inscrição corporal.
Essa argumentação vem ao encontro da de Le Boulch (1983), quando afirma
que é real a importância de favorecer a movimentação, a expressão dos ritmos
corporais espontâneos e o jogo simbólico que podemos observar na atividade
motora da criança, na qual é evidenciado o movimento como uma necessidade
fundamental para tornar uma situação significativa, possibilitando que o
organismo efetue novas sínteses e explore no plano mental o que tem
experimentado na vivência corporal.
Ao tomar conhecimento das respostas da turma a respeito de sua obra,
Primon comenta sobre elas:
Todas as crianças fazem alusão à natureza, a uma sensação
de amplitude, de bem-estar, de sol. Tem presença de árvore e
de situações em que elas estão inseridas, ou estão mirando,
ou estão relembrando vivências, sempre de fatos prazerosos,
bonitos, com certa saudade (Primon, comunicação pessoal em
31 /05/04).
P. 61
Ainda destacando ser particularmente interessante a resposta do
menino que disse que as coisas da música lembram os índios, o compositor
relaciona essa resposta a uma busca pessoal sua:
Essa música traduz também uma inquietação minha. Quando
descobri minhas raízes indígenas e procurei saber mais a
respeito, isso mexeu muito comigo, principalmente porque isso
encontrou eco em relação a certas coisas que internamente eu
já sentia na minha forma de compor, de tentar tratar os sons e
estruturar minha música de um modo que eu me sentisse livre
de convenções (Primon, comunicação pessoal em
31/05/2004).
Para finalizar os comentários referentes às respostas das crianças é
pertinente citar Maffioletti (1998, p.117) que afirma:
No contato com a música, a criança precisa aprender que um
som pode se combinar com outro som, mas principalmente,
aprender que é possível imprimir significado aos sons. É isso
que fará dela um ser humano capaz de compreender os sons
de sua cultura e de se fazer entender pelo uso deliberado
dessas aprendizagens nas trocas sociais.
Audição com as professoras
As professoras que colaboraram nesta investigação ouviram as seis
obras selecionadas (em toda sua extensão) e com a mesma orientação dada
às crianças, ou seja, deveriam escutar e registrar posteriormente qual o
significado das músicas ouvidas. Pelo fato de as ouvintes não terem dis-
ponibilidade de tempo, aconteceu apenas um encontro, do qual resultaram os
seguintes registros:
Araucárias:
Ouvinte 1 - Lembrei-me de cavalos correndo, livres. Final da música-
suavidade.
Ouvinte 2 - Música de cordas, bem alegre, que fica bem para uma festa.
Fiquei com vontade de cantarolar, caminhar rápido e ficar mais alegre.
Ouvinte 3 - Me parecia que estava em contato com a natureza, ao ar
livre.
Ouvinte 4 - Ritmo acelerado, sugere coisas ciganas, “Igor, o cigano!
P. 62
Mato:
Ouvinte 1 - Sensação de estar em baile dos anos 60.
Ouvinte 2 - Pesada, forte e barulhenta, não disse nada de especial.
Música feita de estrada de terra, poeirenta e pedregulhos.
É para ir longe.
Ouvinte 3 - Bossa-nova. Tom Jobim, lembrança de músicas dele, que eu
adoro! Acho que o tema pode ser “saudades”.
Ouvinte 4 - Bossa-nova, anos 60, Edgar Pozzer.
The two trees:
Ouvinte 1 - Caminhar em uma estrada - lugar romântico - natureza -
universo - amor - encontro.
Ouvinte 2 - Despedida, triste, escura, com arrependimento, mas sem
solução. Deu um recado, mas foi tarde demais. Melancolia.
Ouvinte 3 - Me sugere ou me serviria para o reencontro com alguém.
Escutar antes de acontecer.
Ouvinte 4 - Sensação de bem-estar, lugar clássico, bem arrumado,
melodia que nos leva a lugares lindos, salas amplas e
bonitas.
Forest song:
Ouvinte 1 - Nostalgia.
Ouvinte 2 - Mistura de sons, de bar, de bairro. Quer transmitir uma
mensagem, mas não consegue. Parece uma carreta de boi
que quer andar, mas tem muito peso.
Ouvinte 3 - Ambiental. Escutaria à noite para me recuperar da corrida do
dia. Gosto muito de instrumentos de sopro.
Ouvinte 4 - Música envolvente. Dá vontade de dançar, bom ritmo.
Alvorada na floresta tropical:
Ouvinte 1 - Funeral, morte.
Ouvinte 2 - Apresenta aquela torre da igrejinha, bem longe, no alto de
um gramado, bois pastando, um riacho correndo entre
pedras e algumas grandes árvores. Logo mais vai chover.
As nuvens estão carregadas. Do outro lado do morro estão
enterrando um personagem muito
P. 63
conhecido. As pessoas estão de preto e a cabeça coberta.
O sino está tocando. Eu vou para casa antes da chuva.
Ouvinte 3 - Inicialmente fúnebre. Concerto de uma grande orquestra num
auditório.
Ouvinte 4 - Parece trilha sonora de um filme de suspense, no decorrer
uma mudança parecendo ficar mais tensa e, após, mais
alegre.
Celebration of the forest:
Ouvinte 1 - Floresta, caminhar em bosques e campos. Infância no
interior, convivendo com todos esses sons.
Ouvinte 2 - É música que ouço no interior, no meio do mato do meu pai.
Conheço vários desse piaredo das aves. O porco parece
pedir milho. As aves estão com fome, mas debaixo do
jacarandá vou deixar bastante ração e milho picado. São
aves de todas as cores e tamanhos diferentes.
Ouvinte 3 - Novamente estou numa floresta onde os músicos tocam ao
fundo o musical dos animais. A natureza viva, sentimento de
liberdade, paz, vida, natureza-música é vida.
Ouvinte 4 - Sensação de primavera, alegria, sítio de lazer, pássaros
cantando, natureza viva, porcos, marrecos nadando num
lago maravilhoso, sapos coaxando, galinhas... e um gostoso
pic-nic.
Respostas das professoras
Nas respostas dadas pelas ouvintes, fica evidente que em “Celebration
of the Forest” o caráter extremamente descritivo da música definiu de imediato
o assunto temático para todas elas. Nas outras obras houve uma variação, mas
foi muito interessante notar a aproximação de alguns registros em relação ao
tema das obras e a aproximação entre os relatos que não se referiam ao tema
selecionado, como o caso da bossa-nova, anos 60 e funeral, e também a
percepção do andamento em “Araucárias”, que fica evidenciado com “cavalos
correndo”, “caminhar rápido” e “ritmo acelerado”.
A presença da bossa-nova e anos 60 nas impressões registradas para
“Mato” parecem, em primeira instância, de pouca ligação. Entretanto, a
P. 64
lembrança da bossa-nova possivelmente esteja sintonizada com uma
referência de uma abertura harmônica, que anteriormente à bossa-nova as
estruturas harmônicas das canções populares respeitavam um certo padrão.
Sendo assim, ouvir uma música que a sensação de abrir harmonicamente,
dependendo das vivências musicais, pode remeter uma pessoa à lembrança
da bossa-nova. Para Primon, ainda outros fatores podem ser destacados:
A partir da bossa-nova existe uma modificação na forma de se
fazer música e existe também uma relação diferenciada da
música com uma introdução de outros elementos, com mais
piano, com vassourinhas escovadas... O timbre velado do
cajón em “Mato” lembra uma caixa com esteira, porém com
vassourinhas e isso acontecia naquela época (Primon,
comunicação pessoal em 31/05/2004).
Em “The two trees”, a letra desta poesia cantada se divide em duas
partes: uma de exaltação e outra de súplica. Na música, a canção retorna à
primeira estrofe da poesia, reafirmando o lirismo e exaltação da pessoa amada.
Nas respostas surgiram sentimentos como amor, reencontro, despedida e
melancolia, com uma das ouvintes ainda interligando o romantismo à natureza
e outra à beleza e amplitude de lugares. Essa relação de amor e natureza é
encontrada na letra da poesia que usa metaforicamente árvores para exaltar
ou suplicar à amada. A melodia tranquila (que repete sempre a mesma linha),
cantada suavemente por voz feminina, também contribuiu, segundo as próprias
ouvintes, para a interpretação dada. Apesar de parecer estar fora do contexto
das outras obras selecionadas quanto a seu significado, esta música
representa o sentimento de que a natureza é de vital importância, ficando no
mesmo patamar que emoções importantes na vida das pessoas, como afirmou
uma das ouvintes dizendo que houve um “crescendo” ou um “aprofundamento”
em suas emoções ao registrar: “Caminhar em uma estrada - lugar romântico -
natureza - universo amor - encontro”.
Na audição de “Forest Song” as impressões foram um pouco menos
explícitas. Justamente esta é a música sobre a qual o consta material
explicativo sobre seu significado. Nota-se nas respostas percepção de ritmo e
instrumentação. As sensações registradas variam e destaca-se a figuração
dada por uma ouvinte: “Quer transmitir uma mensagem, mas não consegue.
Parece uma carreta de boi que quer andar, mas tem muito peso”.
Provavelmente essa sensação deve-se à característica jazzística de execução,
em que se improvisa muito estendendo os acordes, através das suas inversões,
substituindo suas
P. 65
funções, suas características, e utilizando escalas simétricas, fazendo um
rodízio dos temas A e B. O significado desse tipo de composição está nas
qualidades intrínsecas à obra musical, sendo mais facilitada a apreciação para
quem já possui um prévio conhecimento deste estilo de música.
O funeral foi o conteúdo marcante de “Alvorada na floresta tropical” nas
respostas. Mesmo assim, ainda aparece descrição de elementos naturais. E
possível que a música instrumental tocada por grande orquestra seja mais
ouvida por algumas pessoas como sica incidental, composta para trilhas
sonoras de filmes. Isso explicaria a relação feita de momentos de tensão da
música (ou representativa de momentos ainda escuros de uma floresta) com
funeral e morte. A questão da música incidental é lembrada na resposta que
diz parecer “trilha sonora de um filme de suspense”.
Um último comentário sobre as respostas dadas para as obras vem de
Primon. Ele destaca o registro que caracteriza sua música como “pesada, forte,
barulhenta, não disse nada de especial...” revelando:
Tenho uma intenção quando faço as músicas e é meio
invariável: buscar emoções. que me abstenho hoje de
querer que as pessoas tenham o mesmo tipo de reação. A
minha satisfação é justamente a própria reação. Se essa
reação se alinha com as minhas intenções que é justamente
essa tradução de terra, vento, dos elementos todos que fazem
a natureza se movimentar e nós mesmos, fico contente.
Quando não (e tem até mesmo uma coisa da história
individual), também acho muito legal. Porque isso aconteceu
comigo e foi o que acabou me levando para a área da
composição. Hoje, pelo menos, o que mais me prazer é
tocar algo e esperar terminar até um pouco depois do silêncio.
Esse pouco depois do silêncio, quando se consegue executar
e se consegue a cumplicidade de ser ouvido e absorvido, é
quando acontece um momento musical (Primon, comunicação
pessoal em 31/05/2004).
Considerações finais
Após as várias etapas do trabalho realizado, algumas questões se
delimitam a respeito do que seria o significado na música. Quando a
interação do ser humano com algum objeto, é construído um significado para
esse objeto. No caso da música, o objeto é a melodia, que embora comporte
variações de intensidade, timbre, textura, harmonia etc., não tem um sinal ou
nomenclatura para definir o que seriam as ideias expressas nesta melodia.
Além disso, existem muitas ideias diferentes do que é música por causa das
P. 66
diferentes culturas e ainda o caráter efêmero da música, que não é um objeto
que permaneça parado como um quadro para ser apreciado e apreendido seu
significado. Isso gera dificuldade em definir o que seria o significado em música,
mas o pensamento preponderante se direciona para a ideia de que o lado
afetivo se enreda a uma teia de vivências culturais e pessoais, de onde surgem
as significações que cada pessoa atribui às coisas. Nesse emaranhado, podem
distinguir-se os significados designativos (referindo-se a algo diferente do
estímulo em espécie) e agregados (da mesma espécie que o estímulo) - citados
por Lazzarin (1999, p.78) sobre a posição de Meyer - os quais se impõem num
mesmo nível de importância.
Contudo, tem-se presente ser o significado (principalmente aquele
extrínseco ao estímulo em espécie) sempre passageiro, ligado a um acervo de
memórias que se constrói e se modifica à medida que o ser humano lida com
suas fantasias e realidades ao longo da vida. Em analogia ao que se está
argumentando, Macedo (1998, p. 117) ilustra muito bem quando se refere às
diferentes impressões que um fato histórico pode gerar:
O mesmo período ou acontecimento histórico pode sempre ser
representado de outra maneira, refletindo uma perspectiva
diversa. Ou até com os mesmos fatos, “retocados” de modo a
adquirirem outras significações que refletem outras ideologias.
(...) A matéria da História pode, portanto, ser a mesma, mas a
História vai se tornando sempre diferente.
Da mesma forma, um compositor desloca a realidade para uma obra
artística buscando representar, narrar ou exaltar alguma coisa. E, ao ser
apreciada, sua arte estará a cada momento reconstruindo essa realidade,
sempre de maneiras novas e algumas vezes inusitadas, pois, ao apreciar uma
obra, o ouvinte terá presente toda a bagagem que sua própria realidade
constituiu aaquele momento. Esse fato propiciará (ou não) uma identificação
com o compositor, ou uma reflexão sobre seu cotidiano vivido, ou permitirá que
esse ouvinte muito além ainda do que o compositor quis expor na sua
música. Isso torna inviável determinar um significado ou uma verdade
definitivos para uma obra. A mesma melodia que para alguns será apenas um
fundo sonoro de alguma atividade de entretenimento e lazer, para outros
funcionará como referência, como marca emblemática de uma situação vivida,
e a outros, ainda, levará a uma profunda emoção que pode transcender
qualquer tipo de explicação.
P.67
Referências
ASSMAN, H. Paradigmas educacionais e corporeidade. Piracicaba:
UNIMEP, 1993.
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: 70, 1982.
CARDOSO, B. Mapuches do Chile. 500 anos de resistência. Revista
Horizonte Geográfico, São Paulo, n. 29, ago. 1993.
LAZZARIN, L. F. Ouvir música com significado: um desafio possível. In:
BEYER, E. (Org.). Idéias em educação musical. Porto Alegre: Mediação, 1999.
LE BOULCH, J. A educação pelo movimento: a psicocinética na idade
escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
MACEDO, HELDER. As telas da memória. In: CARVALHAL, T.;
TUTIKIAN, J. (Orgs.). Literatura e história: três vozes de expressão portuguesa.
Porto Alegre: UFRGS, 1999.
MAFFIOLETTI, L. A. Práticas na educação infantil. In: CRAIDY, C.;
KAERCHER, G. (Orgs.). Educação infantil: pr’a que te quero? Porto Alegre:
UFRGS, 1998.
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança, imitação, jogo e sonho,
imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
PIAGET, J.; INHELDER, I. A psicologia da criança. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2001.
P. 69
5 A ATIVIDADE DE APRECIAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DO CANTAR
Ana Claudia Specht [Nota 1]
Denise Sant’Anna Bündchen [Nota 2]
Os estudos referentes aos processos de aprendizagem do canto ainda
engatinham solitariamente, porém, a trilha das pesquisas atuais na área do
desenvolvimento musical tem nos orientado e fundamentado as questões que
emergem de nossa prática como educadoras vocal e musical. Nosso foco está
no processo de desenvolvimento do canto e buscamos, a partir de uma
atividade de apreciação, investigar os aspectos que podem favorecer a
construção do cantar de um grupo de meninas que integram nosso projeto de
canto coral [Nota 3].
Diante disso, concebemos a apreciação como uma atividade integrante
e fundamental no desenvolvimento musical em nossa proposta de canto coral.
Assim, realizamos esta atividade de apreciação a fim de proporcionar às
cantoras uma escuta da performance vocal de diferentes intérpretes e,
consequentemente, uma reflexão sobre os aspectos musicais envolvidos na
ação de cantar. A partir desta investigação, observamos como nossas cantoras
(meninas entre 13 e 17 anos) compreenderam o desempenho técnico e
expressivo do canto na interpretação vocal do outro (intérprete profissional ou
colega de coro), apropriando-se destes ou de alguns elementos musicais da
versão apreciada na construção de seu desenvolvimento vocal.
P. 70
Quem apreciou?
Esta atividade foi realizada dentro do projeto de canto coral “Meninas
arte em canto” de Salvador do Sul. O grupo é composto por 30 meninas entre
13 e 17 anos, que realizam um ensaio semanal de três horas e trinta minutos,
coordenado por Ana Claudia Specht (professora de técnica vocal) e por Denise
Sant’Anna Bündchen (educadora musical e regente).
Esse projeto existe três anos e tem o patrocínio e o apoio da empresa
privada Mega Embalagens (indústria de embalagens flexíveis) instalada em
Salvador do Sul, que possui um programa de incentivo, proporcionando à
comunidade dessa cidade um trabalho gratuito de canto coral infanto-juvenil.
O trabalho com esse grupo objetiva não a performance (resultado
final), mas também o processo de construção musical, processo que se insere
numa proposta de canto coral que realiza atividades de composição e
improvisação integradas ao uso do movimento corporal, desenvolvimento vocal
e conceituai relacionados à música.
Especificamente para essa atividade de apreciação, foram escolhidas
oito meninas com idades entre 15 e 17 anos, que participam de nossa proposta
coral dois anos. A escolha por meninas dessa faixa etária se deu pela
extensão e complexidade da atividade. Consideramos também a
disponibilidade de tempo e a motivação para participar, pois os encontros
excederiam o horário de ensaio do coro.
Apreciando
Pensamos a atividade de apreciação da seguinte maneira: a) escuta
(ouvir a voz do outro); b) reflexão (refletir sobre os elementos musicais e
expressivos); e c) ação (cantar-imitação, interpretação e criação).
Para esta atividade, reunimos as meninas em uma sala silenciosa e
ampla, evitando interferências externas que atrapalhassem a concentração
durante o trabalho. O material a ser apreciado foi a primeira estrofe da música
“Somewhere over de raibow”, de Harold Harlen, interpretada por seis artistas
diferentes. Foram selecionadas cinco versões cantadas por mulheres, e uma
versão instrumental da música. A seleção das versões seguiu alguns critérios,
tais como diversificação de timbres e estilos, bus-
P. 71
cando uma escuta que não se fixasse somente nos elementos musicais, mas
nas qualidades tímbricas do intérprete e suas características interpretativas. A
escolha por versões na língua inglesa e uma versão instrumental deve-se ao
fato de buscarmos uma relação mais rápida do apreciador em perceber a voz
como um instrumento, buscando recursos sonoros e musicais da interpretação.
Dessa forma, propomos que o apreciador selecionasse apenas a melodia
conduzida pela voz sem interferência do texto.
Neste contexto, a definição de voz como um instrumento focaliza nosso
olhar sobre a linha melódica a ser apreciada e refletida, bem como, possibilita
a fragmentação de determinadas características que implicam a ação de
cantar.
A voz é um instrumento a serviço de dois distintos fazeres. Em
primeiro lugar, a voz é um dizer; diz fonemas, palavras, frases,
discursos, numa palavra, a voz é logos. Mas a voz também é
um cantar; canta notas, motivos melódicos, frases musicais,
melodias. A voz agora é mélos. São duas diferentes
manifestações da oralidade que podemos analiticamente
distinguir, mas que, são indissociáveis, por que
complementares (Carmo, 2004, p.218).
Para introduzir a atividade, elaboramos um questionário dividido em
duas partes e aplicamos durante a apreciação. A primeira parte foi respondida
durante a apreciação. Eram seis questões que instigavam e direcionavam a
escuta para a voz do cantor (intérprete), suas características e intenções
interpretativas:
Primeira parte: escutando, analisando e nomeando:
1. O que esta música transmite?
2. Como você descreveria esta melodia?
3. Como é que você caracteriza a voz nesta música?
4. O que você acha que diz a letra? Por quê?
5. De que maneira o cantor interpreta a música?
6. De que forma o intérprete usa a sua voz? E o que talvez ele queira
acentuar na sua interpretação?
Nessa etapa, cada versão foi apresentada pelo menos seis vezes
consecutivas, pois para cada versão apresentada era necessário responder às
seis perguntas propostas. A segunda parte do questionário, composta por cinco
questões, busca uma relação entre as versões apresentadas
P. 72
anteriormente, e uma descrição da compreensão de alguns elementos musicais
relacionados à música apreciada. Para introduzir essa segunda etapa,
apresentamos a versão instrumental da música.
A questão seis foi registrada em vídeo, pois a resposta consistia em
interpretar o trecho melódico das duas primeiras frases da música, com ou sem
a letra.
Segunda parte: relacionando, analisando, comparando e executando:
1. Qual a diferença de escutar a mesma música com voz e com
instrumental?
2. Qual a interpretação que você mais gostou e por quê?
3. Como você representaria graficamente o contorno melódico?
4. Como você sente a divisão desta sica? Binária, ternária ou
quaternária?
5. Como você interpretaria esta música?
Refletindo e relacionando: a escuta e a ação de cantar
A primeira parte do questionário instigou a uma escuta minuciosa dos
trechos musicais apresentados, principalmente em termos de descrição de
impressões e sentimentos, elementos que conduzem a uma imagem sonora e
significação de cada versão apreciada. Buscamos orientar a escuta para
detalhes sutis que integram a estrutura da música apreciada, favorecendo além
das sensações que provocava, se agradava ou não, qual estilo estava
envolvido, que sentimento o intérprete queria passar, de que forma o cantor
explora sua voz.
A imagem sonora neste contexto é definida quanto à notação, isto é, à
tentativa das meninas de substituírem fatos auditivos por sinais visuais a partir
da pergunta: como você representaria graficamente o contorno melódico? Para
todas meninas a representação se deu em forma de uma linha contínua,
ondulada (altos e baixos), representando as alturas da frase escutada.
Para Schaeffer (apud Ferraz, 2005, p.59), a escuta que distingue
detalhes de ataque, detalhes de timbres, arcadas, toques, sopro, empostação
de voz, etc., é uma “escuta musicista”. Diferente da escuta musical que focaliza
as relações entre notas e significados. Dessa forma, buscamos pro-
P. 73
porcionar uma escuta musicista do instrumento voz, fixando-se na melodia
cantada, para uma percepção detalhada das características vocais,
expressivas e técnicas do intérprete, buscando a fragmentação da frase
melódica.
Os aspectos de cnica vocal, a forma como o cantor executou a música,
chamaram a atenção das meninas entrevistadas. Elas não sabiam explicar
verbalmente ou conceituar o que o cantor fez tecnicamente, mas, por imitação,
conseguiram assemelhar sua voz com a do intérprete que mais se aproximou
de seus esquemas de execução vocal.
Em resposta à última questão que foi filmada, é possível perceber a
tentativa das meninas de integrar à sua interpretação elementos que estavam
presentes nos trechos apreciados. Algumas cantaram sobre a letra, outras
apenas vocalizaram a linha melódica. As meninas que vocalizaram,
conseguiram imprimir muito mais elementos interpretativos e expressivos na
execução vocal. Outras que cantaram com a letra em inglês, tiveram dificuldade
na interpretação e na atenção sobre os elementos de emissão vocal.
Análise e reflexão
Abordaremos, sob uma ótica construtivista, a reflexão e a análise desta
atividade, partindo de um questionamento amplo e complexo: esta atividade de
apreciação que compreende a escuta, reflexão e ação pode ser um recurso no
desenvolvimento do cantar?
Em resposta, remetemo-nos a Swanwick (2003), que destaca que o
professor de música não pode trazer respostas prontas e tratar o aluno como
máquina, mas deve abrir espaço para a discussão, para a apreciação (deixando
ouvir), envolvendo os alunos nas escolhas e decisões sobre as músicas que
executam e, sem dúvida, deixando criar musicalmente através da composição
e da improvisação. Portanto, buscar novas estratégias para a aprendizagem do
canto com a participação ativa dos sujeitos, favorece a construção de novos
conceitos musicais e um desenvolvimento musical mais amplo. Becker (2001,
p.23) aponta que duas condições necessárias para que algum conhecimento
novo seja construído:
a) que o aluno aja (assimilação) sobre o material que o
professor presume que tenha algo de cognitivamente
interessante, ou melhor, significativo para o aluno; b) que o
aluno responda para si mesmo às perturbações (acomodação)
provocadas
P. 74
pela assimilação do material, ou, que o aluno se aproprie, em
um segundo momento, não mais do material, mas dos
mecanismos íntimos de suas ações sobre esse material; tal
processo far-se-á por reflexionamento e reflexão (Piaget,
1977), a partir das questões levantadas pelos próprios alunos
e das perguntas levantadas pelo próprio professor, e de todos
os desdobramentos que daí ocorrerem.
Perceber o canto como um conhecimento a ser construído e o inato
ou adquirido, muitas vezes é um desafio, pois culturalmente aprendemos que
para muitas coisas precisamos ter dom. A música, geralmente, é tratada de
forma mística e incompreensível, dificultando a objetividade e a reflexão sobre
a educação musical, sobre as metodologias, sobre como trabalhar esse
conhecimento nas escolas e em outras instituições.
Na área da educação musical, e especificamente no canto, encontramos
poucas pesquisas que tenham uma abordagem cognitiva. Beyer (1988), ao
propor a abordagem cognitiva como uma nova perspectiva da educação
musical, comenta que a prática educacional vigente em música encontra sérias
deficiências: o ecletismo generalizado, os pseudométodos, a falta de
cientificidade são alguns pontos que têm levado os músicos a um
distanciamento cada vez maior de uma educação musical adequada às
necessidades dos alunos. Enquanto o professor e o aluno pensarem que cantar
é uma mera questão de talento e sensibilidade, eles não terão motivos para
buscar uma teoria, dentro da realidade da educação musical, que seja coerente
com o processo de aprendizagem do canto.
Desta forma, a apreciação que descrevemos explicita a importância da
reflexão sobre as atividades propostas, a objetividade e amplitude que novas
estratégias podem favorecer, inúmeras leituras, interpretações e avaliações.
De muito pouco valeria esta atividade, se não houvesse a reflexão do que
estava sendo feito.
Poderíamos nos perguntar: por que apreciar se a proposta é cantar?
Apontamos que a resposta desta pergunta está relacionada com o fazer
musical, com a postura do professor, com a filosofia da educação, com a forma
de como o professor concebe a aprendizagem musical. Diante disso é que
desenvolvemos nossa proposta de canto coral em que as atividades de
apreciação, improvisação, composição e análise se debruçam sobre uma visão
construtivista e passam a ser situações de aprendizagem. A ação, a reflexão e
a compreensão de conceitos são aspectos necessários para a construção do
cantar e do desenvolvimento da performance.
P. 75
No desenvolvimento do trabalho com o coro referido, essa atividade de
apreciação que descrevemos é uma ideia entre tantas possibilidades que
podem ser promovidas pelo educador musical. Da mesma forma, outras
estratégias de apreciação podem ser desenvolvidas, como a escuta de
sonoridades e composições contemporâneas, de culturas diferentes, de grupos
diferentes, a apreciação do próprio grupo em apresentações e ensaios (vídeo),
etc. Enfim, consideramos a apreciação uma ferramenta fundamental no
desenvolvimento de nossa proposta de canto coral.
Apreciando uma construção do cantar
Apreciar para cantar, apreciar o canto do outro, apreciar seu próprio
canto, parar para escutar, parar para construir, parar para refletir, parar para
cantar. As meninas que executaram essa atividade, não somente na
interpretação (filmada), mas na fala posterior, demonstram um desassossego
sobre sua emissão vocal, sobre seu entendimento musical e enriquecem a
interpretação fazendo uso de elementos que foram possíveis de serem
entendidos e reproduzidos, assim como aumentam o nível crítico sobre todo
desenvolvimento musical pessoal e grupai.
Dessa forma, a atividade de apreciação pode ser um recurso no
desenvolvimento do cantar, na medida em que o sujeito passa a integrar, na
sua ação de cantar, os elementos musicais assimilados no ato de apreciar.
A construção do cantar, a educação musical e o desenvolvimento da
performance se dão a partir de uma pedagogia relacionai que possibilita ao
professor de canto e ao educador musical proporcionarem situações em que
os alunos participem ativamente, explorando a sua voz, descobrindo seu corpo,
conhecendo melhor seu funcionamento e suas possibilidades. Dessa forma,
todas as atividades propostas serão fecundas e passíveis de análise e reflexão.
A postura e as crenças determinam a fecundidade e o trânsito de ideias e
sentimentos no processo de construção do conhecimento. Acreditamos que o
ensino da música, a construção do cantar (o ensino do canto) devem ser
desenvolvidos através da apropriação ativa espontânea e orientada, e não
impostos ao sujeito (aluno). E preciso criar, ousar, fundamentar e acreditar no
potencial individual do aluno, mas antes do professor, de nós mesmos.
P. 76
Referências
BARCELÓ, B. J. La génesi de Ia inteligência musical en l’infant. Barcelona:
Dinsic, 2003.
BECKER, F. Educação e construção do conhecimento. Porto Alegre: Artmed,
2001.
BEYER, E. A abordagem cognitiva em música: uma crítica ao ensino da
música, a partir da teoria de Piaget. Porto Alegre, 1988. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
BÜNDCHEN, D. S. A relação ritmo-movimento no fazer musical criativo: uma
abordagem construtivista na prática de canto coral. Porto Alegre, 2005.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
_____. Uma reflexão sobre a prática do canto coral. In: SEMINÁRIO
NACIONAL DE ARTE E EDUCAÇÃO DE MONTENEGRO, 18., 2004,
Montenegro. Anais... Montenegro: Fundação Municipal de Artes, 2004.
p. 142-144.
_____. Cognição, música e corpo no canto coral: um fazer musical criativo. In:
ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 13., 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio
de Janeiro: CBM-CEU UNIRIO, 2004. p. 303-310. CD-ROM.
BÜNDCHEN, D. S.; SPECHT, A. C. Meninas arte em canto: corpo e voz no
fazer musical. In: ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 13., 2004, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: CBM-CEU UNIRIO, 2004. p. 297- 302.
CD-ROM.
CARMO JR., J. R. A voz: entre a palavra e a melodia. Revista de Literatura
Brasileira, São Paulo, n. 4/5, 2004.
COELHO, H. W. Técnica vocal para coros. São Leopoldo: Sinodal, 1994.
DART, T. Interpretação da música. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
DINVILLE, C. A técnica da voz cantada. Rio de Janeiro: Enelivros, 1993.
FERRAZ, S. Livro das sonoridades: notas dispersas sobre composição. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2005.
FERREIRA, L. H. Mal-estar na escola: uma pragmática ético estética. São
Paulo, 1988. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
GOULART, D. Por todo canto: método de técnica vocal, v. I/São Paulo: G4,
2002.
P.77
KEBACH, P.F.C. A construção do conhecimento musical: um estudo através
do método clínico. Porto Alegre, 2003. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
MÁRSICO, L. O. A voz infantil e o desenvolvimento músico vocal. Porto Alegre:
Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1979.
QUINTEIRO, E. A. Estética da voz: uma voz para o ator. São Paulo: Summus,
1989.
PIAGET, J. A formação do símbolo: imitação, jogo e sonho, imagem e
representação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
SWANWICK, K. Ensinando música musicalmente. Trad. Alda Oliveira e Cristina
Tourinho. São Paulo: Moderna, 2003.
TAFURI, J. O desenvolvimento musical através do canto na etapa infantil. In:
ENCONTRO ANUAL DA ABEM, 9., 2000, Belém. Anais... Belém: 2000.
P. 79
6 O QUE ESTA MÚSICA SUGERE PARA VOCÊ?
Ângela B. Crivellaro Sanchotene [Nota 1]
No mundo do cancionista, não importa tanto o que é dito, mas a maneira
de dizer, e a maneira é essencialmente melódica (Luis Tatit).
Trabalhando com adolescentes, resolvi escolher um tema presente em
suas vidas: a opinião [Nota 2]. Os adolescentes sempre têm algo a dizer sobre
qualquer assunto, e às vezes suas opiniões são contundentes, embora se
contradigam com facilidade. As opiniões podem ser sobre política, sobre
drogas, preconceitos dos mais variados tipos, de protesto, sobre questões
sexuais, etc. Neste caso, escolhi o tema denominado por mim de “protesto”.
Escolhido o tema, selecionei quatro músicas de diferentes estilos:
“Smells like teen spirits” (Nirvana): rock, voz, bateria, baixo, guitarra,
guitarra com distorção (em inglês).
“Luta de classes” (Cidade Negra): reggae, voz, trompete, baixo, guitarra,
bateria (em português). O reggae em geral tem uma base harmônica simples
em estrutura circular (C - Am - Dm - G7) e acentos rítmicos no contratempo.
“Estudo em C menor” Op. 10/12 - “Revolucionário” (F. Chopin):
P. 80
estudo, música erudita, piano (sem letra, período da História da Música -
Romântico).
“Sociedade alternativa” (Raul Seixas): rock, voz, bateria, guitarra, baixo.
Pode-se notar que duas músicas têm letras em português, porém de
estilos diferentes e uma em inglês e outra sem letra. Isso, no meu entender,
faria com que cada sujeito, ao ouvi-las, deveria prestar bastante atenção, para
responder à seguinte pergunta: o que esta música sugere para você?
Cada música foi tocada por dois minutos, sem repetição e, durante a
audição, os alunos registraram suas impressões, conforme aparece no quadro
1.
Em todas as quatro músicas, apareceram os termos “chata, não gostei,
não sei o que senti”. Em três músicas apareceu a expressão “não senti nada”,
com exceção da música de Chopin. No “Estudo revolucionário”, todos tiveram
uma opinião a dar, mesmo dizendo que não sabiam o que sentiram, que não
gostaram ou que a música era chata.
Quadro 1
Smells like teen spirit
Luta de classes
Estudo revolucionário
Sociedade alternativa
Alegria
Paz aos povos
Que prestem atenção
Protesto
Energia
Som bom, letra mais ou menos
Relaxante
Razoável
Boa música
Tranquilidade
Encantadora
Liberdade
Nada
Bagaceirice
Descanso
Interessante
Não gostei
Idiotice
Para refletir
Não atrai
Chata
Nada
Para dormir
Nada
Revolução adolescente
Sobre o Brasil
Não gostei
Não gostei
“Bala” de curtir
Não gostei
Parece música clássica, romântica
É Raul Seixas
Sobre todos os tipos de preconceitos
Reggae
Calma
É estranha
Não sei
Gostei
Lenta
Chata
Rock pesado
Chata
Chata
Sociedade alternativa
Escuta e viaja
Descanso
Tranquilidade
Não sei
Ira dos instrumentos
Expressão
Pensar na vida
É velha, mas é boa
Paz e amor
Prosperidade
Sobre um lugar
Suspense
Não sei
Drama
Calma
Tem que ter paciência para escutar
História da vida
P. 81
Elenco, a seguir, no Quadro 2 algumas características que estas
músicas têm em comum, embora observando-se estilos completamente
diferentes:
Quadro 2
Smells like teen spirit
Luta de
classes
Estudo
revolucionário
Sociedade alternativa
Paixão
X
X
X
X
Tom coloquial
X
X
Não
É metafórico
Fatos cotidianos
X
X
Da época
Da época
Tematização
X
X
X
X
Leis musicais
X
X
X
X
Canção passional
X
Não
X
X
Rítmico
X
X
X
X
Frases
Quatro ou oito compassos
Quatro ou oito compassos
Quatro compassos
Quatro compassos
Modo
Tom maior
Tom maior
Tom menor com
modulações
Tom maior
Tempo compasso
Dois tempos
Dois tempos
Dois tempos
Dois tempos
Instrumentos
Guitarra, baixo, bateria
Trompete, guitarra, baixo, bateria
Piano
Guitarra, baixo, bateria
Vozes
Cantor e back vocal vocal, eco
Cantor e back
Não
Cantor e público
Texto
X
X
Não
X
Ponto
saliente
Solo guitarra, harmônico
de intervalos regulares se
repetindo, prolongando as
vogais, caindo o an-
damento da música.
“Perguntas e
respostas” no refrão,
musicado e falado,
trompete, no final, faz
as perguntas.
Virtuosismo, música pensada
para o piano, música de
texturas (melodias, pulsos,
ritmos), buscando repouso,
motivo está na escala.
Musicado, falado
improvisado,
acelerando no
final, bateria,
guitarra e voz.
Aqui me parece claro que o que importa é como se diz algo, porque a
música de Chopin, que não tem letra, contém uma mensagem e esta
mensagem é dita através da melodia (e isto poderia dificultar o trabalho dos
sujeitos da pesquisa).
Nas músicas “Smells like teen spirit” e “Luta de classes”, no refrão de
cada uma, concentra-se a tensão na pulsação, reiterando o tema, reduzem-se
as vogais, mostrando uma progressão melódica mais veloz, em que o ritmo é
acentuado, podendo-se tamborilar os dedos, marcar o tempo com os s, a
cabeça ou mesmo dançando.
P. 82
O rock é a superfície de um tempo que se tornou polirrítmico. Progresso,
regressão, retorno, migração, liquidação, vários mitos do tempo dançam
simultaneamente no imaginário e no gestuário contemporâneos. Os jovens
representam um filão para a mídia em termos de consumo. O consumidor
atribui uma conotação fetichista à última novidade em CD’s, por exemplo, cujas
músicas se ouvem em rádios, novelas, festas.
Quanto às respostas que os alunos deram à primeira música, mesmo
não entendendo o que era dito, eles registraram “alegria, energia, boa música,
revolução adolescente, bala de curtir, rock pesado, escuta e viaja, ira dos
instrumentos”, pois o rock, juntamente com o reggae (e o funk, o hip-hop), são
os gêneros da moda. A mídia, mais uma vez, nos impõe a cultura. O rock em
geral deve ter este comportamento. Também podemos notar a análise feita por
alguns alunos sobre a música “Luta de classes” (reggae), em cuja letra,
certamente, não prestaram atenção pelas respostas oferecidas: “paz aos
povos, descanso, paz e amor, calma”.
Estamos muito acostumados com as músicas tonais, e sua evolução
criou um compromisso entre cada detalhe da obra, envolvendo elementos
harmônicos e melódicos da linguagem, como podemos observar no “Estudo
revolucionário” de Chopin. Os alunos, na maioria, não observaram elementos
que caracterizassem o tema opinião, mas elementos como “relaxante,
encantadora, descanso, para dormir, calma, lenta, tranquilidade, pensar na
vida, suspense, drama, paciência para escutar”, talvez por se tratar de música
erudita, solo para piano, e estas respostas devem ser para uma música deste
gênero.
Quando Raul Seixas em “Viva a sociedade alternativa” prolonga as
vogais, ampliando a extensão da tessitura, principalmente no refrão, “Viva, viva,
viva a sociedade alternativa... (e repete)”, ele não quer ação, mas paixão. As
canções de protesto preferem a clareza melódica às inovações harmônicas.
Os alunos conseguiram identificar a ideia da música, com palavras como
“protesto, liberdade, sofreu repressão, sociedade alternativa”. A frase que me
chamou atenção “é velha, mas é boa”, mostra que, como não é uma música do
momento, da moda ou da atualidade, eles tiveram que prestar mais atenção,
conseguindo responder mais adequadamente à sensação que a música traz.
P. 83
Utilizando uma das atividades musicais na escola, através da qual o
aluno demonstra, a partir de palavras e notações, o que a música sugeriu para
ele, pode-se fazer uma breve ligação e análise quanto às funções da música.
Sabe-se que o antropólogo e etnomusicólogo norte-americano Allan Merrian
(1964) elencou dez funções, a saber: expressão emocional, prazer estético,
divertimento, comunicação, representação simbólica, reação física, impor
conformidade às normas sociais, validação das instituições sociais e rituais
religiosos, contribuição para continuidade e estabilidade da cultura,
contribuição para integração na sociedade. As respostas dos alunos a respeito
das músicas parecem confirmar o aparecimento dessas funções:
- expressão emocional: quando mencionam “alegria, energia, chata,
revolução adolescente, bala de curtir, escuta e viaja, ira dos instrumentos, paz,
tranquilidade, bagaceirice, amor, calma, liberdade” e até mesmo a expressão
“tem que ter paciência para escutar”;
- prazer estético: as expressões “boa música, chata, rock pesado, som
bom, letra mais ou menos, expressão, para refletir, parece música clássica,
romântica, drama, suspense, não atrai, estranha, é velha, mas é boa”, indicam
o prazer estético das músicas;
- divertimento: “alegria, bala de curtir, escuta e viaja, gostei, expressão,
paz e amor, interessante, divertimento, atenção”. Segundo Merriam (idem) esta
é uma função em todas as músicas e em todas as culturas e se confirmou neste
estudo;
- comunicação: os próprios registros dos alunos;
- representação simbólica: as quatro músicas são representativas desta
função, pois são de protesto, expressando opinião sobre determinado assunto
de caráter social;
- reação física: como uma função relacionada à dança, esta não foi
expressa pelos alunos, pois nenhum aluno escreveu que gostaria de dançar,
de se movimentar, etc., ou seja, algum movimento que indicasse a reação
física. Ao mesmo tempo houve a expressão “ira dos instrumentos” que
categorizei nesta função, uma vez que sugere a percepção por eles de
movimento dos músicos, guitarristas, baixistas, baterista e vocalista. Também
observei que os próprios alunos tamborilavam com os dedos e batiam os pés
no ritmo das músicas;
P. 84
- conformidade a normas sociais: uma importante função traduzida por
expressões dos adolescentes tais como “paz aos povos, paz e amor, pensar
na vida, protesto, liberdade”;
- validação das instituições sociais e dos rituais religiosos: traduzida
pelas expressões como “liberdade, Sociedade alternativa (o título de uma das
músicas), paz aos povos, sobre o Brasil, sobre todos os tipos de preconceito,
história da vida”;
- contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura: segundo
Merriam esta função estaria ancorada no conjunto das demais funções, isto é,
se forem identificadas as outras funções a música contribui para a continuidade
e estabilidade da cultura. Portanto, as quatro músicas estudadas apresentam
esta função.
- contribuição para a integração da sociedade: expressões como
“energia, revolução adolescente, sobre todos os tipos de preconceito, protesto,
liberdade, que prestem atenção, prosperidade, pensar na vida, paz aos povos”,
entre outras, traduzem o aparecimento desta função.
Observa-se que os alunos, ao ouvirem o reggae, não se detiveram na
letra da música e sim no estilo, pois poucas foram as colocações sobre o tema
e muitas foram sobre o gênero. Por exemplo: o reggae sugere, como ritmo e
como estilo, tranquilidade, paz, praia, relaxamento. A letra desta música, “Luta
de classes”, é um pouco destoante destes elementos. Os sujeitos escreveram
“paz aos povos, tranquilidade, reggae, descanso, expressão, paz e amor,
calma”, em oposição aos que prestaram atenção à letra, que foi sobre o Brasil,
sobre um lugar e história da vida. Assim como “Smells like teen spirit”, em inglês
e rock, que sugere rebeldia. Mesmo sem entender o que a letra dizia, e poucos
conheciam a música, eles enunciaram palavras sobre o rock, sobre o gênero.
O mesmo aconteceu com “Sociedade alternativa”, que também é um rock, mas
em português.
Cada música foi apreciada a partir de critérios de apreciação particulares
a cada aluno e o resultado foi posteriormente analisado por eles, que
observaram as respostas uns dos outros, desenvolvendo e aprimorando os
conhecimentos.
Embora a música esteja sempre presente na vida dos adolescentes,
muitas vezes eles não prestam atenção à linguagem musical, o que diz a
P. 85
música em si, sem letras, baseada apenas nos elementos que a constituem.
Esta é uma oportunidade que devemos oportunizar como educadores musicais,
principalmente quando observamos a importância que a música tem na vida
dos jovens que têm por companhia permanente aparelhos eletrônicos de todos
os tipos, que buscam se aproximar da linguagem musical de seus ídolos, que
compram e se utilizam de diferentes instrumentos musicais, identificando-se
com eles.
Referências
FREIRE, V. L. B. Música e sociedade: uma perspectiva histórica e uma
reflexão aplicada ao ensino superior da música. Rio de janeiro, 1992. Tese
(Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação/UFRJ.
LAZZARIN, L. F. Ouvir música com significado: um desafio possível. In
BEYER, E. Ideias em educação musical. Porto Alegre: Mediação, 1999.
MERRIAN. A. The antropology of music. Evanston: Northwestern
University Press, 1964.
OUTEIRAL, J. Adolescer. Porto Alegre, s.d.
REVISTA VEJA. Jovens, n. 32, jun. 2004. Edição Especial.
TATIT, L.A. M. O cancionista: composição de canções no Brasil. 2. ed.
São Paulo: USP, 2002.
TOURINHO, I. Usos e funções da música na escola pública de grau.
Fundamentos da Educação Musical. Série Fundamentos, ABEM,
Fundamentos, n. I, 1993.
WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
P. 87
7 APRECIAÇÃO MUSICAL: ONDE ESTÁ O SIGNIFICADO DA
MÚSICA?
Katia Renner [Nota 1]
A música, porque pode por fatalidade passar, evanescer,
soar e desaparecer, é, tal como a vida, devir irremediável
(Santaella; Nöth, 1998).
Sempre é uma curiosidade saber o que se passa na mente de alguém
quando está entregue à tarefa de buscar significar a audição de uma peça de
música instrumental. Trata-se, neste caso, de ouvir um fato musical que
abrangerá a totalidade do discurso, mas o seu desenvolvimento acontecerá ao
longo do tempo, enquanto os sons soados deixam de existir na mente do
ouvinte, “pois o som é uma exteriorização que se destrói a si mesma e no
próprio momento em que nasce” (Hegel apud Wisnik, 1989, p. 12), exigindo-lhe
uma permanente reconstituição do extinto episódio, mas necessariamente
presente no seu processo de significação. Neste enfoque, Santaella (1998, p.
89) argumenta que alguns sistemas de signos se desenrolam, tomam corpo e
se dissolvem na sequencialidade de um tempo intrínseco, como a oralidade, a
música, o cinema e a imagem eletrônica em geral. Também distingue o “tempo
objetivo e tempo experimentado”, evidenciando que há um tempo fora de nós.
A percepção, enquanto está sendo construída, envolve níveis como o
fisiológico, que se dá através da recepção, e os processamentos de estímulos
dos órgãos sensoriais e pelo cérebro; o tempo biológico, que é a possibilidade
de relacionar, de maneira lógica, os elementos percebidos, e o tempo lógico,
em que se criam os padrões de significados através da capacidade simbólica,
P. 88
como sugere Santaella. Na música, diz a autora, a questão do tempo é
passagem, sucessividade, evanescência e conclui que “todos os elementos da
linguagem musical são, sem exceção, elementos de ordem temporal” (idem).
Quanto à questão do funcionamento da temporalidade, Santaella (ibidem, p.87)
cita a teoria da percepção de Peirce no seu caráter triádico, em que
elementos envolvidos no processo perceptivo: o “percepto” (estímulo), o
“percipuum” (conversão dos sentidos) nos seus três modos que estão
interligados como a qualidade de sentir (disponibilidade), na forma de um
choque (reação) e através do automatismo dos hábitos (informação). Ainda
Peirce (apud Santaella, 1998) inclui outros elementos da temporalidade que
chama de “antecipuum” (antecipatório) e “ponecipuum” (memória).
Exercício de apreciação musical
O exercício de apreciação musical foi desenvolvido com o objetivo de
observar as respostas de um grupo de pessoas frente aos estímulos musicais
propostos sobre o tema “O mar”, obras estas desconhecidas para os
participantes. Torna-se importante lembrar que, segundo (Wisnik, 1989,
p.24),“ao compor, os indivíduos utilizarão os sons de frequência regulares,
constantes e estáveis (afinados) como também de frequências instáveis
(ruídos)”, como por exemplo, “o som do mar: durações oscilantes entre a
pulsação e a inconstância, num movimento ilimitado; alturas em todas as
frequências, das mais graves às mais agudas, formando o que se chama de
ruído branco, no qual todas as frequências audíveis têm iguais chances de
aparecer a cada momento” (idem, p.205).
Nesta atividade, observou-se que o tempo de descobertas, as
expectativas e as curiosidades mantiveram a atenção do grupo durante a
audição da obra. Os participantes recebiam suas impressões pelos estímulos
sonoros, transformando-os em sensações. Segundo Wisnik (1989, p.26-27),
a música traduz para a nossa escala sensorial, através de
vibrações perceptíveis e organizáveis das camadas de ar, e
contando com a ilusão do ouvido, mensagens sutis sobre a
intimidade anímica da matéria, isto é, a sua espiritualidade: a
música encarna uma espécie de infraestrutura rítmica dos
fenômenos, pois o ritmo está na base de todas as percepções
modelando os objetos interiores e atuando, com muito poder,
sobre o corpo e a mente, sobre a consciência e inconsciente.
P. 89
Sabe-se também que emoção e cognição são sistemas que estão
intimamente ligados, articulando relações determinantes nas percepções. De
acordo com a matéria veiculada na Revista Viver Mente & Cérebro, de autoria
de Sandrine Vieillard (junho, 2005), “as emoções nascem das expectativas
musicais determinadas pelos momentos de tensão e relaxamento que se
sucedem nas peças de música erudita ocidental”. Esses estudos comprovam
que as relações de altura tonal entre as notas (modo) e o andamento
(velocidade) seriam elementos essenciais para determinar se uma melodia é
triste ou alegre, parâmetros estes que estariam em condições convergente ou
divergente evocando determinadas emoções. Ainda conforme Vieillard,
pesquisas comprovam que reações fisiológicas importantes no organismo,
cuja amplitude parece depender do conteúdo emocional da música e que são
independentes dos julgamentos subjetivos dos indivíduos, demonstrando o
grande poder que a música exerce sobre o comportamento do ouvinte, sem
que necessariamente tenha consciência disso e independente da história
pessoal de cada um. Essa proposição se opõe a todos os atuais estudos em
psicologia que explicam as condutas psicológicas pela interação radical entre
sujeito e meio ambiente (posicionamento estruturalista genético). Se as
reações psicológicas e orgânicas dependem da interação com o meio e das
estruturações mentais precedentes, como poderiam as reações do cérebro a
um estímulo externo ser totalmente independentes de sua história pessoal? Ou
seja, não como pensar a geração de condutas emocionais sem que estas
estejam conectadas às experiências passadas dos sujeitos. Teríamos que
pensar melhor sobre essas afirmações. Outros estudos ainda citados indicam
que a música ativa as mesmas zonas cerebrais que participam do
processamento das emoções e que, portanto, a cognição dos elementos
específicos da estrutura musical seria assim percebida. Também foi constatado
que, independente de conhecimento ou não nesta área, os indivíduos
apresentaram respostas emocionais à música de forma muito semelhante,
indicando uma função de coesão social numa dada cultura. Esta constatação e
a análise dos nossos dados remete-nos a pensar que as respostas não
independem do histórico pessoal gerado em uma determinada sociedade.
P. 90
Análise comparativa de duas obras musicais
Obras: Concerto pour flute - “La tempesta di mare” em F Major;
Allegro, de Antônio Vivaldi (1678-1741); e “Sea in motion” - Sons da natureza
(equilíbrio; meditação; antisstress; relaxamento)
Temática: O mar
Público: sete pessoas, com idades entre 26 e 79 anos em situação
informal.
Perguntas propostas aos participantes:
1. O que esta música sugere a você? Que imagens vêm a sua mente?
2. Descreva como esta peça consegue passar estas impressões a você.
3. Qual o título que você daria a esta música?
Respostas dos participantes sobre “La tempesta di mare”:
A: 1 e 2. Muita leveza e graça. Um casal dança num salão de baile com
trajes especiais; 3. “Salão de baile”.
J: 1. Natureza, harmonia, doçura; 2. Os tipos de instrumentos, a maneira
de executá-los, a rapidez, tudo sugere uma paisagem variada e dinâmica; 3.
“Harmonia do mundo”.
F: 1. Apreensão; 2. Duelo entre flautas como se houvesse uma
concorrência; 3. Título: “A fuga do príncipe”.
S: 1. Ritmo, harmonia, movimentos rápidos, continuidade, alegria,
diálogo. 2. Instrumentos que se comunicam em perfeita harmonia. Como se
fossem pessoas dialogando, argumentando. 3. “Cotidiano”.
G: 1. Trem, alegria, diálogos; 2. Instrumentos de sopro, com bastante
velocidade. Temas leves de diferentes intensidades; 3. “Viagem à alegria”.
R: 1. Revoada de pássaros; 2. O voo e o vento (duelo) indicando o
comportamento dos pássaros contra o vento; 3. “A revoada”.
D: 1. Violino, Renascença, alegria, primavera, renascer; 2. Música com
cadências e sequências alegres; 3. “Recomeço”.
M: 1. Crianças brincando, floresta, confraternização; 2. Água, natureza,
cristais; 3. “Alegria”.
Respostas dos participantes sobre “Sea in motion” - Sons da
natureza:
A: 1 e 2. Ouvindo os pássaros gorjeando. Rodas gigantes e outras
atrações atraindo as pessoas de diversas idades que querem participar. Estou
no meio desta multidão e sinto todo o entusiasmo; 3. “Parque de diversões”.
J: 1. Sugere uma viagem; 2. O ritmo sugere algo progressivo, que
translada, embora alguns sons e ruídos sejam confusos: não sei o que são; 3.
“Viagem ao desconhecido”.
F: 1. Fontes de vida como os pássaros; 2. Assovios de pássaros; 3. “A
natureza”.
P. 91
S: 1. Interiorização, leveza, volta à natureza, relaxamento, liberdade,
paz; 2. Não há mudança de ritmo, linearidade, tranquilidade; 3. “Vida”.
G: 1. Natureza, paz, animais e plantas em harmonia; 2. Sons da natureza
- instrumentos leves; 3. “A vida surge”.
R: 1. Aves se alimentam na beira do mar; 2. A comunicação entre elas;
3. “A vida no mar”.
D: 1. Natureza, árvores, floresta, água, pássaros, ambiente místico,
misterioso, alegre, descobrimento, meditação, evolução; 2. Sons da natureza -
instrumentos de teclado com sons diferentes; 3. “Mãe natureza”.
M: 1. A flauta em ritmo rápido me passa a imagem de uma festa; 2. Sons
da natureza usados como recursos naturais; 3. “Energia que vem da natureza”.
Analisando as respostas
Segundo Schopenhauer (apud Tragtenberg, 1999, p.89), “a música em
si e por si mesma nunca expressa os fenômenos, mas apenas a essência
íntima do fenômeno”. Nas respostas dos participantes, percebe-se que os
elementos musicais são apreendidos facilmente, revelando o caráter e as
sensações subjetivas que permeiam as obras musicais. Deve-se isso às dife-
renças que se dão nos
parâmetros sonoros, nas suas conjunções e, ainda no interior
de cada um, nos remetem às estabilidades e instabilidades
harmônicas. No sistema tonal, o desenrolar das notas e ritmos
criam movimentos intensos e suas relações não são neutras,
mas envolvidas por atrações que polarizam em tensões e
suspensões como ímãs, numa busca de organização,
precedentes da série harmônica. Os diferentes intervalos entre
os sons também são condutores de elementos semânticos,
impregnados de valores perceptivos relacionados às
qualidades das emoções. A música tonal produz a impressão
de um movimento progressivo, de um caminhar que busca
resolução (Wisnik, 1989, p. 105).
Supõe-se também que cada indivíduo traz à sua audição um
discernimento próprio e vivencial do contato maior ou menor com o hábito da
escuta atenta, que busca as revelações intrínsecas do material sonoro. Apesar
de pessoal, isto é, conectado aos universos subjetivos individuais, ao serem
solicitados sobre a descrição dos elementos que os compositores utilizaram
para expressar suas ideias, a linguagem verbal de cada apreciador revelou
imagens de iconicidades contidas nos discursos musicais. De acordo com
Santaella (1998, p. 15), o mundo das imagens se divide em dois
P. 92
domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais:
desenhos, gravuras, fotografias, etc., que são objetos materiais, signos que
representam o nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial
das imagens na nossa mente, que aparecem como visões, fantasias,
imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais.
Estes domínios estão interligados e unificados no terceiro domínio que é o
signo ou representação. Para Piaget, na sua epistemologia genética (apud
Santaella p.30), a imagem mental é uma imagem interior, é um veículo do signo
que representa o objeto de referência externa. E a possibilidade da mente de
transformar o acontecimento externo numa imitação interiorizada,
denominando este aspecto de função semiótica.
As descrições pelos indivíduos nas suas respostas trouxeram
informações sobre os elementos que constituíram o seu ouvir narrativo,
composto de imagens provenientes do Concerto de Vivaldi: salão de baile,
trajes, instrumentos musicais, cadência, maneira de executá-los, paisagem
variada, pessoas, trem, ritmo, voo, revoada de pássaros, vento, primavera,
floresta, água, natureza, cristais. Estes elementos foram amplificados,
qualificados, especificados com: leveza, graça, doçura, apreensão, alegria,
especial, rapidez, variação, dinâmica, duelo, comunicação, harmonia,
dialogando, argumentando, velocidade, intensidades, comportamento,
renascença, renascer, sequências, brincando, confraternização.
Na obra “Sons da natureza” os elementos que descreveram a peça
foram: o gorjeio dos pássaros, rodas gigantes, multidão, viagem, ritmo
progressivo, sons, ruídos, assovios de pássaros, animais, natureza, sons da
natureza, instrumentos musicais leves, aves se alimentam à beira-mar, árvores,
floresta, água, ambiente místico, descobrimento, teclados com sons diferentes,
flauta, festa. Estes indícios vieram acompanhados de: atração, diversas idades,
participação, meio da multidão, entusiasmo, ritmo que translada, sons
confusos, não sei o que são, fontes de vida, interiorização, leveza, volta à
natureza, relaxamento, liberdade, paz, plantas em harmonia, linearidade,
tranquilidade, comunicação entre as aves, ambiente místico, misterioso, alegre,
descobrimento, meditação, evolução, imagem de festa. “A indeterminação
aparente da linguagem musical não é outra coisa senão a riqueza infinita de
determinações e de significações inumeráveis que estão adormecidas nela
mesma” (Jankélévitch apud Tragtenberg, 1999, p.90).
P. 93
Comentando as obras
“La tempesta di mare”; primeira parte: Allegro
- Executada por orquestra e solista (flauta): som acústico.
- A orquestra inicia apresentando o tema com movimentos
ascendentes e descendentes. Em seguida vem o diálogo da
flauta com a orquestra. A orquestra retoma e conclui esta
primeira ideia musical.
- O tema é agora desenvolvido pela flauta com as cordas,
evoluindo novamente para a orquestra toda, num crescendo de
sonoridade, timbres e intensidades até novamente retornar
para a flauta.
- Os elementos rítmicos são leves, curtos e rápidos, com
pequenas variações.
- A melodia apresenta uma constância na amplitude de seus
intervalos, em alturas crescentes revelando o alargamento do
espaço sonoro, que vai se iluminando com a clareza dos sons
mais agudos.
- Continuando a primeira parte, vamos ter novamente o diálogo
da orquestra com a flauta, revelando agora um caráter mais
leve, com graça, movimentos rítmicos variados que despertam
sensações delicadas e fluidas.
- A orquestra encerra definindo e reforçando os motivos
melódicos e rítmicos.
- A capacidade narrativa desta peça revela a riqueza dos
elementos musicais do compositor em apresentar o ambiente
marítimo numa paisagem sonora descritiva.
- As estratégias expressivas feitas pela flauta dialogando com
a orquestra provocam sensações de movimento, riqueza,
inquietude, amplitude, alegria e leveza.
“Sea in motion” - Sons da natureza
- Teclados: som eletrônico.
- Inicia com sons ambientais descritivos, numa narrativa clara
e precisa, localizando prontamente o ouvinte da paisagem
sonora que se apresenta.
- A organização das durações é constante, com uma rítmica
mensurável e repetitiva.
- A linha melódica é simples e clara, mantendo o ouvinte numa
situação estável, com baixa expectativa quanto à narrativa
sonora, pois a sua direcionalidade é previsível.
- Facilidade em reconhecer os elementos da obra no seu
caráter de leveza, graça, harmonia e bem-estar.
- As estratégias expressivas buscam manter o ouvinte
tranquilo, sem recorrer às dinâmicas contrastantes que
pudessem emocionar e dispersar a sua atenção. Caso
contrário, o afastariam da proposta musical dessa obra.
P. 94
Análise comparativa quanto aos títulos para as peças
Participantes
La tempesta di mare
Sea in motion
A
Salão de baile
Parque de diversões
J
Harmonia do mundo
Viagem ao desconhecido
F
A fuga do príncipe
A natureza
S
Cotidiano
Vida
G
Viagem à alegria
A vida surge
R
A revoada
A vida no mar
D
Recomeço
Mãe natureza
M
Alegria
Energia que vem da natureza
Os títulos dados às obras revelam semelhança no seu caráter
contextual, referindo-se aos elementos sonoros que descreveram os ambientes
onde a natureza faz seus cantos, ruídos e sons, o que possibilitou o
reconhecimento de uma realidade vivida. “O símbolo da linguagem musical
sonora provoca, de forma mais acentuada que nas demais linguagens, uma
ambiguidade intensa em sua própria constituição, o que acentua ainda mais o
papel do receptor no processo da comunicação” (Tragtenberg, 1999, p.91).
Assim, os recursos timbrísticos, texturas, dinâmicas, forma, expressividade,
andamentos e outros foram os componentes do discurso musical que
expressaram as ideias e as intenções dos compositores sobre o assunto. Ao
formularem suas respostas, os sujeitos buscaram, então, significar, de forma
global, suas percepções através da manifestação escrita, constituindo o
caminho da transversalidade que perpassa as diferentes linguagens, porém
portadoras de um sentido amplo, possibilitando que elementos diversos
encontrem ressonância no seu efeito de sentido. Eric Landowski (2004, p. 102)
comenta que “a imagem incorpora um sentido musical, e a música, em
contrapartida, constrói imagens”, sendo assim, “as propriedades de ordem
estética imanentes aos objetos se dirigem a nós e nos transformam no que em
contato com eles nos tornamos” (p. 106-107).
Observa-se que as duas obras remeteram o ouvinte a captar um clima
semelhante e intrínseco que permeia ambas propostas, colocando o ouvinte
em atenção pelo desenrolar do que viria. “La tempesta di mare” manteve a
curiosidade e expectativa interessada pela diversidade sonora que
P. 95
apresentou: tudo ainda estava para acontecer. Os títulos dados à obra de
Vivaldi não trouxeram a palavra “mar”, mas os elementos musicais sugeriram
sensações relativas ao movimento do mar, o ambiente em torno e outras
imagens que estão conectadas com este tema. A segunda peça, “Sea in
motion”, se revelando por inteira nos seus primeiros momentos, afastou a
atenção de imediato, causando um certo desinteresse perceptivo ao seu
desenrolar, mas foi eficiente na sua descrição porque evidenciou para os
sujeitos a proposta do compositor em relatar seus objetivos, mantendo o
ouvinte mais interiorizado. Estas obras musicais cumpriram assim seus
propósitos: a primeira, de revelação (narratividade) e a segunda, de meditação,
o que foram confirmadas no nosso exercício.
O curioso é que mesmo que a clareza da obra “Sea in motion” tenha
facilitado a tarefa de apreciação musical, todos foram unânimes em apontar a
obra de Vivaldi como a mais bonita e gostariam de tê-la ouvida por inteiro.
Fazendo uma analogia das questões investigativas com relação à
geração de imagens que alcançam diferentes áreas do conhecimento, sugere-
se como exemplo este exercício para que diversos fatos artísticos possam ser
objetos de estudo em múltiplos contextos. Para Goethe (apud Tragtenberg,
1999, p.91),
o símbolo transforma o fenômeno em ideia e a ideia em
imagem, e é desta forma que a ideia na imagem projeta-se ao
infinito e permanece inacessível; mesmo que expressa por
todas as línguas, ela permanecerá sempre inexprimida.
Referências
LANDOWSKI, E. Modos de presença do visível. In: OLIVEIRA, A. C. de (Org.).
Semiótica plástica. São Paulo: Hacker, 2004.
MORAES, J. J. de. O que é música. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SANTAELLA, L.; NÕTH, W Imagem, cognição, semiótica, mídia. São Paulo:
Iluminuras, 1998.
TRAGTENBERG, L. Música de cena. São Paulo: Perspectiva, 1999.
VIEILLARD, S. Emoções musicais. Revista Viver Mente & Cérebro: o poder da
música, São Paulo, Ediouro, jun. 2005.
WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
P. 97
8 PROCESSOS DE INTERAÇÃO SOCIAL EM AMBIENTE DE
EDUCAÇÃO MUSICAL
Patrícia Kebach [Nota 1]
Neste capítulo detive-me em explorar se a apreciação musical ativa e os
processos interativos participam da elaboração das estruturas do
conhecimento musical e possuem um papel causal na sua gênese. Para isso,
observei uma situação de apreciação ativa, em que os sujeitos deveriam anotar
suas impressões durante a escuta musical e, posteriormente, fazer uma
reflexão coletiva sobre estas impressões, procurando chegar a uma conclusão
de significação em grupo. Intencionalmente, escolhi uma música com
abordagem cultural eclética, com vistas à mobilização de esquemas de
significação perante a diversidade cultural.
Procurei, dessa forma, abandonar o esquema clássico entre o professor
e o aluno para instaurar uma rede de interações entre os alunos (no caso, as
professoras que participaram de uma oficina de educação musical em Bento
Gonçalves). Pretendi, assim, criar um espaço de apelo à expressão, criação,
exploração e construção, a partir da escuta ativa e do confronto com pontos de
vista diferentes entre os sujeitos observados neste estudo, partindo da hipótese
de que a ação sobre a música, como objeto a ser explorado, precede sua
compreensão, sendo fator fundamental na construção de conceitos musicais.
É necessário salientar que o considero a atividade apreciativa, enquanto
ação sobre o objeto musical, como principal fonte das descobertas musicais,
mas como parte integrante deste processo.
P. 98
A apreciação ativa como uma ferramenta de aprendizagem musical
Antes de abordar e analisar os resultados desta pesquisa, considero
necessário realizar uma breve explicação sobre o que penso ser importante
para o desenvolvimento integral, em termos musicais, cujo processo nasce da
ação prática à compreensão musical. Minha proposição é a de que a ação
prática musical deve envolver a atividade de escuta atenta, em que a
apreciação evoque qualquer tipo de reação (sentimentos, diferenciação de
elementos musicais, especulações acerca da significação musical em jogo,
etc.), assim como a atividade de recriação (interpretações de obras existentes,
novos arranjos para obras compostas, etc.) e criação musical (improvisações
e novas composições) em nível pré-operatório ou operatório concreto. Já a
compreensão musical, que diz respeito à expressão de significados musicais e
à reunião destes em forma de conexões lógicas (implicação significante),
proponho que seja gerada também a partir das atividades de apreciação,
recriação e criação. Pretendo dizer com isto que as traduções por
representações significativas do núcleo funcional das próprias coordenações
das ações proporcionam um sistema de coordenações operacionais, em
termos musicais, que transforma as estruturas do pensamento, ampliando as
possibilidades de produção musical, da mesma forma que a ação prática
modifica a música, enquanto objeto material (Piaget, 1978a; 1978b).
Nesta pesquisa, as explicações dos sujeitos envolvidos na atividade
apreciativa caracterizaram-se por representações egocêntricas, privilegiando
apenas certos aspectos presentes na composição musical em jogo, em função
do nível de desenvolvimento de cada sujeito. A atividade caracterizou-se mais
por uma ação prática sobre o material sonoro proposto do que por uma real
compreensão, porém necessária para esta construção.
Alguns pesquisadores da área de música e cognição (Swanwick, 1979;
Pontious, 1986; Beyer, 1995 e 1996; Lazzarin, 1999; entre outros) também
consideram que, para que haja aprendizagem musical, as atividades básicas
devem ser desenvolvidas de forma conjunta e devem englobar a apreciação, a
recriação e a criação musical. Diferentes autores denominam essas atividades
de diferentes formas. Para Swanwick, por exemplo, composição, apreciação e
performance são as formas essenciais de prática musical. Já
P. 99
Beyer conceitua essas atividades pelos termos apreciação, reprodução e
produção. Em minha pesquisa, optei por utilizar os termos “apreciação,
recriação e criação”. Neste texto irei me deter na atividade apreciativa.
A atividade de apreciação vem gerando alguma polêmica no meio
acadêmico voltado para a área de música e cognição: ouvir música pode
desenvolver musicalmente o sujeito? Considero que sim. Entretanto, isso
depende do modo de realização dessa tarefa.
A escuta, em forma de apreciação, deverá ser uma escuta ativa, isto é,
a atenção do sujeito deverá estar voltada para uma atividade de verdadeiro
envolvimento com aquilo que escuta, através da tentativa de diferenciação da
estrutura musical, do significado da música, da descrição dos sentimentos que
são evocados, etc. Minha proposição é de que a atividade apreciativa deve
envolver todos esses aspectos.
Lazzarin (1999, p.74) diz que a “apreciação é geralmente tratada sob a
forma, ou de ‘fundo sonoro’ para as mais diversas atividades (inclusive
relaxamento), ou de audição passiva, despida de qualquer reflexão sobre o que
está sendo ouvido”. O autor discorda desses tipos de atividades, como forma
de proporcionar um desenvolvimento musical. Para ele, não existe significado
nem na música, como objeto isolado, nem no estímulo, e nem no indivíduo,
“mas na relação que os envolve” (p.78). Citando Meyer, Lazzarin diz que “o
significado se forma sobre uma relação triádica entre estímulo, o objeto ao qual
o estímulo se refere e o indivíduo para o qual o estímulo adquire significado”
(idem).
Partindo da epistemologia genética, concordo com a posição de
Lazzarin. Em ambas as abordagens (Meyer e Piaget), o que está em jogo é a
ação do sujeito sobre o objeto musical e o significado que ele consegue extrair
desta interação.
Segundo minhas observações (Kebach, 2008), a interação coletiva é um
espaço rico de mobilização de esquemas de significação e de coordenação de
ações progressivas, na tentativa de estruturação, tanto do objeto musical,
quanto de relações sociais.
Na interação coletiva há trocas entre diferentes pontos de vista que são
explicitados por cada indivíduo, a partir daquilo que construiu nas
experiências realizadas em seu entorno cultural, e isso gera o conhecimento
de diferentes formas de enxergar o mundo.
P. 100
A atividade demandada e os sujeitos observados
Observei 66 professoras da rede municipal de Bento Gonçalves, que
atendem o ensino infantil desse município e as séries iniciais do ensino
fundamental, na zona urbana e rural. Os dados foram recolhidos durante a
realização da oficina de educação musical que realizei. A tarefa proposta às
professoras foi de escutar algumas músicas atentamente e anotar todos os
pensamentos que emergissem durante a apreciação das mesmas. Depois,
solicitei que se reunissem em pequenos grupos, para que pudessem fazer uma
reflexão sobre suas impressões, compartilhando-as e discutindo sobre elas,
anotando o resultado sob a forma de impressões finais compartilhadas em
relação a cada música. É importante observar que estas professoras não
possuíam conhecimentos musicais formais.
Procurei aqui especificar a atividade realizada com uma música de
abordagem cultural diversificada, rica em significações e elementos da
linguagem musical. A música proposta foi a de José Neto, “Toré”, executada
pelo grupo Girafulô, do CD Cirandas e Cantigas de Roda. Nesse CD, o grupo
Girafulô procura trazer os sons e os ritmos originários de Portugal, da Itália, da
África, da cultura indígena, e outros, ou seja, procura demonstrar a riqueza da
música brasileira e a influência que recebemos de outros países. O grupo visa
a revelar a cultura brasileira de forma musical e tem a intenção implícita de, nas
palavras escritas na contracapa do CD, “formar a grande roda, cantar e dançar
com o mundo, lá no fundo do coração”, buscando, assim, trazer nas canções a
ideia de movimento.
A música “Toré”
A música “Toré” é uma compilação de trechos musicais. Começa com
um vocal dissonante e circular, em compasso quaternário, em que um coral
feminino canta o primeiro verso a seguir apresentado, com palavras que se
originam da língua indígena brasileira, indicando de forma mais expressiva o
intervalo de quarta (coincidentemente, ou não, intervalo que inicia o Hino do
Brasil), em meio a outros intervalos. Isso nos remete a pensar numa possível
intencionalidade do compositor, que a música conta a formação étnica do
Brasil e, no final da obra, o compositor utiliza-se das 16 últimas notas do Hino
Nacional. O vocal dissonante e circular vai acelerando o andamento e uma
P. 101
forte percussão começa a marcação daquilo que considero a segunda parte da
música, que passa a ser interpretada em compasso ternário. Um verso faz
fundo aos sons de tambores, com baixa intensidade, dizendo “É um, dois, três...
são quatro, cinco, quinhentos anos... e quem faz desse país uma grande
nação?” Este verso introduz a compilação de trechos musicais tocados por
diversos instrumentos, com a base rítmica dos tambores sempre igual.
Essa mescla instrumental e de trechos remete à ideia de diversidade
cultural, parte em que flautas indígenas iniciam e vozes de fundo cantam os
dois outros versos, indicando a cultura africana. Sons de atabaques mesclam-
se aos sons de guitarra (ideia de rock), de violoncelo (música clássica), de citara
(cultura europeia), de viola (cultura portuguesa, expressa pelos caipiras), e
outros. A música, como falei, termina com o trecho final do Hino Nacional
tocado na viola, ou seja, uma coda que indica a melodia do Hino. A
característica geral da música é de modo maior.
O compositor parece descrever uma linha do tempo da história do Brasil,
indicando a diversidade cultural e a miscigenação, começando pela história dos
povos indígenas (primeiros habitantes), trazendo logo em seguida a música dos
colonizadores (portugueses, africanos, europeus em geral), até chegar à
influência da colonização nos estilos musicais mais atuais, resultantes da
diversidade cultural étnico-brasileira. O desfecho remete à ideia de totalidade
da nação.
Toré
Música de José Neto
Cantam: Loslena, Lígia Jaques,Titiane
CD: Cirandas - Cantigas de Roda (Grupo Girafulô)
Xacriabá, krenak
Machacali, Tupiniquim
E pataxó
Tuxá pankararé
Pankararé e guarani,
Botoque dos poxixá
Maxacali e kaimbé
Toré dos kiriri
Tupiniquim e pataxó
Tuxá, pankararé
Pankararé e guarani
P. 102
Botoque dos poxixá...
Maxacali e kambé
Toré dos kiriri
Tupiniquim e patachó
Aiaiô cuna mumbundu
É quinina tunde une tandu cuna ebó
Pala oso, obembua cuna zâmbi
Ai pavão bateu asas e avoou
Ai pavão bateu asas e avoou
Ai, ai moreninha
Foi embora e me deixou
Análise geral das apreciações individuais
Pude perceber certa contradição entre os sentimentos revelados pelas
professoras na apreciação musical individual. Em relação aos sentimentos
negativos, os adjetivos que apareceram em maior quantidade foram tristeza,
agressividade, agonia, ansiedade, entre outros. Os sentimentos positivos foram
os que mais apareceram: alegria, tranquilidade, união, energia, liberdade, entre
outros. Esses sentimentos são característicos das representações subjetivas
de cada indivíduo sobre a música proposta. São representações egocêntricas,
ligadas a sensações e sentimentos pessoais e fazem parte das primeiras
regulações ativas que conduzem os sujeitos à diferenciação dos elementos da
linguagem musical. Estão ligadas à subjetividade estrutural de cada pessoa
(esquemas assimiladores afetivos e cognitivos que dependem das construções
feitas a partir do entorno cultural pessoal). Nesta atividade a maioria das
professoras revelou sensações aproximadas das que o compositor quis
despertar por meio da sua construção estrutural musical (união, festa,
movimento, etc.).
Algumas professoras procuraram separar a música em três momentos,
atribuindo à primeira parte, de modo geral, uma sensação de energia, de força;
à segunda, um sentimento de festa, de alegria, e à terceira, de paz e
serenidade. A música realmente parece apresentar estes três momentos, se
considerarmos a coda com a melodia do Hino Nacional uma parte isolada. Essa
divisão fica ainda mais clara pela modificação dos compassos nos três
momentos (primeiro quaternário, depois ternário e finalmente binário), e
também pelo fato de começar com um vocal, partir para a segunda parte com
a inclusão de
P. 103
instrumentais diversos e finalizar com apenas a viola. Desta forma, percebem-
se, por meio da diferenciação em três momentos, os primeiros
estabelecimentos de relações entre as partes da estrutura musical.
Em relação aos elementos da linguagem musical, muitas referiram-se,
de modo intuitivo, ao ritmo fortemente marcado da música (música bem
ritmada, ritmo forte, etc.), às mudanças instrumentais, às mudanças de
andamento (música mais ligeira, mais devagar, etc.), às mudanças de estilos
(samba, música de ninar, carnaval), à cadência e à intensidade. Apontaram
alguns instrumentos que apareceram na música (discernimento de timbres):
pau de chuva, flautas, guitarra, vozes, chocalho, viola, violão e tambores, estes
últimos salientados por muitas. Como ressaltei, os tambores foram os
instrumentos que serviram de base rítmica da compilação de trechos musicais.
Quanto aos significados musicais encontrados, houve quase que um
consenso sobre alguma referência à cultura indígena (índios, tribal, dança
indígena, reverência aos índios, etc.). Das 66 pessoas que apreciaram a obra,
52 fizeram referência à cultura indígena. A música trouxe a imagem de
movimento para a maior parte das pessoas, que utilizaram expressões como:
dança, movimento, agitação, roda, vibração, coreografias, festa, confusão, etc.,
captando, assim, este significado implícito do compositor e dos intérpretes.
Algumas referiram-se a uma significação religiosa (por exemplo, quando
utilizaram as seguintes expressões: ritual, místico, religiosidade). A cultura
africana também foi abordada (capoeira, africanos, etc.).
Atribuiu-se, também, sensualidade à música, embora apenas uma
pequena parte das pessoas o tenha feito. Cerca de 15% delas conseguiram
significar a referência à nação, intencionada pelo compositor, fato que pode ser
observado nas seguintes expressões utilizadas: cultura, povo, hino nacional,
nacionalismo, respeito à terra natal, Brasil, nação, etc. Muitos elementos que
compõem a cultura brasileira foram arrolados, porém de modo isolado. Ou seja,
não houve estabelecimento de relações significativas destes elementos.
Segundo Piaget (1995), essas primeiras abstrações empíricas
(constatação dos fatos, induções, exploração do objeto sobre o qual se age
sem relacionar os elementos constatados) são necessárias para as futuras
construções do sujeito, através das abstrações reflexionantes (coordenação de
ações mentais a partir de deduções).
P. 104
Para aumentar o nível de reflexão sobre essa atividade, procurei fazer
com que ela fosse debatida em grupo e a análise das conclusões a que cheguei
sobre este segundo momento será apresentada a seguir.
Análise das impressões dos grupos
As professoras se reuniram em 18 grupos para discutirem suas
impressões sobre as músicas. Abaixo, descreverei o que anotaram a partir das
conclusões a que chegaram sobre as impressões compartilhadas na
apreciação da música “Toré”:
Grupos
Impressões finais compartilhadas
A
Descontração.
B
No início, a música trouxe descontração e vontade de movimentar o corpo. No final, uma saudade
que trouxe tristeza.
C
Grupo indígena; cultura; espiritualidade; medo - perigo - tristeza.
D
Tribo indígena, evoluindo em festejo; identificação de vários instrumentos; finaliza com ritmo mais calmo.
E
Alegria; ritmo; rodas; movimento.
F
Culto; cultura; folclore.
G
Lembra-nos a viola indígena, o convívio em grupo, a união, alegria, festa, a natureza.
H
Início: movimento rápido, sugerindo conflito; Depois: batida lenta, impressão de paz.
I
Encontramos em comum tudo o que se refere aos indígenas.
J
Dança, diversos sons, diferentes ritmos, agonia, medo, impulso para a dança.
L
Festa; alegria; comemoração.
M
Liberdade; alegria; intensidade; organização.
N
Cultura; povo; terra; índio; grupo.
O
Chamado; alegria; festa; comemoração; tribos; natureza; paz; homenagem; indígenas.
P
Índios; festa; alegria; comemoração; gritos de guerra; som; vida; instrumentos musicais (flauta,
tambor, viola).
Q
Alegria; animação; participação; festa; ritmo; ordem; música e ritmos indígenas; tranquilidade;
protesto, violência; apelo; angústia.
R
O grupo pensou totalmente diferente, não chegando a nenhuma conclusão.
S
Dança ritualística tribal que expressa alegria, festa, costumes culturais.
P. 105
A atividade de apreciação musical pode implicar um exercício necessário
para o desenvolvimento musical, pela anotação de diversos pontos suscitados
na escuta ativa: sentimentos, significações, apreensão de elementos da
linguagem musical (melodia, ritmo, estilo, andamento, textura, expressão etc.),
instrumentos (timbres, ataques, ressonâncias, etc.), vocais (uníssono,
harmônico, feminino, masculino, com timbres variados, etc.). Essa atividade
comprovou-se ser ainda mais rica quando realizada coletivamente.
Além de proporcionar uma atividade de subjetivação, em que cada
pessoa tem a possibilidade de expressar sua afetividade, anotando o que sente
no momento de escuta ativa, a apreciação musical também gera atividade de
objetivação, ao ter de identificar elementos captados pela exploração auditiva
do material sonoro. Assim, quando o sujeito procura constatar diferentes sons,
elementos da linguagem musical, relacionar eventos musicais que esteja
percebendo e compreender a significação em jogo, um movimento de
objetivação, ou seja, de organização mental. Esta atividade, individual, pode
ser enriquecida com a reflexão coletiva posterior. A partir dos conflitos
sociocognitivos, o sujeito tende a coordenar suas ações com as de outras
pessoas. Aos poucos começa a dissociar pontos de vista, reconstituí-los
levando em conta suas próprias ações. A atividade operatória interna e a
cooperação são, segundo Piaget (1973) e Perret-Clermont (1996), os aspectos
complementares de um conjunto, pois o equilíbrio de um depende do
equilíbrio de outro.
Segundo o nível de desenvolvimento de cada pessoa, as trocas que ela
faz com o meio são de natureza bem diversa, e podem transformar as
estruturas mentais também de maneiras diversas, dependendo dos esquemas
que possui. A interação pode levar a uma influência positiva e construtiva,
permitindo-lhe observar a mesma situação de maneira diversificada pela
confrontação com diferentes pontos de vista que podemos observar,
comparando-se os significados enunciados na tabela anterior pelos grupos C,
D, F, G, I, N, O, P, Q e S, que se referiram à cultura indígena, a festejos,
sensação de movimentos, e, em menor grau, nas atribuições dos grupos A, B,
H, J, L e M, que se referiram a sentimentos de descontração, movimento e
impulso para a dança - significações e sentimentos estes que correspondem à
intenção do compositor.
Atividades de apreciação musical coletivas podem levar ao que Perret-
Clermont (1996) chama de conflitos sociocognitivos e foi isto o que aconteceu
P. 106
nos debates e sínteses desses grupos. Entretanto, os conflitos podem também
exercer uma influência negativa e/ou inibidora, quando a opinião de uma
pessoa se opõe constantemente a de outra, impedindo uma solução em
conjunto para qualquer problemática proposta. Essa influência inibidora é
chamada por Perret-Clermont de conflito socioemotivo. Como exemplo,
podemos observar as conclusões do grupo R, no quadro anterior, que, embora
tenha compartilhado alguns significados individuais, como tivemos
oportunidade de perceber pelas anotações individuais, não conseguiu chegar
a um consenso.
O que está em jogo na atividade de apreciação não são somente as
significações que o compositor deseja transmitir, mas também a expressão da
subjetividade de cada indivíduo que interpreta e que aprecia determinada obra.
Verifiquei que a significação coletiva aproxima-se mais ao significado
intencional do compositor (ver grupos C, F, N e S que se referiram, por exemplo,
ao significado cultural ou de nação).
O que de comum nas impressões, em maior grau, são significados
derivados da própria obra composta, embora alguns aspectos da subjetividade
dos apreciadores também sejam compartilhados (ver grupos C, J, M e Q, que
expressaram, por exemplo, sentimentos de medo, tristeza, agonia, liberdade, e
outros). Sem dúvida, a atividade coletiva despertou uma maior reflexão de
todos, decorrente dos conflitos ocasionados por pontos de vista diferenciados.
Ao final do trabalho de reflexão em pequenos grupos, proporcionei a
discussão em grande grupo. Neste momento, pretendi desafiar as professoras
a identificarem características que se repetiam nas reflexões individuais e em
pequenos grupos, para que, ao término de uma segunda escuta ativa, todas
pudessem montar em conjunto os significados intencionais do autor, o que
aconteceu com grande sucesso.
A partir dessa experiência e de outras análises sobre atividades de
apreciação musical (Kebach, 2008), concluo que o desafio da reflexão coletiva
tende a possibilitar outras diferenciações pelos conflitos cognitivos que são
gerados pelos diferentes pontos de vista.
Considerações finais
Ao agir sobre o material sonoro em forma musical, as coordenações de
ações são construídas pelo sujeito, não a partir de ações observáveis e
particulares, nem a partir dos observáveis dos objetos, mas sim, em nível
P. 107
mental, a partir das relações conscientes ou inconscientes que realiza entre os
eventos. Isso ocorre pelo processo de abstração reflexionante: a transposição
a um plano mental superior do que foi construído no patamar precedente das
ações (Piaget, 1995, p.6).
A experiência com as professoras narrada neste texto demonstra a
importância da atividade apreciativa na estruturação do pensamento musical.
Assim como propõe Lazzarin (1999, p.89), “a participação coletiva, em que
cada contribuição individual é agregada ao conhecimento coletivo da turma, ao
qual todos têm acesso e do qual participam” pode estimular novas descobertas
sobre o material sonoro organizado em forma musical, levando a múltiplas
representações mentais, bases para a formação de conceitos musicais
posteriores, tendo em vista que a ação precede a compreensão (Piaget, 1978
a). Ou seja, penso que a apreciação estética mais intensa, a expressão criativa
e a produção podem ser desenvolvidas se partirem no sentido da ação à
compreensão. Eis a importância de uma atividade apreciativa que seja
realmente envolvente, disponibilizando, inclusive, intercâmbios de pontos de
vista, conflitos e reflexões.
O ambiente pedagógico musical deve possibilitar sempre ações a partir
da diversidade cultural em suas várias formas: através de discussões coletivas
entre indivíduos, da interação entre os sujeitos e músicas de várias etnias ou
instrumentos diferentes, enfim, a riqueza do processo está justamente nesta
interação diversificada. A possibilidade de condutas criativas depende das
construções realizadas pelos sujeitos. Essas construções, por sua vez,
dependem do modo de abordagem pedagógica. Desse modo, uma abordagem
musical pedagógica fechada a apenas um estilo leva à reprodução, no sentido
de sequências estratégicas ordenadas e orientadas de práticas inconscientes
ou conscientes, que todo o grupo produz para reproduzir-se enquanto grupo,
legitimando privilégios ou condutas culturais diversas, neutralizando-as. Há,
portanto, no ensino musical tradicional, legitimação de obras que representam
a hierarquia dos bens culturais válidos dentro de uma sociedade, em um dado
momento e que nem todos têm a mesma qualidade e quantidade de acesso. A
música clássica foi por longo tempo um exemplo disto. Excluem-se aqueles que
não tiveram acesso a essas obras, nas formas mais tradicionais de educação
musical. Ao contrário, uma abordagem aberta à diversidade musical, à reflexão,
e que busque a pesquisa sonora ativa, leva à possibilidade de criação de
novidades musicais, através da mobilização de esquemas de significação dos
sujeitos
P. 108
envolvidos neste processo, tornando-os mais criativos. Assim, aprender música
depende também da oferta de vários estilos, incluindo a todos num processo
de real desenvolvimento musical a partir de suas vivências pessoais e das
trocas em grupo, sendo a apreciação, um aspecto fundamental no ensino da
música.
Referências
BEYER, E. Os múltiplos desenvolvimentos cognitivo-musicais e sua
influência sobre a educação musical. Revista da ABEM, Porto Alegre, 1995, v.
2, n. 2, p. 53-67.
_____. Os múltiplos caminhos da cognição musical: algumas reflexões
sobre seu desenvolvimento na primeira infância. Revista da ABEM, Salvador,
1996, v. 3, n. 3, p. 9-16.
KEBACH, P. F. C. A construção do conhecimento musical: um estudo
através do método clínico. Porto Alegre, 2003. Dissertação (Mestrado em
Educação) - FACED, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
_____. Musicalização coletiva de adultos: o processo de cooperação nas
produções musicais em grupo. Porto Alegre, 2008. Tese (Doutorado em
Educação) - FACED, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2008.
LAZZARIN, L. F. Ouvir música com significado: um desafio possível. In:
BEYER, E. Idéias em educação musical. Porto Alegre: Mediação, 1999.
PERRET-CLERMONT, A. La construction de l’intelligence dans
l’interaction sociale. Neuchâtel: Peter Lang, 1996.
PIAGETJ. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro: Forense, 1973.
_____. A tomada de consciência. São Paulo: Melhoramentos, 1978a.
_____. Fazer e compreender. São Paulo: Melhoramentos, 1978b.
_____. Abstração reflexionante: relações lógico-aritméticas e ordem das
relações espaciais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
PONTIOUS, M. A guide to curriculum planning in music education.
Madison: Wisconsin Department of public Instruction Herbert J. Grover State
Superintendent, 1986.
SOULAS, B. La construction du sens musical. In: Les Sciences de
l’éducation, numero spécial: education musicale et psychologie de la musique.
1990, p. 3-4, p. 145-166.
SWANWICK, K. A basis for music education. London: Routledge, 1979.
P. 109
9 MAKUNAIMANDO E O HINO DE RORAIMA: CONTEXTO DE
CRIAÇÃO/RECEPÇÃO
Rosangela Duarte [Nota 1]
Apreciação musical é um tema que não tem sido abordado com a ênfase
necessária nas discussões curriculares nas escolas. No que tange à educação
musical para a educação básica, a apreciação musical é tratada de forma
superficial ou equivocada, confundindo-se com o simples gostar desica ou
com uma escuta que não contribui para a construção do conhecimento musical.
Não podemos esquecer que a apreciação musical faz parte do tripé que
alicerça o discurso musical, assim como a execução e a criação.
A atividade de apreciação representa dar um significado a tudo o que se
pode ouvir. A partir dessa afirmativa, a compreensão da atividade de
apreciação considera os múltiplos significados que a obra musical pode
desencadear, em um contexto de sala de aula.
Como referencial para a nossa discussão, a partir da pesquisa de
Lazzarin (2000), entendemos como significado musical amplo aquele que gera
discussões sobre a música e sua relação com a educação, podendo revelar
possibilidades de compreensão, não da obra de arte em si, mas do
significado que os alunos atribuem à música no contexto em que se encontram.
Portanto, vamos abordar a apreciação musical a partir de uma análise
musical vivenciada em duas escolas públicas, com crianças e jovens na faixa
etária do ensino fundamental e médio, procurando refletir sobre as
P. 110
possibilidades de atribuição de significado propiciadas na atividade de
apreciação musical. Antes de analisarmos as músicas propostas, vimos a
necessidade de realizar uma breve consideração sobre o que pensamos ser
importante para o desenvolvimento da escuta, através da apreciação musical.
Desenvolvendo a escuta da música
A partir do pensamento de Elliot (1997, p. 15), acreditamos que o
“musiquear” (fazer música) e a escuta são de natureza cognitiva em sua
totalidade e que as obras musicais representam manifestações sérias e
extraordinárias do pensamento e do conhecimento humano. Sabe-se, também,
que o pensamento e o conhecimento constituem o núcleo de todos os esforços
educativos. Assim, podemos dizer que “a escuta musical é uma forma interna
de conhecimento em ação prática, pois esta se a partir de nossa experiência
consciente ao ouvir uma obra musical”.
“A escuta se coloca aqui como uma capacidade específica que se utiliza
preferencialmente do ouvido a fim de integrar, graças a ele, mensagens
sonoras, entre as quais se inscreve a música” (Tomatis, 1991, p. 113). Dessa
forma, consideramos que a escuta tende a favorecer a intimidade com o
mundo. De acordo com Stephen Handel (1989, in Elliot, 1997, p.28), “escutar é
centrípeto, te puxa para dentro do mundo. Olhar é centrífugo, te separa do
mundo”. Não podemos fechar nossos ouvidos assim como fechamos nossos
olhos, tendo a oportunidade de selecionar o que realmente queremos ver. Isto
nos remete a pensar na necessidade de desenvolver uma escuta que tenha um
significado real para a construção de novos conhecimentos.
A escuta é uma capacidade de alto nível à qual o homem está
destinado. (...) Ela contribui para a organização de sua
estrutura neuronal, que será condicionada, em última instância,
pela própria escuta. (...) ela induz o homem a tornar-se o que
ele deve ser: um ser em ressonância com tudo o que vive e,
desta forma, com tudo o que vibra (Tomatis, 1991, p. 113).
A presente análise musical tem como ponto de partida a minha
experiência como professora na Escola de Música de Roraima (de 1987 a
2000) e na Escola de Aplicação da UFRR (a partir de 1997), onde vivenciei
P. 111
a interpretação das músicas “Makunaimando” e “Hino de Roraima”, pelos
alunos do ensino fundamental de 5ª a 8ª séries e do ensino médio.
Proponho a análise da música “Makunaimando” e do “Hino de Roraima”
com o objetivo de perceber e compreender o significado dessas canções para
os envolvidos nessas duas escolas, procurando refletir sobre as possibilidades
de atribuição de significado propiciadas na atividade de apreciação musical.
Sobre “Makunaimando”
A partir de 1974, foram realizados em Boa Vista festivais de música com
temáticas livres, promovidos pelo governo do então Território Federal de
Roraima. Partindo de uma solicitação da própria comunidade local, os festivais
foram instituídos para fomentar a produção musical regional e valorizar os
músicos locais.
Em 1981, com a implantação do Departamento de Assuntos Culturais
como órgão da Secretaria de Educação e Cultura do então Território, deu-se
um novo impulso às possibilidades de efetuar uma produção musical
sistematizada, devido às diversas áreas culturais que o novo Departamento
começou a coordenar.
A partir dessa data, os festivais de sica realizados pelo Departamento
de Cultura proporcionaram uma maior divulgação da música regional, em que
os compositores de Roraima começaram a ser apreciados pela maioria da
população.
Em 1984, foi criada a Escola de Música de Roraima, vinculada também
a este departamento, com o objetivo de institucionalizar o ensino da música no
Território. Sendo assim, todos os que faziam parte do corpo docente e discente
da escola participavam ativamente do movimento musical local.
Nesse contexto, a partir dos festivais foi criada a música
“Makunaimando” (1992), de Zeca Preto (José Maria Garcia) e Neuber Uchoa,
tendo sido registrada em um dos primeiros CDs gravados com músicas
regionais roraimenses. A repercussão das canções desses dois compositores,
incluindo “Makunaimando”, foi tão grande através da mídia local que este
trabalho se tornou um marco na história da música de Roraima. A música
“Makunaimando”, composta na década de 80, além de trazer na sua letra
P. 112
peculiaridades do cotidiano das famílias roraimenses, tem o ritmo de forró que
era o mais apreciado na época.
Como Roraima ainda era um Território, não haviam sido instituídos os
seus símbolos cívicos (hino, bandeira, brasão). Então, nas solenidades
escolares, a pedido da própria Secretaria de Educação, era solicitado que a
música “Makunaimando” fosse inserida no repertório dos corais da Escola de
Música que ora se apresentavam. Isto porque era uma composição que falava
da região, retratando seus costumes e crenças, e que as crianças sabiam
cantar e o faziam com muita empolgação, o que satisfazia largamente as
autoridades governamentais. Esse é um exemplo que nos mostra o
pensamento de Elliot (1997, p.17): “os materiais estruturais das obras musicais
sempre delineiam tradições culturais específicas”, considerando que “as obras
musicais são construções completamente artístico-sociais”.
Pelas questões políticas vividas enquanto Território - com governos
nomeados pelo poder executivo federal - sentia-se a necessidade de dizer,
através destas apresentações, que Roraima existia, tinha uma identidade e
proporcionava uma vida em que todos valorizavam a terra promissora e jovem
que o próprio governo fazia questão de divulgar. Com isso, qualquer visitante
ficaria impressionado ao ver crianças e jovens cantando com tamanha vibração
e felicidade, uma música feita por gente da terra.
A música “Makunaimando” está composta em ritmo de forró, pela grande
migração nordestina, que até hoje chega a Boa Vista. As crianças,
acostumadas a ouvirem este ritmo fora da escola, por ser o estilo musical mais
veiculado pela mídia local, se apropriaram da música facilmente. Nas
comemorações escolares, nas quais alunos, professores e pais tinham a
oportunidade de compartilhar momentos musicais, só se ouvia forró.
Os instrumentos utilizados são peculiares da cultura nordestina:
zabumba, sanfona, triângulo. Percebemos também, nesta gravação, a
presença de um baixo elétrico.
A composição está dividida em três partes. Na primeira, inicia uma
descrição do lugar, a localização de Boa Vista.
Cai o sol na terra de makunaima
Boa Vista no céu
Lua cheia de mel
P. 113
Na segunda, a melodia sobe e amplia a descrição pelos caminhos e
costumes próprios da região e quem a habita.
Sobe a serra de Pacaraima
Eu sou de Roraima
Surubim, tucunaré, piramutaba
Sou pedra pintada,
Buriti, bacaba
Caracaranã, farinha d’água, tucumã
Curumim te espera cunhantã
Na terceira e última parte, a música nos remete a um momento de
contemplação, tornando a melodia mais plástica, não deixando o ritmo em
evidência.
Um boto cantando no rio
Beijo de caboclo no cio
Parixara na roda de abril, se abriu
Linha fina no meu jandiá
Carne seca, xibé, aluá
Jiquitaia, caxiri, taperebá.
Ao analisarmos a letra, percebemos que está imbuída de muitos
significados que fazem parte do cotidiano das comunidades dessas duas
escolas com quem pude conviver. Podemos destacar alguns vocábulos como:
“Parixara” (dança indígena), “jandiá” (cesto de pescar), “aluá” (bebida),
“jiquitaia” (pimenta), “caxiri” (bebida indígena), “taperebá, buriti, bacaba”
(frutos), “cunhantã” (menina), “tucumã” (palmeira que dá fruto).
Falar em “tucunaré, curumim, cunhantã” fazia parte do cotidiano dessas
crianças, pois era assim que seus familiares as chamavam e até mesmo os
professores na escola: “Fica quieto ‘curumim’!” (menino). Muitos deles comiam
carne seca com “xibé” (mingaú feito de farinha de mandioca, leite e açúcar)
antes de irem para a escola. O passeio, no final de semana, era ir pescar
“piramutaba, surubim”, com sua família. E todas essas informações eram
contadas oralmente na escola e através dos desenhos e redações.
P. 114
Sobre o “Hino de Roraima”
Foi muito interessante quando Roraima passou de Território Federal
para Estado, em 1988, e o governo lançou o concurso público para instituir o
Hino do Estado. Antes de nos remetermos à análise musical do Hino, gostaria
de contar um pouco da história da trajetória de como se chegou a ele.
O primeiro governo eleito do Estado (1988 a 1995) teve como prioridade
a implantação e a organização do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. A
respeito dos símbolos cívicos houve muitas divergências políticas e o próprio
Departamento de Cultura do Estado se incumbiu de efetivá-los. Porém, tais
símbolos não foram muito divulgados.
O segundo governador eleito, em 1996, não satisfeito com a falta de
conhecimento da população escolar sobre os símbolos cívicos do Estado,
decidiu fazer um novo concurso público para realmente instituí-los. Com a
formação de uma comissão de especialistas, nomeada através de portaria da
Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Desporto, deflagrou-se o
concurso do Hino, da Bandeira e do Brasão, tendo como vencedora a música
de Dirson Costa e a letra de Dorval de Magalhães.
O Maestro Dirson Costa, entre as décadas de 1960/70, foi selecionado
para formar e dirigir a Banda de Música do Governo e da Guarda Civil Territorial
que nessa época propôs constituir-se na cidade. Inicialmente, deu aulas de
música aos próprios integrantes da Banda, formando saxofonistas, flautistas e
violinistas. Após passar um período na cidade de Manaus, Dirson retorna a Boa
Vista para participar desse concurso. Aliado ao velho amigo Dorval de
Magalhães, membro de uma das famílias pioneiras de Roraima, escritor e poeta
nascido na década de 20, que sempre retratou Roraima em seus versos.
Então, se analisarmos a função e a representação de um hino, que deve
ser considerado como um instrumento de exaltação de uma nação, de um
partido, de uma instituição pública ou particular, este deve expressar os valores
mais relevantes para este determinado grupo social.
Após o resultado do concurso, sendo os vencedores dois renomados
cidadãos que há muito já vinham contribuindo para o desenvolvimento cultural
do Estado, o governo intensificou a divulgação do “Hino de Roraima” na mídia
local, além de solicitar a execução do mesmo em todas as solenidades oficiais
e escolares. As escolas receberam cadernos com a
P. 115
letra do Hino na capa e a Banda da Polícia Militar foi agraciada com a produção
de um CD para gravar o Hino do Estado.
Ao analisarmos a música do “Hino de Roraima”, esta nos remete a uma
marcha triunfante com uma estrutura A - B - C (refrão) e uma pequena
introdução instrumental que revela o final da parte B.
Todos nós exaltemos Roraima
Estrutura: A Que é uma terra de gente viril,
É benesse das mãos de Jesus,
Para um povo feliz varonil!
Amazônia do norte da pátria!
Estrutura: B Mais bandeira pra o nosso Brasil!
Caminhamos sorrindo, altaneiros,
Almejamos ser bons brasileiros.
Nós queremos te ver poderoso,
Estrutura: C Lindo berço, rincão Pacaraima!
(refrão) Teu destino será glorioso,
Nós te amamos querida Roraima!
Tua flora, o minério e a fauna
Estrutura: A São riquezas de grande valor,
Tuas águas são limpas são puras,
Tuas forças traduzem vigor!
Que belezas possui nossa terra,
Estrutura: B Sinfonia que inspira o amor!
O sucesso é a meta, o farol
No lavrado banhado de sol!
É tocado pela Banda da Polícia Militar do Estado e cantado por soldados
da mesma corporação. Aqui podemos perceber que, mesmo com o intuito de
revelar as belezas de Roraima e promover na comunidade a satisfação de estar
fazendo parte da construção de um novo Estado, o governo revela um estado
de poder, de domínio. A força das vozes masculinas e o instrumental que
compõe a banda se mostram firmes e rígidos.
A letra, escrita em versos, inicia falando da gente desbravadora e
corajosa que habita o Estado. Revela também o poder de influência da
P. 116
Igreja, onde o povo que é feliz varonil recebe benesse das mãos de Jesus.
Localiza Roraima na Amazônia brasileira, no extremo norte do país. Mas ainda
propõe que almejemos ser bons brasileiros. Será que apesar de ser um povo
feliz varonil ainda não são autossuficientes?
Na terceira estrofe revela a riqueza da flora, do minério e da fauna, além
do manancial de águas que provém dos grandes rios do Estado. Mas todas
essas riquezas estão distantes de beneficiarem a população, pois as políticas
de preservação ambiental das regiões de mata e de lavrado são incipientes. O
minério se encontra nas grandes reservas indígenas, onde o acesso se
restringe às Igrejas (Católica e Evangélica), às Organizações Não
Governamentais (ONGs) e à Fundação Nacional do índio (FUNAI).
Análise da apreciação musical
A partir da apreciação musical realizada com os alunos que participavam
dos corais das referidas escolas, analisamos os principais pontos que foram
destacados pelos alunos, após apresentarmos três questões:
1. Ao escutar a música “Makunaimando”, o que ela significa
para você? O que você sente ao cantá-la?
2. Ao escutar o “Hino de Roraima”, o que ele significa para
você? O que você sente ao cantá-lo?
3. Qual das duas músicas você acha que representa melhor
Roraima? Por quê?
A começar pela obrigatoriedade de ter que cantar uma música imposta
por uma determinada Instituição que revela poder, que ora permitia a utilização
de um ritmo mais popular, pode-se constatar certa incoerência suscitando
questionamentos pelas próprias crianças. Esta ação coercitiva, segundo Piaget
(In de LaTaille, 1984, p. 80), “impõe um conjunto de crenças, de símbolos, de
regras etc., fixadas em seu conteúdo: o indivíduo não tem nada a fazer senão
aceitá-las, donde a submissão heterônoma, ou a resistir”.
Muitas vezes, nas atividades escolares nas quais se fazia necessária a
interpretação do “Hino de Roraima”, observou-se que, talvez como uma
manifestação de resistência, as crianças o cantavam sem expressividade,
demonstrando uma ação puramente mecânica.
P. 117
- O gosto da melodia, é sem graça.
- Tristeza, porque não gosto da letra e nem da melodia.
- A melodia é sinistra, a letra até que é bonita.
- Não tem força de representação, pois é comum demais.
(Depoimentos dos alunos)
O Hino é executado frequentemente num ritmo forte marcado pelo
instrumental de uma banda, onde a gravação de referência é feita por vozes
masculinas. Sendo assim, torna-se inteiramente justificável que esta música
seja reproduzida apenas por obrigação, não estabelecendo uma proximidade
ao cotidiano escolar vivenciado pelos alunos.
- Marcha simples, com uma letra sem emoção, parece música
de militares com letra hipócrita.
- Tradicional, não traduz sentimento pela nossa terra.
(Depoimentos dos alunos)
Além disso, ainda revela na sua letra um vocabulário mais rebuscado,
dificultando a compreensão do significado da mensagem, a qual retrata o
Estado de Roraima, a ser transmitido a toda a comunidade.
- Tem a letra com palavras difíceis, não sei o significado.
- E pouco conhecida, creio que seja por não ter força, não tem
significado.
- Retrata as coisas belas de RR, mas sem detalhes.
(Depoimentos dos alunos)
Segundo Penna (2002), o objetivo da música na escola é ampliar o
alcance e a qualidade da experiência musical do aluno e, para tanto, é
necessário tomar a vivência do aluno como ponto de partida para o trabalho
pedagógico, reconhecendo como significativa a diversidade de manifestações
musicais - sejam eruditas, populares ou da mídia.
Por outro lado, diferentemente do Hino, a música “Makunaimando”, com
um ritmo popular (o forró) conhecido e vivenciado pelas crianças, apresenta
uma gravação com instrumentos familiares (a zabumba, o triângulo e a
sanfona), na voz de dois cidadãos roraimenses comuns. Essas características
que a música traz, fazem com que as crianças se sintam tão próximas da
realidade descrita por esses compositores que acabam se apropriando desse
fazer musical.
P. 118
- Sentimento de satisfação por morar numa terra de tantas
belezas e diversidade, tanto em recursos naturais como
culturais.
- Fala um pouco sobre a história de RR, eu acho uma música
muito bonita que faz a gente ter orgulho da nossa cidade.
- Retrata RR puramente e seu povo.
(Depoimentos dos alunos)
As práticas musicais podem oferecer às crianças as condições
necessárias para obter os valores de vida - o autocrescimento, o
autoconhecimento, mas infelizmente a maioria das escolas ainda é considerada
uma instituição que propaga “uma representação do conhecimento e dos
valores oficiais (elitistas) da sociedade, uma representação do status quo, ou
seja: as concepções escolares têm sido conservadoras por definição”
(Azevedo, 2001, p.23).
A música “Makunaimandodescreve os espaços de Roraima com um
vocabulário simples, contendo palavras das diversas culturas existentes no
Estado, na sua maioria indígena e nordestina.
- Música regional, bonita que enche de orgulho os roraimenses.
- É regional, e sinto que entra no coração das pessoas da terra.
- Representa a poesia de RR.
- É uma música belíssima cheia de história e fácil de decorar,
aprendi quando criança e sei até hoje.
(Depoimentos dos alunos)
Os lugares e costumes relatados na música têm um significado para
essas crianças e jovens por identificarem suas experiências vividas, tanto no
ambiente escolar como, principalmente, na família, nas ruas, nas comunidades.
Elliot (1997, p. 19) nos diz que: “já que as obras musicais são essencialmente
artísticas e sociais, desempenham um papel importante para estabelecer,
definir, delinear e preservar um sentido de comunidade e identidade dentro dos
grupos sociais”.
- uma impressão de estar sobrevoando Roraima, é bem
alegre.
- Lembra as coisas de RR.
- Sinto o ritmo de RR, o sabor, o cheiro, as pessoas, ela
significa realmente o meu Estado.
Fala das coisas boas de RR de forma verdadeira e transmite
paz de espírito, pois somos transportados para todos os
recantos e belezas da nossa terra.
P. 119
- Transmite o valor pela terra que se vive. Significa a maneira
de conhecer o povo roraimense.
(Depoimentos dos alunos)
A apreciação musical pode despertar no aluno o interesse em ouvir
música de maneira crítica e diferenciada e, ao ter a música como referência
qualitativa e crítica, melhorar a qualidade da audição, e consequentemente
melhorar a sua formação como ser humano. Para isso, a atuação do professor
frente ao ensino da música na escola é de fundamental importância, porque ele
deve assumir a responsabilidade de propiciar para seus alunos oportunidades
de vivenciarem atividades de apreciação musical, tendo consciência da
dimensão que esta compreende.
A escuta leva o homem a expandir-se numa dimensão mais
vasta. Ela lhe revela sua inserção em um universo que
ultrapassa infinitamente seus limites anatômicos. Liberto de
seus limites físicos graças a essa antena auditiva, ele se
engaja num processo de total comunicação, em uma
comunhão com seus pares (Tomatis, 1991, p.114).
A apreciação musical na prática pedagógica dos professores possibilita
uma maior interação do grupo, em que a diversidade das experiências trazidas
pelos alunos será o ponto de partida para estabelecer uma postura crítica e
reflexiva.
Ao responderem à terceira questão, que tratava da escolha de uma das
músicas, esse aspecto crítico ficou muito claro nas respostas e justificativas dos
alunos que foram unânimes em dizer:
- “Makunaimando”, porque fala de RR, da comida, dos montes,
dos buritizais, da bacaba e da nossa regionalidade.
- “Makunaimando”, se fosse escolhida para virar hino de RR, ia
convencer, pois é bem mais criativa que o Hino de RR”.
- “Makunaimando”, porque tem gosto de música do norte.
- “Makunaimando”, porque é quente e alegre como o povo
desse lugar.
- “Makunaimando”, porque tem um significado especial, fala da
origem da nossa terra.
- “Makunaimando”, pois desenvolve de forma simples a
importância de RR sem se preocupar com pompas.
- “Makunaimando”, alegria!”
- “Makunaimando”, pois é a realidade da nossa terra.
P. 120
- “Makunaimando”, porque não nos deixa esquecer da nossa
cultura.
- “Makunaimando”, porque a letra diz os detalhes do RR e já o
hino cabe em qualquer Estado ou lugar, tirando a palavra
Roraima...
- “Makunaimando”, porque representa melhor RR, muito mais
do que o Hino de RR.
(Depoimentos dos alunos)
O professor deve perceber que, assim como a música pode servir para
manter as relações de poder existentes (“Hino de Roraima”), também pode ser
utilizada como forma de questioná-las, alertando para as características de
dominação da sociedade na qual está inserida.
A visão crítica do professor é essencial para que os alunos percebam a
ação coercitiva que a mídia tenta impor à sociedade atual, determinando
padrões culturais de massa.
Através de atividades práticas de escuta musical, o professor deve se
deixar levar, junto com seus alunos, por uma viagem de descobertas, nas
entrelinhas de cada canção, favorecendo correlações entre a criatividade e a
criação de diferentes formas de pensar ou entender o mundo. O professor não
deve se restringir às produções musicais que pertençam aos seus referenciais.
A música, seja ela sertaneja, popular, erudita, regional, carrega os valores da
cultura que a originou,
se entendermos todas as formas de representação simbólica
como arte, poderemos ter uma ideia mais abrangente do que
ocorre em uma cultura, e, desta forma, a arte realmente pode
representar as características desta cultura (Stahlschmidt,
1999, p.53).
Enfim, o professor é um agente em potencial que, através de sua prática,
pode transformar o fazer em sala de aula num espaço de criação de diferentes
formas de pensar o mundo. Concebendo nossos alunos como os adultos
responsáveis pela sociedade do futuro, encontramo-nos imbuídos da
responsabilidade do papel que eles desempenharão, o qual está inteiramente
relacionado à educação que hoje oferecemos.
P. 121
Referências
AZEVEDO, R. Aspectos da literatura infantil hoje. Revista Releitura, Belo
Horizonte, n. 15, abr. 2001.
DE LATAILLE.Y. Razão e juízo moral. Dissertação (Mestrado em
Psicologia) - Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 1984.
ELLIOT, D. J. Música, educación y valores musicales. In: GAINZA.V. H.
de (Org.). La transformación de la educación musical a Ias puertas del siglo
XXI. Buenos Aires: Guadalupe, 1997.
FREIRE, V. L. B. Currículos, apreciação musical e culturas brasileiras.
Revista Arte. Disponível em: <www.ceart.udesc.br/Revista_Arte_Online/
abemsul/artigo17.html>.
LAZZARIN, L. F. Possibilidades de atribuição de significado na
apreciação musical: um estudo exploratório. Porto Alegre, 2000. Dissertação
(Mestrado em Educação) - FACED, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
_____. Ouvir música com significado: um desafio possível. In.: BEYER,
E. (Org.). Ideias para a educação musical. Porto Alegre: Mediação, 1999.
PENNA, M. Professores de música nas escolas públicas de ensino
fundamental e médio: uma ausência significativa. Revista ABEM, Porto Alegre,
n. 7, p. 7-19, 2002.
STAHLSCHMIDT, A. P. M. Como situar a arte musical em uma
sociedade? In.: BEYER, Esther (Org.). Idéias para a educação musical. Porto
Alegre: Mediação, 1999.
TOMATIS, A. A; VILAIN, J. O ouvido à escuta da sica. In.: RUUD,
Even (Org.). Música e saúde. São Paulo: Summus, 1991.
P. 123
10 APRECIAÇÃO MUSICAL POR MÚSICOS EXPERIENTES
Esther Beyer [Nota 1]
A apreciação musical é uma das importantes atividades necessárias à
educação musical. Vários autores como Nye e Nye (1977), Regelski (1980),
Pontius (1986), Swanwick (2003) já a sugeriram em suas propostas. Contudo,
ainda encontramos muitas escolas onde a educação musical se baseia
primordialmente em cantar ao som de um instrumento, ou ainda, enquanto um
aparelho de som toca. A apreciação está relacionada à capacidade de ouvir
atentamente o todo ou detalhes de uma música, levando posteriormente a uma
forma de expressão (falada, cantada, tocada, dançada, poesia, ou outra), de
modo que outros possam também compartilhar daquilo que ouviu uma pessoa.
Neste capítulo, pretendo abordar a importância de se proporcionar
atividades de apreciação musical com músicas de rias culturas, vários estilos
e em todos os níveis de educação musical, de modo a sensibilizar os alunos
em relação às diferenças de expressividades musicais em culturas diversas.
Trarei, também, uma experiência de apreciação musical realizada com
estudantes de um curso de pós-graduação lato sensu na área de música. Farei
uma análise de suas percepções e comentarei, à luz de dados recolhidos, as
relações entre essas percepções de estudantes de música com amplas
experiências na área e as percepções dos menos experientes. O objetivo é
demonstrar o quanto as percepções e
P. 124
compreensões estão relacionadas às construções musicais precedentes dos
alunos, no que diz respeito aos aspectos de organização mais lógica sobre a
música, e que, ao contrário, os aspectos simbólicos, ou seja, a interpretação
sobre os significados independem do nível de aprofundamento de um aluno
sobre o universo musical e estão mais relacionados às estruturas subjetivas.
A importância das trocas sociais e diversidade de estilos em
apreciação musical
A apreciação é uma troca entre diferentes universos de pessoas, em que
vivências pessoais, aprendizagens, perspectivas de mundo fundam-se,
canalizam-se para emitir uma opinião ou recriação de uma música. Esse
momento é fundamental para qualquer nível ou idade na educação musical,
uma vez que o aluno pode ampliar sua perspectiva de mundo, entender a
música como outros a entendem, comentar e pensar sobre diferentes
processos de criação musical, de instrumentos, formas musicais, texturas,
ritmos, harmonias musicais. Nesse universo, o trabalho pode abranger tanto
músicas do repertório mais familiar ao aluno (como música tonal, ocidental,
etc.), quanto pode também abranger a diversidade cultural de músicas de
diferentes povos e culturas.
No primeiro caso, uma possibilidade de que o aluno, à vista desta
música apresentada (conhecida ou não), integre ou reintegre os conhecimentos
construídos ao longo de sua educação musical, para ali buscar analisar
alguns pontos. Esses pontos podem focar, por exemplo, a partir de quais ideias
musicais o compositor agiu, que instrumentos ele planejou empregar, etc. O
aluno pode se questionar também sobre o porquê de o compositor pensar em
colocar ali uma flauta e não um trompete, ou uma voz infantil e não uma
masculina, um compasso ternário (que pode gerar certo movimento de embalo)
e não um binário (onde se tem maior certeza e talvez menos leveza entre os
dois tempos que ali vão ocorrer). E assim se pode estender estas reflexões a
dimensões cada vez mais amplas, que acompanham também os níveis cada
vez mais amplos de abstração de uma pessoa.
No segundo caso, ao apreciar música de diferentes culturas, leva-se o
aluno a construir hipóteses sobre como outros povos imaginam o que
P. 125
seja música, qual é o universo de sons por eles idealizados como aceitáveis
para se fazer música (abrange os instrumentos que se criam e utilizam nas
diferentes culturas), como músicos de outras localidades imaginam que se
possa passar uma ideia musical para outros (tanto de significados específicos,
como rio, chuva, cavalo, etc. ou de significados mais amplos e abstratos, como
sentimentos ou mesmo uma trama de sons, não tendo como objetivo o de
transmitir exatamente um significado extramusical).
O estranhamento inicial que um aluno apresenta em relação a uma
música demasiado diferente de suas expectativas pode causar-lhe um impacto
tão grande que o lance a refletir em nova direção sobre processos de
composição musical, mas talvez, muito além disso, de como um outro ou outra
cultura pense a respeito de morte ou união, ou outra experiência vivencial. Esse
choque o movimenta em direção a buscar novas perguntas e novas respostas,
a repetir a escuta ou a repeli-la sistematicamente, de modo a gerar talvez uma
gradativa familiarização com aquilo que num primeiro momento era estranho.
Assim, ao ouvir e buscar assimilar esses novos sons musicais a seu
repertório de coisas ouvidas, o estudante pode ter, num primeiro momento,
ferramentas precárias à análise daqueles sons (a ele estranhos). Mas, ao
buscar compreender como os sons foram produzidos, como foram pensados e
a que visavam significar, esse mesmo aluno vai gerar novos esquemas para
captar este evento, conforme suas possibilidades de acomodação.
Dessa forma, na exploração dos elementos ali contidos, na (re)escuta
da mesma música, na criação e apreciação, vemos que o aluno vai ter crescido
em sua apreciação, tendo agora, no bojo de suas vivências musicais, uma nova
totalidade, a saber, aquela que integra em suas possibilidades também sons
diferentes dos de sua cultura, além de modos de organizar e significar música
antes não conhecidos.
Em suma, quando o aluno aprecia uma peça de sica, ele tem de
utilizar vários esquemas, conceitos, experiências, enfim, conhecimentos que já
trabalhou ao longo dos anos para integrá-los na atividade de apreciação. Estão
envolvidos esquemas musicais, representação mental, percepção auditivo-
musical, conhecimentos sobre sons de instrumentos, esquemas rítmicos,
melódicos e harmônicos, formas musicais, compassos diversos, texturas
musicais diferentes, entre outros.
P. 126
Um desses elementos, como mencionei acima, é a percepção. Piaget
(1969) descreve a percepção como um processo que ocupa um espaço de
tempo muito pequeno. Por isso, na incapacidade de seccionar cada uma das
etapas percorridas nestes poucos segundos ou frações de segundo, muitos
teóricos concebiam este pequeno lapso de tempo como um momento
indivisível. Ou seja, eles pensavam que, entre a ausência de percepção e a
percepção pronta, nada ocorria.
Piaget propõe este seccionamento. Assim, dividindo-se o ato perceptivo
em uma série de microintervalos arbitrários, constata-se que nem todos os
elementos encontráveis no objeto a ser percebido serão percebidos durante o
microintervalo inicial. Para captar o objeto, ocorrem encontros entre elementos
do sistema auditivo e elementos do objeto (a interação entre aluno e objeto).
Por isso é que vai haver uma segunda amostragem, e terceira e quarta, se
necessário, até que se obtenha a percepção de todos ou a maioria dos
elementos captáveis no estímulo. “Cada incursão sucessiva no estímulo
aumenta a proporção entre os elementos encontrados e encontráveis, mas em
quantidades gradualmente menores” (Flavell, 1975, p.230-1).
Gráfico 1. Processo de apreciação no aluno.
P. 127
O gráfico 1 apresenta o processo pelo qual o aluno passa ao apreciar a
obra musical. Este foi descrito com mais detalhes em um artigo anterior (Beyer,
1996). Originalmente foi concebido para descrever o processo de criação
musical, mas é possível pensar o motivo gerador como a música que o aluno
aprecia e, como obra musical, aquela forma de expressão deste no sentido de
apresentar suas reflexões e compreensões a respeito da música ouvida.
O estudo realizado
Vários estudos foram realizados para comparar as diferenças entre
ouvintes músicos e não músicos ao processar estruturas musicais. A maioria
deles (Peretz; Zatorre, 2003; Sloboda, 2004; Bigand, 2005) mostra que ambos
têm certas habilidades semelhantes. Este estudo teve como propósito verificar
o reconhecimento de características da música em relação com o tempo de
experiências musicais formais vivenciadas pelo estudante. Para este estudo,
foram coletados dados de 16 alunos, estudantes de um curso de pós-
graduação lato sensu na área de música. Como critério para seleção de alunos
foi estar regularmente matriculado na pós-graduação em questão. Não houve
restrições de idade, sexo, de formação ou experiências musicais.
Antes da testagem, os alunos foram solicitados a preencher uma tabela
onde apresentavam o tempo de formação e tempo de trabalho na área de
música. Para formação em música foi considerada toda aula de música que o
aluno tenha passado: musicalização, iniciação musical, teoria e percepção
musical, participação em coro, aula de instrumento musical, etc. Quanto ao
trabalho na área de música, considerei todas as atividades remuneradas (ou
como voluntário) como profissional da área de música: professor, regente,
coralista, compositor, instrumentista, etc.
Quanto ao tempo de formação em música, solicitei que os alunos
marcassem em quantidade de anos e de horas por semana que estas
ocorreram. A formação musical (tempo de educação musical formal) foi dividida
em períodos de faixas etárias (0-5 anos/ 5-10 anos/ 10-20 anos/ 20-idade
atual), dentro dos quais os alunos deveriam responder sobre seus estudos
musicais. Nos casos em que os alunos considerassem importante subdividir os
períodos etários, por mudanças nas condições de estudo, foi solicitado a eles
que explicitassem a qual subfaixa etária se
P. 128
referiam (Ex: de 10 a 12 anos - uma hora por semana/ de 13 a 15 anos - nenhum
estudo/ 15-20 anos - três horas por semana). Adotei o mesmo procedimento
para registro do tempo de trabalho em música (em quantidade de anos e horas
por semana), como mencionado para o tempo de formação. Neste caso, o
aluno poderia também subdividir suas atuações profissionais em etapas, de
forma a colocar de modo mais preciso seu tempo de trabalho com a música.
Instruí também os alunos que, no caso de atuarem como profissionais
(estagiários, instrumentistas em orquestra, professores em escolas, etc.)
durante sua formação de graduação, deveriam colocar o tempo de trabalho e a
faixa etária específica, mesmo que houvesse sobreposição de idade, porém
não poderia haver sobreposição de horas (formação com trabalho).
Para o procedimento de testagem, foram escolhidas cinco músicas de
contextos culturais diferentes, seguindo uma distribuição aproximada por
continentes. Dessas, duas músicas com canto (um coro e outra solo), enquanto
as outras três são instrumentais. Duas músicas seguem a uma estrutura da
harmonia tradicional ocidental, enquanto as outras três utilizam instrumentos e
sonoridades não convencionais. Sobre a distribuição das músicas pelas
famílias de instrumentos, a primeira utiliza voz, cordas e percussão, a segunda,
cordas e voz, a terceira, sopros, a quarta, cordas e percussão, a quinta, sopro
e voz. Todas as músicas foram executadas em uma duração de
aproximadamente um minuto (máx. 1 min 20 seg.). Na tabela um, coloquei o
nome das cinco músicas e de seus CDs. Foi solicitado aos alunos que para
cada música respondessem a três perguntas:
1. De que continente ou país você acha que esta música vem?
2. Quais famílias de instrumentos ou instrumentos você ouviu na
música (incluindo voz)?
3. O que sugere esta música para você?
Tabelei esses dados conforme os modos pelos quais as respostas foram
organizadas pelos alunos e conforme o grau de aproximação com a música
apresentada. Dos 16 alunos, apenas três tiveram mais dificuldade de identificar
a origem das músicas. Os demais obtiveram respostas medianas ou boas.
Outro dado observado, é que as músicas do contexto europeu, sistema
temperado, geraram maior número de respostas corretas, demonstrando
claramente o contexto predominante da maioria dos músicos.
P. 129
Nome da música
Nome do CD
Procedência
Instrumentos
Er is een kindele
Cantar o Natal
Flandres (Bélgica) Europa
Cordas, percussão, voz infantil
When rosy may comes in wi’flowers
Robert Burns volume 1
Gaélico/Escócia
(Reino Unido/Europa)
Violão, voz masculina
Bapedi
African tribal dances
África do Sul/África
Sopro (flautas de uma nota só)
Caminho
Bambuzais
Brasil/lndiana
Percussão (clava de PVC, bumbo, chocalho), cordas
Wongabell
David Hudson
YigiYigi solo didgeridoo
Aborígine/Austrália
Sopro/voz
Tabela 1. Apresentação das músicas
Produzi outras tabelas, a fim de categorizar todos os dados. Na tabela
1, a seguir, por exemplo, pode-se verificar a percepção de cada aluno sobre os
instrumentos contidos nas músicas apreciadas. Já na tabela 2, criei uma forma
de analisar suas percepções acerca dos significados musicais e sensações
implícitas nas obras apreciadas. Portanto, as tabelas I e 2, a seguir,
demonstram como foram categorizados os dados para posterior análise e para
a comparação com outras tabelas que não se encontram neste texto, mas que
fiz, a fim de comparar os dados coletados para este estudo, como por exemplo,
o tempo de estudo musical ou de atividade profissional na área, conforme
mencionei anteriormente.
P. 130
Tabela I. Percepção de instrumentos (por música e por aluno)
Aluno
Música: Cantar Natal
Música: Robert Burns
Música: África do
Sul
Música: Bambuzais
Música:
Didgeridoo
Alice
Percussão, cordas,voz feminina
Cordas e voz
masculina
Sopro, percussão e
fole
Percussão e cordas
Sopro e voz
Beatriz
Cordas e voz infantil
Violão e voz
Sopro, flauta e fole
Percussão e cordas
Sopro e voz
Carla
Cordas, voz infantil e percussão
Violão e voz
masculina
Sopro, fole e
flauta
Percussão e
cordas
Voz e instrumento
eletrônico
Denise
Cordas, percussão e voz feminina
Violão e voz masculina
Sopro
Percussão e sopro
Voz masculina
Elisa
Cordas, voz infantil e percussão
Cordas e voz feminina
Sopro
Percussão e cordas
Sopro
Gládis
Cordas, voz infantil e percussão
Violão
Sopro e fole
Percussão e cordas
Sopro e voz
Fernanda
Cordas, percussão e voz feminina
Violão
Sopro e cordas
Vina, cordas e
percussão
Voz masculina e sopro
Marcelo
Cordas, voz feminina e
percussão
Violão e voz masculina
Sopro
Percussão e cordas
Sopro e voz masculina
Eduardo
Cordas, percussão e voz
masculina
Violão, percussão e voz
Sopro
Sopro, percussão
e cordas
Sopro e voz masculina
Tanise
Cordas, percussão e voz infantil
Cordas e voz
masculina
Cordas
Percussão e cordas
Instrumento eletrônico
Leonardo
Cordas e voz infantil
Cordas e voz masculina
Sopro
Percussão e cordas
Sopro
Carolina
Voz, cordas e percussão
Voz e violão
Flauta, sopro e fole
Teclado e vina
Voz e instrumento
eletrônico
Marina
Voz, fole, percussão e cordas
Cordas e voz masculina
Não
identificada
Percussão e cordas
Não
identificada
Camila
Voz, percussão e cordas
Violão e voz masculina
Fole, flauta e sopro
Percussão
Sopro
Luciano
Cordas, voz feminina e
percussão
Violão e voz
Sopro e flauta
Vina e percussão
Sopro e voz masculina
P. 131
Aluno
Cantar Natal
Robert Burns
África do
Sul
Bambuzais
Didgeridoo
Alice
Casamento solenidade festa
Melódica,
tranquila,
dança
Música de
rua, ao ar
livre
Monge, cortejo,
enterro, algo
fúnebre
Ritual, culto, meditação
Beatriz
Celebração, data festiva
Canção típica,
regional
Algo típico,
origem,
raiz, do
lugar nativo
Algo típico do
país de origem
Vários efeitos
explorados no
computador
Carla
Busca pela paz
Música
country, fala
do campo
Feira com
vende-
dores,
merca-
dorias
diversas
Saída para
guerra,
marcha,
cruzada, canto
trabalho
Reza, oração, festa
chinesa na rua, monges
tibetanos
Denise
Mús. natalina
Mús. religiosa
Música
ritual
Música de
batalha
(caminhada
marcha)
Música tribal
Elisa
Tranquilidade, Natal, paz
Canção trad. de uma região,
solidão, canção para um amor
Dança
, festa
Transcedental, meditação,
individualismo
Tribo,
ritual
Gládis
Um pouco reflexiva
Canção do interior EUA,
interiorana
Sonoridade
da obra
Canção
nordestina
Brasil
Instrumento usado por
monges no Tibet
Fernanda
Algo simples, mas solene, algo
sacro, trilha sonora de momento
sacro-solene
Saudade da terra natal ou
história de amor passada
Aflição
Concentração
Canto tribal
Marcelo
Dança
Relacionado à natureza
Stress
Representação cultural
Brincadeira
Eduardo
Coral natalina
Ginga ou outra dança antiga
festival ou folclore
Ritual, religioso
Ritualista, sacro
Ritualista e festiva
Tanise
Brincadeira de roda
Música de festa
(étnica?)
Sons de um parque
bem movimentado
Imagens do sertão
nordestino
Lembra música indiana
Leonardo
Música sacra, lenta, adoração
Alguma coisa
contemplativa,
romântica,
natureza
Dança,
ritual
indígena
Tipo mantra, dança
ou ritual de tribo
Algum ritual religioso
Carolina
Paz, reflexão serenidade
Saudade, amor
cortesão
Tradição
oral
Música
aborígine
Música eletroacústica
instabilidade
Marina
Música de alegria
Solidão
Ansiedade e monotonia ao mesmo
tempo
Tristeza
Parece uma marcenaria
Camila
Calma, tranquilidade
Audição country
Passeio, marcha,
caminhada
Meditação,
monges, ritual
Música de alguma
região que eu não sei
qual
Luciano
Música para cerimônia
Canto solitário
Música de rua
Meditação ou cortejo fúnebre
Culto
P. 132
Se observarmos o tempo de estudo dos músicos e a relação com
respostas corretas ou incorretas, veremos que algumas diferenças. Os
resultados, portanto, demonstram que as diferenças são mínimas entre os
alunos mais e menos experientes na música, ao descreverem livremente
características da música relacionadas a seu significado. a maior diferença
se verificou na identificação do país ou região de origem da música ouvida.
Nesta última, em geral os melhores desempenhos foram obtidos por aqueles
que tiveram formação sólida musical a partir dos cinco anos de idade ou de
modo mais intenso após os 10 anos de idade. Também foi feito um cálculo
aproximado do número de horas investido no estudo de música, que variaram
de 1480 a 6880 horas.
Em relação à descrição sobre os instrumentos contidos nas obras,
verifica-se que a capacidade de discernimento dos timbres em questão também
está relacionada às construções musicais mais aprofundadas, em termos
temporais. Quanto mais esquemas de ação um aluno tiver construído sobre a
música, até o momento de uma dada apreciação, maiores serão os níveis de
arrolamento de características que compõem a trama sonora, ou seja, sobre os
elementos da linguagem musical.
Conclusões
A sica é um objeto complexo, que possui, em sua trama, vários
elementos. A descrição do ouvinte depende de seu foco de atenção no
momento de escuta ativa e, correlativamente, de seus esquemas de ação
construídos sobre a música até o momento. Mais importante do que o fato de
se dar uma resposta correta ou incorreta, é o aspecto desafiador da atividade
apreciativa, na medida em que o aluno deve acionar seus esquemas
perceptivos e lógicos para dar uma resposta, coordenando mentalmente aquilo
que ouve.
O fato de os alunos deste estudo conseguirem definir melhor a música
de sua própria cultura (europeia) demonstra a importância de se proporcionar
espaços diversificados em termos culturais, para que os estudantes de música
tenham a possibilidade de construir esquemas de ação sobre a diversidade
musical existente. Em tempos de inclusão, não podemos negligenciar a
importância da implementação de atividades que envolvam a pluralidade
cultural na educação musical.
P. 133
Finalmente, as atividades de apreciação musical são de extrema
relevância, na medida em que colocam o aluno a agir sobre o todo musical e
dissociar algumas de suas características progressivamente, bem como
interpretar a expressividade implícita em cada obra. Não importa se os
educandos sejam músicos experientes ou que estejam em um estágio de
iniciação musical. Não importa sequer a qual faixa etária esses alunos
pertençam. O importante é que as atividades de apreciação musical devem
fazer parte dos processos de musicalização como atividade complementar e
como forma de aguçar a audição dos ouvintes.
Referências
BEYER, E. Os múltiplos caminhos da cognição musical: algumas
reflexões sobre seu desenvolvimento na primeira infância. Revista da ABEM,
v. 3, n. 3, jun. 1996.
BIGAND, E. Ouvido afinado. Revista Viver Mente & Cérebro, n. 149, jun.
2005.
FLAVELL, J. H. A psicologia do desenvolvimento de Jean Piaget. São
Paulo: Pioneira, 1975.
NYE & NYE. Music in the elementary school. Englewood Cliffs/N.J.:
Prentice-Hall, 1977.
PERETZ, I.; ZATORRE, R.J. The cognitive neuroscience of music.
Oxford: Oxford University Press, 2003.
PIAGET, J. The mechanisms of perception. London: Routledge and
Kegan Paul, 1969.
PONTIUS, M. Aguide to curriculum planning in music education.
Madison: Wisconsin Department of Public Instruction, 1986.
REGELSKI, T A. Princípios y problemas de la educación musical.
México: Diana, 1980.
SLOBODA, J. Exploring e musical mind: cognition, emotion, ability,
function. Oxford: Oxford University Press, 2004.
SWANWICK, K. Ensinando música musicalmente. Tradução de: Alda
Oliveira e Cristina Tourinho. Porto Alegre: Moderna, 2003.
P. 135
11 A LÍNGUA DE SINAIS E OS SONS: UMA APRECIAÇÃO ESTÉTICA
Ana Luiza Paganelli Caldas [Nota 1]
Quais são os sons que as mãos produzem? Podemos ouvir todos estes
sons? Podemos ouvir as palmas? Plat, Plat, Plat! Podemos ouvir o estalo dos
dedos? Teck, Teck, Teck! Podemos ouvir um soco de uma mão contra a palma
da outra mão? Sock, Sock, Sock! Podemos dizer que a maioria das pessoas
pode ouvir estes sons. Porém, do espaço de onde eu, autora, falo, esses são
sons que não tenho capacidade sensorial de escutar, pois falo do espaço do
sujeito surdo, do espaço em que as mãos falam, de um espaço, erroneamente
pensado ser do silêncio, de um espaço que tem sua própria musicalidade, de
um espaço que tem seu próprio ritmo, ou seja, do espaço da Língua de Sinais
(LS). E a partir deste espaço que escrevo este capítulo em que o enfoque é a
apreciação. Como o grupo propôs para este livro a apreciação musical, me
proponho a refletir junto com o leitor a apreciação dos sons da e pela LS, tendo
como referência os estudos de Osborne (1970).
Trago também a LS como fonte da apreciação, entendendo-a para além
de seu status de língua, de sua função de comunicação, de fala, do verbal,
resgatando seu aspecto não verbal, sensível, visual e sonoro. Ou seja, seus
aspectos estéticos, usando como referência os estudos de Pillar (2002) sobre
a educação para o olhar, bem como Barbosa (2002) sobre as imagens e a arte.
Inicialmente, provoco uma reflexão no sentido de priorizar o prazer e a
apreciação da LS. A LS por natureza é língua natural dos sujeitos surdos,
P. 136
através da qual se comunicam. Como um recurso linguístico, seu uso está
relacionado diretamente com o cognitivo, com a semântica, com a significação.
Ao mesmo tempo, outras características são evidenciadas no uso da LS,
sendo estas não linguísticas, mas sim, estéticas, sensíveis, passíveis de
apreciação.
Muitas ideias me provocam conceitualmente quanto ao caráter
linguístico/verbal da LS e o caráter artístico - não verbal - visual
dessa língua. Se pensarmos na área da linguística, em termos
morfológicos, lexicais, gramaticais, semânticos, a LS é
enquadrada no campo da linguagem oral, no discurso verbal.
Porém, penso que em alguns momentos a LS se caracteriza,
simultaneamente, por aspectos linguísticos e por aspectos
estéticos. Isto dependede como os sujeitos estão envolvidos
durante o discurso LS. Se conhecem a LS e participam ou
observam o discurso, o caráter linguístico/verbal - é
evidentemente percebido tendo em vista a construção de
significados, porém, se pensarmos do ponto de vista dos
sujeitos que não sabem a LS, e estão envolvidos no discurso
como observadores, apreciadores, estes podem facilmente
perceber através dos movimentos e expressões seu caráter
estético, artístico, não verbal, visual (Caldas, 2005, p.53).
O prazer estético causado no momento da apreciação da LS pode ser
observado também pelos surdos e ouvintes que dominam a LS. Nesse sentido,
o que irá produzir o prazer estético será a maneira da execução dos sinais, em
que o enfoque mais evidenciado será o aspecto estético. Podemos evidenciar
isso nas diferentes execuções do sinal para a palavra chimarrão a seguir. Na
foto mais à direita está representado o sinal oficial para a palavra é nas demais,
são apresentadas suas diferentes variações.
P. 137
Trazendo para a discussão os estudos de Osborne (1970, p.59), faço um
recorte em que o autor também reflete sobre o efeito emocional que a língua
pode causar:
Na vida diária a linguagem é a mais transparente das nossas
percepções: acudimos imediatamente ao significado de que as
palavras são signos e, a menos que algum detalhe capte
momentaneamente a atenção, não temos nenhuma percepção
do som intrínseco das palavras. Mas o uso cabalístico da
língua entre as crianças, nas preces religiosas e nos rituais
mágicos - ilustra como se incrementa o efeito emocional à
medida que a função comunicativa da fala fica em suspenso e
as nossas atividades interpretativas se entorpecem de modo
que agora atentamos para o som, e não tanto para o sentido
das palavras. O uso artístico da língua na poesia está entre
estes dois extremos.
Relembrando Clive Bell, Osborne (ibidem) cita a ideia deste sobre a
hipótese estética, sendo necessário para os sistemas de estética que
aconteçam experiências especiais de emoção. Ou seja, que aconteça a
emoção estética. Pensando a LS como uma expressão estética e como
produtora de emoções estéticas destaco o que Osborne (ibidem) traz quanto à
relação intensa da expressão com a comunicação. Ele nos diz:
Se um homem relata, em linguagem descritiva fria e sem
emoção, que está experimentando ou acabou de experimentar
uma emoção, não dizemos que ele está exprimindo a emoção
embora esteja comunicando. E não é impossível que um
homem tenha satisfação e alívio com a expressão emocional,
embora não faça contato ao comunicar-se com outrem. Não é
tolice dizer que um homem se expressou em uma obra de arte
que foi compreendida por qualquer pessoa depois de sua
morte.
Cabe então refletirmos sobre a riqueza do potencial que temos para
apreciarmos as diferentes possibilidades estéticas, linguísticas ou não
linguísticas, verbais ou não verbais. Para isso, resgato a amplitude que nossa
capacidade sensorial possui para que tenhamos uma maior possibilidade de
apreciação. Os estudos de Duarte (2003) sobre o sentido dos sentidos são uma
fonte de provocações acerca de nossas capacidades sensoriais. O autor nos
alerta para a necessidade urgente de vivenciarmos cada vez mais nos
diferentes campos - educacionais, sociais, familiares, profissionais, entre outros
- a educação para o sensível para a estesia, para a estética. E primordial que
nossos sentidos sejam desenvolvidos
P. 138
de maneira mais acurada e refinada, de forma que nos
tornemos mais atentos e sensíveis aos acontecimentos em
volta, tomando melhor consciência deles e, em decorrência,
dotando-nos de maior oportunidade e capacidade para sobre
eles refletirmos (Duarte, 2003, p. 185).
Como para nós, surdos, a experiência auditiva é prejudicada, podemos
substituí-la pelos outros sentidos, em especial, pelo olhar, pois assim como nos
lembra Lyotard (apud Meira, 2003, p.76) “O olho ouve e o ouvido vê”.
Mas o que é o ver? O que é o olhar? Pillar (apud Barbosa, 2002)
apresenta a ideia de que cotidianamente as pessoas captam do mundo apenas
seus fragmentos, filtrando a imensa quantidade de informações visuais. O ver
é caracterizado pela explosão de imagens impostas pela mídia, pela realidade,
pelos produtos, slogan, os quais não conseguimos perceber, significar e nos
apropriarmos. É neste processo que utilizamos o ver, sem vivenciar a
experiência do olhar. Para a autora, olhamos algo quando conferimos um
significado a algum objeto, fato ou situação, sendo este construído através dos
acúmulos de vivências, contexto e da própria informação. Meira (2003, p.55)
também nos fala sobre a importância da educação para o olhar:
O olhar de sobrevoo sobre o cotidiano mostra em parte o que
acontece como experiência visual, menos ainda, como saber
de visibilidade. Informações visuais chegam a nossos corpos,
lugares, casas, objetos de trabalho. É preciso desenvolver
olhares que perfurem as redes imaginárias que se estendem
sobre esse cotidiano para apreender a paisagem dos
acontecimentos virtuais e reais, fazer os discernimentos éticos,
estéticos e políticos que essa apreensão demanda para uma
educação do olhar.
O olhar de sobrevoo sobre o cotidiano mostra em parte o que acontece
como experiência visual, menos ainda, como saber de visibilidade. Informações
visuais chegam a nossos corpos, lugares, casas, objetos de trabalho. É preciso
desenvolver olhares que perfurem as redes imaginárias que se estendem sobre
esse cotidiano para apreender a paisagem dos acontecimentos virtuais e reais,
fazer os discernimentos éticos, estéticos e políticos que essa apreensão
demanda para uma educação do olhar.
Trazendo esta ideia para o mundo sociocultural da comunidade surda,
posso dizer de uma maneira ampla, não específica, que a grande maioria
P. 139
das pessoas surdas vivenciam muito mais o ver do que o olhar. No meu
entender, isso se pelo não acesso às experiências visuais de uma forma
completa, ocasionada pela barreira de comunicação e a não utilização da LS
pela maioria da sociedade e da mídia. Portanto, dificultando a possibilidade de
construir significações completas, ou seja, de vivenciar o olhar, de dar um
sentido ao que é visto.
Enfocando então para o olhar e vinculando-o com a experiência estética
com a estesia, com o prazer dos nossos sentidos, podemos pensar também na
capacidade de apreciação e de apreensão do belo como algo fundamental da
existência humana. Direcionando para a LS e para a beleza de seus
movimentos, de seus gestos, de sua expressão, do seu ritmo, de sua poesia e
de seu som, reflito mais uma vez sobre seu aspecto não verbal. A LS, como
objeto de apreciação, composto deste conjunto de características não verbais,
pode receber um olhar do apreciador como se fosse uma obra da arte. Ou seja,
um olhar que não precisa ser especializado, mas sim um olhar interessado, um
olhar que se deixe penetrar pela beleza da obra, que sempre se exercite a fim
de manter latente na memória a sua potencialidade; um olhar que discrimine as
qualidades da obra. A capacidade de apreciar nos concede o poder de perceber
características que não percebíamos e a faculdade de focar a atenção em
determinados pontos. Osborne (1970, p.21) complementa a ideia das aptidões
dizendo que:
adquirindo aptidão para apreciar, adquirimos o poder de
perceber as características do mundo em torno de nós, que
antes haviam passado despercebidas e incógnitas, e de
manter a atenção clara e deliberadamente presa a aspectos
que sem essa aptidão casual e acidentalmente se haviam
imposto à nossa percepção. Não se trata de raciocínio,
inferência ou análise e manipulação teórica da informação
apresentada em todas as situações pelos sentidos. É a
abertura de uma nova dimensão de percepção. Por esse
motivo a aquisição da aptidão exige métodos de cultivo
diferentes dos que são ensinados com a finalidade de melhorar
os poderes de raciocínio do homem ou para estender seu
conhecimento prático.
Devemos refletir sobre como as escolas estão trabalhando estas
questões estéticas, como elas vêm pensando o apreciar. Falando do meu lugar
como professora de surdos, percebo que pouco se conhece, no Brasil,
P. 140
sobre qual a melhor maneira de se trabalhar o olhar e o apreciar da arte [Nota
2], bem como o desenvolvimento de aptidões para a apreciação. Para Barbosa
(2002, p. 12) “a apreciação estética e a história da arte não têm lugar na escola”.
É raro encontrarmos nas escolas de surdos trabalhos e projetos
diferenciados e pensados especificamente para arte em uma perspectiva atual.
Normalmente, encontramos como práticas mais comuns atividades superficiais
em que a criança no máximo vai até o museu e depois faz algum tipo de
releitura de alguma das obras que viu. Nesse sentido, notamos que o enfoque
é dado apenas ao fazer. A criança não é levada a refletir sobre a leitura ou até
mesmo sobre a história do artista, do seu tempo, de seu espaço. Barbosa ainda
lembra Elliot Eisner quanto à negligência da escola pela arte dizendo que uma
porcentagem muito pequena dos alunos tem acesso aos museus, concertos,
teatros ou qualquer outro espaço cultural. A autora chama de apartheid cultural,
ou seja, a escola que poderia ser um espaço em que o exercício do acesso às
informações e da capacitação estética fosse democraticamente vivenciado,
pelo contrário, cada vez mais se limita às mesmices didáticas.
Percebo que faltam oportunidades de vivenciar nas escolas e na
sociedade as diferentes práticas culturais dos surdos, possibilitando aos outros
surdos mais e melhores contatos com as expressões da sua arte. O acesso à
arte surda é restrito ou quase nenhum na maioria das escolas, porém não
significa que devemos nos acomodar e encerrar por aí. É preciso repensar e
reorganizar todas as práticas educativas quanto às manifestações artísticas
dos surdos e dar a elas a possibilidade do olhar do surdo, para que as sinta e
as veja.
Refletindo sobre estas práticas culturais da arte surda, muitas ideias
invadiram o meu pensar sobre como a LS produz seus sons. Onde, no cotidiano
do uso da LS, podemos observar a presença do seu som? Como esse som é
expresso pela LS? Em que momentos ele é mais evidenciado? A partir disso,
destaco sete características [Nota 3] do uso da LS em que acredito podemos
ouvir os seus sons:
P. 141
1. Ritmo: de acordo com o ritmo imposto pelo usuário da LS durante o seu
uso, podemos “ouvir” a cadência da LS. Os sinais expressados em uma
sequência, que evidencia seu ritmo.
2. Movimento: o deslocamento dos sinais durante o uso da LS nos permite
evidenciar o seu movimento. De cima para baixo; de um lado para o
outro; de baixo para cima; em diagonal; em contato com o corpo; ou sem
contato com o corpo.
3. Rima: evidenciada principalmente pelo uso das configurações de mão
(CMs) [Nota 4], a rima é marca principal das poesias, em que a partir de
uma CM ou um conjunto delas é criado um texto estético.
4. Expressões corporais e faciais: esta característica é uma das que
considero mais difícil de pensar separadamente em termos de aspectos
verbais ou não verbais. É ela que apresenta a emoção, o sentimento, a
poesia da LS, estando relacionada com o sinal executado. Exemplo: O
sinal de triste deve estar acompanhado da expressão de triste.
5. Iconicidade: sinais em que são perceptíveis as formas dos objetos
reais. Sua marca estética é evidenciada quando em sintonia com o
movimento.
6. Intensidade: está relacionada com o movimento. Podemos pensar em
um movimento rápido ou devagar com uma intensidade forte ou fraca.
Pensando no som da intensidade da LS como metáfora do mar,
comparo-a com as ondas que podem ser fortes, fracas, vibrantes,
grandes, pequenas.
7. Posição: Sua marca sonora pode ser evidenciada em momentos de
contação de história. Quando o narrador assume o lugar de um ou outro
personagem, sua posição durante a execução dos sinais
P. 142
marcará o jeito de cada personagem, inclusive sua voz. Assim, sua relação com
a expressão é muito importante, pois quando assumir o papel do lobo e dos
porquinhos, sua expressão estará acompanhando a posição para marcar os
personagens.
Assim como as demais línguas faladas ou sinalizadas, a LS em seus
aspectos verbais e não verbais também tem seus neologismos, sendo, a cada
dia, levada a uma proliferação destes, tanto pela necessidade linguística e de
comunicação, quanto pelo processo criativo dos usuários da língua nos
espaços de apreciação, de estética e de arte. Um território rico para que surjam
novos neologismos. Nesse sentido, penso que o acesso aos diferentes espaços
socioculturais pelos sujeitos surdos são desencadeadores para essa explosão
e proliferação de neologismos.
Podemos observar, nas conversas entre os surdos, que o uso de
expressões da língua portuguesa em seus discursos é cotidianamente
evidenciado. Este fato faz com que os surdos criem novos sinais para introduzir
essas expressões na sua língua cotidiana, enriquecendo ainda mais a LS.
Em relação a isto, Sacks (2002) relata que, quando o Teatro Nacional
dos Surdos nos Estados Unidos foi criado em 1967, suas produções eram
traduções do inglês para os sinais e que apenas em 1973 é que foi produzida
a primeira peça na verdadeira Língua de Sinais Americana (ASL). A partir daí,
deu-se uma proliferação de artistas surdos, surgindo novas poesias em LS,
dança na LS, piadas em LS, canções em LS - artes singulares “que o podiam
ser traduzidas para a língua falada” (p. 159). O autor segue falando que a
natureza icônica e a espacial da LS permitem uma produção cômica, dramática
e estética, prestando-se muito bem para o uso artístico. Portanto, pensando no
som como um recurso artístico, posso pensar e sentir, durante as
manifestações artísticas de apreciação da LS, seus ruídos, vibrações,
sensações e outros sentidos.
É através de nossa visão, do nosso olhar, de nossa faculdade ótica que
nós, surdos, apreciamos o som da LS. Explico: quando alguém sinaliza
poeticamente que ao longe vem se aproximando um trem, passando pelas
árvores, cascatas, planaltos e planícies, nossos olhos percebem, nesta
manifestação linguística, o som das rodas nos trilhos, o som das engrenagens,
o som do balanço dentro do vagão. Ou seja, nossos olhos escutam e sentem a
vibração sonora da paisagem que é formada no instante da execução poética.
Acredito que o mesmo acontece com as pessoas ouvintes
P. 143
quando escutam o “Trem caipira”, de Villa Lobos, ou “As quatro estações” de
Vivaldi, porém em ordem inversa, ou seja, seus ouvidos veem a paisagem que
é formada no instante da apreciação musical.
Concluindo, sinto que o desafio de ter refletido sobre a apreciação do
som e a LS foi muito enriquecedor em diferentes aspectos. Desde a minha
relação com a LS (que hoje observo de uma maneira mais ampla); às diferentes
variáveis das relações com seu uso (como foi o som neste estudo), à
apreciação das sensações geradas com as manifestações estéticas da LS e
sua relação com o vasto mundo que nos cerca - todos estes aspectos formam
uma grande obra de arte, pronta para ser apreciada por todos.
Deixo claro que este artigo não tem a pretensão de dar conta de tudo
sobre o tema, mas sim provocar no leitor, e também em mim, novos olhares
sobre os sons. Penso que este artigo vem a contribuir para pensarmos o som
sob outros pontos de vista, rompendo com a ideia de um conceito centrado na
capacidade sensorial e sica de ouvir, refletindo-se sobre as demais
possibilidades de senti-lo, vê-lo, imaginá-lo.
Referências
BARBOSA, A M. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva,
2002. CALDAS, A. L. P. O filosofar da arte na criança surda: construções e
saberes.
Porto Alegre: UFR.GS, 2005. Dissertação (Mestrando em Educação) -
Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
DUARTE, J. F. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. 2. ed.
Curitiba: Criar, 2003.
MEIRA, M. Filosofia da criação: reflexões sobre o sentido sensível. Porto
Alegre: Mediação, 2003.
PILLAR.A. D. Inquietações e mudanças no ensino da arte. In:
BARBOSA, A. M. (Org.). São Paulo: Cortez, 2002.
OSBORNE, H. A apreciação da arte. São Paulo: Cultrix, 1970.
SACK.S, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. 3. ed. o
Paulo: 2002.
P. 145
12 APRECIAÇÃO MUSICAL E SUBJETIVAÇÃO
Patrícia Kebach [Nota 1]
Viviane Silveira [Nota 2]
havíamos escrito antes sobre a importância da música que povoa o
corpo e das intervenções musicais na clínica psicanalítica (Silveira, 2004; 2005)
e também sobre os processos de aprendizagem na área musical (Kebach,
2003a; 2003b; 2004; 2005), levando em conta, inclusive, a relação som-
movimento corporal (Bündchen; Kebach, 2005). Porém, a atividade de
apreciação musical nos remeteu a um aspecto importante que, embora
estivesse presente nos outros dois que destacamos como necessários para a
construção do conhecimento musical (a recriação e a criação), não se
apresentava de forma tão intensa: o egoísmo constituinte do sujeito, tanto do
ponto de vista lacaniano, quanto a partir de um ponto de vista piagetiano
(egocentrismo). Tanto na interpretação e produção de arranjos novos para
músicas conhecidas (recriação) quanto na composição e improvisação
(criação), especialmente se a atividade for realizada em grupo, a tendência é
de uma cooperação progressiva, levando ao descentramento nas trocas sociais
realizadas no momento de coordenação de ações musicais, mesmo que os
estados afetivos individuais permeiem estes processos. Em uma atividade de
apreciação musical, pensamos que a subjetividade ganha um espaço ainda
maior de aparição.
P. 146
Este texto será escrito em forma de diálogos, que correspondem aos
enfoques diferenciados das autoras, segundo as observações feitas sobre as
atividades em jogo. Viviane Silveira trará o enfoque da psicanálise sobre a
temática e os observáveis, e Patrícia Kebach trará as contribuições da
epistemologia genética piagetiana para o texto.
Descrição das atividades apreciativas observadas [Nota 3]
Uma das atividades consistiu na descrição da paisagem sonora
(Schafer, 1994) em um ambiente externo à sala de aula. Um grupo de alunas
teve como tarefa a ser realizada durante a semana apreciar, durante dez
minutos, os sons de determinado ambiente. Deveriam primeiramente descrever
os sons fortes percebidos (de maior intensidade) e sons mais suaves (de baixa
intensidade). Depois, deveriam classificar esses mesmos sons como
agradáveis ou desagradáveis. Realizamos uma discussão em grupo sobre as
descrições de cada aluna. Assim, elas puderam verificar como o aspecto
emocional estava implicado na classificação agradável/desagradável. Os
mesmos sons que para algumas pareciam agradáveis, por aspectos subjetivos,
para outras, pareciam muito desagradáveis.
Logo após esta atividade, as alunas realizaram outras duas atividades
apreciativas. Na primeira, tentaram construir, primeiro individualmente, depois
coletivamente, o significado de uma determinada música. A seguir escutaram
dois CDs de trilhas sonoras. Nesta última atividade, em grande grupo, foram
descrevendo as sensações e as percepções individuais, procurando adivinhar
de qual filme seria aquela trilha sonora.
As contribuições da epistemologia genética para a explicação da
estruturação simbólica
Quando escutamos música, ou melhor, quando realizamos uma escuta
realmente ativa, em que toda a nossa atenção está voltada para os
P. 147
aspectos gerais de determinada música, tendemos a associar estes elementos
organizados sonoramente a experiências passadas, ao nosso estado atual no
que diz respeito ao emocional. A atribuição de significados, de sentimentos, a
percepção de alguns aspectos da linguagem musical e não de outros, de alguns
instrumentos musicais e não de outros, depende da subjetividade do ouvinte.
A objetivação (ou não) desses aspectos depende do nível de construções
cognitivas que o sujeito realizou até o momento desta apreciação, ou seja,
daquilo que ele conhece sobre música. Em termos de estruturação
progressiva dos elementos da linguagem musical, a atividade de apreciação
musical é de extrema relevância. Afetividade e cognição são indissociáveis em
termos do desenvolvimento da inteligência, entretanto a afetividade não é
comunicável da mesma forma que a cognição. É necessário um caminho de
escoamento, de transbordamento da trama inconsciente através de algo que
seja significativo para o sujeito. As artes parecem desempenhar um papel
importante como espaço de expressão da subjetividade humana. O foco deste
estudo voltou-se justamente para a importância da invocação das dimensões
que vão além do sentido que a linguagem convencional pode expressar.
Depois de as atividades de apreciação terem sido desenvolvidas,
descreveu-se o que as alunas falavam no quadro de giz para que todas
pudessem ter uma ideia geral da atribuição de significados e de sentimentos
desencadeados. Essa discussão coletiva, além de proporcionar a observação
da estruturação simbólica, também revelou uma progressão na estruturação
lógica. Ou seja, ao atribuírem significado às canções ouvidas, as alunas
mobilizaram-se internamente e, dessa forma, a cadeia inconsciente de cada
uma teve um espaço de abertura. Inferiu-se isso através dos comentários que
emergiram nas trocas sociais sobre os significados. Viviane anotou essas
observações clínicas durante a realização de todas as atividades para posterior
análise.
A estruturação simbólica é tão importante quanto a lógica. A afetividade,
segundo Piaget, é a energia que mobiliza a cognição. Ao mesmo tempo
também a afetividade deve ter um espaço para estruturar-se. É a partir de um
sistema simbólico individual e, por isso, egocêntrico, que se estruturam
progressivamente os significados socialmente constituídos. “Dentro das
funções do ego estão as funções cognitivas e o contato com o mundo externo,
a formação da inteligência, etc.” (Ferreiro, 2001, p.59). A
P. 148
apreciação musical é um dos espaços de ação que permite o exercício da
expressão espontânea subjetiva (simbólica).
Segundo Ferreiro (p. 66), o sujeito para Piaget não é apenas “ativo
porque faz muitas coisas, é ativo porque está continuamente organizando e
reorganizando seus esquemas assimiladores”. Na apreciação ativa livre, ou
seja, aquela em que o sujeito não recebe uma tarefa específica (por ex.: de
identificar o autor da obra, seu título, como na educação musical tradicional), o
que está em jogo são as atribuições pessoais de significados, sentimentos,
elementos da linguagem musical, etc. Essa atividade requer graus de
organização estruturante sobre o objeto sonoro. Em uma educação musical
voltada para a sensibilização musical, em que os sujeitos que aprendem ainda
não possuem grandes estruturações sobre o objeto musical, está claro que o
objeto intervém na produção individual de símbolos.
Os símbolos são construídos coletivamente em cada cultura e, portanto,
o sujeito não atribui significados sem ser perpassado por estas construções.
Em suas representações sobre a música, por exemplo, ele é atravessado por
construções simbólicas realizadas no seio de sua cultura. Trata-se do
fenômeno de aculturação, ou seja, a interiorização de esquemas acústicos,
graças aos quais se pode aprender um dado musical, identificar semelhanças
e diferenças em um trecho musical, repetições ou modulações (Forquin;
Gagnard, 1973). Exemplo disso seria o reconhecimento de elementos contidos
na estrutura da música tonal ocidental (tonalidade musical, modo menor ou
maior, etc.). Essas construções também são expressas nas atividades de
apreciação musical. Porém, como diz Ferreiro (idem), “mesmo havendo uma
parte de acomodação, a participação do objeto é mínima e os graus de
liberdade do sujeito são ximos” (p. 64) especialmente num nível elementar
de estruturação musical. Isto é, quando o sujeito ainda não construiu estruturas
suficientes para se deter nos elementos da linguagem musical, o que consegue
extrair desta escuta ativa são os sentimentos, percepções e pensamentos
sincréticos que lhe passam pela mente, no momento de expressar verbalmente
a obra ouvida, e, em menor grau, dados sobre a própria estrutura musical.
Observa-se, dessa forma, que a liberdade de expressão e de imaginação que
emerge nas atividades de apreciação, com sujeitos que não passaram por uma
musicalização formal, proporciona trocas de pontos de vista que acabam por
descentrar progressivamente os sujeitos envolvidos no processo de
P. 149
escuta. Considerando-se que, com adultos, as construções precedentes sobre
o universo musical, tal como a herança cultural de cada um são bastante
diversificadas, a consequência dessas trocas é o desenvolvimento das relações
interpessoais, o desenvolvimento emocional e cognitivo de cada um pela
própria ação exercida sobre a música e expressão verbal realizada.
A liberdade de expressão está ligada à autonomia. Sujeitos autônomos
conseguem expressar seus pontos de vista, o prazer que algo lhes proporciona
e, ao mesmo tempo, compartilhar, sem julgamentos heterônomos, a fruição e
a expressão alheia. No espaço das trocas subjetivas, as estruturas o
mobilizadas pela diversificação de atribuição de significados. A construção das
intenções do compositor vão sendo montadas coletivamente a partir deste
universo de trocas individuais no momento de discussão em grupo.
A música não possui somente um caráter lógico estrutural. Ela deve
representar, como em todas as áreas artísticas, um espaço de expressão do
simbólico, o que é uma das características das regulações dinâmicas que
definem sua expressão e funcionamento. A competência ao explicar mais
profundamente esse aspecto das emoções envolvidas na estruturação musical,
a partir das considerações do estudo feito, tem a ver com a teoria psicanalítica,
cujos fundamentos se apontam a seguir.
O egoísmo constituinte: um olhar psicanalítico
Castarède (2002) fala da música como metáfora da intimidade e faz
inúmeras analogias entre a posição do apaixonamento amoroso e a fruição.
Observando-se as atividades de musicalização com este grupo de alunas,
passaram a ser o foco de reflexão o surgimento das representações e
percepções sonoras, a construção de sentidos em linguagem musical, o lugar
do som na subjetividade do sujeito.
Para melhor aprofundar esse olhar psicanalítico é interessante falar-se
inicialmente sobre o bebê. A criança, ainda em início de constituição psíquica,
é alimentada, sobretudo, pela sua alteridade cuidadora (mãe ou outra pessoa)
que, maravilhada com o pequeno ser, encanta-se com suas tentativas,
desconhecimentos e promessas até mesmo de satisfação do próprio
narcisismo. A criança é engendrada, assim, pela possibilidade de
P. 150
saborear suas apreensões, passo a passo, testemunhada por um outro que vê
nela alguém fazendo coisas interessantes, belas e desejáveis.
Dessa forma, o bebê passa a se considerar objeto de desejo do outro,
desde suas consistências e inconsistências, desde seu tempo próprio de quem
dança a própria música que diverge da música do seu cuidador. Assim, vai
assumindo forma, corpo, voz, densidade, gradativamente, na direção da
construção de si como desejante. O que isso tem a ver com apreciar
musicalmente uma obra ou mesmo a paisagem sonora do mundo?
Acontece que a natureza da fruição musical é, por excelência, egoísta.
Trata-se de um egoísmo elogiável que abre as portas para o exercício do
saborear a si mesmo, logo, para movimentos da subjetivação. O que está em
jogo é um ocupar-se das imagens e gerar sentidos, que justamente por serem
particulares, escaparem do que é o mesmo para todos, e configurando-se em
um íntimo elementar que sustenta a alma, não são comunicáveis de um modo
geral.
Nota azul em Didier-Weill
O autor diz que a “nota azul” é a nota que acerta na mosca. Ela veicula
o sujeito no sentido e na presença, preservando-o do monótono e do tédio. É
aquela nota que, apesar de ter como suporte material a onda sonora, segundo
ele, não pode ser guardada na nossa discoteca. Ela desperta os sentidos,
provoca uma abertura que para ele e em si não é representável. O que nela,
que torna o mundo um interlocutor estaria, por exemplo, naquilo que existe na
voz do amado que nos faz ganhar o dia, quando a ouvimos:
Ela se a nós uma vez que imediatamente nos escapa.
Nesse sentido essa impossibilidade de mantê-la aprisionada
faz de nós seus prisioneiros, como se o poder que ela tinha
sobre nós estivesse ligado a sua ininscritabilidade. Dessa nota
direi que se não é simbolizável, no sentido em que não
poderemos inscrevê-la, em que não poderemos reter em nós o
efeito eminentemente fugaz que ela produz e cuja extinção é
estritamente tributária do real das vibrações sonoras que a
suportam, ela é em compensação simbolizante. Simbolizante
no sentido em que nos abre para o efeito de todos os outros
significantes, como se fosse sua senha: efetivamente sob o
impacto da ‘nota azul‘, o mundo começa a falar conosco, as
coisas a terem sentido: os significantes da cadeia inconsciente,
de mudos que eram, despertam e começam, assim causados
pela nota azul, a nos
P.151
contar casos. Essa nota azul nos evoca, é claro, o que está em
jogo no amor: se para o apaixonado o mundo inteiro, a menor
folha tremendo, o menor reflexo, começam a fazer sentido, é
por que em algum lugar para ele um amado, cujo poder
simbolizante, poder de criar um verdadeiro desencadeamento
da cadeia inconsciente, está ligado, como a “nota azul”, ao fato
de poder marcar sem apelo o limite absoluto do sentido e de
invocar a dimensão do mais além do sentido (Didier-Weill,
1997, pp. 60-62).
A música produziria, assim, efeitos de amor, na medida em que instalaria
um jogo com o sujeito que não é outro senão aquele que o fez nascer para o
desejo, aquele que o constituiu como humano, pois no jogo entre a criança em
constituição e sua alteridade, aquele que com ela se surpreende o faz desde o
que enxerga nessa criança até o que lhe faz falta. E a criança se vendo musa
inspiradora daquela surpresa, comemora sua autonomia, seu nascimento como
sujeito diante do outro. Ela se dá conta de que é alguém para seu outro.
Partindo-se dos estudos de Didier-Weill, o ouvinte vê-se diante do
músico como causador de sua produção, a quem ele endereça sua música e
celebra esse endereçamento. O autor diz que não é que o ouvinte se reconheça
na nota, ele é reconhecido por ela. Este seria o pivô de nosso acesso à posição
de sujeito. Desse modo, a música convidaria para uma transmutação subjetiva.
“Objeto a”: a causa do desejo
Esse conceito foi criado por Lacan e trabalhado ao longo de sua obra,
em diversos seminários. Não é um objeto do mundo, não pode ser identificado
como tal. Pode ser identificado sob a forma de fragmentos parciais do corpo.
Seriam: o objeto da sucção, o da excreção, a voz e o olhar. De acordo com
Chemama (1995), é criado no espaço que a linguagem abre para além da
necessidade que a motiva. Assim ele surge na medida em que o sujeito em
constituição psíquica sofre os efeitos da linguagem, da cultura. O desejo passa
a não poder ser saciado, por exemplo, unicamente pelo alimento. Ele constitui
uma relação de demanda com o objeto da sucção, o seio. Segundo o autor,
esse objeto se torna mais precioso que o alimento. Ele passa a ser condição
absoluta de sua existência, enquanto sujeito do desejo.
P. 152
É na relação com esse objeto perdido que o sujeito vai dirigir-se ao
mundo e produzir objetivos a serem alcançados em função do sentimento de
perda desse objeto. Esse sentimento e seus ideais são justamente gerados
pelas expectativas depositadas pelos outros sobre sua pessoa, ou melhor,
pelas interpretações que o sujeito faz dos olhares dos outros sobre si próprio.
Na perda ou na queda desse objeto, o desejo deixa de ser contínuo, orgânico,
e passa a ser humano. O sentimento de “falta” transforma-se em fonte
inesgotável de invenção, de demandas e de alternativas de alcance de
objetivos de vida.
Tomemos por exemplo a voz. Na Odisséia de Homero, o elemento “voz”
aparece de modo importante. As sereias, ao canto das quais Ulisses consegue
não se entregar, seduzem-no através de suas vocalizações.
Uma outra passagem interessante, trazida por Lacan (1967-1968),
refere-se às pinturas japonesas utilizadas para separar ambientes. Nestas se
pode ver um casal no ato da cópula e, num canto da estampa, há um pequeno
personagem, um terceiro que olha a cena. Em geral, uma pessoa pequena,
parecendo, inclusive, uma criança. Segundo o autor, o erotismo estaria na
presença desse olhar. Esse olhar, portanto, representaria o “objeto a”.
Considerações sobre a apreciação e algumas perguntas para os
educadores de música
Os conceitos de “nota azul” e de “objeto a” interessam na análise das
condutas psicológicas dos sujeitos perante uma escuta ativa, pois parecem
intimamente ligados à problemática do despertar da subjetividade que a música
opera nos sujeitos. Se os efeitos que a linguagem musical produz exigem algum
tipo de recolhimento aos próprios movimentos subjetivos, esses, por sua vez,
acontecem desde uma operação específica. Essa operação tem a ver com a
relação entre a mãe e o bebê, isto é, quando a mãe localiza no bebê pontos de
inspiração para seu maravilhamento. Da mesma forma podemos pensar que
aquele que ouve uma música (o fruidor) pode retornar à situação de alguém
que se vê como inspirador de outrem.
Quando o sujeito vê-se diante de um músico que endereça sua produção
a ele, necessariamente -se como um outro que interessa. E um outro que
tem lugar para o músico. Faz-lhe alguma falta. Essa, por sua
P. 153
vez, não é uma falta qualquer, na medida em que o músico lhe oferece nada
mais nada menos que sua própria produção, portanto algo a respeito dele
mesmo ao ouvinte. Assim, o apreciador pode comemorar sua posição enquanto
objeto do desejo.
Dessa forma, se esse de quem o ouvinte supõe um saber, algo que lhe
interessa, endereça-lhe o que produz de mais sublime, o próprio fruidor pode
ocupar o lugar de sujeito, com elementos que, por sua especificidade e
singularidade, supostamente interessa ao outro. Ele pode, nesse sentido,
dedicar-se a olhar para si desse modo. Assim, as imagens de si, as marcas,
lembranças, construções, enfim, do ouvinte ganham valor e, à luz desse outro,
são elevadas à condição de objeto. Ele pode passear com elas, saltar de uma
para outra, como diz Didier-Weill (1997), em plena celebração de sua
parcialidade e, portanto, de sua falta. Ele é elevado à condição de quem tem
algo que pode provocar interesse no outro.
Se, por um lado, o sujeito é confrontado com sua parcialidade, com sua
falta, bem como de sua alteridade, por outro lado, dessa incompletude resta,
ao invés de um mal-estar, uma alegria. Sobra a celebração de si, das próprias
imagens que ele pode saborear, da música do outro que já é do ouvinte, como
diz Didier-Weill (1997).
Em termos do posicionamento do fruidor em relação à música, este pode
visitar suas verdades, porque é empurrado de modo a se perceber em sua
condição humana, quando diante de suas faltas e marcas, tomado como
inspirador, resta-lhe caminhar por suas trilhas psíquicas, devidamente
tonalizadas, ritmadas e sentidas ao som do que ouve. Trata-se da estruturação
da subjetivação diante da linguagem em questão, da constituição interminável
do inconsciente.
O que ele ouve, o que ele recorta do recorte do seu outro, que lhe é
ofertado, é certamente singular. Se o que o músico produz em sua
interpretação é único, também o é o que seus ouvintes percebem. Isso vai ao
encontro não somente às especificidades de registro perceptivo de cada fruidor,
mas tem a ver com o sentido, com os locais para os quais cada um será
transportado e com as transmutações subjetivas que acontecerão, que não são
apreendidas por duas pessoas do mesmo modo.
Para Didier-Weill (1997), algo entre “um e outro” que não se
estabelece. Podemos ouvi-lo, por ser inesgotável, que é interminavelmente
capaz de surpreender. Não assimilamos tudo o que
P. 154
escutamos. Não podemos dizer tudo o que ouvimos. Algo morre no caminho.
Portanto, nem o que o outro produz e compreende é transmissível em sua
totalidade de sentidos, e tampouco podemos esgotar nossa atribuição de
sentido ao que o outro nos traz.
Dessas considerações surgem algumas questões relacionadas à
educação musical:
a) como pensar, na educação musical, o lugar desse egoísmo cons-
tituinte ao longo da vida? Daquilo que não é transmissível?
b) Qual a leitura piagetiana do valor da surpresa, da nova produção de
sentido diante da obra musical?
c) Qual o lugar da interlocução com o campo da psicanálise?
O espaço da educação musical como fonte de estruturação
simbólica
A educação musical e das artes em geral, do ponto de vista piagetiano,
é um instrumento de expressão dos jogos simbólicos, constituintes do
desenvolvimento emocional, correlativamente ao desenvolvimento lógico. O
egoísmo constituinte tem a ver com o que Piaget chama de egocentrismo,
quando se refere aos primeiros contatos do sujeito com um objeto
desconhecido, e está relacionado também ao desenvolvimento emocional. A
propósito disso, para Piaget (1954) existe, por um lado, a realidade social à
qual o sujeito deve se adaptar. Essa realidade impõe suas leis, regras e meios
de expressão. A ela estão submetidos os sentimentos morais e sociais, o
pensamento conceituai e socializado. Por outro lado, existe, segundo Piaget,
aquilo que é vivido pelo eu, ou seja, os conflitos, desejos conscientes e
inconscientes, as alegrias, inquietações, etc. São essas realidades individuais,
via de regra, inadaptadas e inexprimíveis pelos instrumentos coletivos de
comunicação que anseiam por uma outra forma de expressão.
Assim, Piaget propõe que as primeiras manifestações espontâneas, que
podem ser consideradas como arte infantil (mesmo que não sejam arte stricto
sensu), são tentativas de conciliar as tendências do jogo simbólico e as que
caracterizam uma adaptação à realidade (submissão ao real). Através das
condutas simbólicas (brincadeiras, no caso da criança, por exemplo), o sujeito
procura “satisfazer seus desejos e adaptar-se aos
P. 155
objetos e aos outros sujeitos” (p. 22). Ao mesmo tempo em que expressa sua
subjetividade, tenta propor o que pensa e sente, dentro de um mundo de
realidades objetivas e comunicáveis, constituintes do universo material e social.
Porém, existem obstáculos que bloqueiam esse processo extremamente
criativo, via livre expressão através dos jogos simbólicos. Piaget sugere que
esses obstáculos estejam ligados ao sistema tradicional de educação e ensino.
Sob a esfera intelectual, a escola propõe, na maioria das vezes, um
conhecimento pronto, verbal, não estimulando a livre expressão, pesquisa e
criação, sufocando, assim, os movimentos criativos. Desse modo, Piaget (1965,
p. 62) argumenta que “são as coações imanentes das subcoletividades que
dispõem cada uma de seus meios específicos de pressão: classes sociais,
igrejas, família e escola”.
A proposta deste texto é abordar exatamente uma forma de espaço de
expressão da subjetividade através das atividades ligadas à apreciação
musical. Um espaço de expressão daquilo que não é transmissível pela
linguagem convencional, isto é, por meio dos instrumentos coletivos de
comunicação, como a fala, por exemplo.
A leitura da epistemologia genética piagetiana sobre o valor da surpresa,
da nova produção de sentido diante da obra musical está relacionada à
mobilização do sistema de significação, às perturbações interiores frente às
novidades e frente àquilo que é significativo para o sujeito (a “nota azul”). A
resistência do objeto, em forma de surpresa, daquilo que ainda não é
conhecido, gera uma reorganização das estruturas mentais em patamar
superior, não só em nível afetivo, já que a assimilação está diretamente ligada
ao interesse em buscar novas formas de adaptação. A interlocução entre
educação musical e o campo da psicanálise se dá exatamente neste ponto: na
forma de observação da estruturação da subjetividade, tendo em vista que
“razão e emoção são inseparáveis, funcionando juntas na tomada de decisão
do sujeito” (Kebach, 2004, p 155).
Uma cena da sala de aula
Na aula observada em que foram realizadas atividades de apreciação
musical, uma cena merece ser analisada. As pessoas ali reunidas estavam
debruçadas sobre o ato de falar a respeito dos sons. Tratava-se de um espaço,
em que aquele grupo de alunas estava disposto a ouvir cuidado-
P. 156
samente pessoas dispostas a comemorar a existência do universo sonoro. Um
espaço completamente diferente da pouca atenção que se dá, comumente, aos
“detalhes” sonoros do mundo contemporâneo.
Uma a uma as alunas, à luz da pergunta da professora - que supunha
nelas recursos para o saber - iam apresentando à viva voz os sons escolhidos
como aqueles que lhes saltavam aos ouvidos, que lhes pareciam mais ou
menos agradáveis, mais ou menos intensos, a partir de uma pequena lista de
sons que estariam presentes em seus cotidianos.
Num segundo momento, no qual passaram à apreciação de algumas
músicas, seguiram falando acerca do que estas sugeriam. Nada lhes havia sido
dito especificamente a respeito do que aquelas obras tratavam, e tampouco
quem eram os autores. As alunas, em uma “escuta ativa”, iam criando o que
ouviam. O objeto musical ia tomando forma, traço a traço, segundo a
construção que iam fazendo a partir de suas texturas, andamentos,
intensidades, etc. Eles vinham à tona em meio a associações peculiares sobre
o que lhes fazia lembrar, com o que pareciam, que efeitos sugeriam. Assim, por
exemplo, a sensação de respeito, provocada por um certo acorde, acabava
levando-as à percepção de uma passagem do Hino Nacional. Uma certa
passagem que lembrava o tempo medieval acabava por sugerir uma obra
literária sobre traços arcaicos da alma humana. A sensação de estar diante de
algo que lembrava o barulho do mar (os sons ouvidos remetiam ao elemento
água) levava à percepção de uma música que integrava a trilha sonora de um
filme e, para além disso, um sentimento de completude, ou seja, de
“enclausuramento nas águas do ventre materno”.
Entretanto, ocorreu algo que foi ainda mais surpreendente do que as
observações feitas. D o sentido do tema desenvolvido nesse texto. Após
passarem vários dias da observação feita com as alunas, Viviane sentia-se com
mais e mais dificuldade de escrever sobre essa experiência. Uma dificuldade
intensa, que lhe parecia até mesmo descabida, inclusive pela beleza
encontrada nas cenas da aula. Conforme ela, havia algo naquelas cenas que
não pertencia a um observador externo, pois não cabia a ninguém falar pelas
próprias apreciadoras. Este é o elemento central, do ponto de vista subjetivo,
na apreciação musical: o que é precioso porque é de cada um; a música que
faz sentido apenas no seu próprio egoísmo, na sua subjetividade, naquilo que
não se conta para o outro; o que existe de mais íntimo e que o pode ser
expresso por palavras.
P. 157
Referências
BÜNDCHEN, D.; KEBACH, P.A criação de novos esquemas musicais
com base na relação som-movimento. in. BEYER, E. (Org.). O som e a
criatividade: reflexões sobre experiências musicais. Santa Maria: UFSM, 2005.
p. 133-152.
CASTAREDE, M. E Les vocalises de la passion: psychanalise de l’opera.
Paris: Armand Colin, 2002.
CHEMAMA, R. Dicionário de psicanálise Larousse. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995.
DIDIER-WEILLA Nota azul, Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 1997.
FERREIRO, E. Cultura escrita e educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FORQUIN, J.C.; GAGNARD, M. La musique. In: PORCHER, L. (Org.).
L’éducation esthétique: luxe ou necessite. Paris: Armand Colin, 1973.
KEBACH, P. E C.A construção da seriação auditiva: uma análise através
da metodologia clínica. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, n. I,v. 7,
p. 85-96,2003.
_____. A estruturação rítmica musical. Revista da Fundarte,
Montenegro, v. 3, n. 5, p. 27-29,2003b.
_____. A construção do conhecimento musical: um estudo através do
método clínico. Porto Alegre, 2003c. Dissertação (Mestrado em Educação) -
FACED, UFRGS.
_____. Conhecimento e cérebro: relações entre Piaget e Damásio na
perspectiva da construção do objeto musical. In: GOBBI, V. (Org.). Questões
de música. Passo Fundo, 2004. p. 153-164.
_____. A criação de novidades nas condutas musicais. In. BEYER, E.
(Org.) O som e a criatividade: reflexões sobre experiências musicais. Santa
Maria: UFSM, 2005. p. I 11-132.
PIAGET, J. [1954] L’éducation artistique el Ia psychologie de 1’enfant.
In: Art et éducation: recueil d’essais. Paris: Unesco, p. 22-23. Tradução de:
Paulo Francisco Slomp e Gisele Fleck. Porto Alegre, 2000.
SCHAFER, R. M. Hacia una educación sonora. Buenos Aires:
Pedagogías Musicales Abiertas, 1994.
SILVEIRA, V. Sobre a música que povoa o corpo: considerações
psicanalrticas. In: GOBBI, V (Org.). Questões de música. Passo Fundo, 2004.
p. 177-185.
_____. Considerações acerca de uma intervenção musical na clínica
psicanalítica. In: BEYER, E. (Org.). O som e a criatividade: reflexões sobre
experiências musicais. Santa Maria: UFSM, 2005. p. 33-50.
P. Orelha de contracapa
Leia também:
Composto por uma série de estudos sobre apreciação musical,
desenvolvidos com crianças, jovens e adultos, este livro apresenta conceitos
contemporâneos e fundamentais em termos de uma “pedagogia da música”,
que se contrapõem às práticas tradicionais do ensino da música nas escolas.
Autoras
Ana Claudia Specht
Ana Luiza Paganelli Caldas
Ana Paula Melchiors
Stahlschmidt
Ângela B. Crivellaro
Sanchotene
Denise SanfAnna Bündchen
Esther Beyer
Flávia Garcia Rizzon
Katia Renner
Kelly Stifft
Márcia Cristina Pires
Rodrigues
Maria Luiza Feres do Amaral
Patrícia Kebach
Regina Finck
Rosangela Duarte
Viviane Silveira
P. Contracapa
NOTAS:
Nota 1 da introdução: Pós-Doutora em Semântica Musical pela
Universidade de Münster na Alemanha. [Voltar]
Nota 2, introdução: Doutora em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Pedagogia e Pós-graduação em
Gestão Educacional das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). [Voltar]
Nota 1 do capítulo 1: Doutora em Educação (PPGEDU-UFRGS), Mestre
em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS), Psicóloga e Especialista
em Psicologia Clínica. Ministra o projeto de extensão “Música para bebês”
(Dep. de Música/UFRGS) e é membro da equipe técnica da Casa de Passagem
para crianças vítimas de violência em família (Prefeitura Municipal de Porto
Alegre). Integrante do GEMUS. e-mail: stahls@orion.ufrgs.br. [Voltar]
Nota 2 do capítulo 1: Mestre em Educação e Cultura (CCE/UDESC) e
Especialista em Musicoterapia pela Unisul/SC. E Professora de Piano,
graduada pela Faculdade de Educação Musical do Paraná, e atuou como
professora na área de piano e história da música junto ao Departamento de
sica CEART/ UDESC. Desenvolve atividades pedagógicas, ministrando
master class, palestras e cursos, em escolas de música e fundações em Santa
Catarina e no Paraná, e-mail: liza.amaral@hotmail.com. [Voltar]
Nota 3 do capítulo 1: Doutoranda e Mestre em Educação (PPGEDU-
UFGRS). Professora Especialista em Educação Musical pela UDESC/SC. Atua
como professora do Departamento de Música do Centro de Artes na área de
Educação Musical e Flauta Doce, e desenvolve atividades de formação
continuada de professores. Coordena Projetos de Extensão de Canto Coral,
Flauta Doce e Musicalização. Integrante do grupo de pesquisa GEMUS. e-mail:
regina@udesc.br. [Voltar]
Nota 4 do capítulo 1: “Canção para adormecer crianças”: palavra que
designa o ato de acalentar, de embalar. No seu sentido musical, foi utilizada
por extensão e, pela primeira vez, pelo compositor brasileiro Luciano Gallet.
Popularmente, nossos acalantos são chamados cantigas de ninar (Alvarenga
apud Jorge, 1988). [Voltar]
Nota 1 do capítulo 2: Doutoranda em Educação pelo PPGEDU-UFR.GS,
Licenciada em Educação Artística - Habilitação em Música pela mesma
instituição. Atua como professora no programa Música para Bebês (IA/
UFR.GS), como professora de música na Educação Infantil e Séries Iniciais do
Colégio João XXIII. Integrante do grupo de pesquisa GEMUS. e-mail:
jkstifft@redemeta.com.br [Voltar]
Nota 2 do capítulo 2: Este tripé tem sido amplamente discutido e
renomeado por diferentes autores, podendo ser encontrado também como:
execução - reprodução (Beyer) ou recriação (Kebach), interpretação,
performance; criação - subdividida, às vezes em composição e improvisação,
ou exploração, improvisação e composição (Kratus); apreciação - audição,
escuta ativa. [Voltar]
Nota 1 do capítulo 3: Mestre em Educação - PPGEDU-UFRGS,
licenciada em Educação Física pela Faculdade Metodista IPA e Especialista
em Pedagogia do Treino Desportivo pela ESEF/UFRGS. Atualmente, trabalha
como professora de Dança no Ensino Fundamental e Médio e Professora de
Educação Física na Prefeitura Municipal de Porto Alegre. E pesquisadora em
Arte-Educação, centrando seus estudos no ensino-aprendizagem em dança.
Integrante do GEMUS. e-mail: marciacprodrigues@yahoo.com.br [Voltar]
Nota 2 do capítulo 3: A metodologia destes autores está comparada na
tese de doutorado em música de Ana Lúcia Frega, Buenos Aires, Argentina,
1997. [Voltar]
Nota 3 do capítulo 3: Em São Luís do Maranhão existem vários sotaques,
que se diferem pelos instrumentos empregados na execução dos ritmos.
[Voltar]
Nota 1 do capítulo 4: Mestranda em Educação pelo PPGEdu/UFRGS,
licenciada em Educação Artística Habilitação em Música pela UFRGS,
professora de Música na EMEF Heitor Villa-Lobos e integrante do GEMUS. e-
mail: flarizz@yahoo.com.br [Voltar]
Nota 1 do capítulo 5: Mestre em Educação pelo PPGEDU-UFRGS,
cantora e professora de técnica vocal. Preparadora do movimento coral do
Centro Universitário FEEVALE. Graduada em Psicologia pela UNISINOS.
Integrante do grupo de pesquisa GEMUS. e-mail: aspecht@sinos.net [Voltar]
Nota 2 do capítulo 5: Mestre em Educação pelo PPGEDU-UFRGS e
licenciada em música pela UFRGS. É educadora musical, regente, professora
na área de Educação Musical e coordenadora do Movimento Coral do Centro
Universitário FEEVALE. Integrante do grupo de pesquisa GEMUS. e-mail:
denise.bb@uol.com.br [Voltar]
Nota 3 do capítulo 5: Projeto Arte em Canto de Salvador do Sul:
musicalização, canto coral e formação de professores. [Voltar]
Nota 1 do capítulo 6: Mestre em Educação, Especialista em História da
Arte, Licenciada em Ed. Artística/Música, Bacharel em Direito, Professora da
Rede Estadual de Ensino/RS, lecionando no EJA, Professora da Rede
Municipal de Educação/Porto Alegre, lecionando Música no III Ciclo,
Coordenadora da Escola de Música de Porto Alegre (EMPA) e integrante do
GEMUS. e-mail: angelacrivellaro@globo.com. [Voltar]
Nota 2 do capítulo 6: Este projeto foi desenvolvido com 22 adolescentes
da 8a rie de uma escola da rede estadual em Porto Alegre/RS, com idade
média de 15 anos, dos quais sou professora de arte-educação. [Voltar]
Nota 1 do capítulo 7: Mestre em Educação pelo PPGEDU-UFRGS. É
licenciada em Música e Pedagogia e especialista em Avaliação Educacional.
Atua na área de educação musical para crianças, jovens, adultos e idosos.
Integrante do grupo de pesquisa GEMUS. e-mail: katia.renner@terra.com.br
[Voltar]
Nota 1 do capítulo 8: Doutora e Mestre em Educação pelo PPGEDU-
UFRGS, graduada em Comunicação Social pela UNISINOS, realizou cursos na
área de Psicologia e Educação na Universidade de Genebra (UNIGE), na
Suíça. Professora da Pedagogia e Pós-graduação em Gestão Educacional das
Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Integrante do GEMUS. e-mail:
patriciakebach@yahoo.com.br [Voltar]
Nota 1 do capítulo 9: Doutoranda em Educação pelo PPGEDU-UFRGS
e Mestre em Ciências da Educação Superior pela Universidad Camilo
Cienfuego de Matanzas/Cuba. Professora do Centro de Educação da
Universidade Federal de Roraima. Integrante do grupo de pesquisa GEMUS.
e-mail: roduart@click21.com.br [Voltar]
Nota 1, capítulo 10: Licenciada em Educação Musical, Bacharel e
Licenciada em Psicologia. Mestre em Educação pela UFRGS. Doutora em
Psicologia da Música pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha. Pós-
Doutora em Semântica Musical pela Universidade de Münster, na Alemanha.
[Voltar]
Nota 1 do capítulo 11: Mestre em Educação pelo PPGEDU-UFRGS,
graduada em Pedagogia pela ULBRA e possui aperfeiçoamento em Língua de
Sinais pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos
(FENEIS). Atua como Professora da disciplina da Área da Surdez na
UNILASALLE, como Professora da disciplina da Cultura Surda e Libras na
UNISINOS. É integrante do grupo de pesquisa GEMUS. e-mail:
schalldas@terra.com.br [Voltar]
Nota 2 do capítulo 11: Pensando no apreciar relacionando com a
proposta triangular desenvolvida por Barbosa em que se deve levar em
consideração o fazer, a leitura e a história da arte. [Voltar]
Nota 3 do capítulo 11: Que prometo pensar com mais profundidade
futuramente no sentido de desenvolver a ideia estética da LS. [Voltar]
Nota 4 do capítulo 11: Segundo Quadros e Karnopp, ano 2004, citando
Brito, a língua de sinais brasileira apresenta 46 CMs, um sistema bastante
similar àquele da ASL, embora nem todas as línguas de sinais partilhem o
mesmo inventário de CMs. Para a autora, as CMs da língua de sinais brasileira
foram descritas a partir de dados coletados nas principais capitais brasileiras,
sendo agrupadas verticalmente segundo a semelhança entre elas, mas ainda
sem uma identificação como CMs básicas ou CMs variantes. Dessa forma, o
conjunto de CMs a seguir refere-se apenas às manifestações de superfície, isto
é, de nível fonético, encontradas na língua de sinais brasileira. [Voltar]
Nota 1 do capítulo 12: Doutora e Mestre em Educação pelo PPGEDU-
UFRGS, graduada em Comunicação Social pela UNISINOS, realizou cursos na
área de Psicologia e Educação na Universidade de Genebra (UNIGE), na
Suíça. Professora da Pedagogia e Pós-graduação em Gestão Educacional da
FACCAT. Integrante do GEMUS. e-mail: patriciakebach@yahoo.com.br.
[Voltar]
Nota 2 do capítulo 12: Psicanalista em formação, Mestre em Psicologia
pela UFR.GS e Psicóloga Realiza um trabalho de intervenção precoce junto ao
trabalho “Música para bebês”, coordenado pela Dr. Esther S. W. Beyer.
Integrante do GEMUS. e-mail: vfsilveira@terra.com.br. [Voltar]
Nota 3 do capítulo 12: Os observáveis deste texto foram retirados de
algumas atividades de apreciação musical com as alunas do curso Normal
Superior Habilitação em Educação Infantil, da FACCAT (Faculdades
Integradas de Taquara), no primeiro semestre de 2005, disciplina de
Fundamentos e Metodologia da Musicalização, ministrada por Patrícia Kebach.
A plasticidade das atividades fez-nos levantar algumas questões que nos
levaram a outros direcionamentos. [Voltar]