P. Dados do Material
Título: O Mistério do Samba
Autor: Hermano Vianna
Este material foi adaptado pelo Setor de Musicografia Braille e Apoio a Inclusão da
Escola de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em
conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, Capítulo IV, Artigo 46. Permitindo o
uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficiência visual. Não podendo
ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado por: Anny Adryelle Marques Ferreira
Descrições de imagem por: Camilo Soares
Revisado por: Camilo Soares
Data: 27 maio de 2022
P. Capa
O Mistério do Samba
Hermano Vianna
Jorge Zahar Editor
Editora UFRJ
Coleção
ANTROPOLOGIA SOCIAL
diretor: Gilberto Velho
O Riso E O RISÍVEL
Verena Alberti
MOVIMENTO PUNK NA CIDADE
Janice Caiafa
1. O ESPÍRITO MILITAR
2. Os MILITARES E A REPÚBLICA
Celso Castro
3. VELHOS MILITANTES
Ângela Castro Gomes,
Dora Flaksman,
Eduardo Stotz
4. DA VIDA NERVOSA
Luiz Fernando Duarte
5. GAROTAS DE PROGRAMA
Maria Dulce Gaspar
6. NOVA LUZ SOBRE A ANTROPOLOGIA
Clifford Geertz
7. O COTIDIANO DA POLÍTICA
Karina Kuschnir
8. CULTURA: UM CONCEITO
ANTROPOLÓGICO
Roque de Barros Laraia
9. CARISMA
Charles Lindholm
10. AUTORIDADE & AFETO
Myriam Lins de Barros
11. GUERRA DE ORIXÁ
Yvonne Maggie
12. ILHAS DE HISTÓRIA
Marshall Sahlins
13. Os MANDARINS MILAGROSOS
Elizabeth Travassos
ANTROPOLOGIA URBANA
14. DESVIO E DIVERGÊNCIA
15. INDIVIDUALISMO E CULTURA
16. PROJETO E METAMORFOSE
17. SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE
18. A UTOPIA URBANA
Gilberto Velho
19. O MUNDO FUNK CARIOCA
20. O MISTÉRIO DO SAMBA
Hermano Vianna
21. BEZERRA DA SILVA: PRODUTO DO
MORRO Letícia Vianna
22. O MUNDO DA ASTROLOGIA
Luís Rodolfo Vilhena
23. ARAWETÉ: OS DEUSES CANIBAIS
Eduardo Viveiros de Castro
HERMANO VIANNA
O Mistério do
SAMBA
4a edição
Jorge Zahar Editor
Editora UFRJ
Copyright © 1995, Hermano Vianna
Copyright © 2002 desta edição: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31
sobreloja
20031-144 Rio de Janeiro, RJ
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UFRJ
Reitor: José Henrique Vilhena de Paiva; Coordenador do Fórum de Ciência e
Cultura: Afonso Carlos Marques dos Santos
Editora UFRJ
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Ana Cristina Zahar, Carlos Lessa, Fernando Lobo Carneiro, Peter Fry, Silviano
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Edições anteriores: 1995 (duas ed.), 1999
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Vianna, Hermano, 1960-
V67m 4.ed. O mistério do samba/Hermano Vianna. - 4.ed. - Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.:Ed. UFRJ, 2002. (Antropologia social)
Apêndice
Inclui bibliografia
ISBN: 85-7110-321-6
1. Samba - História e crítica. 2. Música popular - Brasil - História e crítica. 3.
Música afro-brasileira. I. Título. II. Série. CDD 784.500981
02-0361
CDU 784.4(81)
SUMÁRIO
Prefácio de Sérgio Cabral 9
Apresentação 13
Agradecimentos 17
1. O Encontro 19
2. Elite Brasileira e Música Popular 37
3. A Unidade da Pátria 55
4. O Mestiço 63
5. Gilberto Freyre 75
6. O Samba Moderno 95
7. O Samba da Minha Terra 109
8. Lugar Nenhum 129
Conclusões 145
Anexo 1. Nacional-Popular 159
Anexo 2. "Melting Pot" 175
Bibliografia 185
Não tem nada disso. Depois é que o samba foi para o morro. Aliás, foi
para todo lugar. Onde houvesse festa nós íamos.
Donga
Chegados nunca chegamos
eu e a ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.
Jorge de Lima
Para Herbert e Helder, meus irmãos, que dão continuidade (um nos palcos,
outro nos bastidores) à história da música brasileira.
P. 9
Prefácio
Sou, inicialmente, grato a Hermano Vianna por ter elaborado um trabalho
acadêmico perfeitamente inteligível para qualquer um de nós, simples mortais. Mas,
apaixonado pela música popular brasileira de todas as épocas, sou mais grato ainda
pelas portas que abriu para que os apaixonados e estudiosos penetrássemos na
história de nossa música.
Hermano não é (nem de longe) desses intelectuais que criam teorias e saem
procurando fatos para justificar as suas teorias. Antes de defender os seus pontos de
vista, mergulhou na história da música popular brasileira e trouxe, do fundo,
momentos raros de nossa bibliografia musical, como o encontro de Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais Neto e outros jovens intelectuais da
década de 20 com gente como Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira. Convivi muito
com Prudente de Morais Neto a quem tinha como um pai , trabalhei com ele e
conversávamos muito sobre a música popular brasileira. Por várias vezes, Prudente
falou-me das incursões que ele e Sérgio Buarque de Holanda faziam pelo território da
música popular e deu-me alguns depoimentos preciosos, como a forte impressão
causada pelo samba. Pelo telefone (Donga e Mauro de Almeida), executado pela
orquestra que abria o desfile dos Democráticos no carnaval de 1917. Para mim e para
os demais jornalistas que trabalhavam com ele, Prudente de Morais Neto sempre foi
o Doutor Prudente. Mas, para o compositor Ismael Silva, ele era o Prudentinho. Gostei
de reencontrá-lo, desta vez como personagem deste livro.
P. 10
A passagem de Darius Milhaud pelo Rio de Janeiro, como servidor da legação
francesa, também mereceu de Hermano Vianna uma atenção preciosa. Milhaud
adorou a música brasileira, tendo dedicado a ela as quatro danças de sua obra
Saudades do Brasil (as danças chamaram-se Corcovado, Sumaré, Tijuca e
Laranjeiras, sendo o nome da última quase nunca escrito corretamente tanto nos
discos gravados quando nas edições musicais). Além disso, incorporou trechos da
música brasileira da época à sua famosa Le boeuf sur le toit, considerada uma das
obras-primas da música do século XX (confesso que, sendo tantas as citações, não
sei onde começa a homenagem e onde termina a cópia pura e simples).
Hermano Vianna chama a atenção para um detalhe surpreendente: quem
apresentou Donga a Prudente de Morais Neto foi o poeta vanguardista francês Blaise
Cendrars. Tudo indica que, ao visitar o Rio de Janeiro pela primeira vez, Cendrars
chegara devidamente instruído por seu amigo e parceiro Darius Milhaud sobre os
segredos de nossa música. O fato é que o poeta também adorou o que andou ouvindo
por aqui e chegou a registrar momentos marcantes, como a noite vivida numa boate
chamada The Diamonds Club, em Laranjeiras, de propriedade de uma linda norte-
americana chamada Edith de Berensdorff, onde ouviu uma banda de Jazz de Saint
Louis, comandada “pela trombeta do explosivo e infatigável Wild Bird", e "uma
orquestra tipicamente brasileira, Os Batutas, selecionada e encabeçada por Donga,
o comovedor compositor popular, o ás do carnaval". Em seu livro Histórias
verdadeiras, Blaise Cendrars narra a "luta renhida" entre os dois grupos e conta como
terminou a noite: "Estonteados pelas sicas tão diferentes, mais do que pela mistura
de champanha e uísque, saímos tropeçando, as mporas batendo, completamente
pasmados com o glorioso raiar do dia do Rio de Janeiro, que despontava entre
palmeiras, tomados pelo cansaço, pela alegria, como se tivéssemos assistido,
durante toda a noite, nesta boate única no mundo, a uma mistura de anjos perversos
ou a uma fogueira de demônios."
Considero o trabalho de Hermano Vianna uma valiosíssima contribuição à
bibliografia da música popular brasileira por analisar, por exemplo, questões como o
que poderíamos chamar de ascensão social do samba, um gênero tão execrado
P. 11
pelas classes dominantes das primeiras décadas do século que a polícia prendia
quem o cantasse, dançasse ou tocasse. E ai daquele que andasse pelas ruas
carregando um violão. Sendo negro, aí mesmo é que a sua situação piorava. Tenho
depoimentos de Donga, João da Baiana e Juvenal Lopes sobre a perseguição policial
aos sambistas. No entanto, o samba venceu tudo isso. Hermano assinala até que
"nenhum autor tenta explicar como se deu essa passagem (o que a maioria faz é
apenas constatá-la) de ritmo maldito à música nacional e de certa forma oficial". Não
pretendo ser o autor que vai explicar a tal passagem, até porque a minha tarefa é
apresentar o livro e, neste momento, escrevo uma história das escolas de samba do
Rio de Janeiro em que o tema é abordado. De qualquer maneira, Hermano Vianna
lança um desafio aos estudiosos não da música popular como da própria
sociedade carioca, alguém que nos contemplasse com uma história do nosso povo,
abordando com profundidade as relações sociais e raciais, a partir da abolição da
escravatura, o momento em que, segundo o historiador Joel Rufino dos Santos, o
negro passou a ser dono do próprio corpo. As religiões de origem negra e a música
popular não poderiam faltar a essa história, nem o desenvolvimento urbano da cidade.
"Dize-me o que cantas... direi de que bairro és" foi o tulo de um desenho de Raul
Pederneiras do início do culo. Antônio Cândido pensa como o grande desenhista
conforme revelou no artigo transcrito por Hermano, quando assinalou que, nos anos
30 e 40, "o samba e marcha, antes praticamente confinados aos morros e aos
subúrbios do Rio, conquistaram o País e todas as classes". Além de ter colocado o
samba e a marcha no mesmo barco (ambos têm histórias distintas), o nosso querido
mestre limitou-se ao confinamento geográfico, deixando de lado o social. O samba
nasceu e cresceu no Centro do Rio de Janeiro e não nos morros e nos subúrbios, por
onde se espalhou. O que havia (e há. Se não houvesse, Zuenir Ventura não teria
escrito A cidade partida) eram guetos sociais e raciais de limites o marcantes que
os moradores de uma casa de classe média na Rua do Riachuelo, por exemplo, não
tinham a menor idéia da vida que levavam os seus vizinhos amontoados num cortiço.
A Praça Onze era território de judeus e de negros. Quem conhece um episódio
envolvendo os dois povos naquele re-
P. 12
duzido território? O livro Recordando a Praça Onze, de Samuel Malamud, que trata,
nos mínimos detalhes, da ocupação da velha praça pela comunidade judaica, não faz
uma referência às manifestações negras. Não sei também de qualquer depoimento
dos velhos sambistas sobre o carnaval naquela área que tenha contado com a
participação de um personagem judeu, embora uns e outros fossem presenças
assíduas até dos mesmos bares.
Chega de chateá-lo, leitor. Afinal, já li o livro de Hermano Vianna e você ainda
não. O que posso assegurar é que, interpretando muito bem o tempo e o espaço que
percorreu e sendo bem escrito e bem informado, aprendi muito com ele.
SÉRGIO CABRAL
P. 13
APRESENTAÇÃO
Este livro é uma versão bastante modificada, principalmente em detalhes, mas
também em alguns ajustes estruturais, da tese de doutoramento que defendi, em
janeiro de 1994, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da UFRJ. Minha idéia inicial para publicação era transformá-la numa coleção
de ensaios muito pouco acadêmicos. Não houve tempo para realizar tal empreitada.
Mesmo assim fiz o possível, seguindo os sensatos conselhos de minha editora
Cristina Zahar, para facilitar a vida dos leitores que não estão interessados nos
debates teóricos da antropologia. Tentei concentrar toda a teoria e os assuntos
"paralelos" em Anexos. Alguma coisa, nada "terrível", permaneceu onde estava:
pequenas questões sem as quais a leitura perderia o sentido. Porém, mesmo com
essa nova organização, recomendo a leitura dos Anexos. O leitor pode se
surpreender com a possibilidade de a teoria ser tão divertida quanto a realidade.
Algumas pessoas que leram o texto em sua forma original, incluindo membros
de minha banca de doutoramento, fizeram comentários, às vezes em tom de crítica
arrasadora (mas sempre simpática), outras em tom elogioso, sobre o meu
"cariocacentrismo" ou o meu "gilbertofreyrecentrismo". Prevendo a repetição de
comentários desse tipo, devo defender-me desde já.
Primeiro: neste livro estou analisando um processo, o da nacionalização do
samba, que teve como palco principal o Rio de Janeiro. Essa cidade ocupou durante
muito tempo (talvez ainda ocupe, não pretendo entrar nesse debate) um lugar
P. 14
absolutamente central no simbolismo da unidade nacional brasileira. Não é meu
objetivo julgar se essa centralidade foi ou tem sido boa ou para o Brasil. Não tomo
partido do Rio, apenas constato sua importância para a invenção da idéia de "unidade
da pátria". Aliás, nem sou carioca. Sou nordestino, morei por todo o Brasil, vir para o
Rio não foi decisão minha. Mas talvez por isso mesmo, por ter vivido tanto tempo na
periferia desse "centro nacional", sei reconhecer a importância simbólica e a atração
referencial irresistível (mesmo que ela se concretize como repúdio) que o Rio exerce
naqueles que querem se pensar como brasileiros.
Segundo: não escrevi este livro para defender ou atacar Gilberto Freyre. A
utilização de sua trajetória, com todas as suas contradições, como exemplo principal
de relacionamento entre elite e cultura popular, é apenas fruto do reconhecimento de
seu papel central também incontestável no processo de criação da idéia de uma
unidade nacional brasileira, que pode ter no samba um símbolo de identidade. Repito:
não é objetivo deste livro julgar se a existência dessa "ideologia mestiça", que teve
em Gilberto Freyre seu mais ardoroso, esperto e talentoso porta-voz, é boa ou
para o Brasil. Apenas reconheço que o fato de essa "ideologia" existir entre nós, e de
ter tido repercussão marcante na cultura "nacional" (criando até mesmo uma cultura
nacionalizada), é um indício importante da originalidade do projeto de "civilização"
brasileira. [nota 1]
Devo ainda dizer que é uma surpresa para mim ter escrito um livro/tese que
gira em torno do samba. Não tinha exatamente essa intenção quando entrei para o
doutorado. A princípio, meu projeto era estudar o rock brasileiro, mas já centralizando
a análise na relação entre rock e cultura nacional brasileira. Devia obrigatoriamente
me referir, em algum momento da pesquisa, ao debate sobre o samba como "música
nacional por excelência". Acabei totalmente seduzido pelo samba, que tomou conta
de (quase) tudo. A sedução começou
P. 15
quando li a respeito de um encontro entre a turma de Gilberto Freyre e a turma de
Pixinguinha. A possibilidade de um encontro como esse ter sido realizado me
impressionou tanto (por motivos que ficarão claros adiante) que começo por sua
descrição.
Este é um livro de aprendiz. O samba, em si, não fazia parte da minha “linha
de estudo". Então, este é um livro de descoberta, de “iniciação". A “emoção" de quem
descobre algo pelo qual passa a se interessar muito é responsável pelo tom "afoito"
com que foi escrito. Espero que a leitura seja tão interessante quanto foi para mim a
pesquisa. Que os leitores se sintam estimulados a descobrir novas pistas que ajudem
a penetrar em regiões cada vez mais esotéricas do mistério do samba.
P. 17
AGRADECIMENTOS
Na qualidade de aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, contei, no período de conclusão dos créditos de doutorado, com bolsa de
estudos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
durante um ano e meio. O CNPq também me concedeu uma bolsa-sanduíche para o
desenvolvimento desta tese durante o ano de 1991 na Northwestern University,
Estados Unidos da América.
Agradeço a todos do PPGAS, principalmente pelo excelente clima intelectual
que tanto me incentiva desde os anos do mestrado. Aos amigos Luís Rodolfo Vilhena,
Celso Castro, Jayme Aranha, Miriam Goldenberg e Maria Laura Cavalcanti sou grato
pelo saudável intercâmbio de idéias estabelecido em tantos anos de convívio na sala
de aula do Museu Nacional. A Tânia Lúcia Soares e aos demais funcionários da
secretaria, e a Isabel e Cristina, ambas da biblioteca, por terem facilitado em muito
minha vida de doutorando. Aos membros da minha banca de doutoramento, Gilberto
Velho, Giralda Seyferth, Lilia Schwarcz, Eduardo Viveiros de Castro e Peter Fry,
agradeço os comentários estimulantes. Espero ter incorporado alguns deles nesta
nova versão.
Como disse, este trabalho teve início com um projeto para estudar o rock
brasileiro e acabou em samba. Fundamental para essa mudança de rumo foi o
período que passei na Northwestern University, onde tive oportunidade de observar
a distância (assumo o lugar-comum) a cultura bra-
P. 18
sileira. Nunca me senti tão "brasileiro", e esse sentimento foi imediatamente
transformado em material de pesquisa para o desenvolvimento da tese.
Manifesto aqui minha gratidão (e grande admiração) pelo professor Howard S.
Becker, meu orientador em solo norte-americano, que muito influenciou minha
maneira de pensar o Brasil e a antropologia. Howie, como exige ser chamado por
seus alunos, transformou-se também num de meus melhores amigos.
Outro guia importante no período em que passei na Northwestern foi o
professor Paul Berliner, que me introduziu nos mistérios da etnomusicologia e da
mbira, inebriante instrumento de percussão africano. Também sou muito grato aos
professores, alunos e funcionários do Departamento de Sociologia da Northwestern
University, ao qual fiquei vinculado institucionalmente.
Vários amigos fizeram todo o possível para que me sentisse em casa nos
Estados Unidos: Julian, Erik, Matthew, Arto, Doug, Tunji, Norman, Tetê, Glória,
Esther, Dianne. Com eles também debati muitas das idéias que depois se tornaram
fundamentais para esta obra.
Diversos outros amigos acompanharam de perto (muitas vezes sem ter
consciência disso) o desenvolvimento deste trabalho no Brasil, contribuindo para seu
resultado: Luiz, Barrão, Serginho, Sandra, Sílvia, Fausto, Caetano, Carlinhos, Branco,
Britto, Lau (vários deles atuaram até como meus informantes durante o período em
que eu ainda pensava estar fazendo uma tese sobre o rock brasileiro). Muito devo a
Regina, que leu algumas das primeiras versões do texto e fez sugestões que
poderão ser incorporadas integralmente através de outras pesquisas.
Finalmente, sou grato a meu orientador, professor Gilberto Velho, pelo estímulo
intelectual infalível, pela amizade inquebrantável, pelos prazos inevitavelmente
rígidos, pelos telefonemas de madrugada (dez horas da manhã para mim é
madrugada) e, principalmente, pelo pioneirismo com que instituiu os estudos da
complexidade na antropologia. Ficaria muito honrado em ver meu trabalho
considerado um pequeno desenvolvimento de algumas das idéias originais que
integram sua obra.
P. 19
1
O ENCONTRO
Em 1926, a coluna social "Noticiário elegante" publicada na Revista da Semana
registrou a primeira visita que um jovem antropólogo pernambucano, o "Doutor"
como fez questão de frisar o colunista Gilberto Freyre, fez ao Rio de Janeiro. Ele
conheceu a capital do Brasil aos 26 anos, depois de ter realizado seus estudos
universitários nos Estados Unidos e de ter visitado rios países europeus. Tal fato,
a possibilidade de conhecer o "Primeiro Mundo" antes da "principal" cidade de seu
país, é apontado várias vezes, e quase com orgulho, em vários trechos de seu diário
"de adolescência e primeira mocidade", publicados no livro Tempo morto e outros
tempos. Sua formação intelectual não dependeria em nada do "Sul" brasileiro.
No mesmo diário ficou registrado um acontecimento singular da passagem de
Gilberto Freyre pelo Rio de Janeiro:
Sérgio e Prudente conhecem de fato literatura inglesa moderna, além
da francesa. Ótimos. Com eles saí de noite boemiamente. Também
com Villa-Lobos e Gallet. Fomos juntos a uma noitada de violão, com
alguma cachaça e com os brasileiríssimos Pixinguinha, Patrício,
Donga (Freyre, 1975: 189).
O estilo é telegráfico. É preciso esclarecer, para dar uma idéia da importância
histórica dessa pouco lembrada "noitada de violão", quem são as pessoas que dela
participaram. Sérgio é o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Prudente é o pro-
P. 20
motor Prudente de Moraes Neto, também conhecido como jornalista sob o
pseudônimo (na verdade, seus dois primeiros nomes) de Pedro Dantas. Villa-Lobos
é o compositor clássico Heitor Villa-Lobos. Gallet é o compositor clássico e pianista
Luciano Gallet. Patrício é o sambista Patrício Teixeira. Donga e Pixinguinha ficaram
imortalizados com esses apelidos no panteão da música popular brasileira.
O encontro juntava, portanto, dois grupos bastante distintos da sociedade
brasileira da época. De um lado, representantes da intelectualidade e da arte erudita,
todos provenientes de "boas famílias brancas" (incluindo, para Prudente de Moraes
Neto, um avô presidente da República). Do outro lado, músicos negros ou mestiços,
saídos das camadas mais pobres do Rio de Janeiro. De um lado, dois jovens
escritores, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que iniciavam as pesquisas
que resultaram nos livros Casa-grande e senzala, em 1933, e Raízes do Brasil, em
1936, fundamentais na definição do que seria brasileiro no Brasil. À frente deles,
Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira definiam a música que seria, também a partir
dos anos 30, considerada como o que no Brasil existe de mais brasileiro. Ouvindo os
depoimentos dos participantes, parecia natural, evidente, que tal encontro ocorresse,
que ambos os lados se sentissem "em casa" (o cordial Brasil mestiço) quando
reunidos. Como falha, Pedro Dantas se lembra de que, "no final da noite, Patrício
lamentava apenas a ausência de algumas cabrochas para a brincadeira ser completa"
(Dantas, 1962: 197).
Essa "noitada de violão" pode servir como alegoria, no sentido carnavalesco
da palavra, da "invenção de uma tradição", aquela do Brasil Mestiço, onde a música
samba ocupa lugar de destaque como elemento definidor da nacionalidade. A
naturalidade do episódio não nos deve enganar: seu aspecto de fato corriqueiro foi
obviamente construído, como também acontece com acontecimentos narrados em
mitos fundadores de todas as tradições. O fato de tal encontro não se ter trans-
P. 21
formado em mito, e tampouco ser lembrado como algo extraordinário pelos
participantes e seus biógrafos, mostra que se acreditava realmente que uma
reunião como aquela era algo banal, coisa de todo dia, indigna de um registro mais
cuidadoso.
Se observarmos os bastidores dessa noitada, veremos como muitos outros
acontecimentos e personagens (incluindo grupos sociais) colaboraram para sua
bem-sucedida e harmoniosa aparência, e mesmo para a naturalidade demonstrada
pelos que dela participaram.
Comecemos por um rápido panorama da cidade onde se deu o episódio, o Rio
de Janeiro, metrópole que já contava com mais de um milhão de habitantes desde o
final dos anos 10. Em 1926, o mandato presidencial do mineiro Artur Bernardes,
quase todo sustentado pela decretação de estado de sítio, chegava ao fim. Seguindo
a tradição oligárquica que determinou os rumos políticos da República Velha, o
governo passaria, e passou, no dia 15 de novembro, às mãos de um "paulista" (que
na verdade era do estado do Rio, mas fizera carreira em São Paulo), Washington
Luís. Sinais que prenunciavam a Revolução de 30, mostrando o esgotamento das
manobras da oligarquia cafeeira, que detinha o monopólio do poder, eram mais que
visíveis: dos levantes tenentistas no Rio e em São Paulo à Coluna Prestes que
percorria o interior do país.
Nos anos Artur Bernardes, o Rio de Janeiro vivia uma espécie de ressaca das
reformas urbanísticas que tiveram início com a prefeitura de Pereira Passos (1902-
1906) e continuaram até, como sua última obra de monta, a destruição do morro do
Castelo para a construção dos pavilhões da exposição comemorativa do centenário
da independência brasileira. Nesse meio tempo, foi tomando forma mais que isso:
foi tornando-se possível a divisão entre uma Zona Sul e uma Zona Norte, o que
ainda hoje é determinante na vida sociocultural da cidade.
Até Pereira Passos, o Centro do Rio de Janeiro misturava de tudo: comércio;
indústrias de pequeno porte; repartições públicas; residências milionárias ao lado dos
mais pobres cortiços. A partir principalmente da abertura da Avenida Central, hoje Rio
Branco, com a destruição dos cortiços, o Centro
P. 22
foi adquirindo a característica atual de lugar de trabalho. Os pobres foram expulsos
para novos bairros da Zona Norte ou para favelas espalhadas por toda a cidade. Os
ricos, contando com o túnel novo ligando Botafogo a Copacabana, começam a
povoar as praias da Zona Sul.
A Avenida Central se transformou na vitrina da cidade. Por um tempo,
também ficaram situados os principais cinemas e cafés cariocas. Os jornais
comentam que o Rio “civiliza-se". A noção de civilização, nessa época, se confundia
com uma idéia de conquista da modernidade. O Rio declarava-se moderno ao mesmo
tempo em que o modernismo artístico invadia nossas praias. Quando Gilberto Freyre
chega ao Rio, em 1926, quatro anos depois da Semana de 22 de São Paulo, o
primeiro "levante" dos artistas modernistas brasileiros, o cinema carioca Trianon
anunciava a estréia de mais um filme da Paramount, intitulado A epidemia do jazz
[NOTA 1], com a seguinte advertência: "Não se assustem. Pode ser que o encontrem
desconchavado. É o futurismo. Mas garantimos que gostarão, e que lhe acharão de
sabor todo especial." O anúncio, publicado nos jornais, também dizia orgulhoso que
o filme, dedicado a Marinetti, seria acompanhado por um prólogo “também futurista"
protagonizado pela atriz Iracema de Alencar, "estrella da Companhia de Comédia do
Theatro Casino", que abordava "o absurdo, o ilógico e o irreverente". A pré-cultura de
massa carioca não demorou muito para carnavalizar os ensinamentos da vanguarda
paulista.
Gilberto Freyre olha para todas essas transformações com a estranha nostalgia
de um Rio que o conheceu. Suas críticas mordazes se dirigiam aos novos edifícios,
aos novos bulevares e à destruição dos morros. Lemos em seu diário: "Diante de
edifícios como o do Elixir tem-se a impressão de pilhérias de arquitetos a zombarem
dos novos ricos que lhes
P. 23
encomendam as novidades. Um horror." E ainda: "A nova Câmara dos Deputados
chega a ser ridícula. Aquele Deodoro à romana é de fazer rir um frade de pedra"
(Freyre, 1975:183). Gilberto Freyre condenava a Avenida Central, elogiando ruas
estreitas como a do Ouvidor, cheias de sombra e portanto mais adequadas ao calor
tropical. E fazia a apologia do morro da Favela como um exemplo de "restos do Rio
de antes de Passos, pendurados por cima do Rio novo" (Freyre, 1979, vol. II: 335).
Mas voltemos à vida boêmia de Gilberto Freyre nessa sua primeira visita a um
Rio irremediavelmente novo. Vale a pena entrar nos detalhes da organização de
sua "noitada" com "os brasileiríssimos Pixinguinha, Donga e Patrício", mostrando
como uma extensa rede de relações entre grupos sociais e indivíduos diversos e
de diversos pontos do Rio de Janeiro foi atualizada para que tal encontro pudesse
ser realizado.
Em outro trecho de seu diário, Gilberto Freyre elogia Sérgio Buarque de
Holanda e Prudente de Moraes Neto, naquela época editores da revista Estética, pelo
conhecimento da literatura moderna inglesa e francesa.
Foi o paulista Sérgio Buarque de Holanda quem apresentou, "antes da semana
de 22", a arte moderna para o carioca Prudente de Moraes Neto. Os dois se
conheceram quando estudavam na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Essas
informações estão no livro de memórias A alma do tempo, de Afonso Arinos de Melo
Franco, colega do Colégio Pedro II (a instituição secundarista mais famosa da época,
também freqüentada por filhos da elite carioca) de Prudente de Moraes Neto, em
quem identificava desde cedo um "gosto pelo raro" (Franco, 1979, vol. I: 65). Foi esse
interesse pelo raro, mais especificamente pela modernidade literária européia, que
aproximou a dupla da revista Estética daquele jovem e ainda desconhecido, mas
extremamente presunçoso, antropólogo pernambucano.
Prudente de Moraes Neto revela, no texto "Ato de presença" (publicado na
coletânea Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte), que a primeira vez que
ouvira falar de Gilberto Freyre foi através de uma carta do futuro folclorista Luís da
Câmara Cascudo (o qual iria se formar na Faculdade de Direito de Recife em 1928)
para a redação da Estética que
P. 24
trazia o recorte de um artigo sobre James Joyce, assinado por Freyre e publicado em
jornal do Recife (ver Dantas, 1972).
A versão de Sérgio Buarque de Holanda sobre esses acontecimentos,
publicada em seu artigo "Depois da 'Semana'", inclui outros detalhes, além de a
autoria da carta não ser lembrada com certeza:
Algum tempo depois [de a revista Estética ter anunciado a futura
publicação de um artigo sobre James Joyce], chega-me às mãos com
uma carta do norte, assinada por José Lins do Rego (ou seria Luís da
Câmara Cascudo?), recorte de certo artigo publicado em Pernambuco
sobre Ulisses. O nome do articulista era tão desconhecido de mim, ou
qualquer de nós, como o do próprio missivista. Não guardo o artigo,
mas tenho a tida lembrança da passagem onde referência a
críticos que, sombra das bananeiras cariocas", se metem a
anunciar artigo sobre o dificílimo Joyce. (Holanda, 1979: 277).
As palavras exatas de Gilberto Freyre, em artigo publicado no Diário de
Pernambuco em 11/12/24, eram as seguintes: "Até sob as bananeiras do Rio se
vai pronunciando o inglês fácil do nome Joyce. O inglês de suas obras é que será
difícil de soletrar" (Freyre, 1994: 75). As palavras irônicas acabaram seduzindo os
modernistas-sob-bananeiras. Sérgio Buarque de Holanda conta que gostou tanto do
artigo que decidiu republicá-lo na Estética, desistindo de escrever sua crítica de
Joyce. O que acabou não acontecendo por causa do fechamento da revista.
Teve início assim, por motivos "joyceanos", uma amizade interestadual,
intermodernismos. Os cariocas ficaram surpreendidos em encontrar texto o up-to-
date na imprensa provinciana e começaram imediatamente a se corresponder com o
autor. Portanto, a relação de amizade o foi produto de um interesse pela cultura
popular brasileira, muito menos por sua vertente "regionalista".
Mas tal interesse logo veio à tona. Ao chegar no Rio de Janeiro em 1926,
Gilberto Freyre, "entre as suas curiosidades, trazia a de um contato direto com a
música popular carioca, seus autores e executantes, especialmente negros" (Dantas,
1962: 195). Nessa época, os músicos do Rio já excursionavam
P. 25
pelo país com grande sucesso. Embora tivesse perdido as apresentações que o grupo
carioca Oito Batutas realizara em Recife em 1921, pois estava estudando em Nova
York, Freyre pode ter ouvido falar da influência marcante que essa visita exerceu
entre os músicos pernambucanos.
Para começar, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto
levaram Gilberto Freyre ao espetáculo Tudo preto, apresentado pela Companhia
Negra de Revista, a primeira experiência teatral brasileira realizada com artistas
negros (o único branco era o empresário), incluindo o diretor De Chocolat e o maestro
Pixinguinha. Tudo preto causou furor naquela temporada teatral carioca. Segundo o
jornal Correio da Manhã (17/8/26), o espetáculo era "a mais alta novidade theatral do
momento", assistida com "magnífico prazer espiritual". O jornal A Noite (2/8/26) usou
o adjetivo "estrondoso" e comentava o atropelo da "multidão" na noite de estréia.
Nenhum dos jornalistas e críticos se espantou com a presença exclusiva de negros
em cena, todos aplaudiram a iniciativa, como se nada de realmente extraordinário
estivesse acontecendo. Mas a publicidade da Companhia Negra de Revista não podia
conter o orgulho: "a vitória da raça negra no theatro alegre". Uma vitória também de
miss Mons "excêntrica franceza", segundo o Correio da Manhã que executava
"um authentico batuque africano".
Gilberto Freyre apreciou o batuque de miss Mons, mas ficou entusiasmado
mesmo foi com a música de Pixinguinha e quis conhecer o maestro do nascente
samba carioca em outra situação, mais íntima, sem o black-tie do palco de Tudo preto.
Seu desejo foi satisfeito por caminhos tortuosos. Prudente de Moraes Neto, por sorte,
conhecia Donga, companheiro de Pixinguinha nos Oito Batutas, que lhe fora
apresentado pelo poeta vanguardista francês Blaise Cendrars, em sua passagem
pelo Rio de Janeiro em 1924. Um estrangeiro teria chamado a atenção de intelectuais
cariocas para a música popular de sua cidade.
Em 1926, tentando organizar a noitada para Gilberto Freyre, Prudente de
Moraes Neto encontrou Donga acompanhando a banda Carlito Jazz, que tocava na
temporada da companhia de teatro de revista francesa Bataclan, "o alegre e brejeiro
bando de mme. Rasimi", que no Rio apresentava os espetá-
P. 26
culos C'est Paris, Au remir, e Revue de la revue. Marcaram o encontro para um café
na Rua do Catete, quase fronteiro à Faculdade de Direito", que fechou suas portas
especialmente para a ocasião. Prudente de Moraes Neto diz que os músicos
Pixinguinha, Donga, Sebastião Cirino (autor de Cristo nasceu na Bahia, o samba de
maior sucesso daquela temporada), [NOTA 2] Patrício Teixeira e Nelson (não
menciona o sobrenome, mas devia ser Nelson Alves, que tocou cavaquinho com os
Oito Batutas) compareceram.
No relato de Prudente de Moraes Neto sobre o episódio não é mencionada a
presença de Villa-Lobos, como aparece no diário de Gilberto Freyre. Talvez tenha
sido esquecimento. Talvez um lapso do pernambucano, que gostava de identificar a
boêmia afro-brasileira-carioca com a figura nacionalista (e também boêmia e popular
entre os sambistas da cidade) de Villa-Lobos, como demonstra este seu depoimento
de décadas depois:
Meu amigo Assis Chateaubriand iniciou-me em vários brasileirismos
cariocas e Estácio Coimbra, noutros. Até que, com Prudente de
Moraes Neto, Sérgio Buarque de Holanda e Jaime Ovalle, me iniciei
noutra espécie desses brasileirismos: no Rio por assim dizer afro-
carioca e noturno. O Rio de Pixinguinha e Patrício. O Rio ainda de
violões, de serenatas, de mulatas quase coloniais que à autenticidade
brasileira acrescentavam, como as iaiás brancas de Botafogo e as
sinhás de Santa Teresa, uma graça que eu não vira nunca nem nas
mulatas nem nas iaiás brancas do Norte. Era a graça carioca. Era o
Rio de Villa-Lobos (citado em Carvalho, 1988: 94).
O regionalista Gilberto Freyre estava sendo seduzido pela cultura popular
carioca. Não ele: todo o Brasil, principalmente a partir dos anos 30, passa (ou é
obrigado) a reconhecer no Rio de Janeiro os emblemas de sua identidade de povo
"sambista".
P. 27
Uma outra referência ao inusitado encontro aparece no artigo, publicado por
Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco em 19/09/1926, sugestivamente intitulado
"Acerca da valorização do preto". O tom da narrativa jornalística é um pouco diferente
daquele adotado no diário. Gilberto Freyre, em seus artigos de jornal daquela época,
não perdia a oportunidade de criar uma polêmica e de advogar idéias que só depois
seriam desenvolvidas em livros como Casa-grande e senzala. Seu estilo é quase
sempre militante, disposto a comprar brigas com os leitores, caso necessário. Aqui
estão suas palavras:
Ontem, com alguns amigos Prudente, Sérgio passei uma noite
que quase ficou de-manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em
flauta coisas suas de carnaval, com Donga, outro mulato, no violão, e
o preto bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente
brasileira.
Ouvindo os três sentimos o grande Brasil que cresce meio-tapado
pelo Brasil oficial e postiço e ridículo de mulatos a quererem ser
helenos (...) e de caboclos interessados (...) em parecer europeus e
norte-americanos; e todos bestamente a ver as coisas do Brasil (...)
através do pince-nez de bacharéis afrancesados (Freyre, 1979: 330).
De novidade, com relação à narrativa do diário, temos uma classificação racial
dos músicos, de mulatos a pretos bem pretos, e o reaproveitamento da teoria dos
"dois Brasis" antagônicos, popularizada principalmente por Euclides da Cunha.
Existiría então, para Gilberto Freyre, um Brasil "oficial e postiço e ridículo" que "tapa"
o outro Brasil, este real, a ser "valorizado" junto com o preto.
O artigo, a propósito, começa com a afirmação: "Há no Rio um movimento de
valorização do negro." As duas causas apontadas para o surgimento desse
movimento o muito interessantes. A primeira seria a "influência de Blaise Cendrars,
que vem agora passar no Rio todos os carnavais". Comentarei essa influência de
Cendrars (e as representações de intelectuais brasileiros sobre essa influência) no
capítulo sobre a relação de músicos populares e intelectuais moder-
P. 28
nistas brasileiros com o modernismo internacional, sobretudo francês. A segunda
causa do "movimento de valorização do negro" seria mais abstrata: a "tendência para
a sinceridade", apontada por Prudente de Moraes Neto em artigo para a revista
Estética, que "está fazendo o brasileiro ser sincero num ponto de reconhecer-se
penetrado da influência negra" (Freyre, 1979: 329).
No movimento de valorização do negro, na conquista da sinceridade, a música
popular seria um elemento fundamental. Gilberto Freyre adota o estilo de manifesto:
"pela valorização das cantigas negras, das danças negras, misturadas a restos de
fados; e que são talvez a melhor coisa do Brasil" (Freyre, 1979: 329).
A idéia, advogada também por Gilberto Freyre, de um Brasil postiço que tapa
o Brasil autêntico tem uma semelhança curiosa com o que pode ser visto como ponto
de partida para este livro, levando-me a valorizar o encontro descrito acima: trata-se
do grande mistério na história do samba.
Quando falo, talvez um tanto forçadamente, em grande mistério, não me refiro
aos problemas que muitos pesquisadores da música popular brasileira gostam de
debater: a origem etimológica da palavra samba; o local de nascimento do samba; a
identidade dos primeiros sambistas; ou mesmo a lista completa dos compositores de
Pelo telefone, tido como o "primeiro" samba. Penso especificamente na
transformação do samba em ritmo nacional brasileiro, em elemento central para a
definição da identidade nacional, da "brasilidade".
Hoje, em praticamente todas as tentativas de se escrever a história do samba,
é reproduzida uma mesma narrativa de descontinuidade, como se os sambistas
tivessem passado por dois momentos distintos em sua relação com a elite social
brasileira e com a sociedade brasileira de forma geral. Num primeiro momento, o
samba teria sido reprimido e enclausurado nos morros cariocas e nas "camadas
populares". Num segundo momento, os sambistas, conquistando o carnaval e
P. 29
as dios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em sua totalidade, mantendo
relações intensas com a maior parte dos segmentos sociais do Brasil e formando uma
nova imagem do país "para estrangeiro (e para brasileiro) ver". está o grande
mistério da história do samba: nenhum autor tenta explicar como se deu essa
passagem (o que a maioria faz é apenas constatá-la), de ritmo maldito à música
nacional e de certa forma oficial. É em torno desse mistério, que está no cerne do
encontro da turma de Gilberto Freyre (representando aqui problematicamente,
como em toda representação a elite) com a turma de Pixinguinha (representando
o povo), que vai ser construído este livro.
Um bom resumo da história da transformação do samba em música nacional,
de como essa passagem tem sido descrita por vários autores, é o seguinte trecho do
"Post Scriptum" de Antônio Cândido a seu artigo "A revolução de 1930 e a cultura":
(...) na música popular ocorreu um processo (...) de "generalização" e
"normalização", que a partir das esferas populares, rumo às
camadas médias e superiores. Nos anos 30 e 40, por exemplo, o
samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e
subúrbios do Rio, conquistaram o País e todas as classes, tornando-
se um pão-nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos
20 um mestre supremo como Sinera de atuação restrita, a partir de
1930 ganharam escala nacional nomes como Noel Rosa, Ismael
Silva, Almirante, Lamartine Babo, João da Bahiana, Nássara, João de
Barro e muitos outros. Eles foram o grande estímulo para o triunfo
avassalador da sica popular nos anos 60, inclusive de sua
interpenetração com a poesia erudita, numa quebra de barreiras que
é dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea e
começou a se definir nos anos 30, com o interesse pelas coisas
brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário (Cândido, 1989:
198).
Um bom exemplo de como os historiadores e cronistas do samba abordam o
assunto, e acabam concordando com Antônio Cândido, pode ser encontrado na
imprescindível e já clássica coletânea de artigos de Jota Efegê, Figuras e coisas da
P. 30
música popular brasileira: "Naqueles idos de 1920 até quase 30, o samba ainda era
espúrio. Era tido e havido como próprio de malandros, como cantoria de vagabundos.
E a polícia, na sua finalidade precípua de zelar pela observância da boa ordem,
perseguia-o, não lhe dava trégua" (Efegê, 1980, vol. 2: 24). Em outro artigo, vem o
outro lado da moeda, a resistência: "Era assim a época heróica, valente, não se
deixando intimidar. Sua gente espancada mas persistindo sempre", ignorando "o
desprezo da burguesia". Mas "o samba mesmo assim venceu. Formou suas escolas
e deslumbrou patrícios e estrangeiros" (Efegê, 1980, vol. 1: 122). Como sempre, não
é analisada essa passagem misteriosa, da perseguição da polícia à vitória.
Na antropologia, a história do samba é também freqüentemente resumida a
partir das mesmas idéias contidas na análise de Antônio Cândido ou nos comentários
de Jota Efegê, sendo geralmente aceita a visão de que o samba ficou um bom tempo
restrito aos "morros" (ou favelas), depois conquistando o gosto musical de uma
elite até então distante da cultura popular afro-brasileira. Peter Fry afirma que
originalmente, quando o samba era produzido e consumido pelo povo do morro, era
severamente reprimido pela polícia e forçado a se esconder no candomblé, então
considerado ligeiramente mais aceitável. Com o tempo, entretanto, a importância
crescente do carnaval provocou a transformação da repressão em apoio manifesto"
(Fry, 1982: 51). Ruben Oliven retoma as palavras de Peter Fry em artigo de 1985: "o
samba, outro 'legítimo' símbolo da cultura brasileira era, no começo, produzido e
consumido nos 'morros' do Rio de Janeiro e reprimido com violência pela polícia. Foi
com a crescente importância do carnaval que o samba passou a ser consumido pelo
resto da população brasileira e se transformou na música brasileira por excelência"
(Oliven, 1985: 12).
Como é possível perceber a partir das citações anteriores, o mistério do samba
está ligado a outros mistérios brasileiros, tão centrais como o do próprio samba para
o debate sobre a definição da identidade nacional no Brasil. Antônio Cândido se refere
ao "interesse pelas coisas brasileiras" que surgiu nos anos revolucionários de 1930.
O que eram essas coisas brasileiras? Quem definia o que era realmente brasileiro e,
portanto, digno de interesse? Como uma elite que até então ignorava
P. 31
o brasileiro passa a se interessar e, mais do que se interessar, valorizar "coisas" como
o samba, a feijoada (que pouco a pouco se transforma em prato nacional,
apresentado com orgulho para os estrangeiros que aqui aportam) e a mestiçagem
(principalmente entre brancos e negros)?
O mistério da mestiçagem (incluindo a valorização do samba como música
mestiça) tem, para os estudos sobre o pensamento brasileiro, a mesma importância
e a mesma obscuridade do mistério do samba para a história da música popular no
Brasil. Como pôde um fenômeno, a mestiçagem, até então considerado a causa
principal de todos os males nacionais (via teoria da degeneração), "de repente"
aparecer transformado, sobretudo a partir do sucesso incontestável e bombástico de
Casa-grande e senzala, em 1933, na garantia de nossa originalidade cultural e
mesmo de nossa superioridade de "civilização tropicalista"? Não é arbitrária a
tentativa de ligar a "generalização" (para continuar citando Antônio Cândido) do
samba com o êxito de Gilberto Freyre no panorama intelectual brasileiro. Tudo fazia
parte desse interesse "repentino" pelas coisas brasileiras. Como veremos adiante,
para o caso de Casa-grande e senzala, essa reviravolta vai ser descrita quase como
uma iluminação de seu autor. Gilberto Freyre fala de "uma espécie de cura
psicanalítica" de todo o país; Gilberto Amado fala em "distabuzação". Todas essas
expressões tendem a ressaltar o caráter súbito, descontínuo, de descoberta e
valorização daquilo que seria "verdadeiramente brasileiro", daquilo que antes estava
"tapado" pelo Brasil postiço. Todas elas fazem aumentar o "mistério" do tema deste
livro.
Para torná-lo ainda mais denso, podemos nos perguntar, junto com Peter Fry,
"por que é que no Brasil os produtores de símbolos nacionais e da cultura de massa
escolheram itens culturais produzidos originalmente por grupos dominados? E por
que isto não ocorreu nos EUA e em outras sociedades capitalistas?" (Fry, 1982: 52).
Essas perguntas receberam diversas respostas. Vou citar apenas duas delas,
propostas pela antropologia. O próprio Peter Fry lançou a seguinte hipótese: "a
conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma
situação de dominação racial mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la"
(Fry, 1982: 52/53). Roberto da Matta tem outra resposta: a descons-
P. 32
trução do "mito" da mestiçagem a partir da constatação da natureza "fortemente
hierarquizada" da sociedade brasileira. Não haveria "necessidade de segregar o
mestiço, o mulato, o índio e o negro, porque as hierarquias asseguram a
superioridade do branco como grupo dominante" (Da Matta, 1981: 75). Daí (e assim
Da Matta se aproxima de Peter Fry) uma preocupação com a intermediação e o
sincretismo: a síntese impediria "a luta aberta ou o conflito pela percepção nua e crua
dos mecanismos de exploração social e política" (Da Matta, 1981: 83).
Se os argumentos de Roberto da Matta podem sugerir explicações para a
inexistência de uma necessidade premente de segregar "o mestiço, o mulato, o índio
e o negro", eles não elucidam totalmente o forte investimento sociocultural que leva a
identificar as "coisas brasileiras" com as coisas mestiças, principalmente aquelas de
origem afro-brasileira, ou que levou a turma de Gilberto Freyre a se encontrar com a
turma de Pixinguinha num momento tão importante para a formação da idéia de um
Brasil "destapado", o "afloramento" do Brasil autêntico. Uma coisa é a aceitação
no meio dessa autenticidade do samba, outra é o culto do samba, valorizado como
símbolo de nossa originalidade cultural. Mesmo Thomas Skidmore, em artigo recente
que tenta provar a inexistência de grandes diferenças entre as atitudes raciais de
brasileiros e americanos (com a apresentação de muitos dados quantitativos que
comprovam a existência de um violento racismo brasileiro), reconhece que "a
persistente negrofobia dos brancos norte-americanos" seria "um traço relativamente
ausente na história brasileira" (Skidmore, 1992: 61). Além disso, "a contínua realidade
de miscigenação na América inglesa [foi] transformada pelos homens brancos em
uma ameaça psíquica" (Skidmore, 1992: 61). No Brasil, sabemos como a "realidade
da miscigenação" virou tema de orgulho nacional para autores como Gilberto Freyre.
Essas hipóteses e comparações serão discutidas, no decorrer deste livro, a
partir de uma análise, a mais detalhada possível, do processo de transformação do
samba de "símbolo étnico" (se é que algum dia chegou a ser um símbolo étnico) em
símbolo nacional. Uma atenção especial será dedicada, como a descrição do
encontro de Gilberto Freyre e Pixingui-
P. 33
nha deixou entrever, às relações entre, de um lado, membros da elite e de grupos
intelectuais brasileiros e, de outro, a cultura popular, principalmente em seus aspectos
musicais.
Não é nosso objetivo aqui fazer uma antropologia do samba; afinal, não se
trata de um livro sobre o samba, tampouco de antropologia musical: a música aparece
aqui como um campo privilegiado onde é possível perceber determinados aspectos
do debate sobre a definição da identidade brasileira e suas seqüelas. Este livro pode
ser visto como um estudo das relações entre cultura popular (incluindo a definição do
que é popular no Brasil) e construção da identidade nacional. A escolha do samba
como exemplo principal e campo de trabalho é estratégica, mas deve ser considerada
apenas uma escolha entre dezenas de outras possíveis. Poderíamos usar a história
do rock brasileiro como fonte principal de nossas reflexões. Mas o samba, por sua
característica de "pão-nosso cotidiano de consumo cultural" (discutirei que "nosso" é
esse nos próximos capítulos) e de "música brasileira por excelência", ocupa lugar
central em todo esse debate sobre a brasilidade.
São muitos os intelectuais que reconhecem a importância da música popular
no debate sobre a cultura brasileira. vimos como Antônio Cândido se referiu ao
"triunfo avassalador da música popular nos anos 60" gerando um dos "fatos mais
importantes de nossa cultura contemporânea". O modernista Mário de Andrade
escreveu, em 1939, que a música popular tornava-se "a criação mais forte e a
caracterização mais bela da nossa raça" (Andrade, M., 1965). Gilberto Freyre chegou
a dizer que:
A música vem sendo a arte por excelência brasileira no sentido de ser,
desde os começos nacionais e a coloniais do Brasil, aquela
dentre as belas-artes em que de preferência se tem manifestado o
espírito pré-nacional e nacional da gente luso-americana: da
aristocrática e burguesa tanto quanto plebéia ou rústica (Freyre, 1974:
104).
A música, portanto, mais que as outras artes, é descrita como tendo essa
capacidade de, como dizia Antônio Cândido, realizar uma "quebra de barreiras",
servindo de elemento unificador ou de canal de comunicação para grupos bastante
di-
P. 34
versos da sociedade brasileira. Não interessa tanto, aqui, discutir a veracidade dessa
descrição; basta apontar sua importância para vários intelectuais que discutem
aspectos da nossa identidade nacional. É levando em conta essa importância que a
história da música popular, principalmente do samba, vai ser discutida nos próximos
capítulos deste livro.
Este livro não pretende desvendar o mistério do samba. Meu objetivo seria
mais bem descrito como um deslocamento desse mistério. Pretendo mostrar como a
transformação do samba em música nacional não foi um acontecimento repentino,
indo da repressão à louvação em menos de uma década, mas sim o coroamento de
uma tradição secular de contatos (o encontro descrito acima é apenas um exemplo)
entre rios grupos sociais na tentativa de inventar a identidade e a cultura popular
brasileiras. Não é minha intenção negar a existência da repressão a determinados
aspectos dessa cultura popular (ou dessas culturas populares), mas apenas mostrar
como a repressão convivia com outros tipos de interação social, alguns deles até
mesmo contrários à repressão. Vou tentar mapear as relações entre os primeiros
sambistas cariocas e outros grupos sociais (brasileiros e estrangeiros), mostrando
como foram pavimentados os caminhos que levaram à aceitação do samba por
grande parte da população brasileira, ou pelo menos à sua definição (quase oficial,
pois envolve também esforços do Estado brasileiro) como a música brasileira por
excelência. Vou tentar também mapear alguns dos debates travados entre
intelectuais e membros da elite brasileira da época, principalmente aqueles (sobre a
mestiçagem, sobre o povo, sobre a unidade nacional, por exemplo) que levaram à
aproximação de algumas de suas facções internas (pois a elite, como o povo, não é
considerada neste livro como um grupo homogêneo) com os músicos populares que
estavam inventando o samba.
P. 35
O processo histórico-antropológico a ser analisado prioritariamente neste livro
pode ser pensado como um exemplo de "invenção da tradição" ou de "fabricação da
autenticidade" brasileiras, para usar expressões sustentadas, respectivamente, por
Eric Hobsbawn e Richard Peterson (ver Hobsbawn, 1990; Peterson, 1992). O
significado dessas expressões será discutido adiante, mas devo adiantar alguns
pontos.
Estou interessado no debate sobre a autenticidade do samba, mas por motivos
pouco "autênticos". Subscrevo as palavras de Richard Peterson sobre o assunto,
pinçadas de seu artigo sobre a invenção da country music norte-americana: "a
autenticidade não é um traço inerente ao objeto ou ao acontecimento que se declara
autêntico; trata-se de fato de uma construção social que deforma parcialmente o
passado" (Peterson, 1992: 4). Portanto a transformação do samba em música
nacional nunca seentendida, aqui, como uma descoberta de nossas verdadeiras
"raízes" antes escondidas, ou "tapadas", pela repressão, mas sim como o processo
de invenção e valorização dessa autenticidade sambista.
Também não considero a cultura popular como propriedade ou invenção de
um único grupo social. Concordo com as seguintes palavras de Néstor Garcia
Canclini: "O popular se constitui em processos híbridos e complexos, usando como
signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações"
(Canclini, 1992: 205). Levando isso em conta, não penso ser uma afirmação arriscada
dizer que o samba não é apenas a criação de grupos de negros pobres moradores
dos morros do Rio de Janeiro, mas que outros grupos, de outras classes e outras
raças e outras nações, participaram desse processo, pelo menos como "ativos"
espectadores e incentivadores das performances musicais. Por isso serão
privilegiadas, aqui, as "relações exteriores" ao mundo do samba.
O livro está construído em torno de um único acontecimento, o encontro entre
sambistas e intelectuais descrito acima. Os capítulos seguintes serão
desenvolvimentos dos vários aspec-
P. 36
tos desse encontro, de como foi possível e quais foram suas "conseqüências" mais
imediatas, que não teve "grandes" conseqüências, nem mesmo na obra de seus
participantes. Talvez tenha sido isso o que mais me atraiu nessa esquecida noitada
de samba: o fato de poder ter sido esquecida, de ser apenas um encontro a mais,
relegado à terrível banalidade de um acontecimento qualquer, desses que nunca
passarão à História.
Apesar da "banalidade", o episódio é um ótimo ponto de partida para se pensar
a invenção da tradição nacional-popular brasileira, pois nele figuram os principais
elementos a serem analisados: as relações entre intelectuais/elite e "populares"; a
valorização do popular; a criação de uma nova identidade nacional; as teorias da
mestiçagem racial e cultural; a "descoberta" do Brasil pelos modernistas; a "unidade"
da pátria construída a partir do Rio de Janeiro e suas relações com o "regionalismo";
as várias vertentes do discurso nacionalista; o samba como "a melhor coisa do Brasil".
Comecemos pela relação entre a elite brasileira e a música popular.
P. 37
2
ELITE BRASILEIRA E MÚSICA POPULAR
O encontro descrito no capítulo anterior não foi um fato extraordinário, único
ou inédito na história da música popular no Brasil. Era apenas mais uma reunião de
intelectuais e músicos das camadas populares, dentro da longa tradição de relações
entre vários segmentos da elite brasileira (fazendeiros, políticos, aristocratas,
escritores etc.) com as várias manifestações da musicalidade afro-brasileira.
Essa história é antiga. Seus primeiros registros mais claros começam com a
invenção e popularização da modinha e do lundu, no final do século XVIII, quando o
Brasil ainda era colônia portuguesa. O viajante Thomas Lindley narra, em livro
lançado em 1802, como eram as festas em Salvador naquela virada de século:
(...) em algumas casas de gente mais fina ocorriam reuniões
elegantes, concertos familiares, bailes e jogos de cartas. Durante os
banquetes e depois da mesa bebia-se vinho de modo fora do comum,
e nas festas maiores apareciam guitarras e violinos, começando a
cantoria. Mas pouco durava a música dos brancos, deixando lugar à
sedutora dança dos negros, misto de coreografia africana e
fandangos espanhóis e portugueses (citado em Pinho, 1959: 27).
Esse retrato nos mostra uma elite baiana impaciente com as regras da
elegância européia e que basta ficar um pouco embriagada para "cair na folia" negra.
Negra, mas já misci-
P. 38
genada: Lindley aponta mesmo a fusão coreográfica entre danças africanas e
ibéricas. Tal fusão, realizada há tanto tempo, torna de certa maneiratoda tentativa
de procurar estabelecer o que é realmente africano ou europeu em nossas danças
"populares" atuais.
A elite baiana ainda tentava prestar honras à etiqueta européia, o que não
acontecia em todas as regiões do Brasil. Outro viajante, Tollenau, reclama que nos
salões pernambucanos daquela mesma época "só se sabia dançar o lundu" (citado
em Pinho, 1959:29). Talvez tal fato possa ser explicado, como propõe Gilberto Freyre
em Sobrados e mucambos, pelo isolamento da colônia. Mas essa idéia de isolamento
deve ser relativizada. Uma breve história da modinha é um bom caminho para atingir
esse objetivo. Veremos como a própria aristocracia portuguesa, em Lisboa, já estava
se deixando seduzir pelas fusões afro-brasileiras importadas de sua colônia. As
regras de etiqueta européias não seriam tão rígidas assim.
O padre, carioca e mulato Domingos Caldas Barbosa foi o "primeiro compositor
reconhecido historicamente" no Brasil, sendo considerado pelos historiadores da
música popular brasileira como o estilizador e divulgador da modinha. José Ramos
Tinhorão, o mais importante desses historiadores, descreve a modinha como a
maneira brasileira, inventada principalmente por mulatos das camadas populares, de
se tocar as modas ou canções líricas portuguesas. As modinhas brasileiras
privilegiavam temas amorosos (sendo mais explícitas em sua libidinagem) e eram
acompanhadas principalmente por instrumentos de cordas, como o violão ou o
bandolim (ver Tinhorão, 1986).
Filho de pai branco e mãe preta angolana, a "condição" mestiça de Caldas
Barbosa não o impediu de, já em 1775, fazer sucesso nos salões mais aristocráticos
de Lisboa. A reação antimodinha veio, surpreendentemente, da parte de poetas como
Bocage, Filinto Elíseo e Antônio Ribeiro dos Santos. Este
P. 39
último "chegou a considerar sua presença [a de Caldas Barbosa] como indício da
dissolução da corte portuguesa". Os principais ameaçados pela moda da libidinosa
música colonial não tiveram a mesma reação, muito pelo contrário: Caldas Barbosa
influenciou compositores eruditos portugueses que também passaram a assinar suas
modinhas.
É quando começa o período de "italianização" (pois os compositores
portugueses geralmente estudavam na Itália) da modinha, com a influência das
operetas, também grandes sucessos na Lisboa da época, de Bellini e Donizetti. É
com essa nova roupagem que a modinha volta para o Brasil, trazida pela corte do
futuro dom João VI. [NOTA 1] No Rio e em Salvador, a nova modinha torna a
influenciar os músicos brasileiros e passa por uma fase que Tinhorão chama de
"repopularização e renacionalização" (Tinhorão, 1986: 19). Como é possível
perceber, o vaivém de influências, inclusive internacional, não esperou pelo advento
dos meios eletrônicos de comunicação de massa, ou mesmo pela divulgação dos
primeiros discos, para provocar modificações em gêneros musicais de todo o mundo.
Depois da proclamação da independência, e durante o reinado de dom Pedro
I, a modinha era parte integrante da vida da nova corte, ou pelo menos da parte
"sombria" dessa corte. A marquesa de Santos, amante do imperador, por exemplo,
"em sua intimidade e nas festas que dava em seu palácio de São Cristóvão, cantava
modinhas e lundus melancólicos acompanhando-se com o dedilhar nas cordas do
choroso instrumento [o violão]" (Maul, s/d2: 65). Ainda segundo seu biógrafo Carlos
Maul, os poderosos amigos mais íntimos da marquesa de Santos também se
dedicavam à música popular:
P. 40
"Freqüentavam-na personalidades eminentes. Gonçalves Ledo [deputado-
geral e inimigo de José Bonifácio], José Clemente Pereira [ministro do Império,
ministro da Guerra e senador] e o cônego Januário da Cunha Barbosa [cônego da
Capela Imperial, diretor da Imprensa Nacional e da Biblioteca Pública] são dos mais
assíduos. E nos saraus o cônego costuma deixar de lado a política para tocar violão
e cantar modinhas" (Maul, s/dl: 49).
Em meados do século XIX, a renovação (ou a renacionalização, como quer
Tinhorão) da modinha teve a participação de vários segmentos da sociedade
brasileira. Como diz Gilberto Freyre: "A modinha (...) foi um agente musical de
unificação brasileira, cantada, como foi, no Segundo Reinado, por uns ao som do
piano, no interior das casas nobres e burguesas; por outros, ao som do violão, ao
sereno ou à porta até de palhoças" (Freyre, 1974: 107). Entretanto, o fenômeno que
mais contribuiu para essa renovação da modinha foi a interação de músicos com
jovens intelectuais e escritores românticos. O principal local desses encontros era a
tipografia do "editor e poeta mulato Francisco de Paula Brito" (Tinhorão, 1986: 20), na
Praça da Constituição, hoje Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, freqüentada por
Machado de Assis, José de Alencar, Gonçalves Dias, o músico e poeta (de
ascendência cigana) Laurindo Rabello, além de "instrumentistas das classes
populares" (Tinhorão, 1986: 21). Um encontro entre intelectuais e músicos populares
que, como vimos, vai se repetir na história do desenvolvimento do samba.
Em Vida e obra de Paula Brito, Eunice Ribeiro Gondim escreve que "toda a
geração romântica e febril de 1839 a 1861 freqüentou a casa de Paula Brito" (Gondim,
1965: 59). Sua tipografia era palco de uma reunião de amigos (e inimigos) depois
chamada de Sociedade Petalógica (que vem de peta, mentira). Machado de Assis,
que foi tipógrafo de Paula Brito, assim descreveu a Sociedade:
P. 41
(...) onde ia toda a gente, os políticos, os poetas, es dramaturgos, os
artistas, os viajantes, os simples amadores, amigos e curiosos
onde se conversava de tudo, desde a retirada de um ministro até a
pirueta da dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó do
peito de Tamberlick até os discursos do Marquês de Paraná,
verdadeiro campo neutro onde o estreante das letras se encontrava
com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava com ex-ministros
(citado em Gondim, 1965: 59).
O folclorista Mello de Moraes Filho acrescenta outras lembranças a essas
citadas: na loja de Paula Brito, o maestro Francisco Manoel, "para descansar de suas
composições sacras e de longo fôlego, punha em música hymnos e lundús daquelle
porte" (Moraes Filho, 1904: 154). Como é possível perceber a partir desses
depoimentos, o "campo neutro" da tipografia era na verdade um território de
mediações inter-culturais, possibilitando o encontro de grupos sociais de rias
procedências.
A existência de indivíduos que agem como mediadores culturais, e de espaços
sociais onde essas mediações são implementadas, é uma idéia fundamental para a
análise do mistério do samba. A cultura brasileira é uma cultura heterogênea, em que
podemos notar "a coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições
cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc." (Velho, 1981: 16). A
heterogeneidade cultural é uma das principais características das sociedades
complexas, que podem ser vistas como "produto nunca acabado da interação e
negociação da realidade efetivadas por grupos e mesmo indivíduos cujos interesses
são, em princípio, potencialmente divergentes" (Velho, 1980: 17). Nessa situação
surge a possibilidade de constituição daquilo que Gilberto Velho denomina
"individualidade singular" ou "individualização radical":
Quanto mais exposto estiver o ator a experiências diversificadas,
quanto mais tiver de dar conta de ethos e visões de mundo
contrastantes, quanto menos fechada for sua rede de relação ao nível
de seu cotidiano, mais marcada será sua autopercepção de
individualidade singular (Velho, 1981: 32).
P. 42
Esses indivíduos "radicais" e extremamente singularizados podem elaborar
projetos que tenham como objetivo a facilitação (e também a intensificação, a
aceleração, a instituição) das trocas e outros tipos de relações entre dois ou mais
"mundos" que participam da heterogeneidade cultural das sociedades complexas.
[NOTA 2]
Um dos principais "agentes mediadores" que freqüentavam a tipografia de
Paula Brito era o músico e médico militar Laurindo Rabello. Vale a pena citar alguns
detalhes de sua biografia como exemplo das possibilidades de mediação cultural em
meados do século passado.
Segundo Mello de Moraes Filho, no livro Artistas de meu tempo, um
acontecimento decisivo para a família de Laurindo Rabello foi a carta régia de 15 de
abril de 1718 que deportou os ciganos portugueses para o Brasil. Laurindo nasceu no
Rocio, no Rio de Janeiro, em 1826, e teve uma infância pobre, enfrentando também
desde cedo "o preconceito social (...) que bania como mestiço o trovador trigueiro de
bem diversa raça" (Moraes Filho, 1905: 145). Apesar de seus "cabellos louros", era
visto como um "trovador moreno".
Esses preconceitos foram mais fortes na juventude do que na maturidade de
Laurindo. Se um dia o fato de ser cigano o impediu de se unir com "o amor de
juventude", tal condição racial não foi empecilho para sua celebridade artística (e
também intelectual) entre a elite imperial.
Tentara seguir a carreira militar, ser padre, mas acabou entrando para a Escola
de Medicina. Com dificuldades financeiras para concluir seu curso no Rio de Janeiro,
foi convidado pelo conselheiro Salustiano Souto a ir terminar seus estudos na Bahia.
Formado, entrou para o Exército como médico, trabalhou no hospital do Castelo e,
depois de brigar com seu chefe, foi transferido para o Sul do país.
Estudos, mudanças e atividades médicas e militares não o afastaram da poesia
e da música. Pelo contrário, durante todo esse período sua fama de "nosso Bocage"
só fez espalhar-se por todo o país.
P. 43
Mello de Moraes Filho diz que a presença do trovador cigano era requisitada
em muitos "saráos de família" realizados naquela época no Rio de Janeiro. Eis aqui
uma boa descrição do que acontecia nesses "saráos":
Em geral, depois de adeantada hora da noite, quando a música ia
estridente e as dansas ferviam em rodopio, certo número de
apreciadores apinhava-se ao redor de Laurindo que, menestrel e
bardo, a um dos ângulos da sala de jantar, cantava ao violão
sentimentaes modinhas e buliçosos lundús (Moraes Filho, 105: 170-
1).
Outro músico da época que pode ser considerado também um mediador entre
vários grupos sociais é Alexandre Trovador, descrito por Catulo da Paixão Cearense
como um "preto magrinho" (Maul, s/d2: 40) e por Mello de Moraes Filho como um
"creoulinho (...) esperto, sagaz e habilidoso" (Moraes Filho, 1904: 155). Alexandre
aprendeu "a pentear senhoras" no cabeleireiro de Frederico Reis (freqüentado por
João Caetano, pelas famílias Abrantes, Caxias, Paraná e Uruguay), que também
ficava na atual Praça Tiradentes, [NOTA 3] perto da tipografia de Paula Brito. Sua
fama como cabeleireiro logo se espalhou pela cidade e Alexandre começou a ser
requisitado para pentear, a domicílio, a imperatriz, a princesa Isabel, marquesas,
condessas e baronesas, além das atrizes francesas que no Rio se apresentavam.
Mas os dotes artísticos de Alexandre o se restringiam aos penteados. Sua voz
"mixta de soprano e contralto" também conquistara a cidade. Cantava óperas italianas
e modinhas brasileiras, sendo que as óperas também eram acompanhadas ao violão
que, segundo Moraes Filho, Alexandre "tangia exímio". O mesmo autor afirma que "o
descomunal Trovador assignalou uma época" (Moraes Filho, 1904: 156). Tanto
talento não o impediu de morrer na pobreza e ter seu corpo enterrado em vala comum.
Entre outros músicos importantes daquela época (de meados para o final do
século XIX), lembrados por Catulo da
P. 44
Paixão Cearense, podemos citar os “morenos" Tinoco, João Rolas e Anacleto de
Medeiros (também admirado por Carlos Gomes Freyre, 1974: 104), o “negro"
Eduardo das Neves e o Sinhô das Crioulas, descrito como de “beleza apolínea",
devendo tal apelido ao fato de que "só amava as crioulas" (Maul, s/d2: 41). A pele
escura dos músicos o parecia ter o poder de afastá-los da fama, por mais
momentânea que fosse, junto à elite carioca da época. Tampouco o violão foi total-
mente afastado dos saraus familiares cariocas, apesar de toda a tendência re-
europeizante do piano.
A trajetória artística de Catulo da Paixão Cearense também pode iluminar
alguns aspectos da atuação do músico popular como mediador cultural entre mundos
artísticos distintos, na sua versão brasileira. Essa atividade mediadora perpassou a
belle époque carioca, período no qual muitos autores identificam uma total separação
entre a cultura das elites e a cultura popular no Rio de Janeiro. Essa é, por exemplo,
a opinião de Jeffrey Needell, para quem na belle époque "tropical", que vai de 1898 a
1914, a tendência dominante era de "pôr um fim ao Brasil antigo, ao Brasil 'africano'
que ameaçava suas pretensões à civilização, apesar de se tratar de uma África bem
familiar à elite" (Needell, 1993: 77). Essa também é a opinião de Mônica Velloso, que
escreve em As tradições populares na belle époque carioca: "o endeusamento do
modelo civilizatório parisiense é concomitante ao desprestígio das nossas tradições.
(...) Mais do que nunca, a cultura popular é identificada com negativismo, na medida
em que não compactuaria com valores da modernidade" (Velloso, 1988: 8/9). E
continua: "Nos salões da moda, nos cafés e conferências literárias, a referência ao
nativo atinge o máximo de desqualificação" (Velloso, 1988: 17). Mas ao lado dessa
tendência re-europeizante (como quer Gilberto Freyre), talvez adominante [NOTA
4] no
P. 45
período, subsistiram (não sei se vale a pena usar aqui a idéia de resistência) e foram
inventadas práticas sociais que colocavam em cena um outro tipo de relação com os
universos populares.
Catulo nasceu no Maranhão em 1863. Passou sua infância no interior do Ceará
e chegou ao Rio, aos 17 anos, com o pai, que era ourives e leitor de clássicos da
literatura, indo residir em Botafogo. Seu pai, Amâncio, morreu em 1885, deixando
Catulo em precária situação financeira, sendo obrigado a trabalhar como estivador no
porto do Rio. Mesmo durante esse período de estiva, ele cantava suas modinhas
em “residências de abastados". Foi num desses saraus que Catulo conheceu o
conselheiro Gaspar da Silveira Martins, que pouco tempo depois o convidou para
morar em sua residência no Jardim Botânico e dar aulas de português para seus
filhos. O canto de Catulo começou a conquistar muitos admiradores na elite da cidade.
Suas modinhas faziam sucesso nas "reuniões lítero-musicais" na casa do senador
Hermenegildo de Morais e nos saraus de Mello de Moraes Filho (que nessa época
também "promovia desfiles de reconstituição de motivos folclóricos, como as
'Pastorinhas' e os 'Reisados'" Maul, s/d2: 25).
Outro salão importante dessa virada de culo foi o de Alberto Brandão,
freqüentado por lvio Romero, Barbosa Rodrigues, Mello de Moraes Filho e Raul
Villa-Lobos, sempre acompanhado pelo filho Heitor, então com 11 anos de idade.
Segundo Vasco Mariz, "eram noitadas memoráveis em que se encontravam bem
representados todos os gêneros musicais do Nordeste" (Mariz, 1989: 26). Em plena
belle époque, o Rio de Janeiro vivia uma "moda da regionalização" que tomou conta
da música popular. José Ramos Tinhorão interpreta assim essa moda: era um "gosto
pelo exótico nacional, que desde a primeira década do século XX o público dos salões
começou a cultivar, numa atitude que punha em moda o folclórico [NOTA 5]
(Tinhorão, 1986: 35). Catulo, como veremos, vai saber se aproveitar muito bem do
interesse que as coisas nortistas e sertanejas despertavam.
P. 46
Mas antes de virar um "cantor sertanejo", Catulo ainda viveu seu momento de
glória como mestre das modinhas nos salões cariocas. Segundo seu biógrafo Carlos
Maul, a consagração se deu em 1906, no salão de Mello de Moraes Filho. O
historiador, político e jornalista Rocha Pombo publicou um artigo sobre certa noite, no
Correio da Manhã: quando Catulo parou de cantar "houve uma verdadeira explosão
de delírio, tão espontânea, tão ruidosa, tão vibrante, como se um formidável tufão
barafustasse naquele ambiente" (citado em Maul, s/d2: 27). Depois disso, Catulo
cantou para Rui Barbosa no solar da Rua São Clemente ("Lemos Brito acentua que
de seus [de Rui Barbosa] olhos desceram lágrimas" Maul, s/d2: 33) e em 1908
apresentou suas modinhas, ao violão, no Instituto Nacional de Música, que era
dirigido pelo maestro Alberto Nepomuceno. Em 1914 Catulo cantou no Palácio do
Catete, então residência do presidente da República, a convite de Nair de Teffé,
mulher do presidente Hermes da Fonseca.
Em entrevista a Carlos Maul, Nair de Teffé fez os seguintes comentários sobre
seu encontro com Catulo: "No Brasil daquela época (...) só se cantava em línguas
estrangeiras, principalmente em francês, italiano e alemão. Eu mesma cantava
nesses idiomas. Devo a Catulo a sugestão de cantar de preferência na nossa língua."
E continua: "Ainda residindo no Catete resolvi dar uma audição exclusivamente minha
com canções e poetas e compositores nossos. De entre estes destaquei Chiquinha
Gonzaga" (Maul, s/d2: 69). Dona Nair exagera ao dizer que no Brasil "só se cantava"
em língua estrangeira, talvez para se apresentar à história como pioneira. Como
vimos, em muitos salões importantes do Rio de Janeiro daquela época se
valorizavam, e muito, os cantares nacionais.
Nair de Teffé certamente foi corajosa ao cantar ritmos nacionais para
convidados do Palácio do Catete. Rui Barbosa, o mesmo que chorou quando ouviu
Catulo da Paixão Cearense em casa, não perdeu a oportunidade de, nos jornais, con-
denar a ousadia de seus inimigos políticos: "nas recepções presidenciais o Corta-
Jaca é executado com todas as honras de música de Wagner e não se quer que a
consciência deste país se revolte, que as nossas se enrubesçam e que a mocidade
se ria" (citado em Efegê, vol. 2: 128). Nossas opiniões e esses exageros devem ser
contextualizados para não serem toma-
P. 47
dos ao da letra. Nem Rui Barbosa detestava a música popular brasileira, como
veremos, nem o governo Hermes da Fonseca foi o primeiro a introduzir os ritmos
nacionais nos palácios.
O Rei de Ouro, primeiro rancho carnavalesco carioca, fundado pelo tenente
Hilário Jovino Pereira em 1893 numa tentativa de reproduzir no Rio de Janeiro os
festejos baianos, não demorou muito a se apresentar para a elite governamental. Em
1894 o Rei de Ouro cantou em pleno Itamarati, diante do presidente Floriano Peixoto.
O tenente Hilário não se espantava muito com tal platéia: “Na Bahia, os ranchos fazem
cerimônias na Praça do Palácio em cumprimento ao governador" (entrevista ao
jornalista Vagalume, realizada em 1931, citada em Cabral, 1974: 15). Por que fingir
que essa interação elite/cultura popular o acontecia? Por que dizer que nossos
músicos populares eram simplesmente reprimidos ou desprezados pela elite
brasileira?
Outro aparente exagero dos "bem-intencionados" defensores das "coisas
brasileiras", mais ou menos contemporâneos da belle époque, é dizer que o violão
desaparecera dos salões cariocas para dar lugar quase exclusivo ao piano, que
acompanhava principalmente árias de óperas italianas. Essa argumentação está
presente em, por exemplo, O triste fim de Policarpo Quaresma, romance de Lima
Barreto, publicado em 1915.
A trágica história de Policarpo começa com um capítulo intitulado "A lição de
violão". Nele, o herói do romance, o major Policarpo, depois de adquirir “certeza",
consultando “historiadores, cronistas e filósofos", de que “a modinha acompanhada
pelo violão" seria "a expressão poético-musical característica da alma nacional"
(Barreto, s/d: 16), resolve ter aulas daquele instrumento com o trovador Ricardo
Coração dos Outros.
Sua decisão não é aprovada pelos vizinhos suburbanos cariocas, que
exclamam: Um homem o sério metido em tais malandragens!"; "Um violão em casa
tão respeitável!" O
P. 48
major "estava perdido, maluco, diziam". A defesa de Policarpo era nacionalista:
preconceito supor-se que todo o homem que toca violão é um desclassificado. A
modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento
que ela pede." E para a defesa da modinha cita fatos históricos e autores estrangeiros:
"Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no
século passado, com o Padre Caldas, que teve um auditório de fidalgas. Beckford,
um inglês notável, muito o elogia" (Barreto, s/d: 12).
O problema é saber quem é esse "nós" que abandonou a modinha. Na
seqüência do romance, algumas passagens servem para relativizar a impressão de
que o violão e a modinha (e toda a cultura popular nacional) tivessem caído em
desgraça no Rio de Janeiro daquela época. O próprio Ricardo Coração dos Outros
nos é apresentado como "um artista a freqüentar e a honrar as melhores famílias do
Méier, Piedade e Riachuelo [bairros do subúrbio do Rio de Janeiro]" e "sua fama já
chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo [o bairro privilegiado
pela elite daquela época] convidá-lo-ia, pois os jornais falavam no seu nome e
discutiam o alcance de sua obra e de sua poética" (Barreto, s/d: 16).
Numa festa na casa do general Albernaz, vizinho de Poli- carpo, as
apresentações musicais mostram um grande apreço de jovens e velhos pelas "coisas
brasileiras", tanto que a "romanza italiana" cantada ao piano pela "famosa filha de
Lemos" (que ia se formar no conservatório) foi recebida com frieza, ao passo que
o violão e as modinhas de Ricardo Coração dos Outros foram "um triunfo". Apesar de
toda a ironia de Lima Barreto, podemos notar a descrição de uma sociedade
contraditória que, "da boca para fora", parecia condenar a cultura popular carioca,
mas que aplaudia essa mesma cultura em sua vida cotidiana. Ou uma sociedade
heterogênea, em que a condenação do brasileiro convivia com o aplauso a esse
mesmo brasileiro, dependendo da situação, da festa ou do grupo social que estava
sendo freqüentado. De alguma forma, a trajetória de Ricardo Coração dos Outros
lembra muito a de Catulo da Paixão Cearense. que Catulo realizou o sonho de
Ricardo: conquistar Botafogo.
P. 49
Antes de se apresentar no Catete, Catulo da Paixão Cearense já lançara seus
grandes hits nordestinos, escritos em parceria com o violonista João Pernambuco,
como a toada Cabocla di Caxangá (1912) e o coco Luar do sertão (1913). O cronista
Luís Edmundo, no livro O Rio de Janeiro de meu tempo, elogia Catulo por reabilitar
“a canção patrícia e popular, vilipendiada pelo preconceito desnacionalizador" (citado
em Tinhorão, 1986: 34).
Esse tom nacionalista não nos deve enganar: a entrada em cena dos exóticos
ritmos nacionais não significou necessariamente uma condenação das vogas
estrangeiras. Devemos considerar o sucesso "sertanejo" como um dado a mais na
variedade musical da época. Os vários ritmos europeus e norte-americanos não
deixaram os salões para dar lugar a cateretês e cocos. Pelo contrário: no carnaval de
1900 os grandes sucessos foram "O galo preto, polca de Artur Canongia; As
priminhas da Marocas, polca-habanera de J. S. Avellor; O senhor padre vigário, polca-
lundu de JoSoares Barbosa; Se eu pedir você me dá?, polca-chula de Avellor" e
figuravam no repertório da folia "valsas, quadrilhas, xotes (schottische), mazurcas e
habaneras" (Alencar, 1980: 144). Essa diversidade internacional da música popular
carnavalesca continuou a imperar por décadas até o samba se consolidar como o
ritmo do carnaval "por excelência". Aliás, o repertório do carnaval até os anos 40 foi
ficando cada vez mais eclético, incluindo não só os ritmos "sertanejos" nacionais mas
também as novidades do pop norte-americano, como o jazz e o charleston. Tanto que
"em 1916 o maior sucesso do carnaval carioca foi o one-step Caraboo, do jamaicano
Sam Marshall, disfarçado de marchinha brasileira" (Tinhorão, 1986: 86). O interesse
pelo nacional andava de mãos dadas com o interesse pelos últimos modismos
internacionais. E produtos musicais da mistura dos dois interesses não eram
exatamente novidade no Brasil.
O lundu, por exemplo, era derivado dos ritmos dos batuques dos escravos
africanos mas sua coreografia "imitava em grande parte a da dança espanhola
denominada fandango" (Tinhorão, 1986: 51). Por volta de 1844, com a invasão da
polca no Brasil (trazida por artistas de companhias de teatro francesas), surgiu a fusão
polca-lundu. Os primeiros sinais do maxixe, também chamado de tango, podem ser
encontrados
P. 50
na década de 1870 no repertório dos grupos de choro cariocas. O maxixe
"representou a versão nacionalizada da polca importada da Europa" (Tinhorão, 1986:
58) e acabou, depois de conquistar a elite brasileira, sendo reexportado como "a
dança do momento" para a Europa, fazendo grande sucesso sobretudo em Paris. A
heterogeneidade cultural do mundo artístico dessa época tornou possíveis
acontecimentos como este: em 1892, na peça Tintim por tintim, a atriz espanhola
Pepa Ruiz aparece "vestida de baiana cantando um 'tango' intitulado Munguzá"
(Tinhorão, 1986: 71). O tango era na verdade um maxixe, música que vai ter influência
decisiva na invenção do samba.
Até bem recentemente os grupos musicais não se especializavam num ritmo
único. As orquestras que tocavam ao vivo na Rádio Nacional até os anos 50
executavam sambas ao lado de mambos ou boleros. Os grupos de choro do final do
século XIX também tocavam valsas ao lado de maxixes. As bandas que animavam o
carnaval carioca do início deste século tocavam marcha, fox, maxixe, toada sertaneja.
Em 1912, o sucesso da toada Cabocla di Caxangá foi tão grande que motivou a
formação, no carnaval de 1913, do Grupo do Caxangá. Seus integrantes desfilaram
pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro com fantasias inspiradas no bando do
cangaceiro nordestino Antônio Silvino e tocando um repertório bastante eclético.
Desse grupo faziam parte João Pernambuco, Donga e Pixinguinha, entre vários
outros nomes ilustres na época. O Grupo do Caxangá está na origem do sucesso
de outro grupo de Donga e Pixinguinha, o Oito Batutas, que conquistou o Rio de
Janeiro apresentando-se na sala de espera do Cine Palais, na Cinelândia, no final
dos anos 10. Essa história será contada com detalhes no capítulo dedicado ao
nascimento do samba.
Catulo da Paixão Cearense era um artista muito bem relacionado. Amigo de
políticos, escritores, milionários, também mantinha contato com músicos menos
famosos, os futuros inventores do samba (tanto que era freqüentador da casa de
P. 51
Tia Ciata, na Praça Onze, um dos berços da cultura sambista). Entre seus amigos,
um dos mais queridos era o escritor Afonso Arinos, a quem fez o seguinte elogio:
“Este imortal, que é deveras imortal pelas obras que escreveu sobre a vida e os
costumes sertanejos, foi um de meus maiores amigos. Arinos foi um adorador de tudo
quanto é brasileiro. A natureza o enfeitiçava. Parecia que o seu sangue era a seiva
de nosso pau-brasil" (citado em Maul, s/d2: 44).
Donga também teve palavras carinhosas para se lembrar de Afonso Arinos, ao
falar em depoimento anotado por sua filha Lygia dos Santos sobre a “república"
onde morava, com Pixinguinha e Heitor dos Prazeres, na Rua do Riachuelo, Centro
do Rio de Janeiro, no início dos anos 10:
Embora sendo um antigo pardieiro (...) nos sentíamos bem instalados
e achamos boa a nova residência. No local, éramos visitados por
gente como Catulo da Paixão Cearense, Olegário Mariano, Bastos
Tigre, Hermes Fontes, Medeiros de Albuquerque, Edmundo
Bittencourt, Emilio de Menezes, Gutemberg Cruz e o grande Dr.
Afonso Arinos de Mello Franco, presidente na época da Academia
Brasileira de Letras. Ele nos apreciava tanto que sempre nos
convidava para audições em sua residência, na Praia de Botafogo, e
na sua fazenda, no Tom-badouro, onde Catulo compôs a canção
sertaneja O capim mais mimoso o veado comeu (citado em Cabral,
1978: 27-8).
Essa interação com músicos populares (no caso de Pixinguinha e Donga, muito
antes de eles se tornarem conhecidos como integrantes do Oito Batutas) é um
aspecto pouco explorado da biografia de Afonso Arinos. Os textos escritos sobre sua
vida, a biografia clássica de Tristão de Athayde (Athayde, 1922), a biografia de Afonso
Oliveira Mello (Mello, 1961) e a introdução de seu sobrinho Afonso Arinos de Mello
Franco às suas Obras completas (Franco, 1969), nem se referem a esses seus
interesses. Mas as relações "musicais" de Afonso Arinos o colocam como uma
espécie de precursor de uma atitude (esquizofrênica, dirão alguns) dos intelectuais
modernistas brasileiros (incluindo aqui principalmente o "modernismo" de Gilberto
Freyre), divididos entre o cosmopolitismo e o interesse pelas "coisas brasileiras".
Essas duas vertentes não
P. 52
precisam ser necessariamente conciliadas. Um intelectual como Afonso Arinos pode
ser pensado melhor, não como um conciliador ou criador de sínteses culturais, mas
como um mediador no sentido de colocar em contato mundos culturais bem diversos
ou, pelo menos, de transitar por vários mundos, deixando suas marcas em cada um
deles, nem que fosse a marca de torná-los expostos ao que vem "de fora". Qual outra
seria sua intenção ao encenar, durante a Primeira Guerra Mundial, um bumba-meu-
boi no Teatro Municipal de São Paulo (Carvalho, 1972: 733) ou ao preparar, como
surpresa para os elegantes convidados do baile de encerramento de uma série de
conferências sobre "lendas e tradições brasileiras", realizado em seu palacete
paulistano, uma apresentação de cateretê feita por "autênticos" caboclos paulistas
(Sevcenko, 1992: 239)?
Afonso Arinos nasceu em Paracatu, Minas Gerais, em 1868. Era filho do
senador Virgílio de Mello Franco. Com nove anos de idade, mudou-se para Vila Boa
do Anhangüera, então capital de Goiás. De lá saiu em 1881, para São João del
Rey, depois para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo, onde cursou a Faculdade
de Direito na mesma turma de Paulo Prado, futuro autor de Retrato do Brasil e
milionário que vai financiar muitas das atividades dos modernistas no Brasil, incluindo
as viagens de Blaise Cendrars ao Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Os
amigos de Afonso Arinos ficavam impressionados, segundo Tristão de Athayde, com
suas "maneiras fidalgas". Seu sobrinho Afonso Arinos de Mello Franco diz que ele era
"elegante e gastador", além de ser um notório monarquista contra a recém-
proclamada República.
De volta a São João Del Rey, depois de formado, Afonso Arinos começou a
escrever os contos que seriam reunidos no livro Pelo sertão, marco inicial do
regionalismo literário brasileiro. Seus temas eram barqueiros, chapadões, buritis,
descrevendo, numa tentativa de manter-se fiel à linguagem local, uma região do Brasil
que também seria explorada na literatura de Guimarães Rosa.
Depois dessa época em São João Del Rey, sua vida se transformou numa
viagem constante entre o Rio de Janeiro, Paris, São Paulo, Belo Horizonte e o cerrado
das redondezas
P. 53
de Paracatu. Em Paris era amigo do conde d'Eu, da princesa Isabel, do príncipe D.
Luís. No Rio, de Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto, além de freqüentar as
rodas musicais de Catulo, Donga e Pixinguinha. Em Paracatu, passava noites
acampado com vaqueiros.
Tristão de Athayde analisa a vida e a literatura de Afonso Arinos como produto
de uma “tendência contraditória" ou sob a ão de uma "polaridade divergente" que
é o conflito entre "cosmo" e "regio" (Athayde, 1922: 46). Esse seria um drama não
de Afonso Arinos, mas de toda a nacionalidade brasileira, "que é geralmente o de
todas as nacionalidades recentes" (Athayde, 1922: 44-5). Tristão chega a recorrer à
terminologia de Freud para falar dos reflexos desse grande drama nacional na vida
de indivíduos como Afonso Arinos: é a luta de duas libidos: "a concupiscência do
grande mundo e a concupiscência da pequena pátria" (Athayde, 1922: 49).
Daí a vida "assim itinerante": "Arinos viveu no estrangeiro, ou melhor, em
viagem, porque sentia em sua fibra essa paixão do desconhecido" (Athayde, 1922:
30-1). Daí também uma atitude literária que "procurava fugir a um regionalismo
estreito que leva às secessões, e aos preconceitos" (Athayde, 1922: 35). As mesmas
preocupações de Gilberto Freyre, outro regionalista cosmopolita, como veremos mais
adiante. O próprio Freyre reconheceu essas semelhanças em artigo publicado no
Diário de Pernambuco em 5/10/1924:
De modo que Arinos não foi na vida carta definitivamente extraviada
ou espetada num "placard" de correios com um endereço que já não
existisse: o nome de pessoa morta ou de cidade desaparecida. Arinos
não foi isso: foi carta sempre a ir e vir. Sempre a voltar ao remetente
para que este avivasse um endereço palidamente escrito a lápis. E o
remetente era aquela "pequena pátria" que o prendia sem o satisfazer
de todo.
E se pergunta:
Mas não será carta ou telegrama com endereço errado toda a arte e
pura vocação num Brasil como o de hoje (...)? (Freyre, 1979, vol II:
79).
Afonso Arinos tentou pensar todas essas contradições entre "regio" e "cosmo",
estrangeiro e nativo, nobre e rústico, mo-
P. 54
vimento da viagem e permanência da tradição, num pequeno livro, quase esquecido,
lançado em 1900 e intitulado justamente A unidade da pátria. É com comentários
sobre esse livro que vou abrir o próximo capítulo, iniciando uma discussão sobre o
problema da unidade e da diversidade na sociedade brasileira, problema que tem sido
abordado, desde os anos 30, com a opção pela unidade.
P. 55
3
A UNIDADE DA PÁTRIA
Embora classificado como escritor regionalista, Afonso Ari- nos (como mais
tarde Gilberto Freyre) não pregava uma regionalização radical do (no) Brasil. Seu livro
A unidade da pátria foi escrito para exorcizar esse fantasma. es dito muito
claramente: “o Brasil está de tal modo regionalizado que, para as províncias não
ficarem absolutamente estranhas umas às outras, é preciso um grande esforço no
sentido de fortificar-se a unidade moral da Pátria" (Arinos, 1969: 887). Seu interesse
pelas "coisas brasileiras" e pela cultura do povo estava ligado a essa preocupação
com a unidade. E entre as "coisas brasileiras" a música popular ocupava um lugar
especial:
Nesse grande esforço anônimo e por assim dizer subterneo, tal o dos lençóis
d'água na formação dos ribeiros, forma-se a trama popular da nossa nacionalidade,
com suas lendas e tradições comuns, voando de Sul a Norte e de Norte a Sul nas
asas irisadas da canção popular (Arinos, 1969: 891).
Arinos, como todo itinerante, não valorizava o enraizamento e o fechamento
de comunidades brasileiras em suas tradições regionais. Admirava a mistura dessas
tradições que, em seu trabalho "anônimo" e "subterrâneo", vai inventando a unidade
brasileira. Por isso elogiava o baiano que trabalha nos cafezais de São Paulo e toca
caxambu, o cearense que povoa a Floresta Amazônica, o boiadeiro e o barqueiro que
percorrem incessantemente o território brasileiro. É ao povo e não
P. 56
à elite que devemos o pouco que temos de unidade: "o povo ["injustamente apodado
de indolente" e relativamente superior "em moralidade às classes elevadas"] faz o
que pode e dele não se deve esperar mais" (Arinos, 1969: 891-2). Por isso sua
pregação, esperada num monarquista que é contra a federação ("copiada dos EUA"),
de uma aliança entre o povo e a elite: "Esse dever de aliança para a ação compete
tanto mais à classe culta, quanto, até agora, quem ainda mantém a união brasileira
não são os homens superiores, mas o povo" (Arinos, 1969: 889).
O problema da unidade da pátria não afligia apenas Afonso Arinos. Esse foi
um dos mais graves problemas políticos das "terras brasileiras", desde seus tempos
coloniais, e recebeu respostas e propostas de solução divergentes durante toda a
nossa história, alternando momentos de centralização com outros de
descentralização política, e apresentando mesmo combinações estranhas das duas
tendências antagônicas. Podemos mesmo interpretar a transformação do samba em
sica nacional (e a de uma determinada cultura popular em cultura nacional) como
uma dessas respostas no plano cultural.
Não cabe aqui detalhar a história das várias versões desse projeto de unidade
e das reações de seus "descontentes". Mas é importante recapitular alguns de seus
momentos principais para tentar entender o debate sobre o que vem a ser essa
unidade e como ela serve de pano de fundo ideológico para a Revolução de 1930 e
o período histórico de consolidação do samba como símbolo nacional. Assumo desde
as críticas de "uso e abuso da história". Vou sobrevoar vários séculos de uma
problemática riquíssima para tudo terminar, como se espera, em samba.
José Murilo de Carvalho, em sua tese Elite and State-building in Imperial Brazil,
cita uma descrição do viajante Saint-Hilaire sobre o Brasil colonial:
Cada capitania tinha seu pequeno tesouro, elas se comunicavam
dificilmente entre si, freqüentemente mesmo
P. 57
elas ignoravam reciprocamente a existência uma das outras. Não
havia no Brasil um centro comum: era um círculo imenso, no qual os
raios iam convergir bem longe da circunferência (citado em Carvalho,
1975: 267-8).
Daí, do que Raimundo Faoro chama de "dilaceramento centrífugo das
capitanias" que formou depois da Independência uma "dispersa, desarticulada e
fluida nação" (Faoro, 1973: 279) , a dificuldade de muitos intérpretes do Brasil ao
tentar entender as razões que tornaram possível nossa unidade territorial, política e,
de certa maneira, cultural, quando o mesmo não aconteceu no caso da América
Espanhola.
No período imediatamente anterior à proclamação da independência, a vinda
da corte do futuro dom João VI para o Rio de Janeiro teve conseqüências nitidamente
centralizadoras no disperso território colonial, talvez acontra as intenções da família
real portuguesa. Com a revolução liberal do Porto, as Cortes de Lisboa, em luta contra
dom João VI, retomaram a política descentralizadora e a busca da fragmentação do
então Vice-Reino do Brasil, visando fortalecer as províncias contra o Rio de Janeiro.
Parte da elite regional brasileira apoiou as medidas das Cortes (mesmo sem apoiar a
tomada de poder por elas), tentando lutar contra a burocracia do monarca português
instalado em terras cariocas.
A independência do Brasil, em 1822, não teve um projeto claro de unificação
nacional. Mesmo as rebeliões anticoloniais (muitas delas com forte caráter
regionalista) e o movimento político que desembocou na independência não
nasceram de preocupações nacionalistas, como mostra Emília Viotti da Costa em seu
livro The Brazilian Empire. Por exemplo: os articuladores da Conspiração de 1792 no
Rio de Janeiro acalentavam a esperança de que os franceses revolucionários
conquistassem sua cidade. José Murilo de Carvalho também lembra que "os
movimentos de independência das províncias no final de século XVIII e início do
século XIX todos tiveram
P. 58
tendências republicanas e não se preocupavam muito com a unidade" (Carvalho,
1975: 269). Um exemplo mais conclusivo é o das elites brasileiras que relutaram até
o último momento em proclamar a independência: seu projeto visava manter algum
vínculo com Portugal. Emília Viotti da Costa afirma que "as condições que levaram à
integração nacional e inspiraram idéias nacionalistas na Europa estavam faltando no
Brasil" (Costa, 1985, 9). Como conseqüência, "a manutenção da integração nacional
do Brasil depois da independência, então, não pode ser atribuída a uma forte
ideologia nacionalista; as elites brasileiras simplesmente reconheciam que a única
maneira de assegurar a independência era evitar a secessão" (Costa, 1985: 9).
Portanto, só depois de formalmente independente é que o Brasil começou a inventar
um projeto unificador para si próprio.
O governo de D. Pedro I teve um forte caráter centralizador, mas sua abdicação
ao trono, em 1831, foi interpretada por Raimundo Faoro como "o malogro da
centralização" (Faoro, 1973: 316). O período da Regência trouxe à tona correntes
descentralizadoras, geralmente inspiradas nas experiências dos Estados Unidos. O
regente Feijó, por exemplo, promulgou medidas que incentivavam a autonomia das
províncias. Porém, mesmo com essas ligeiras novidades, "o símbolo da coroa, e não
o da nação, [continuou a ser visto] como o mais apto a manter a unidade e evitar a
desintegração territorial" (Lauerhass Jr., 1986: 20). Esse símbolo, mesmo
incentivando o "cosmopolitismo" do Império, permaneceu a principal fonte de
estabilidade política e de unidade para o Brasil no reinado de D. Pedro II.
Com a chegada da República, foi necessário que o símbolo da nação
substituísse o da coroa para dar legitimidade aos novos governantes. A unidade
poderia ser alcançada quando fosse compreendida a "essência da brasilidade",
transformada em correntes políticas nacionalistas. Ludwig Lauerhass Jr. identifica
uma primeira geração nacionalista, em atuação de 1880 a 1914, formada por "um
círculo de intelectuais relativamente pequeno" que não tinha contato direto com a ati-
vidade política. Dessa geração fazia parte Sílvio Romero (cujas principais idéias vão
ser discutidas no próximo capítulo),
P. 59
com suas pregações contra a formação de colônias de imigrantes europeus no Sul
do país justamente pelo perigo que acarretariam à unidade nacional. Euclides da
Cunha também falava de um país dividido, carente de unidade. E Alberto Torres
considerava um dos nossos maiores problemas "a falta de unidade nacional",
sublinhando a "invenção" de toda tradição ao dizer que o país "teria que criar
artificialmente sua própria nacionalidade" (citado em Lauerhass Jr., 1986: 44). Entre
as recomendações de Alberto Torres para sanar esse problema brasileiro estava a
criação de um Poder Coordenador, que "designaria delegados para Estados,
municípios e distritos", aumentando o controle central; além, é claro, da mudança do
nome do país de Estados Unidos para República Federativa.
Na prática política republicana, o embate entre tendências centralizadoras e
descentralizadoras, e suas eventuais simbioses, criou situações ainda mais confusas.
O federalismo, muitas vezes de inspiração norte-americana, foi usado em vários
momentos como garantia de democracia contra intervenções centralizadoras de
candidatos a ditadores. Foi essa argumentação, em defesa da democracia federativa,
que Rui Barbosa utilizou para combater o "jacobinismo" de um Floriano Peixoto, por
exemplo. No entanto a descentralização, que poderia ser democratizante, acabava
servindo aos interesses do poder oligárquico, incentivador de qualquer manobra
política que aumentasse seu controle regionalizado sobre o país.
Boris Fausto afirma que, "do ponto de vista econômico, a integração nacional
era frágil no Império e permanece frágil na República" (Fausto, 1975: 232). As
atividades dos setores agrários das várias regiões brasileiras estavam voltadas para
o mercado externo e mostravam pouca coordenação nacional. Os vários estados
tinham assegurado, pela Constituição de 1891, o direito de contrair empréstimos no
exterior, sem mediação de nenhuma instituição financeira centralizada nacio-
nalmente.
O predomínio da oligarquia cafeeira e dos estados de São Paulo e Minas
Gerais impedia a formação de partidos representativos de correntes nacionais de
opinião, que também não existiam. Além disso, e já introduzindo o debate sobre raça
e
P. 60
modernização do país, o predomínio da economia do café não escondia suas
preferências em matéria de mão-de-obra. Como diz Octávio lanni em A idéia de Brasil
moderno:
Com a abolição do regime de trabalho escravo e a Proclamação da
República, o poder estatal passa às mãos da oligarquia cafeeira, que
já se achava apoiada no colonato de imigrantes europeus. Para essa
oligarquia, o índio, o negro e mesmo o branco nacional eram
colocados em segundo plano. Valorizava-se o imigrante (lanni, 1992:
128).
A mudança desse estado de coisas, e o fim da hegemonia oligárquica, teve
início com as "reivindicações de vários grupos desvinculados da economia cafeeira"
(Fausto, 1975: 239), formados principalmente pelas "facções burguesas não vin-
culadas ao café, as classes médias e o setor militar tenentista" (Fausto, 1975: 246),
que desembocaram na formação da Aliança Liberal, agrupamento responsável pela
ascensão do gaúcho Getúlio Vargas à presidência da República em 1930. Essa
heterogeneidade da Aliança Liberal, inclusive regional (com acordos entre lideranças
de vários estados, como Rio Grande do Sul e Paraíba, que não participavam na
economia cafeeira [NOTA 1]), acabava necessitando de princípios organizadores
nacionais para sustentar suas estratégias políticas. Nunca a "unidade", que a
Aliança Liberal não tinha "ideologia própria no plano nacional" (Lauerhass Jr., 1986:
95), foi tão necessária para o regime político brasileiro.
O federalismo voltou a ser utilizado como arma contra a "ameaça de ditadura"
pelo Partido Democrata de São Paulo. E os herdeiros de 1930 sufocaram essas
tendências regionalistas e oligárquicas até mesmo com a queima das bandeiras dos
vários estados, em várias ocasiões. É nesse ambiente que surge Casa-grande e
senzala, com sua valorização de "nossos" traços mestiços, e se consolida o samba
como estilo musical nacional.
P. 61
Toda a movimentação política e cultural posterior à Revolução de 1930 parece
indubitavelmente centralizadora, unificadora, nacionalizante e homogeneizadora
(levando-se em consideração toda a complexidade de cada uma dessas tendências).
Por isso, e por outros motivos que serão apresentados nos próximos capítulos, não é
possível concordar totalmente com interpretações como a de Carlos Guilherme Motta
de que:
(...) obras como Casa-grande e senzala, produzida por um filho da
República Velha, indicam os esforços de compreensão da realidade
brasileira realizados por uma elite aristocratizante que vinha
perdendo poder. À perda de força social e política corresponde uma
revisão, a busca do tempo perdido. Uma volta às rzes (Motta, 1980:
58).
O livro de Gilberto Freyre poderia ser visto, com maior pertinência, como um
projeto em sintonia com esses novos tempos revolucionários de 1930, onde "cosmo"
tinha maior importância que "regio". Além disso, o regionalismo de Casa-grande e
senzala é tão nacionalizante quanto aquele expresso por Afonso Arinos. E não se
trata de uma volta às raízes, mas da própria criação dessas raízes.
Outra interpretação interessante é a de Lúcia Lippi de Oliveira, para quem "o
governo autoritário [pós-1930, mas principalmente o do Estado Novo] passa a
assegurar de tal forma a centralização, que as manifestações regionais não ameaçam
o todo" (Oliveira, 1990: 197). E acrescenta, na mesma página: "Não , igualmente,
a escolha de um dos modelos regionais para compor a brasilidade." Como vou tentar
mostrar, junto a essa segurança do autoritarismo, um novo modelo da autenticidade
nacional foi fabricado no Brasil pós- 1930. Não foi escolhido um dos antigos modelos
regionais para simbolizar a nação, mas desses modelos foram retirados vários
elementos (um traje de baiana aqui, uma batida de samba ali) para compor um todo
homogeneizador. Como
P. 62
também será discutido adiante, a cultura popular regional e urbana do Rio de Janeiro,
por diversos motivos, predominou no novo "todo" (afinal, a feijoada "brasileira" é feita
com feijão preto "carioca" e o com o feijão "mulatinho" nordestino). Mas, antes de
entrarmos propriamente nesse debate, é imprescindível saber o que a unidade da
pátria tem a ver com a antiga reflexão sobre a mestiçagem, fenômeno que tanta
atenção mereceu dos inventores de nossa identidade nacional.
P. 63
4
O MESTIÇO
No final do século XIX, o debate intelectual brasileiro associava a questão
da identidade (e da pouca unidade) nacional ao problema do “atraso" do Brasil, que
era comparado à Europa, ponto de referência principal para o pensamento
evolucionista dominante na época. A pergunta a ser respondida não escondia um
certo derrotismo: por que somos atrasados? Para encontrar uma resposta, era preciso
descobrir o que nos faz diferentes dos europeus ou, mais precisamente, o que nos
faz "piores" que os europeus. Nossa identidade estaria contaminada por uma
misteriosa "doença", fosse ela climática ou racial, que nos colocaria em desvantagem
diante do resto do mundo. A identidade devia ser descoberta para ser curada.
O mestiço acabou se transformando no bode expiatório do atraso brasileiro.
Os intelectuais da virada do século XIX, pensando dessa maneira, podiam olhar
com desprezo para as manifestações culturais (como os ritmos negros p-samba ou
a feijoada) que décadas depois seriam transformadas em símbolos nacionais e motivo
de orgulho e zelo preservacionista para o "povo brasileiro".
Foi Gilberto Freyre quem conseguiu executar a façanha teórica de dar caráter
positivo ao mestiço. O brasileiro passou a ser definido como a combinação, mais ou
menos harmoniosa, mais ou menos conflituosa, de traços africanos, indígenas e
portugueses, de casa-grande e senzala, de sobrados e mu- cambos. A cultura
brasileira, mestiçamente definida, não é
P. 64
mais causa do atraso do país, mas algo a ser cuidadosamente preservado, pois é a
garantia de nossa especificidade (diante das outras nações) e do nosso futuro, que
será cada vez mais mestiço.
Mesmo sem esquecer o que de pioneiro no trabalho de Gilberto Freyre, não
podemos deixar de lembrar que já existia no Brasil uma tradição intelectual dedicada
ao estudo desses aspectos mestiços da "civilização brasileira", que colocava lado a
lado as pesquisas sobre folclore e um interminável debate sobre os tipos raciais (feito
em institutos geográficos, faculdades de direito, museus e escolas de medicina) do
país.
Lilia Schwarcz afirma, em sua tese "Homens de sciencia" e a raça dos homens,
que "em finais do século passado o Brasil era apontado [em debates intelectuais e na
própria imagem do país no exterior] como um caso único e singular de extrema
miscigenação racial" (Schwarcz, 1992: 7). Além disso, "o cruzamento de raças era
entendido, com efeito, como uma questão central para a compreensão dos destinos
dessa nação" (Schwarcz, 1992: 12). Essa constatação não era fruto da aplicação
mecânica de teorias racistas européias ao caso brasileiro. Um dos maiores méritos
da tese de Lilia Schwarcz é mostrar, em detalhes, como "as elites locais não
consumiram esse tipo de literatura, como a adotaram de forma original" (Schwarcz,
1992:17), através de um "trabalho de seleção de textos" e utilizando-se de um "acervo
de autores ecleticamente aproveitados" pelo pensamento racial brasileiro, que
"atualizou o que combinava e descartou o que de certa forma era problemático para
a construção de um argumento racial no país" (Schwarcz, 1992: 42). A "originalidade
da cópia" brasileira teve como conseqüência até mesmo uma relativização do termo
raça, que
(...) antes de aparecer como um conceito fechado, físico e natural, é
entendido como um objeto de conhecimento, cujo significado estará
sendo constantemente renegociado e experimentado nesse contexto
histórico específico, que tanto investiu em modelos biológicos de
análise (Schwarcz, 1992: 17).
Um exemplo de "adoção original" das idéias européias por parte dos brasileiros
é o trabalho de reinterpretação ao qual
P. 65
foi submetido o pensamento do conde de Gobineau em "solo tropical". Como mostra
Tzvetan Todorov, Gobineau produz "uma filosofia da história profundamente
pessimista" e a crença num "paradoxo trágico que pesa sobre o gênero humano".
Sabemos que Gobineau condena a mestiçagem racial como agente degenerador dos
tipos raciais, que deveriam permanecer puros para não se enfraquecer; mas seu
pensamento não se resume a essa condenação. Daí o "paradoxo trágico": para se
civilizar, uma tribo tem que se misturar com outras e (no caminho para a civilização)
está a sua perdição. Nenhuma cultura fica a salvo: ou permanece pura e selvagem
ou se mistura com outras (se enfraquecendo) para se civilizar. Os dois caminhos
levam à morte. Gobineau diz: "mistura, mistura em todos os lugares, sempre mistura,
eis a obra mais clara, mais garantida, mais durável das grandes sociedades e das
civilizações poderosas" (citado em Todorov: 1993:146). E Todorov resume as
conseqüências desse pensamento paradoxal: "Quando uma sociedade é
suficientemente forte, tende a submeter as outras; mas quando o faz, é ameaçada
em sua identidade e não é mais forte." Isto é: "Toda prova de força é uma garantia de
fraqueza, todo sucesso, um passo para o fracasso" (Todorov, 1993: 150).
Que dizer então de uma sociedade como a brasileira, que nem chegou a ser
"forte" e é tão "misturada"? Deveríamos abandonar qualquer pretensão à
civilização? Muitos autores brasileiros não se deixaram abater pelas conclusões
pessimistas de Gobineau e utilizaram do pensamento do "mestre decadentista"
francês, do amigo de D. Pedro II, as partes que lhes interessavam. Alguns deles
conseguiram mesmo transformar o pessimismo em "otimismo". Foi o caso de Graça
Aranha, em seu romance-"polifônico"/tese Canaã, uma das obras literárias
naturalistas que têm entre seus temas a problemática racial.
Graça Aranha, ex-acadêmico de direito no Recife, publicou Canaã em 1901
(um ano depois de A unidade da pátria de Afonso Arinos). Seu livro descreve as
aventuras e os diálogos de dois imigrantes alemães, Milkau e Lentz, que resolvem
recomeçar suas vidas cultivando terras no Espírito Santo.
P. 66
Lentz representa o pessimismo que Graça Aranha acreditava ser o de
Nietzsche. Milkau se parece mais com Gobineau, mas um Gobineau otimista, quase
franciscano. O diálogo sobre a floresta tropical ("aqui o espírito é esmagado pela
estupenda força da natureza") revela bem suas duas visões de mundo contrastantes.
Lentz diz que a floresta atual é um exemplo da vitória do mais forte onde "a beleza de
cada [vegetal] é o preço da morte de muitas coisas". Já Milkau vê na exuberância da
floresta uma "constante e incessante per- muta", em que "tudo concorre para tudo",
em que cada árvore contribui para o todo com uma "porção de amor" (Aranha, s/d:
32).
As conseqüências "raciais" das idéias de Milkau são evidentes: "Um dos erros
dos intérpretes da história está no preconceito aristocrático com que concebem a idéia
de raça. Ninguém, porém, até hoje soube definir a raça e ainda menos como se
distinguem umas das outras." Sua conclusão poderia, sem o tom festivo, ser assinada
por Gobineau: "As raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas
com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre do
rejuvenescimento da civilização" (Aranha, s/d: 24).
As conseqüências mais brasileiras dessas idéias afastam Milkau de Gobineau
mas o aproximam de Gilberto Freyre: o Brasil seria "um conjunto de raças e castas
separadas" se não fosse "a forte e imperiosa sensualidade dos conquistadores" que
se encarregou de formar "essa raça intermediária de mestiços e mulatos, que é o
laço, a liga nacional" (Aranha, s/d: 129-30). No entanto a aproximação é ilusória, pois
Milkau logo revela sua "teoria do branqueamento": "No futuro remoto, a época dos
mulatos passará, para voltar a idade dos novos brancos, vindos da recente invasão."
Segundo José Paulo Paes, Canaã, enfatizando seu "caráter eminentemente pré-
modernista", reconhecia "a participação das 'raças virgens, selvagens' no processo
civilizatório, ainda que lhes atribuísse, dentro dele, um papel dependente e passivo"
(Paes, 1992:93), coisa que não vai acontecer nem com Gilberto Freyre nem com
Oswald de Andrade. Mesmo assim, José Paulo Paes admite que "o utopismo de
Canaã não está muito distante do
P. 67
da Antropofagia, com sua estratégia de devoração cultural e o seu sonho de uma
Revolução Caraíba" (Paes, 1992: 98).
Canaã estava mais próximo das idéias de lvio Romero, autor que, por sua
vez, também reinterpretava à sua maneira algumas das idéias mais queridas de
Gobineau. Romero participava ativamente dos debates sobre raça e desenvolvimento
nacional tomando posições que, muitas vezes, por sua ambigüidade, pareciam
distanciar-se das posições eugenistas [NOTA 1] defendidas por outros escritores e
cientistas brasileiros nas polêmicas intelectuais do país (para uma descrição
detalhada dessas polêmicas, ver Leite, 1976; Ventura, 1991; entre outros).
Thales de Azevedo afirma que, durante o período que tem início em meados
do século XIX e penetra na década de 1930 (com Oliveira Viana, Paulo Prado, entre
outros), o mestiço fornecia "elementos para a explicação das fraquezas e dos defeitos
de uma sociedade otimista mas um tanto descrente das qualidades de seu próprio
povo" (Azevedo, 1962: 74). Sílvio Romero não acreditava mais nas qualidades do
povo brasileiro que um intelectual eugenista; porém, como Milkau de Graça Aranha,
previa para o Brasil um futuro "melhor" do que a degeneração: o branqueamento.
A reflexão de Sílvio Romero partia de um ponto simples: o povo brasileiro é um
povo mestiçado: "pouco adianta por enquanto discutir se isto é um bem ou um mal; é
um fato e basta" (Romero, 1972: 435). Essa não seria uma característica exclusiva
dos brasileiros "porque o fenômeno se deu sempre desde a mais remota antigüidade,
porque desde os primórdios os povos se misturaram". No entanto "é nas terras mo-
dernamente povoadas que o fato se deixa surpreender mais em flagrante" (Romero,
1972: 436). Por isso, países como o Brasil devem debruçar-se sobre o problema e
propor-lhe soluções próprias.
Roberto Ventura assim resume as idéias de Romero, diferenciando-as das de
Gobineau:
P. 68
Sua teoria da mestiçagem e do branqueamento parte de uma
combinação de pressupostos racistas (existência de diferenças
étnicas inatas) e evolucionistas (lei da concorrência vital e do
predomínio do mais apto). Previa que o elemento branco seria
vitorioso na "luta entre as raças", devido à superioridade evolutiva,
que garante seu predomínio no cruzamento. Prevê, assim, o total
branqueamento da população brasileira em três ou quatro séculos
(Ventura, 1991: 51).
Como crítico literário, Sílvio Romero alia essa teoria do branqueamento à visão
da mestiçagem como um "fator de diferenciação nacional" (Ventura, 1991: 51),
diferenciação que é elemento importantíssimo em seus ataques nacionalistas ao
"mimetismo", isto é, a imitação das literaturas estrangeiras. Portanto, ao mesmo
tempo em que condena o brasileiro como um ser inferior, Sílvio Romero pode afirmar
que "todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias" (citado em
Leite, 1976: 186). Essa mestiçagem seria nossa única garantia de criar uma arte não-
imitativa.
A teoria do branqueamento é compartilhada por outros intelectuais como
Joaquim Nabuco, Afrânio Peixoto e João Batista de Lacerda [NOTA 2]. Todavia, as
razões pelas quais o mestiço ali é defendido nada têm a ver com o futuro entusiasmo
de Gilberto Freyre. A cultura mestiça não é valorizada por si própria. Ao contrário, é
olhada com desconfiança, e aceita na falta de algo melhor. Como comentam
Cavalcanti et al., mesmo o campo dos primeiros estudos de folclore realizados no
Brasil (incluindo os de Sílvio Romero) era perpassado pela "idéia da pobreza das
tradições populares" (Cavalcanti et al., 1992: 107). A mestiçagem era a única coisa
que o Brasil tinha de original, embora essa originalidade não significasse neces-
sariamente vigor ou riqueza.
Uma das contribuições mais marcantes do pensamento de Sílvio Romero para
as gerações intelectuais posteriores foi sua
P. 69
crítica apaixonada aos escritores românticos brasileiros, incluindo sua militância
antiindianista. Escritores como Jo de Alencar, ao procurar, como os românticos
europeus, as raízes nacionais, acabaram transformando o índio em símbolo de nossa
pureza cultural. [NOTA 3] Segundo Dante Moreira Leite, "o indianismo (...) cria uma
Idade Média brasileira, o que era talvez uma forma de atender às exigências estéticas
da época, mas também forma de dar conteúdo histórico ao nacionalismo" (Leite,
1976: 173). Apesar de, como mostra Alfredo Bosi, essa figura do "índio belo, forte e
livre" de Alencar ter sido modelada "em regime de combinação com a franca apologia
do colonizador" (como na submissão de Feri aos encantos da civilização branca
Bosi, 1992: 179), podemos ver no indianismo romântico um claro desejo de valorizar
determinados aspectos de uma "exuberante" vida tropical, que apontariam para a
superioridade da civilização tropical com relação à européia, justamente por estar
mais próxima do "natural". Mesmo Sílvio Romero reconheceu o valor de seu inimigo:
"Mas esse velho e por mim tão maltratado indianismo teve um grandíssimo alcance:
foi uma palavra de guerra para unir-nos e fazer-nos trabalhar por nós mesmos nas
letras" (Romero, 1972: 463). Daí a proliferação de poemas que cantam os céus
tropicais, que "têm mais estrelas", e reclamam da frieza das paisagens européias,
como nestes versos de Gonçalves de Magalhães: "regiões tão mortas/para mim sem
encantos e atrativos".
O que era desvantagem, viver nos trópicos, começava a ser transformado em
fonte de orgulho, o que se torna explícito em críticos pós-românticos como Araripe
Júnior, defensor, em 1888, de uma idéia de tropicalidade, contrapondo uma Europa
decadente ao realismo "quente" brasileiro, valorizando "o meio tropical e a mistura
étnica e cultural" (Ventura: 1991: 19). Temos aqui, entre os românticos e Araripe
Júnior, as raízes de um pensamento que vai desembocar no luso-tropicalismo de
Gilberto Freyre.
P. 70
Sílvio Romero modifica radicalmente o teor da busca pela autenticidade
nacional, colocando o mestiço no lugar da "não- imitação" ocupado pelo índio
romântico. Dizendo que "o índio não é brasileiro" (Romero, 1972: 469), ele vai
desqualificar as pretensões de um José de Alencar de fazer uma "poesia inteiramente
brasileira" por estar "haurida na língua dos selvagens" (citado em Leite, 1976: 174).
Fazer poesia em tupi não é fazer poesia brasileira e sim poesia tupi. O brasileiro nasce
quando começa a mestiçagem: "A nacionalidade da poesia brasileira pode ter uma
solução: acostar-se ao gênio, ao verdadeiro espírito popular, como ele sair do com-
plexo de nossas origens étnicas" (Romero, 1972: 470).
A mestiçagem brasileira nunca foi um fenômeno homogêneo. Os defensores
do mestiço como símbolo nacional tiveram que escolher, entre as várias mestiçagens
ocorridas no Brasil, aquelas que melhor se enquadravam em seus projetos de criação
de uma identidade nacional. Euclides da Cunha, por exemplo, nunca escondeu sua
preferência pelos sertanejos caboclos do interior contra os mulatos do litoral o que
é uma apologia do rural contra o urbano (o rural também era considerado mais
autêntico pelos românticos e pós-românticos). Affonso Celso, em seu livro Porque me
ufano de meu país (que virou uma espécie de cartilha escolar), de 1900, não cita o
mulato entre os mestiços brasileiros (Leite, 1976: 198). Porém, durante as primeiras
décadas do culo XX, os mulatos e o urbano passam a ocupar, cada vez mais, o
centro das atenções nos debates sobre as raízes da identidade brasileira. No campo
da música, o samba vira símbolo nacional, ao passo que as canções "caipiras"
paulistas e os ritmos nordestinos começam a ser vistos como fenômenos regionais.
Esse início de valorização da cultura mestiça, antes de Casa-grande e senzala,
não deve ser procurado no grosso da produção "acadêmica" da época. Mesmo
quando se criticam os pressupostos eugenistas, como no caso atípico de Manuel
Bonfim, o mestiço continua a ser visto como indolente, indis-
P. 71
ciplinado e imprevidente "por defeito de educação" (Leite, 1976: 254). Mesmo os
pioneiros dos estudos afro-brasileiros não escondiam seus preconceitos racistas.
Nina Rodrigues dizia que "a raça negra no Brasil (...) há de constituir sempre um dos
fatores de nossa inferioridade como povo" (citado em Leite, 1976: 218). Segundo
Oliveira Vianna, o negro nunca poderia absorver a cultura ariana, poderia quando
muito imitá-la (Leite, 1976: 230). E Arthur Ramos, apesar de ter afirmado que o negro
não é uma raça inferior, dizia, citando a mentalidade pré-lógica de Lévy-Bruhl, que a
cultura negra era atrasada (Leite, 1976: 238).
Sinais mais claros da valorização da mestiçagem e do popular urbano podiam
ser encontrados no cotidiano desses mesmos intelectuais (que, por exemplo,
criavam laços de amizade com músicos populares desde o tempo do romantismo,
como vimos no capítulo II) e em obras bastante especiais, como as dos citados
escritores Afonso Arinos, Graça Aranha, Lima Barreto e de pensadores como Alberto
Torres, que o próprio Gilberto Freyre (num momento de modéstia no final dos anos
50) reconhece ter sido seu precursor: "talvez o primeiro publicista brasileiro a inteirar-
se das pesquisas sobre as relações de raças com ambientes físicos e sociais que
vinham sendo realizadas por Franz Boas" (Freyre, 1974: clx). Freyre também cita os
trabalhos pioneiros (contra a "falta de confiança no mestiço") de Roquette Pinto, "um
ou outro" Cândido Rondon, J.B. de Lacerda, José Veríssimo, Inglês de Sousa, Afrânio
Peixoto, Gilberto Amado e, "com intermitências lamentáveis", Sílvio Romero e
Euclides da Cunha.
A tendência de valorizar a mestiçagem é uma opção pela "unidade da pátria"
e pela homogeneização, como mostra o debate sobre a imigração no Brasil. Segundo
Giralda Seyferth, nesse debate, que se iniciou "em meados do século passado" e
"atingiu seu auge durante o Estado Novo" (Seyferth, 1991: 165), o principal problema
era inventar uma forma eficiente de transformar os imigrantes em "brasileiros de fato".
Daí a
P. 72
pregação da miscigenação contra o pluralismo defendido pelas lideranças nascentes
entre os imigrantes que pretendiam manter a cultura (incluindo a língua) de seus
países de origem: "ao pluralismo pretendido por grupos étnicos se opunha o ideal de
homogeneidade nacional, a ser alcançado pela assimilação e miscigenação"
(Seyferth, 1991:175).
As críticas aos imigrantes, no final do século XIX, baseavam-se na teoria do
branqueamento. Como vimos, Sílvio Romero condenava a colonização feita por
alemães no Sul do país pelo fato de esses imigrantes resistirem a se misturar com
outros brasileiros, condição prévia a seu projeto de branqueamento total da população
brasileira em "três ou quatro séculos". O Brasil precisava de brancos, mas de brancos
que se misturassem com os brasileiros. Daí a frustração de Sílvio Romero ao ver "seu
povo" rejeitado pelos alemães como parceiros sexuais ou culturais: era preciso que
abrasileirássemos os alemães para que eles, branqueando-nos, nos civilizassem.
Uma estratégia quase antropofágica.
Outros tipos de imigrantes também eram avaliados segundo esse projeto de
miscigenação. Imigrantes indesejáveis, juntamente com alemães "segregacionistas",
seriam as raças "atrasadas" e "inferiores". Os negros africanos nem sequer eram
pensados como possíveis candidatos à imigração. Os chineses foram classificados
como decadentes e arriscados: o risco era a miscigenação "inadequada" (ver
Seyferth, 1991: 167). A imigração japonesa foi intensamente discutida, até na
Constituinte de 1934: entre seus defensores, "o impulso de mostrar o japonês como
miscigenável foi mais importante de que apresentá-lo como colono eficiente"
(Seyferth, 1991: 173). O imigrante mais cobiçado era o europeu branco e latino, que
não colocaria muitas dificuldades em se misturar com o resto da população brasileira.
Do lado dos imigrantes "pluralistas", a reação às tentativas de assimilação e
nacionalização forçadas também não escondiam seu racismo e desprezo pelo Brasil
(o que vai fazer Gilberto Freyre escrever uma conferência chamada Uma cultura
ameaçada: a luso-brasileira, como veremos no próximo capítulo). Giralda Seyferth
lembra artigos publicados no jornal Der Urwaldsbote, de Blumenau, no período que
antecedeu a Primeira Guerra Mundial, que citavam Gobineau para con-
P. 73
denar a mestiçagem, “chamando o caldeamento de raças no Brasil de 'caos étnico'"
(Seyferth, 1991: 178).
Essas atitudes de separatismo étnico foram intensamente reprimidas,
principalmente depois que o governo pós-Revolução de 1930 tornou semi-oficial a
política de miscigenação, valorizando inclusive os símbolos nacionais mestiços como
o samba (essa aproximação entre Estado e samba será descrita em outro capítulo).
As medidas da repressão foram inclusive legais. Manuel Diégues Júnior fala do Art.
121, Parágrafo 6º, da Constituição de 1934, determinando que a "entrada de
imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à garantia de
integração étnica", e que com essa finalidade criava uma quota de entrada de
imigrantes que não podia exceder 2% do total de imigrantes de cada nacionalidade
que entraram no país nos 50 anos anteriores (Diégues Jr., 1964: 335). A
Consolidação das Leis do Trabalho também determinava que "nenhum
estabelecimento poderia ter mais de um terço de empregados estrangeiros" (Diégues
Jr., 1964: 336). Toda essa legislação mostrava uma preocupação cada vez maior do
Estado brasileiro com sua "integração étnica", o nome oficial para a miscigenação.
Giralda Seyferth afirma que o "Estado Novo (...), mesmo mudando para uma
retórica racial disfarçada de democracia racial, não havia abandonado a tese do
branqueamento" (Seyferth, 1991: 171). No entanto, ao lado da teoria do branquea-
mento havia uma outra teoria da mestiçagem, advogada principalmente por Gilberto
Freyre, e que fez enorme sucesso nacional imediatamente depois da publicação de
Casa-grande e senzala em 1933. Não tinha como conseqüência necessária o
branqueamento da nação, mas chegava a valorizar, e muito, vários traços "negros"
do mestiço nacional. Essa nova teoria era também homogeneizadora, e muitas vezes
de modo radical, mas não havia em seus pressupostos teóricos a afirmação da
superioridade da raça branca que predominaria na "mistura final". O Brasil seria
sempre mestiço, e isso deveria ser a fonte de orgulho nacional. Veremos em
seguida como esse orgulho foi "inventado" por Gilberto Freyre.
P. 75
5
GILBERTO FREYRE
A publicação de Casa-grande e senzala foi recebida de imediato como um
grande acontecimento no mundo intelectual dos anos 30. Jorge Amado, o escritor que
praticamente inventou o romance "mestiço" brasileiro, assim recorda o evento: "Foi
uma explosão, um fato novo, alguma coisa como ainda não possuíamos e houve de
imediato uma consciência de que crescêramos e estávamos mais capazes. Quem
não viveu aquele tempo não pode realmente imaginar sua beleza" (Amado, 1962: 31).
E acrescenta: "o livro de Gilberto deslumbrava o país, falava-se dele como nunca se
falara antes de outros livros" (Amado, 1962: 35). Monteiro Lobato consegue ser ainda
mais bombástico: "qual o cometa de Halley, irrompeu nos céus de nossa literatura o
Casa-grande e senzala" (Lobato, 1951: 106). Antônio Cândido, no artigo que
escreveu sobre Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, fala do "impacto
libertador" de Casa-grande e senzala (Cândido, 1982: xxxix/xl). Os escritores Gilberto
Amado e Antônio Risério referem-se ao trabalho de Gilberto Freyre usando metáforas
psicanalíticas como, respectivamente, "distabuzação" e "desrecalque". Essas não são
opiniões solitárias: a maioria dos comentadores da importância de Casa-grande e
senzala ressalta seu caráter de ruptura com o tipo de reflexão sobre a cultura
brasileira que vinha sendo feita até então.
Essa ruptura pode ser pensada, entre outros aspectos, como uma inversão
valorativa do papel que o mestiço e a mestiçagem ocupam na cultura brasileira. De
degenerativa e
P. 76
causa dos grandes males nacionais, a mestiçagem passa a ser interpretada como um
processo cultural positivo, em torno do qual (e de seus produtos, como o samba, a
culinária afro-brasileira, as técnicas de higiene luso-tropicalistas etc.) os brasileiros
poderiam inventar uma nova identidade. Thales de Azevedo, autor de Civilização e
mestiçagem, publicado em 1951, comenta: "Cabe, porém, a Gilberto Freyre um papel
singular: o de desencadear uma autêntica revolução no método da História Social e
da Antropologia Cultural nacionais." Essa revolução pode ser percebida sobretudo na
"perspectiva inteiramente original em face da mestiçagem", que passa a ser
"apreciada como um fenômeno de outra ordem, diríamos mais nobre, de natureza
social e sentido positivo" (Azevedo, 1962: 76/77). Adotando um tom mais distanciado,
Roberto da Matta, antropólogo que recentemente também se dedicou ao problema
da identidade nacional brasileira, reconhece que "foi a obra de Gilberto Freyre a que
primeiro articulou com êxito essa história brasileira que todo brasileiro gosta (por
motivos claros e escusos) de contar para ele mesmo: que somos uma cultura 'mestiça'
e misturada" ("A hora e a vez de Gilberto Freyre", Folha de São Paulo, Folhetim,
24/07/87, p. B-4/B-5).
Era como se todos os brasileiros estivessem esperando a "revolução"
desencadeada por Gilberto Freyre (ou a história por ele articulada que "todos" os
brasileiros imediatamente adotaram como espelho). O sucesso "instantâneo" e a
adoção "espontânea" de uma idéia "revolucionária" o acontecem todos os dias.
Talvez porque nada, na "ecologia" das idéias, seja tão instantâneo ou espontâneo
assim. Parecia existir uma expectativa generalizada em rios setores do mundo
intelectual, que o relacionamento entre intelectuais e músicos populares apontado no
capítulo II deixou entrever, de que uma explicação/distabuzação como aquela
desenvolvida em Casa-grande e senzala surgisse a qualquer momento. Por isso o
"deslumbramento" descrito por Jorge Amado e o "êxito" mencionado por Roberto da
Matta.
Essa expectativa tinha semelhanças com o clima criado pelo movimento
higienista francês antes da publicação dos trabalhos de Pasteur (que foram saudados
como obras de gênio antes mesmo que seus resultados fossem testados por
P. 77
outros cientistas ver a interpretação da vitória de Pasteur no livro The
Pasteurization of France, de Bruno Latour La- tour, 1988). Existia um vazio
esperando ser preenchido: e os micróbios acabaram ocupando-o. Não exatamente
por ser a idéia verdadeira. Como diz Bruno Latour: "Uma idéia, mesmo uma idéia de
gênio, mesmo uma idéia que é para salvar milhões de pessoas, nunca se move por
si própria. Ela requer uma força para impulsioná-la, usá-la para seus próprios motivos,
movê-la, e freqüentemente transformá-la" (Latour, 1988: 16).
Não é todo mundo que concorda com a afirmação latouriana. É muito comum
escutarmos narrativas de "grandes descobertas" e "revoluções metodológicas" em
que as idéias parecem surgir do nada e se movimentar no nada, como se fossem
pura ruptura, fruto de mentes fantásticas que funcionam em isolamento quase
absoluto. É preciso analisar as forças que movem as idéias e as outras forças que
"escondem" as forças que movem as idéias. Não é objetivo deste livro fazer tal análise
com relação à obra de Gilberto Freyre. Mas alguns comentários são relevantes para
a discussão posterior sobre a transformação do samba em música nacional.
O próprio Gilberto Freyre foi um dos principais incentiva- dores do
"deslumbramento" com que suas idéias foram recebidas e de uma interpretação de
seu "êxito" como uma espécie de iluminação religiosa e absolutamente pessoal.
foi bastante citado o trecho do Prefácio à 1ª edição de Casa-grande e senzala em que
Freyre afirma que, "dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto
como o da miscigenação", [NOTA 1] para em seguida descrever uma cena que
presenciou nos Estados Unidos quando fazia seus estudos de pós-graduação na
Columbía University:
Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do
Brasil, um bando de marinheiros nacionais mulatos e cafuzos
descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve
mole do Brooklyn.
P. 78
Deram-me a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à
lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de
ler sobre o Brasil: 'the fearful mongrel aspect of most of the population'
(Freyre, 1981: lvii).
Como o horror e o desprezo foram transformados em admiração e elogio? A
explicação parece mágica: “Foi o estudo da Antropologia sob a orientação do
Professor Boas que me revelou o negro e o mulato no seu justo valor." E ainda: com
a antropologia e Boas, "aprendi a diferença entre raça e cultura" (Freyre, 1981: lvii).
Então, o jovem intelectual do Recife aprendeu fora do seu país a valorizar a
mestiçagem, que passa a ser considerada fonte da verdadeira cultura brasileira.
Ricardo Benzaquem de Araújo comenta essa passagem:
Gilberto, como se pode perceber, arma o cenário de uma verdadeira
história de conversão: temos uma primeira posição absolutamente
pecaminosa, um neófito, um mestre, a possibilidade de transformação
pelo estudo e finalmente a aquisição de uma nova e superior forma
de verdade (Araújo: 1993: 12).
Nessa narrativa de "revelação" e "conversão", a produção intelectual brasileira tem
importância bastante secundária. Era como se, para o meio intelectual do país que
procurava explicar, as idéias de Casa-grande e senzala e a valorização da cultura
mestiça tivessem surgido out of the blue.
No seu diário, em trecho escrito em Nova York em 1921, Gilberto Freyre
uma outra versão para a sua visão do Brooklyn:
Vi um desses dias marinheiros de guerra do Brasil caminhando pela
neve do Brooklyn. Pareceram-me pequenotes, franzinos, sem o vigor
físico dos autênticos marinheiros. Mal de mestiçagem? Entretanto, no
artigo que, a meu pedido, escreveu para El Estudiante a revista
para estudantes da América Latina que dirijo juntamente com Oscar
Gacitua, chileno o sábio John Casper Branner faz o elogio do
mestiço brasileiro, mesmo quando de aspecto assim pouco ou nada
atlético. (Freyre, 1975: 68) [NOTA 2]
P. 79
Apesar de admirar as idéias de Boas, como demonstram trechos anteriores desse
mesmo diário (páginas 43, 44, 62), a antropologia não é aqui mencionada como
antídoto contra o mal-estar provocado pela visão da mestiçagem. Quem aparece em
socorro de Gilberto Freyre, então um jovem de 21 anos, é John Casper Branner,
geólogo que viajou várias vezes ao Brasil e publicou trabalhos como Geografia do
Nordeste da Bahia, A pororoca do Amazonas e Geologia do Brasil. O "elogio do
mestiço brasileiro" é sempre legitimado por uma autoridade "sábia" estrangeira. E
Gilberto Freyre trocava de autoridade para atingir seus objetivos de reforçar
determinadas idéias no campo intelectual brasileiro. No caso do Prefácio à 1 edição
de Casa-grande e senzala parecia estar claro um grande desejo de se identificar
como antropólogo, nomeando Boas como o responsável por seu "elogio do mestiço".
Na realidade, muitos outros fatores e "forças" (para continuar citando Bruno Latour)
contribuíram para essa famosa "revelação antropológica".
Gilberto Freyre não passou a se interessar pela cultura popular mestiça
brasileira depois dessa viagem para os Estados Unidos e do encontro com a
antropologia. Parece mesmo que estava buscando, com seus estudos, uma
justificativa academicamente aceitável para o respeito que sentia, respeito
compartilhado por vários outros intelectuais brasileiros de sua geração, pela cultura
popular de seu país e de sua região. Além disso, procurava argumentos fortes para
atacar a "falta de confiança no mestiço" que dominava, pelo menos formalmente, o
pensamento brasileiro desde o final do século XIX.
O interesse de Gilberto Freyre por diversas manifestações da "vigorosa" cultura
popular e tropicalista brasileira vem, pelo
P. 80
menos, do início de sua adolescência. Aos 15 anos ele relata em seu diário o espanto
ao notar que se emociona com formas pouco eruditas da musicalidade nordestina:
(...) desconfio de que sou um tanto sentimental. Senão, como se
explica que eu tenha chorado como nos meus dias de menino ao ouvir
uma dessas noites, sozinho, no silêncio da noite, o canto popular, em
português errado, mas estranhamente saudoso e triste da lapinha a
caminho da queima: “A nossa lapinha vai se queimar, apara o
ano se nós vivos for"? (Freyre, 1975: 4).
Esse espanto e essa desconfiança de que existe algo errado em apreciar tais
manifestações populares logo vão ser superados. Freyre se transformará num dos
mais intransigentes defensores do que identifica como a autenticidade brasileira (no
movimento mesmo que cria esse modelo de autenticidade) contra os inimigos da
cultura mestiça e amantes da erudição européia. Defendendo-se de artigos
publicados em jornais pernambucanos logo depois de sua volta ao Brasil, em 1923,
e que o acusavam de "exótico" e "estrangeirado", escreveu em seu diário:
A verdade é que eu é que me sinto identificado com o que o Brasil
tem de mais brasileiro. Estes supostos defensores do Brasil contra um
nacional, que dizem degenerado ou deformado pelo muito contacto
com universidades estrangeiras, me parecem excrescência. O próprio
Rui Barbosa (...) me parece ter errado, e muito, pela sua enorme falta
de identificação [NOTA 3] com o Brasil básico, essencial, popular, sem
que se a este adjetivo "popular" o sentido demagógico
(Freyre, 1975: 128).
O crescente respeito e a militante valorização do popular nunca o significar, em
Gilberto Freyre, uma condenação do cosmopolitismo e do modernismo. Pelo
contrário: em seus escritos aparece, ao lado do elogio do "Brasil básico" (o que
P. 81
estava sendo definido em seus trabalhos), uma profunda admiração por escritores
como James Joyce, Ezra Pound e Marcel Proust. Todavia, quando o modernismo
chega ao Brasil, Freyre radicaliza sua posição, querendo "abrasileirá-lo" a qualquer
custo, valorizando os artistas que procuravam alguma identidade com o popular e a
"situação brasileira". Este trecho de seu diário, escrito em 1924, é um exemplo desse
tipo de cobrança:
Mário de Andrade (...) não dá as costas ao Brasil. É bem diferente do
Graça Aranha do "todo universal". Mas não deixa de ser o Mário de
Andrade, postiço, em grande parte de sua modernice mais copiada de
modernismos europeus que inspirada em sugestões da situação
brasileira. Justiça lhe seja feita, pom: está agora procurando inteirar-
se da situação brasileira além de São Paulo até da Amazônia. E
mais catártico que Mário talvez seja Oswald de Andrade (Freyre,
1975: 135).
O tom da crítica parece o de um nacionalista contrário à eclosão da bossa nova
ou do rock brasileiro. Só pode existir a acusação de "postiço" quando já está definido
o que é ser brasileiro. Gilberto Freyre, em 1924, parece ter encontrado a sua
definição.
Essa definição não é rígida nem uniforme. Em determinados momentos ela
parece ser pura provocação política. Em outros, o brasileiro é mais bem identificado
com o regional, destruindo sua aparente homogeneidade. No texto "Complexidade da
antropologia e complexidade do Brasil como problema antropológico", publicado em
1962, Gilberto Freyre deixa clara uma idéia que estava esboçada no Manifesto
regionalista que escreveu em 1926:
No Brasil sabe-se, por observação, que ao nome político "Brasil" e ao
nome "brasileiro" não correspondem perfeita unidade somática nem
vigorosa unidade psicológica (do ponto de vista da chamada
psicologia de raça); nem mesmo unidade de cultura absoluta (Freyre,
1962a: 34).
As tentativas de unificar a cultura brasileira podem sacrificar as
"espontaneidades regionais que em vez de fazerem dano a essa cultura comum,
enriquecem-na" (Freyre, 1962a: 39). Em
P. 82
outro artigo sobre as idéias aparentemente opostas de Brasil como continente e Brasil
como conjunto de ilhas, Gilberto Freyre prega a sua complementaridade: "o sentido
de continente a nos defender dos excessos do de ilha; o de ilha a nos defender dos
excessos do de continente" (Freyre, 1962b: 150). E complexificando mais ainda (e
mostrando talvez sua inclinação pela ilha), acrescenta:
o sentido de continente é que seria para nós um limite, embora limite
saudável e útil; enquanto, um tanto paradoxalmente, o sentido de ilha
seria o universalismo como uma aventura quase sem limites (Freyre,
1962b: 151).
O universalismo do regional é bem frisado no Prefácio à 4 edição, escrito em
1967, do Manifesto regionalista, diferenciando sua "atuação no sentido de unir-se o
regional ao universal, o tradicional ao moderno" (Freyre, 1967: xvii) de um movimento
"regionalista-caipirista" (Freyre, 1967:xx). O regionalismo incentivado nesse
manifesto de 1926 fazia "a defesa de uma pintura, de uma escultura e de uma
arquitetura que fossem de vanguarda nas formas, embora, substancialmente,
regionais" (Freyre, 1967: xvi). Na realidade, o manifesto parece mais uma defesa das
delícias da culinária pernambucana e uma coleção de ataques irônicos às
"estrangeirices", ao que "o Rio e São Paulo consagram como 'elegante' e como 'mo-
derno'", ou às "bebidas engarrafadas" (em prol da água de coco-verde).
O Manifesto regionalista também lança, em tom polêmico, algumas das idéias
básicas do pensamento de Gilberto Freyre. Cozinheiras, cantadores, babalorixás,
curandeiros, matutos, morenas e jangadeiros são considerados os novos mestres:
"Quem se chega ao povo esentre mestres e se torna aprendiz." Ou ainda: "quem
se aproxima do povo desce a raízes e a fontes de vida" (Freyre, 1967: 66). A força de
intelectuais como (e aqui Gilberto Freyre, diferentemente do que faz no prefácio de
Casa-grande e senzala, está construindo sua genealogia no pensamento brasileiro)
Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, José de Alencar e Augusto dos Anjos se originou no
"contato com a gente do povo". As semelhanças com a idéia de cultura popular no
romantismo alemão (cujas idéias na
P. 83
cionalistas serão analisadas no Anexo 1) terminam nos parágrafos seguintes a essas
afirmações da mestria do povo. No Brasil de Gilberto Freyre seria impossível
"romantizar" em torno de uma raiz pura da cultura popular. "Pois o Brasil é isto:
combinação, fusão, mistura" (Freyre, 1967: 67).
Essa idéia de um Brasil mistura (que se confunde com o Brasil básico) serve
de contraponto ao antiestrangeirismo radical de outras passagens do manifesto. O
radicalismo atua mais como uma pose, uma estratégia política para ridicularizar os
adversários. Gilberto Freyre sabia que nesse tipo de debates não se pode exigir uma
coerência eterna em matéria de lógica argumentativa. E nisso apenas dava
continuidade ao antipositivismo de quem declarou para seu diário, aos 21 anos, que
"das filosofias cujos diferentes sabores venho experimentando, as que me atraem
mais são a de Santo Agostinho contra a de São Tomás, a de Pascal contra a de
Descartes, a de Nietzsche contra a do próprio Kant. E agora James e Bergson contra
Comte e Mill" (Freyre, 1975: 47). José Lins do Rego, falando da formação intelectual
de seu amigo, dizia que "do seu contato com as idéias de Maurras, e principalmente
de Georges Sorel, resultaria o avigoramento de suas idéias contra a centralização"
(citado em Menezes, 1944: 84). E Régis de Beaulieu, nobre companheiro de Gilberto
Freyre em suas primeiras andanças parisienses, também teria dito: "Freyre é a
criatura mais deliberadamente hostil aos sistemas de idéias" (citado em Menezes,
1944: 84). As tentativas de cobrar coerência lógica a Freyre são rechaçadas até em
matéria de gosto culinário:
A propósito dos quitutes de Pedro, [Manuel] Bandeira tem me
criticado por preferir a muitos deles bifes à inglesa, carneiro assado à
inglesa, salmão, paté, caviar, comidas em lata. "Que espécie de
regionalista é este?", pergunta Bandeira, muito ancho de sua gica.
A verdade é que não pretendo ser lógico nem no meu "regionalismo"
nem em nenhuma das minhas atitudes. Logo que regressei ao Brasil,
os quitutes da terra me voltaram a empolgar o paladar de modo
absoluto. Agora, não: tenho minhas saudades, e grandes, de comidas
anglo-saxônias e francesas. Volto a elas uma vez por outra: sempre
que é possível fazê-lo através de guloseimas enlatadas e de
P. 84
conservas. O paladar é como o coração de que falava Pascal: tem
suas razões que a razão desconhece (Freyre, 1975: 221).
Temos aqui um retrato pitoresco do intelectual brasileiro dividido entre as delícias de
uma defesa politicamente correta (mas também emocionalmente sincera) do popular
brasileiro/tropical e as outras delícias do cosmopolitismo "ocidental". Reaparecem as
duas libidos de Afonso Arinos, a carta sempre de volta ao endereço do remetente.
Como conciliar as duas libidos, os dois paladares? Será preciso conciliá-los? Não, se
a preferência, tantas vezes efêmera, por um dos "paladares" não significar o desprezo
ou a condenação do outro. Como, para Gilberto Freyre, o paladar mestiço e tropical
é o mais "fraco" no panorama intelectual, sua defesa é prioritária. O caviar teria
advogados em demasia.
O cosmopolitismo e o amor pela cultura popular de Gilberto Freyre tinham
limites bem claros, que denunciavam seus fundamentos aristocratizantes. Esses
limites perduraram ao longo de quase toda a sua vida. É interessante constatar que,
em 1978, ao escrever uma introdução para o livro Tempo de aprendiz (que reúne
seus artigos publicados em jornais de 1918 a 1924), Freyre tenha lamentado o
"aristocracismo ou elitismo" desses primeiros escritos públicos, mas se tenha
mostrado orgulhoso pela "extrema simpatia pelas artes e coisas populares"
contidas. É estranho que não tenha notado, em sua releitura desses artigos, uma
extrema antipatia por "coisas populares" como o jazz e o cinema de Tom Mix. Parece
que, na definição de Gilberto Freyre (mas não dele inúmeros folcloristas e
defensores da cultura popular também pensaram e pensam assim), o popular não
inclui, nem deve incluir, manifestações da cultura popular "industrializada", princi-
palmente aquela produzida desde o início do século nos Estados Unidos.
P. 85
É estranho que Gilberto Freyre não tenha mostrado, em 1921, para com o jazz
de Nova York, uma música que estava sendo criada e popularizada durante sua
temporada norte-americana (como será comentado no Anexo 2), o mesmo interesse
que sentiu diante do samba carioca, cinco anos mais tarde (em seu encontro do
Catete). Seus artigos que mencionam o jazz são tão preconceituosos quanto os
escritos de um Theodor Adorno sobre o mesmo assunto e sobre a “indústria cultural"
em geral (ver, por exemplo, Adorno & Horkheimer, 1978).
Em 13 de janeiro de 1921 os leitores do Diário de Pernambuco foram
informados que "as danças americanas do dia (...) são bárbaras. Tão bárbaras como
as músicas este 'jazz' e este 'rag time' horrorosos" (Freyre, 1979, vol. I: 155). Em
13 de maio de 1923, novo ataque: "a jazz music que acompanha as danças
modernas; esta deve embrutecer". Gilberto Freyre continua seu artigo comunicando
os resultados de uma experiência realizada no zoológico de Nova York, onde se tocou
jazz para os animais: "os macacos não se limitaram, à maneira das cegonhas, à
filosófica indiferença ou apatia; neles o jazz excitou fúrias homicidas, iconoclásticas e
creio até, mas não estou certo, suicidas" (Freyre, 1979, vol. I: 257).
São palavras espantosas para um aluno de antropologia que já desfrutara, por
mais de dois anos, da convivência de Franz Boas, e que deve ter sido colega de Zora
Neale Hurston, escritora que pouco tempo mais tarde iria fazer parte da Harlem
Renaissance (ver o Anexo 2) ao lado de Langston Hughes, autor de poemas como
Jazzonia. Gilberto Freyre não cita nem uma vez, nesses artigos, a origem negra do
jazz. Será que o fato lhe era desconhecido? Os artigos parecem irônicos, frutos de
uma ironia construída para parecer superioridade, como se seu jovem autor quisesse
provar para seu público que tinha bom gosto e que devia ser respeitado como
intelectual apesar da pouca idade: música boa era Richard Strauss.
Freyre se mostrava também preocupado com a influência do jazz no Brasil: "os
detritos que nos vêm dos Estados Unidos e da Europa Zás, engolimo-los! Ante as
coisas dignas de assimilar, conservamo-nos de gelo, como miseráveis cães sem
P. 86
faro" [NOTA 4] (Freyre, 1979, vol I: 156). Sua sugestão para combater o mal: o ensino
de "danças estéticas" na escola. Mas tudo com um tom nacionalista: "Poderíamos
adaptar, dos nossos índios e dos nossos negros mais primitivos, certas danças que,
talvez, passassem ao mundo como vitórias brasileiras" (Freyre, 1979, vol. I: 156).
Não se trata de desvario de juventude. Em Sobrados e mucambos, publicado
em 1936, Gilberto Freyre repetia quase essa mesma idéia ao afirmar, com um tom de
aprovação, que os passos do samba estariam hoje "se arredondando na dança antes
baiana que africana, dançada pela artista Carmem Miranda sob os aplausos de
requintadas platéias internacionais" (Freyre, 1968: 522). Os artistas podem "sublimar"
(Gilberto Freyre usa essa palavra) as brutas "energias" dos negros e pardos. O Brasil
só teria a lucrar com a união entre a estética e o popular.
Talvez o entusiasmo de Gilberto Freyre ao ouvir o grupo de Pixinguinha e
Donga advenha do fato de que o próprio povo já estaria "arredondando" seus ritmos,
preparando o caminho para uma "vitória" musical brasileira. Aquela música não
seria mais puramente negra, puramente "primitiva". Mas o jazz também era essa
ponte cultural entre raças diferentes. Talvez não tivesse se entusiasmado pelo samba
se o conhecesse num momento de explosão comercial, como foi o caso do jazz no
início dos anos 20. Não devo, neste livro, entrar nesse tipo de especulação. Queria
apenas mostrar que a simpatia de Gilberto Freyre pela cultura popular urbana
brasileira não se estendia a todas as culturas populares urbanas do mundo. O jazz,
por exemplo, esteve fora dos limites de seu cosmopolitismo.
P. 87
É preciso tomar enorme cuidado quando afirmamos que Gilberto Freyre pregava uma
união entre brancos e pretos, entre "cosmo" e "regio", entre elite e povo. Aqui nada é
tão simples quanto o "dai-vos as mãos uns aos outros" (Arinos, 1969: 895) de Afonso
Arinos. Diogo de Melo Menezes identifica no pensamento freyreano "uma convivência
de diversidades e até contradições" e "uma paixão pela complexidade contra o
simplismo: uma complexidade que ele não sacrifica à coerência lógica" (Menezes,
1944: 237). Essa descrição também serve para o seu ideal de sociedade, para aquilo
que elogia no luso-tropicalismo, atribuindo-lhe superioridade diante de outras formas
de civilização. Ricardo Benzaquem de Araújo mostra em detalhes como Gilberto
Freyre propõe "uma compreensão da mestiçagem como um processo no qual as pro-
priedades singulares de cada um desses povos não se dissolveríam para dar lugar a
uma nova figura" (Araújo, 1993: 38). A miscigenação seria muito mais um precário
equilíbrio de antagonismos, em que as diferenças podem conviver entre si pacífica e
intensamente.
O mestiço, entendido da maneira exposta acima, seria a melhor resposta a um
mundo de intensa diversificação como é, para Gilberto Freyre, o mundo tropical. Os
trópicos são a região da variedade, daquilo que chamava de "multiplicidade das
formas". A mestiçagem parece "combinar" com essa natureza tropical por sua maior
possibilidade de se adequar ao (e, talvez mais importante, de aceitar o)
diverso/variado. O incentivo à miscigenação foi um dos maiores acertos da colo-
nização portuguesa. Seu maior erro talvez tenha sido, sempre para Gilberto Freyre,
a monocultura, acusada de "perverter a natureza tropical". O certo seria incentivar a
"variedade na produção agrícola". Portanto, a monocultura (e a metáfora da
monocultura) passa a ocupar o lugar da miscigenação como a causa de todos os
males nacionais, [NOTA 5] justamente por tentar
P. 88
impor o único sobre o inevitavelmente (naturalmente) diverso. "Felizmente" a natureza
e a cultura se revoltam criando "ilhas" de variedade na monocultura.
O mestiço estaria muito mais adaptado à exuberância do mundo tropical,
podendo lidar criativamente com aquilo que não é homogêneo. Essa tendência à
"morenidade" não foi exatamente inventada nos trópicos. Suas raízes seriam ibéricas:
o estímulo à diferenciação, ao "se sentir em casa" no heterogêneo, seria
conseqüência direta da "complexidade étnica e cultural portuguesa". Mas mesmo
assim a aptidão brasileira a se relacionar com o indefinido e o diverso é considerada
por Gilberto Freyre nossa grande originalidade como experiência civilizatória, aquilo
que nos marca como diferentes, justamente por estarmos mais abertos à diferença e
podermos incluir o indefinido em nossa definição de identidade.
Segundo Gilberto Freyre, a possibilidade de as diferenças deixarem de
interagir, mantendo-se absolutamente afastadas, é um perigo constante para
qualquer sociedade. Nisso seu pensamento tem vários pontos em comum com o de
Sílvio Romero (sem a idéia de um "branqueamento" no final do processo de
interação). Em artigo de 4 de novembro de 1923, publicado no Diário de Pernambuco,
Freyre mostra-se preocupado com a disseminação do "elemento israelita no Nordes-
te". O problema desses novos imigrantes seria o mesmo que incomodava Sílvio
Romero nas colônias alemãs do Sul do país: seu "exclusivismo". A ameaça estaria
na "constituição de um 'Nós' dentro do 'Nós' nacional" (Freyre, 1979, vol. I 329).
[NOTA 6] Anos depois, em 1940, escrevería sua conferência Uma cultura ameaçada:
a luso-brasileira, atacando "congressos culturais e políticos direta ou indiretamente
antiluso-brasileiros em
P. 89
que se discutem assuntos como 'as minorias fazem a história'" (Freyre, 1942: 69).
Durante essa conferência eram citados trechos de documentos "típicos" desse gênero
de antiluso-brasileirismo (que, insinuava-se, devia ter conexões com o nazismo
[NOTA 7]). Um exemplo da propaganda antinacional:
(...) o que não existe é povo brasileiro. Nisso todos nós estamos de
acordo. O que é um Estado brasileiro, no qual vivem diversos
povos, a saber, para citar apenas alguns, lusitanos, alemães,
italianos, japoneses, índios, negros etc. (...) Nós não reconhecemos a
etnia lusa como representante exclusiva do nacionalismo brasileiro.
Do mesmo modo não admitimos que essa concepção política seja
designada por nacionalismo (Citado em Freyre, 1942: 70-1).
Essas palavras, que seriam ouvidas com naturalidade num dos atuais encontros
"multiculturais", causam horror a Gilberto Freyre. Estaria em risco o "cuidadoso"
processo de miscigenação luso-brasileira.
Sobrados e mucambos pode ser entendido como a descrão de um processo
de decadência da miscigenação e do tropicalismo. Tudo começou com a
transmigração da família real portuguesa para o Brasil e a abertura dos portos,
rompendo com o isolamento colonial. Durante todo o século XIX teria crescido o
medo dos "olhos estrangeiros", o que levou os brasileiros a esconderem costumes
africanos e regionalismos (Freyre, 1968: 392). A modinha, o rapé, a cozinha mestiça,
os santos de cajá, as redes, as rendas teriam saído de moda, junto com a "inteligente
tolerância" com relação ao diferente, característica do luso-tropicalismo. Acabava-se
a aliança entre casa-grande e senzala, "formando-se um conjunto aristocrático
altamente definido e coeso, enquanto os mucambos, gradualmente expulsos para
zonas cada vez mais longínquas e insalubres, dão também a impressão de constituir
no limite uma cultura inteiramente separada" (Araújo, 1993:176). A
P. 90
"re-europeização" pela qual passou a elite brasileira seria "acima de tudo excludente".
Gilberto Freyre prega a volta do contato entre mundos diferentes, a volta da
miscigenação, a volta da mistura de culturas. Critica, como um bom romântico alemão
atacando a cultura "afrancesada" da nobreza prussiana, o artificialismo da "re-
europeização". No final de Sobrados e mucambos, Gilberto Freyre consegue até
perceber sinais de uma volta do "equilíbrio de antagonismos", mas, como aponta
Ricardo Benzaquem de Araújo, "não fornece nenhuma informação acerca da maneira
(...) como foi possível que elas [as tradições africanas], de repente, ultrapassassem
aquela barreira de civilidade e de preconceito e se mostrassem ativas e influentes
dentro dos Sobrados" (Araújo, 1993: 203).
Não é esse nesse de repente que estaria o "mistério do samba" apresentado
no primeiro capítulo deste livro? Gilberto Freyre fala da atuação dos mulatos urbanos
nessa transformação. Talvez, por um raro momento de modéstia, não tenha falado,
em Sobrados e mucambos, de seu próprio papel como "salvador da tria" mestiça:
ele e seus amigos teriam conseguido, contra os desejos da elite "re-europeizada",
reconhecer o valor tanto de Pixinguinha quanto do arroz-doce. Essa narrativa da re-
europeização (e da iluminação pró-miscigenação em Nova York) era conveniente
para transformar suas idéias em demonstração de heroísmo. O heroísmo da empatia.
Uma empatia que poderia, na utopia freyreana, reunir sobrados e mucambos.
A defesa explícita da empatia, palavra que segundo Diogo de Melo Menezes
também teria sido introduzida na língua brasileira por Gilberto Freyre, aparece num
prefácio, publicado em 1947, para Poemas negros, livro de Jorge de Lima. Gilberto
Freyre aproveita a ocasião para atacar os "inimigos do pitoresco", que negariam a
Jorge de Lima, por não ser "um indivíduo pessoalmente oprimido pela condição de
africano ou de escravo", o direito de escrever sua "poesia afro-nordestina". Retruca
com um argumento que poderia ser utilizado para combater alguns excessos
"multiculturais" (segundo os quais só negro pode falar de negro, só gay pode falar de
gay etc.) de hoje em dia: "Como se em arte e em literatura não houvesse empatia: a
empatia que fez um Tolstoi identificar-se
P. 91
profundamente com a gente mais oprimida da Rússia, sendo ele homem de classe
senhoril e a conde" (Freyre, 1987: 40). As conseqüências desse tipo de
argumentação são previsíveis:
Não felizmente no Brasil uma poesia africana como aquela nos
Estados Unidos, (...) poesia crispada quase sempre em atitude de
defesa ou de agressão (...). O que há no Brasil é uma zona de poesia
mais colorida pela influência do africano: um africano muito
dissolvido no brasileiro (Freyre, 1987: 43).
Alguns poemas de Jorge de Lima, além de serem exemplos dessa poesia
"colorida", podem mesmo ser considerados precursores de Casa-grande e senzala.
Cito versos de A minha América, publicado em 1927:
vós [americanos do norte] que inventastes o novo mundo,
não vistes a outra América furar
na escuridão que limita as fronteiras da raça,
furar com unhas longas e sem brilho
o canal do Panamá entre o México e vós outros.
E ainda:
Aqui os mulatos
substituíram os negros gigantes de Vachel Lindsay.
Aqui não há os selvagens felizes de Mary Austin.
Negros,
Selvagens,
Amarelos,
- o arco-íris de todas as raças canta pela boca
da minha nova América do Sul,
uma escala diferente da vossa escala.
A dissolução no arco-íris de todas as raças não significa o apagar das
diferenças, mas sim o convívio, sem separação, entre diferenças, com infinitas
possibilidades de combinações entre elas. Gilberto Freyre chama a colonização
portuguesa de "esplêndida aventura de dissolução": "os portugueses se têm
perpetuado, dissolvendo-se sempre noutros povos a ponto de parecer ir perder-se
nos sangues e nas culturas estranhas" (Freyre, 1942: 26-7). Parece, mas não é: a
dissolução é uma estratégia de perpetuar a diferença. Será que Gilberto Freyre viu
no samba um novo exemplo dessa esplêndida aventura?
P. 92
É estranho, num autor que diz, como foi citado, ser a música a arte em que
de preferência se tem manifestado o "espírito nacional" da gente luso-americana, ver
que Gilberto Freyre escreveu muito pouco sobre a sica popular brasileira. Em
Casa-grande e senzala o samba aparece apenas numa nota do capítulo II (para dizer
que, com o tempo, sua dança foi "deformada", adquirindo maior licenciosidade) e a
modinha num trecho que aponta suas relações com a gravidade da música religiosa
colonial (Freyre, 1981: 151). Em Sobrados e mucambos, o samba aparece pervertido
em "dança plebéia", depois salva por Carmen Miranda [NOTA 8] (Freyre, 1968:522).
E a modinha é citada algumas vezes como estilo musical envergonhado ante a re-
europeização da elite. Em Ordem e progresso, as preferências musicais dos
entrevistados merecem maior destaque, mas nada que se compare com o número de
páginas dedicadas à literatura. Além disso, em outros livros, aparecem elogios ao
pan-brasileirismo carioca de Villa-Lobos e pouca coisa mais. Talvez Gilberto Freyre
cultive essa característica que identificou entre os recifenses: "Amigos da economia
e do silêncio, evitamos a música ou, antes, fazemo-la substituir pela chamada cena
muda, que deliciosamente combina as vantagens da barateza e silêncio." Daí o
silêncio, ou melhor, as poucas palavras sobre o "encontro" em torno do qual o
presente livro está organizado.
Mas, antes de cairmos de vez no barulho do samba é necessário percorrer um
último caminho tortuoso (desses que nos parecem afastar do lugar ao qual
pretendemos chegar), tendo em vista completar os comentários sobre os inúmeros
mediadores, muitos deles mediadores entre mediadores, que
P. 93
colaboraram direta ou indiretamente para a realização do encontro entre a turma de
Gilberto Freyre e a turma de Pixinguinha. Resta ainda tentar responder a uma
pergunta séria: o que um modernista francês como Blaise Cendrars está fazendo
nessa história, apresentando Donga a Prudente de Morais Neto?
P. 95
6
O SAMBA MODERNO
Como foi citado, Gilberto Freyre escreveu, em artigo publicado no Diário de
Pernambuco em 1926, que uma das duas principais explicações para o "movimento
de valorização do negro" no Rio de Janeiro teria sido "a influência de Blaise Cendrars"
(Freyre, 1979: 329). Um poeta francês, representante das vanguardas artísticas de
Paris, ensinara a seus amigos modernistas brasileiros o respeito pelas "coisas
negras" e pelas "coisas brasileiras". Não é Gilberto Freyre quem enfatiza o papel
de Blaise Cendrars nessa "descoberta" do Brasil por nossos artistas modernos. Essa
é uma das explicações mais difundidas para um outro mistério (entre os inúmeros
mistérios do samba, da mestiçagem etc. que povoam este livro) envolvendo a
definição da identidade nacional brasileira no início do século XX. Trata-se daquilo
que Eduardo Jardim de Moraes chama de "duas fases" do modernismo brasileiro. O
mistério está em compreender como uma fase se transformou na outra:
Uma primeira fase, iniciada em 1917, caracteriza-se como a da
polêmica do modernismo contra o passadismo. Esta é uma fase de
atualização modernização em que se sente fortemente a absorção
das conquistas das vanguardas européias do momento e que perdura
até o ano de 1924. Uma segunda fase (...) que se inicia no ano crucial
de 24, quando a modernismo passa a adotar como primordial a
questão da elaboração de uma cultura nacional, e que prossegue até
o ano de 1929 (Moraes, 1978: 49).
P. 96
Em outras palavras: o que está no centro do mistério é saber como os nossos
modernistas deixaram de lado o "puro" vanguardismo internacionalizante e passaram
a tentar inventar uma imagem de Brasil que atendesse a seus interesses modernos.
Como se essa "reviravolta" (o termo é de Moraes), tão bem expressa nas idéias
do Manifesto pau-brasil, publicado em 1924?
A relevância da influência de Blaise Cendrars é apontada por inúmeros
autores. Eduardo Jardim de Moraes considera que Aracy de Amaral, Benedito Nunes
e Antônio Cândido dão importância exagerada a essa influência. Mas parece que os
próprios modernistas, na hora mesma em que viviam a "reviravolta", tendiam a
concordar com a opinião de seus futuros intérpretes. A pintora Tarsila do Amaral
chegou a fazer a seguinte declaração: "graças a Cendrars, essa viagem [aquela que
a própria Tarsila, ao lado de Mário e Oswald de Andrade, entre outros, fez com o
poeta francês para as cidades "coloniais" de Minas Gerais] coletiva de nossos poetas
'modernistas' deveria marcar, tanto para eles como para Cendrars, uma verdadeira
descoberta do Brasil profundo" (depoimento citado em Cendrars, 1957, vol. 15: ix).
Mário de Andrade se referiu a essa viagem como "excursões de 'descoberta' " (citado
em Sevcenko, 1992: 297), e Oswald de Andrade, numa demonstração de gratidão a
seu colega francês, dedicou o livro de poemas Pau-brasil "a Blaise Cendrars por
ocasião da descoberta do Brasil".
Os modernistas também pareciam querer propagandear essa "reviravolta" pela
qual passaram como uma iluminação, uma súbita revelação (mais uma vez
desencadeada por um outsider, como Franz Boas para a "valorização do mestiço" no
caso de Gilberto Freyre) que, de certa forma, em nada dependeria da situação
brasileira ou dos movimentos artísticos brasileiros anteriores ao modernismo. Mário
da Silva Brito, um dos mais importantes historiadores do modernismo brasileiro,
chega a dizer que "os modernistas não têm mestres no Brasil. Ou porque estão
mortos ou porque, mesmo vivos, são como praticamente inexistentes para eles"
(Brito, 1974: 137). O momento modernista seria aquele de inauguração de um novo
projeto de arte no Brasil (e do Brasil). Essa versão da história, que os modernistas
gostam de contar para si pró-
P. 97
prios, cortaria quaisquer laços que pudessem ser estabelecidos entre esse novo
projeto e as tentativas nacionalistas de um Graça Aranha, um Lima Barreto, um
Afonso Arinos, um Euclides da Cunha, um Sílvio Romero ou mesmo todos os
românticos "indianistas". Só assim o moderno cumpriria seu papel de ruptura radical
com o passado, com a "tradição".
Mas as coisas não se deram "exatamente"desse modo iluminado. As
preocupações com "a descoberta do Brasil" por parte dos próprios modernistas
antecediam a viagem pela Minas colonial acompanhando Blaise Cendrars. Hábitos,
influenciados pelo gosto das "coisas brasileiras", pareciam fazer parte de seu
cotidiano. Um cotidiano "nacionalista" não vivido pela "vanguarda" paulista, mas
por grande parte da elite política e econômica de São Paulo (com a qual os
modernistas nunca deixaram de ter, além de laços de família em alguns casos,
relações pelo menos cordiais [NOTA 1] mesmo quando havia alguma desconfiança
mútua).
A elite paulista vivia em ritmo de redescoberta do Brasil bem antes da
primeira visita de Blaise Cendrars a São Paulo em 1924. Nicolau Sevcenko descreve
a aproximação entre essa elite e a cultura popular (prefiro dizer redefinição do modo
de relação, que segundo o que os dados apresentados até agora neste livro
levam a supor nunca houve uma ruptura ou um afastamento radical nessa relação)
em seu livro Orfeu extático na metrópole. Segundo Sevcenko, um acontecimento
central para essa nova atitude teria sido a montagem, em 1919, no Teatro Municipal
de São Paulo, da peça O contratador de diamantes, de Afonso Arinos (encenada,
portanto, três anos depois da morte de seu autor): "O contratador surgiu assim, ao
mesmo tempo, como cristalização e como catalisa-
P. 98
dor de uma fermentação nativista que adquiria densidade crescente em direção aos
anos 20" (Sevcenko, 1992: 247).
Qual o motivo da importância dessa "simples" montagem teatral? Bem, nada
era tão simples assim, principalmente se levarmos em conta quem estava envolvido
na encenação daquele texto que tão bem representava (incluindo até uma cena de
congada, que foi dançada por negros "autênticos" no palco do Municipal) as idéias
"populares" ou "populistas" de Afonso Arinos: "Quando em maio de 1919 foi
apresentado o nome dos componentes do elenco e dos patrocinadores, eles
compunham uma autêntica relação do quem é quem na elite plutocrática paulista"
(Sevcenko, 1992: 241), envolvendo até a participação ativa do então prefeito de São
Paulo, e futuro presidente do Brasil, Washington Luís.
O sucesso foi retumbante, desencadeando uma espécie de furor nativista na
alta sociedade paulistana: "Depois de d'O contratador, aquilo que era uma corrente
intelectual [representada principalmente pela Revista do Brasil, criada em 1916 pela
Liga Nacionalista, e pela literatura regional "caipira" de Monteiro Lobato, Amadeu
Amaral [NOTA 2] e Valdomiro Silveira, entre outros] se transforma numa moda de
ampla vigência social" (Sevcenko, 1992: 247). Além disso, "Afonso Arinos foi alçado
à posição de herói intelectual dos novos tempos" (Sevcenko, 1992: 242).
A moda "nativista" atacou em várias frentes. Foram realizados com grande
sucesso, por exemplo, "saraus regionalistas" em que "distintas senhoritas"
interpretavam canções sertanejas ao violão e escritores famosos liam seus poemas
de tendências caipiras. Nicolau Sevcenko cita vários outros produtos dessa "paixão
nacional", de quermesses ao cinema sertanejo, e faz o seguinte comentário sobre
essa situação de intensa reordenação das relações intermundos culturais:
O quanto esses deslizamentos, sobreposições e fusões entre
tradição, nativismo, modernidade e cultura popular eram efeitos
deliberados, o quanto eram contingências imponderáveis das
condições de urbanização, trans-
P. 99
formação tecnológica e oscilações na estrutura socioeconômica, é um
limiar difícil de distinguir (Sevcenko, 1992: 250).
O fato é que a elite paulistana parecia se divertir com seu novo encanto pelas
"coisas brasileiras". Mais que isso: ela estava inventando um orgulho por habitar o
país que produz essas coisas.
Os modernistas paulistanos não podiam deixar de ser contaminados por esse
orgulho popular-nacional, e isso se deu muito antes do encontro com Blaise Cendrars.
Parecia mesmo que estavam preparados para tal encontro e podiam atender às
exigências francesas de "diferença" e "exotismo". Tanto que, em 1915 (bem antes da
estréia da peça de Afonso Arinos), Oswald de Andrade, em seu momento mais
"futurista", tinha escrito um artigo intitulado "Em prol de uma pintura nacional", em
que advogava a seguinte idéia: "não nos faltam os mais variados modelos de cenário,
os mais diversos tons de paleta, os mais expressivos tipos da vida trágica e opulenta
do nosso vasto hinterland" (citado em Brito, 1976: 35). Anos mais tarde, em sua
temporada francesa de 1923, Oswald de Andrade fez, a convite do embaixador
brasileiro na França, Sousa Lima, uma conferência na Sorbonne em que "destacou a
presença sugestiva do tambor africano e do canto negro em Paris, como forças
étnicas que desembocavam na modernidade" (Nunes, 1978: xviii). Nesse mesmo
ano, Tarsila do Amaral [NOTA 3] sabia preparar a comida típica brasileira para os
amigos vanguardistas (Cendrars, Léger, Brancusi, Vollard, Supervielle, Delaunay,
Satie, Cocteau) que freqüentavam seu, e também de Oswald de Andrade,
apartamento de Paris. O menu consistia em feijoada, "nossos alcools" (cachaça?) e
compota de bacuri [NOTA 4] (do depoimento de Tarsila do Amaral em Cendrars,
P. 100
1957, vol. 15: viii). Os brasileiros que receberam Blaise Cendrars em seu primeiro
desembarque no porto do Rio de Janeiro, em 1924, também logo o levaram a
conhecer mais "coisas brasileiras": eram eles Graça Aranha, Ronald de Carvalho,
Américo Facó, Prudente de Moraes Neto, Guilherme de Almeida, Sérgio Buarque de
Holanda e Paulo da Silveira [nota 5] que, segundo Cendrars, "imediatamente me
iniciou à cozinha afro-brasileira, nos convidando a todos para almoçar num boteco do
porto" (Cendrars, 1976: 35).
Tanto o preparo da feijoada parisiense quanto a excursão ao boteco do porto
do Rio de Janeiro demonstram que os brasileiros já tinham uma familiaridade com as
"coisas brasileiras" que tanto interessavam a Blaise Cendrars. Mas esses mesmos
brasileiros afirmaram que foi Blaise Cendrars quem os fez descobrir o Brasil.
Devemos, como bons antropólogos, levar suas opiniões a sério. Blaise Cendrars agiu
como "cristalizador e catalisador" (para usar as expressões com as quais Nicolau
Sevcenko descreveu a ação de O contratador de diamantes) de tendências até então
dispersas e das quais os brasileiros modernistas com quem Blaise Cendrars conviveu
talvez nem se dessem conta. O mesmo aconteceu no encontro entre Gilberto Freyre
e Franz Boas com relação ao problema da mestiçagem. O elemento catalisador e
cristalizador passa a representar um processo muito mais longo de "tomada de
consciência". Nossos modernistas paulistas identificaram sua descoberta do Brasil
com Blaise Cendrars. Resta saber o que trouxe o poeta francês ao Brasil e qual a
razão de seu enorme interesse logo por esse tipo de "coisas brasileiras".
Blaise Cendrars era "uma das personagens mais centrais, mais em foco, mais
festejadas da vida artística de Paris e da Europa" (Sevcenko, 1992: 288). Seu
currículo incluía rios livros de enorme repercussão, argumentos para balés, roteiros
para o cinema experimental e amizades/parcerias com outros artistas de renome (e
decisivos para a história do modernismo
P. 101
mundial), como Léger, Milhaud e Cocteau, para citar apenas alguns.
Seu interesse pelas "coisas negras em geral" antecedera (e talvez tivesse
mesmo dominado) seu interesse pelas "coisas brasileiras". A Paris da virada dos anos
10 para os 20 vivia aquilo que James Clifford descreve como "um período de
crescente négrophilie, um contexto que veria a irrupção na cena européia de outras
figuras negras evocativas: o jazzman, o boxeador (Al Brown), a sauvage Josephine
Baker", a época em que "Picasso, Léger, Apollinaire e muitos outros vieram a
reconhecer a força 'mágica' elementar das esculturas africanas" [NOTA 6] (Clifford,
1988: 197). Clifford, seguindo os mandamentos da pós-modemidade antropológica,
critica essa atitude moderna por ser racista e sexista, além de aproxi-la da
antropologia:
Ambos os discursos assumem um mundo primitivo necessitado de
preservação, redenção e representação. A existência concreta e
inventiva da cultura e dos artistas tribais é suprimida no processo de
ou constituir mundos "autênticos tradicionais" ou apreciar seus
produtos na categoria atemporal da "arte" (Clifford, 1988: 200).
Jean Laude, em seu detalhista La peinture française (1905-1914) et l'art nègre,
lembra que essas influências "tribais" podiam ser notadas na arte francesa em 1907
e que "desde 1919 a arte africana entra, assim, progressivamente, no domínio público
e no circuito comercial, e se torna parte integrante do panteão estético" (Laude, 1968:
11).
Blaise Cendrars foi um dos principais agentes dessa "invasão negra" na arte
francesa, sendo inclusive o editor de uma Antologia negra, publicada em 1921, que
colocava lado a lado mitos e lendas de todas as etnias africanas com poemas e contos
de escritores modernos da África. [NOTA 7] Desse livro saiu
P. 102
o argumento para o balé A criação do mundo, musicado por Darius Milhaud e com
cenários e figurinos de Fernand Léger, estreado em 1923. Quando chegou ao Brasil,
em 1924, Blaise Cendrars quis logo, vorazmente, ter contato com essa cultura negra
nos locais onde era produzida.
Segundo os textos introdutórios da publicação em livro dos três únicos
números da revista Estética, Blaise Cendrars teria conhecido Donga em Paris, “onde
o compositor andara tocando com os Oito Batutas" (ver o verbete "Blaise Cendrars"
do Glossário de homens e coisas da Estética (1924/1925), p. xxiv). Blaise Cendrars
tem outra versão para esse encontro. O jornalista Brito Broca, em artigo para A
Gazeta de São Paulo, publicado em 1960, assim resume a entrevista, citada acima,
em que Blaise Cendrars conta como tudo ocorreu:
Recorda mais adiante [NOTA 8] um mulato com quem travou relações
no Rio, cuja semelhança com Max Jacob era extraordinária. Conhecia
todo mundo na cidade e, como Max, contava histórias dormir
débout", mas finas, inteligentes, por vezes pérfidas. Foi ele que o
levou aos "basfonds" e ao Cinema Poeira, em pleno centro urbano,
"um clube de negros seletos". E assim veio a encontrar-se com Donga
(citado em Amaral, 1968: 42/43).
Passo a palavra a Blaise Cendrars, com sua pitoresca descrição de Donga:
Era um negro de raça pura, [NOTA 9] de tipo daomeano perfeito, com
um rosto redondo como uma lua cheia, de um bom
P. 103
humor constante e uma graça irresistível. Ele tinha o gênio da sica
popular. Era autor de centenas e centenas de sambas (Cendrars,
1952: 72/73).
A entrevista prossegue com Blaise Cendrars contando como Donga ficou
satisfeito ao saber que tinham um conhecido em comum, o compositor erudito Darius
Milhaud. Donga mandou um recado a Milhaud: gostaria de compor uma música
chamada A vaca na Torre Eiffel [NOTA 10] em retribuição à homenagem que Milhaud
fizera à música popular brasileira em sua composição Le boeuf sur le toit, citação de
O boi no telhado, tango de Boiadeiro, pseudônimo de José Monteiro, que foi cantor
dos Oito Batutas, grupo de Donga e Pixinguinha.
Darius Milhaud aparece aqui, ao lado de Blaise Cendrars, como mais um
mediador internacional na história da transformação do samba em música nacional
brasileira. Ele morou no Rio de Janeiro de 1914 a 1918, onde trabalhou como
secretário particular do poeta Paul Claudel, ministro da Legação Francesa no Brasil,
portanto com status de embaixador, já que a França não tinha uma embaixada
brasileira naquela época. Foi assim que Milhaud conheceu Villa-Lobos. Vasco Mariz
assim descreve esse encontro: “Não tardaram a ficar amigos e Villa-Lobos mostrou-
lhe os tesouros da música brasileira, e carioca em especial. Levou-o a macumbas,
introduziu-o no meio dos chorões, fê-lo apreciar a sica carnavalesca" (Mariz, 1989:
50). Milhaud deve ter feito várias outras descobertas sozinho, desde sua chegada ao
Rio num sábado de carnaval. Sobre a música popular brasileira, escreveu:
Os ritmos dessa música popular me intrigavam e me fascinavam.
Havia, na sincopa, uma imperceptível suspensão, uma respiração
molenga, uma sutil parada, que me era muito difícil de captar. Comprei
então uma grande quantidade de maxixes e tangos; esforcei-me por
tocá-los com suas sincopas, que passavam de mão para outra.
P. 104
Meus esforços foram compensados e pude, enfim, exprimir e analisar
esse “pequeno nada", tão tipicamente brasileiro. Um dos melhores
compositores de música desse gênero, Nazaré, tocava piano na
entrada de um cinema da Avenida Rio Branco. Seu modo de tocar,
fluido, inapreensível e triste, ajudou-me, igualmente, a melhor
conhecer a alma brasileira (Citado no verbete "Darius MiIhaud" da
Enciclopédia de música brasileira; extraído das Notes sans musique,
notas autobiográficas publicadas em Paris em 1945).
Como se vê, não existe nessas palavras nenhuma hierarquia erudito/popular.
Ao contrário, a música popular e os músicos populares são tratados com grande
respeito e seriedade (também em relação a aspectos da técnica musical), como se
pudessem como acabaram fazendo ensinar coisas importantes e difíceis a
qualquer músico erudito. De volta a Paris, Milhaud compôs várias obras de inspiração
brasileira, como Deux poèmes tupis; o chorinho, o tanguinho e o sambinha
coletivamente intitulados Danses de Jacarémirim; a suíte Saudades do Brasil; e o Le
boeuf sur le toit, lembrado por Donga, que serviu de trilha sonora para um espetáculo
de Jean Cocteau, usando trechos de dezenas de músicas cariocas que fizeram
sucesso nos anos 10. Le boeuf sur le toit acabou virando o nome de um cabaré,
também criado por Jean Cocteau, e que se transformou "na coqueluche e num dos
principais centros da vida cultural de Paris" (Sevcenko, 1992: 278). Como se vê, a
cultura popular brasileira, entre os anos 10 e 30, atravessou o Atlântico várias vezes,
sendo apropriada pelos franceses de inusitadas maneiras, num fenômeno típico de
transculturação (para uma discussão sobre esse conceito, ver o Anexo 1) que gerou
muitas redefinições de identidade para vários grupos sociais, tanto na Europa quanto
no Brasil.
No Brasil, essa cultura popular brasileira, que também estava sendo
definida/fabricada no vaivém interatlântico, não pode ter o mesmo exotismo que tanto
seduziu o olhar francês. Benedito Nunes, em seu texto "A antropofagia ao alcance de
todos", afirma que o que move o pensamento de Oswald de Andrade "não será pois
o exotismo amável e compreensivo de Blaise Cendrars" (Nunes, 1978: xxxiii). No
Manifesto pau-brasil, o ideal é "conciliar a cultura nativa e a
P. 105
cultura intelectual renovada, a floresta com a escola num complô híbrido que ratifica
a miscigenação étnica do povo brasileiro" e quebra "a aura exótica da cultura nativa"
(Nunes, 1978: xxxiii). Aqui nada seria puro, tudo estaria misturado, começando a ser
outra coisa a todo momento. É essa instabilidade essencial que passa a ser a quimera
de nossos modernistas. Não existe a possibilidade de descansar no território do Outro
porque o Outro está entre nós, até mesmo em "nosso sangue". Oswald de Andrade
diz: o Brasil é uma "formação étnica rica". Estamos no centro do (de volta ao)
problema da mestiçagem.
O problema não tem fácil resolução. É preciso, repito, para quem está
interessado no processo de construção do nacional, definir a mestiçagem que nos
interessa, o que é o "brasileiro" que nos interessa. Corre-se o risco de acabar
querendo impor esse "brasileiro" a todos os diferentes brasileiros. É o que acontece
em alguns escritos sobre música de Mário de Andrade. Apesar de suas posições
contrárias àquilo que chama de xenofobia, imperialismo, exclusivismo, unilateralismo
ou, principalmente, exotismo, Mário de Andrade é partidário de uma nacionalização
da arte e da cultura feita no Brasil, colocando para todos os brasileiros o dever de
repudiar manifestações antinacionais (mesmo as que o próprio Mário de Andrade
considerava de inegável valor artístico), "que nem faz a Rússia com Stravinsky e
Kandinsky" (Andrade, M., 1962: 17).
A citação anterior, surpreendente no pensamento de um modernista paulista
(talvez os regionalistas pernambucanos nunca ousassem declaração semelhante), foi
retirada do Ensaio sobre a música brasileira, publicado inicialmente em 1928, o
mesmo ano da edição de Macunaíma, o romance mais nacionalista (com um herói
mestiço) de nosso modernismo. Mário tinha consciência de que esse seu
nacionalismo era uma opção (e uma construção) política, adequada ao momento pelo
qual o país estava passando, e não o resultado de uma descoberta da essência do
povo brasileiro ou de suas raízes culturais imutáveis. Nesse mesmo ensaio fica
enfatizado o combate à "puerilidade" do exotismo, descrito como a "falsificação da
entidade brasileira" realizada por modernos locais que sucumbiram à "opinião de
europeu": "não é a expressão natural e necessária de uma nacionalidade não, em vez
é o
P. 106
exotismo, o jamais escutado em música artística, sensações fortes, vatapá, jacaré,
vitória-régia" (Andrade, M., 1962: 14).
A crítica de Mário de Andrade a essa "opinião de europeu" poderia ter sido
endereçada a seu amigo Blaise Cendrars: "o que a Europa tira da gente são
elementos de exposição universal: exotismo divertido. Na música, mesmo os
europeus que visitam a gente perseveram nessa procura do exquisito apimentado."
E ainda: "Si escutam um batuque brabo muito que bem, estão gosando, porêm si é
modinha sem sincopa ou certas efusões líricas dos tanguinhos de Marcelo
Tupinambá. Isso é música italiana! falam de cara enjoada" (Andrade, M., 1962: 15).
Tal argumentação poderia ter como conseqüência uma definição de música brasileira
que englobasse "toda música nacional como criação quer tenha ou não caracter
étnico" (Andrade, M., 1962: 16). Seria, então, arte brasileira mesmo aquela produzida
por "um artista brasileiro escrevendo agora em alemão sobre assunto chinês" com
"música da tal chamada de universal”? Em tese a resposta seria sim, mas na prática
os brasileiros deveriam lutar contra essa música, que seria "antinacional".
Aqui entram, sem muitas explicações, as preocupações políticas de Mário de
Andrade. O período "atual" (o final dos anos 20) seria de "nacionalização", e "o
compositor brasileiro tem de se basear quer como documentação quer como
inspiração no folclore" (Andrade, M., 1962: 29). Em carta a Joaquim Inojosa,
historiador do movimento regionalista e modernista pernambucano, Mário de Andrade
escreveu: "o critério histórico atual de música brasileira é o da manifestação musical
que, sendo feita por brasileiro ou indivíduo nacionalizado, reflete características
musicais da raça. Onde estas estão? Na música popular" (citado em Moraes, 1992:
77). E qual a verdadeira música popular? Como vimos, a inspiração deve sempre
vir do folclore. Assim, rio de Andrade se distancia da "influência deletéria do
urbanismo" (Andrade, M., 1936: 4), do "popularesco" e do "internacionalismo fatal dos
meios urbanos que amolece os valores nacionais" (Andrade, M., 1962: [NOTA 11]
126). Isso tudo reconhecendo que no Brasil as zonas
P. 107
rurais e urbanas seriam quase "indelimitáveis" e que as grandes cidades brasileiras
produziram estilos musicais sedutores como aquele do "brasileiro espertalhão e
carioquisado" que "reage mais dinamicamente na flauta, no violão, no oficleide e no
saxofone modernista, maxixando com tamanho talento na anca que a gente fica
pasmo de ver" (do artigo publicado em O Estado do Pará, citado acima). Mesmo
assim, uma "patrulha" do nacional entra imediatamente em ação. O escritor Antônio
de Alcântara Machado desabafou na Revista do Brasil, no final dos anos 20 (quando
a "reviravolta" nacionalizante do modernismo brasileiro já estava consolidada): "Hoje
se escreve brasileiro por sistema, por ser moda" (Sevcenko, 1992: 300). O samba
também virara moda?
P. 109
7
O SAMBA DA MINHA TERRA
Os revolucionários de 30 dispunham de meios eficientes para difundir
nacionalmente suas pregações unificadoras. O rádio, por exemplo, fizera suas
primeiras transmissões no Brasil nas comemorações do centenário da Independência
em 1922. Em 1923 foi inaugurada a primeira estação de rádio brasileira, a Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro, iniciativa do antropólogo Roquette Pinto [NOTA 1] e do
cientista Henrique Morize. No início, sua programação ("o que o povo precisa")
consistia apenas de música erudita e palestras culturais (no sentido de. "Alta
Cultura").
O panorama se modificou com a concorrência de outras rádios comerciais,
como a Rádio Mayrink Veiga, inaugurada em 1926, e a Rádio Educadora, em 1927.
Apesar do crescente número de emissoras, os primeiros programas de grande
audiência só surgiram depois da Revolução de 30. O pioneiro nesse estilo foi o
Programa Casé, colocado no ar pela primeira vez em 1932. A Rádio Nacional adotou
a programação de música popular do Programa Casé, tomando-se a emissora mais
influente nos anos Getúlio Vargas, [NOTA 2] ouvida em ondas médias
P. 110
curtas em todo território nacional. Mesmo A hora do Brasil, programa de propaganda
criado durante o Estado Novo (e que ahoje é transmissão obrigatória para todas as
emissoras brasileiras), incluía a divulgação de música popular em sua programação.
Vale lembrar que os programas de maior audiência em todo o Brasil eram transmitidos
do Rio de Janeiro. (Para detalhes sobre os primeiros anos do rádio no Brasil, ver
Tinhorão, 1981; Cabral, 1990; Almirante, 1977; entre outros.)
O mercado de discos brasileiros, no final da década de 20, também estava em
ritmo de revolução, com o advento da gravação elétrica e a instalação de várias
gravadoras no país. Até 1928 existia apenas uma gravadora lançando discos no
Brasil, a Casa Edison, de propriedade da empresa Odeon. Nesse ano são
inauguradas a Parlophon, também da Odeon, e a Columbia. No ano seguinte, 1929,
é a vez da Brunswick e da RCA, todas com sede no Rio de Janeiro e todas precisando
de novos músicos para completar seus casts. Nada mais propício para o samba
carioca, mais tarde tido como brasileiro, finalmente se definir como estilo musical. Em
sua própria cidade, havia as rádios, as gravadoras e o interesse político que
facilitariam (mas o determinariam isso é outro problema) sua adoção como nova
moda em qualquer cidade brasileira. O samba tem “tudo" a seu dispor para se
transformar em música nacional.
No início do século XX o campo da música popular ouvida no Brasil era regido
por uma extrema variedade de estilos e
P. 111
ritmos. O próprio carnaval, descrito por Oswald de Andrade como "o acontecimento
religioso da raça", o era festa movida apenas por músicas que poderiam ser
classificadas como brasileiras. Ao contrário, os maiores sucessos da folia, desde que
ela se organizou em bailes (tanto os aristocráticos como os populares), eram polcas,
valsas, tangos, mazurcas, schottishes e outras novidades norte-americanas como o
charleston e o fox-trot. Do lado nacional, a variedade também imperava: ouviam-se
maxixe, modas, marchas, cateretês e desafios sertanejos. Nenhum desses estilos
musicais, apesar de suas modas passageiras, parecia ter fôlego suficiente para
conquistar a hegemonia no gosto popular da época. Nenhum deles era considerado
o ritmo nacional por excelência.
Foi nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval
brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade. Os outros gêneros
produzidos no Brasil passaram a ser considerados regionais. Essa "colonização"
interna feita pelo samba tem um bom exemplo nas respostas do sambista gaúcho
Lupiscínio Rodrigues durante uma entrevista ao jornal Pasquim, realizada em 1976.
Distinguindo seu estilo musical daquele de seu conterrâneo Teixeirinha, compositor
mais ligado às "tradições" da música gaúcha, Lupiscínio diz: "A diferença é que eu
faço sica popular, o Teixeirinha faz música regional." À pergunta sobre como
conseguia afastar essa influência do Rio Grande do Sul de sua música, a resposta é
sugestiva: "Eu acho o ritmo brasileiro o melhor do mundo" (Rodrigues, 1976: 68).
Lupiscínio nem precisa explicitar que o ritmo brasileiro, considerado popular (coisa
que a música regional não seria), só pode ser o samba carioca.
A ausência do "ritmo brasileiro", até a vitória do samba depois da Revolução
de 30, não significava, como ficou claro nos capítulos anteriores, que inexistisse um
certo intercâmbio regional e entre classes sociais em matéria de gosto musical. O
exemplo, já discutido, da modinha prova exatamente o contrário, mostrando como um
ritmo podia ser sucesso em todo o Brasil (conquistando inclusive repercussão na
Europa), mas nem por isso se transformando em gosto hegemônico ou símbolo do
que existe de mais brasileiro no Brasil.
P. 112
Voltando então aos músicos que participaram do encontro descrito no capítulo
I, principalmente Donga e Pixinguinha: sabemos que, no carnaval de 1914, eles
participaram da formação do Grupo do Caxangá, junto com João Pernambuco
(parceiro de Catulo da Paixão Cearense dizem até que Catulo se apropriou de
várias de suas composições). O Grupo do Caxangá permaneceu tocando nos
carnavais até 1919. No resto do ano seus músicos tinham outras atividades, muitas
delas decisivas para o futuro da música popular no Brasil. Pixinguinha e Donga eram
freqüentadores da casa de Tia Ciata, [NOTA 3] na Praça Onze, endereço
importantíssimo para o nascimento do samba carioca. [NOTA 4] Foi numa das
noitadas musicais na casa dessa tia baiana que foi composto, coletivamente, o samba
Pelo telefone, que acabou entrando para a história como o primeiro samba registrado
[NOTA 5] (como composição de Donga um golpe que rendeu muitas desconfianças
e até inimizades entre os sambistas pioneiros).
Como foi dito, o Rio de Janeiro da época estava passando por intensas
modificações urbanísticas, desencadeadas pela reforma de Pereira Passos, com a
abertura da Avenida Central e a expulsão de muitas famílias negras e pobres (entre
elas muitas famílias baianas que haviam se mudado para o Rio de Janeiro depois da
Abolição da Escravatura, trazendo em sua
P. 113
bagagem o candomblé e vários ritmos do samba, que aqui foram transformados no
samba carioca) do Centro da cidade para, num primeiro momento, a Cidade Nova e,
depois, para os subúrbios e favelas. Mas no Centro ainda era possível encontrar uma
mistura de todas as classes sociais, inclusive morando lado a lado, o que tornava
rápida a circulação das novidades lançadas pelos diferentes segmentos da sociedade
carioca. Também me referi ao fato de que, antes da existência do Grupo do
Caxangá, Afonso Arinos e outros escritores de renome freqüentavam a república
onde moravam Donga, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres. Donga, em seu
depoimento ao Museu da Imagem e do Som gravado em 1969, descreveu o itinerário
de uma noitada típica reunindo "mundos artísticos" aparentemente sem contato:
Recebíamos a visita de Olegário Mariano, Afonso Arinos, presidente
da Academia Brasileira de Letras, Hermes Fontes, Gutembergue
Cruz, Catulo da Paixão Cearense e outros poetas. Iam lá nos buscar
para fazermos uns programas na Praça da Cruz Vermelha. Nós
ficávamos ali, improvisando, tocando, cada um solando alguma coisa
e os poetas dizendo os versos. (...) depois íamos para aquele largo
da Av. Gomes Freire, a Praça dos Governadores, onde o João
Pernambuco morou mais tarde. Nessa praça tinha um bar, no qual
sentávamos e rompíamos o dia. Era um meio de literatos que
apreciavam música e músicos que apreciavam poesia (Donga, 1969:
16).
A lembrança é de uma troca intensa, que modificava constantemente o
panorama cultural da cidade, renegociando todas as fronteiras. Essa troca podia
tomar várias formas, inclusive a da proteção contra atitudes discriminatórias de outros
grupos da elite, ou de outras "autoridades", contra os músicos populares. Outro
sambista pioneiro, João da Baiana (que conhecia Donga desde criança), conta um
acontecimento "pitoresco" que revela muitas das mediações transculturais que
contribuíram para a formação do mundo da música popular carioca, e da cultura
popular carioca em geral. Esse acontecimento envolve, ao mesmo tempo, repressão
e proteção por parte de "poderosos" diante do samba.
P. 114
João da Baiana era neto de escravos que, depois de libertos, se mudaram da
Bahia para o Rio de Janeiro, onde montaram uma quitanda para a venda de gêneros
afro-brasileiros. Sua mãe, conhecida como Tia Prisciliana de Santo Amaro, preparava
doces baianos, que eram vendidos por vários empregados, e competia com outras
“tias baianas" (como Tia Ciata, ou Tia Amélia — mãe de Donga) para ver quem dava
as festas mais animadas. Segundo João da Baiana, em depoimento para o Museu da
Imagem e do Som gravado em 1966, seu avô era da maçonaria, e por isso mantinha
boas relações com muitos nomes da elite brasileira, como Irineu Machado, Pinheiro
Machado e até mesmo o futuro presidente Hermes da Fonseca (em cujo batalhão
João da Baiana foi ajudante de cocheiro), que freqüentavam os "sambas" de sua mãe
e de outras "tias".
O pandeirista João da Baiana também era convidado a animar as festas do
então senador Pinheiro Machado. Em 1908, o pôde comparecer a uma dessas
festas pois a polícia apreendera seu pandeiro ("o samba era proibido, o pandeiro era
proibido") quando tocava nas ruas da Penha. Sabendo do ocorrido, no dia seguinte
Pinheiro Machado deu de presente a João da Baiana um novo pandeiro com a
inscrição: "A minha admiração, João da Baiana, senador Pinheiro Machado" (João da
Baiana, 1966: 7). Como se vê, muitos laços (maçonaria, culinária, festas) uniam esses
segmentos distintos da sociedade brasileira. O toque do pandeiro era reprimido por
policiais e, ao mesmo tempo, convidado a animar recepções de um senador da
República. E a circulação de novidades culturais por diferentes bairros e classes
sociais do Rio de Janeiro, apesar das reformas urbanísticas e da belle époque,
continuava intensa.
Nas primeiras décadas deste século os cinemas cariocas costumavam
contratar músicos, incluindo nomes importantes, como Ernesto Nazareth, para se
apresentarem em suas salas de espera. Um pouco antes do carnaval de 1919 a
epidemia da gripe espanhola devastara a população da cidade, matan-
P. 115
do inclusive vários músicos. O gerente Isaac Frankel precisava de uma nova
orquestra para animar o seu Cine Falais. conhecendo Pixinguinha, por -lo visto
tocar com o Grupo do Caxangá num coreto carnavalesco do Largo da Carioca,
resolveu convidá-lo para apresentar-se na sala de espera do seu cinema. Gostou
também do Grupo do Caxangá, mas pediu uma orquestra menor. Pixinguinha e
Donga acabaram escolhendo oito integrantes do Grupo do Caxangá, e o grupo (que
ainda se apresentava com roupas de "sertanejos" ver Cabral, 1978:30) foi batizado
por Isaac Frankel de Oito Batutas (ver Almirante, 1977: 29).
Os instrumentos tocados pelos Oito Batutas eram flauta, bandolim,
cavaquinho, três violões, ganzá e pandeiro. Seu repertório era formado por maxixes,
lundus, canções sertanejas, corta-jacas, batuques, cateretês (o samba ainda não apa-
recia como estilo musical distinto). Isaac Frankel aparentemente cometia uma ousadia
colocando uma banda como essa para tocar num dos cinemas mais elegantes do
Centro da cidade. Principalmente porque a maioria de seus integrantes era de negros.
A reação contrária foi imediata: o maestro Julio Reis declarou ao jornal A Rua "ser a
música nacional inadequada aos educados ouvidos da aristocrática freqüência dos
cinemas" (citado em Silva & Oliveira Filho, 1979: 39). O jornalista Benjamim Costallat
recordava esse episódio em artigo publicado na Gazeta de Notícias de 22 de janeiro
de 1922: "Foi um verdadeiro escândalo, quando, há uns quatro anos, os 'oito batutas'
apareceram. Eram músicos brasileiros que vinham cantar coisas brasileiras." E ainda:
"Segundo os descontentes, era uma desmoralização para o Brasil ter na principal
artéria de sua capital uma orquestra de negros" (citado em Silva & Oliveira Filho,
1979: 44-5).
Talvez Costallat exagere (contribuindo assim para a história mítica da
"resistência" do popular): os descontentes existiam, mas seu número não devia ser
tão grande. Senão como explicar que, um ano depois de sua estréia no Cine Palais,
os Oito Batutas tenham sido convidados oficialmente a se apresentar para os reis da
Bélgica que estavam de passagem pelo Brasil? E como se explica que pessoas como
Rui Barbosa, Ernesto Nazareth e Arnaldo Guinle tenham passado a ir ao Cine Palais
só para ouvir os Oito Batutas (ver Silva & Oliveira
P. 116
Filho, 1979)? E o convite para a apresentação no Pavilhão da General Motors e na
embaixada norte-americana (segundo Donga, "o embaixador Morgan era adepto do
samba" Donga, 1969: 19) durante as comemorações do centenário da
independência brasileira? E o financiamento do milionário Arnaldo Guinle [NOTA 6]
para suas apresentações pelo Brasil e na França, onde chegaram a se apresentar
para a família real brasileira (ver Donga, 1966:18)? Os Oito Batutas pareciam ter mais
admiradores importantes do que inimigos. Ou então o escândalo passou rápido
demais. Uma coisa é certa: a "sociedade brasileira" já estava preparada para aceitar
aquela música mestiça, inclusive para representá-la em cerimônias oficiais.
Como vimos, a música dos Oito Batutas não era algo homogêneo. Mas todos
os estilos de seu repertório, apesar de incluir gêneros totalmente urbanizados, podiam
ser chamados, na época, de música sertaneja. Tanto que o espetáculo apresentado
pelo grupo em São Paulo, em 1921, chamava-se Uma noite no sertão. Catulo da
Paixão Cearense reclamava assim do convite feito aos Oito Batutas para se
apresentarem diante dos reis da Bélgica: "Se desejavam que o rei conhecesse os
nossos sertanejos e as canções da nossa gente, por que não me convidaram? Haverá
no Brasil um homem nesse nero que possa ser mais condignamente
representativo?" (citado em Cabral, 1978: 37). Arnaldo Guinle financiara a excursão
brasileira dos Oito Batutas para que, junto com João Pernambuco (integrado à banda
para a viagem), fizessem uma coleta de músicas folclóricas. Portanto, existia um
interesse pela cultura popular brasileira, que era confundida com um fenômeno
sertanejo, que por sua vez era identificado com o folclore nacional. Os Oito Batutas
aproveitavam tal interesse e faziam sucesso por onde passavam.
P. 117
os interesses musicais dos componentes dos Oito Batutas o se
restringiam apenas ao que era rotulado como nacional. Durante sua temporada
parisiense, em 1922, eles ficaram apaixonados pelo jazz, fato que motivou a compra
de um saxofone (mais um presente de Arnaldo Guinle) para Pixinguinha. Até o final
da década de 20 participaram de várias orquestras chamadas Jazz [NOTA 7] (mas
que na verdade tinham repertório bem variado) formadas no Rio de Janeiro, como a
Carlito Jazz que acompanhava as revistas da Bataclan e com a qual Donga viajou
novamente à Europa. [NOTA 8]
Essa paixão jazzística vai ser criticada por jornalistas, inaugurando um tipo de
crítica musical nacionalista e antiamericana que se tornou comum no decorrer do
século. O crítico Cruz Cordeiro, escrevendo para a revista Phono Arte, em 1928 e
1929, acusava Pixinguinha de estar sendo influenciado pela música norte-americana,
inclusive em sua famosa composição Carinhoso, que acabava de ser lançada em
disco. A acusação era grave e valorativa. Cruz Cordeiro declarou: "é por esse motivo
que julgamos esse disco o pior dos quatro que a Orquestra Pixinguinha-Donga
oferece nesta quinzena" (citado em Cabral, 1978: 57). O argumento lembra Sílvio
Romero: influência estrangeira significa imitação; toda imitação é ruim, por definição.
Logo, a expressão "influência norte-americana" vai ser trocada por americanização.
Depois encontraremos as acusações de "imperialismo cultural", "neocolonialismo" ou
"multinacionalização da cultura". Para isso, ainda era necessário que o samba carioca
de fato se consolidasse como música
P. 118
nacional. assim as acusações ganhariam fundamento: teriam alguma coisa para
contrapor à influência alienígena, alguma coisa que, se ameaçada, colocaria em
perigo a "autenticidade" da cultura brasileira, que deveria ser protegida também por
definição.
Em seu estudo sobre o desfile de escolas de samba no Rio de Janeiro, Maria
Laura Viveiros de Castro Cavalcanti mostra como o carnavalesco atua como
mediador cultural entre os vários grupos sociais da cidade e as várias definições de
arte e brasilidade que esses grupos advogam (ver Cavalcanti, 1993). O compositor
de samba, nos anos 20 e 30, mantendo viva uma "tradição" à qual como vimos no
Capítulo II pertenciam Laurindo Rabello e Catulo da Paixão Cearense, também
pode ser pensado como um agente mediador entre mundos culturais distintos, como
o dos salões intelectuais e o das festas populares das camadas mais pobres da
cidade. Essa característica foi apontada por observadores da época, como fica claro
neste comentário do poeta Manuel Bandeira sobre o sambista Sinhô, outro
freqüentador da casa de Tia Ciata: "Ele era o traço mais expressivo ligando os poetas,
os artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a
fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão" (Bandeira,
1937a: 108 esse trecho faz parte de um artigo escrito para o Diário Nacional de
São Paulo e publicado logo depois da morte de Sinhô em 1930).
Esse fascínio era confundido com um interesse pelo popular, que cada vez
mais competia com os interesses eruditos dos salões e da elite brasileira. Manuel
Bandeira chega a ver no sambista o símbolo por excelência da cultura carioca: "o que
de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação mais típica,
mais genuína e mais profunda" (Bandeira, 1937a: 108). A princípio, o contato com
esse mundo "genuíno" era feito através de compositores já consagrados
P. 119
que eram convidados para os salões das camadas mais ricas da cidade (ou para um
café fechado para a ocasião, como no encontro entre Gilberto Freyre e
Pixinguinha). Os ricos, segundo as informações que consegui coletar, não iam aos
pagodes da Saúde, da Cidade Nova ou da nascente favela da Mangueira, bairros de
onde provinha a maior parte dos sambistas. Esses locais eram vistos com fascínio,
mas também com medo. O território da "autenticidade" do samba, que a elite carioca
começava a respeitar, era também considerado um mundo perigoso:
Sinhô para toda a gente era uma criatura fabulosa vivendo no mundo
noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão é no
Estácio, mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo
onde a impressão que se tem é que ali o pessoal vive de brisa, cura
tosse com álcool e desgraça pouca é bobagem (Bandeira, 1937b:
169) [NOTA 9].
Mas existiam jovens de classe média querendo uma proximidade maior com
o mundo do samba. Foi o caso, por exemplo, do cantor Mário Reis, filho de
comerciante e estudante de direito que, encontrando Sinhô na loja A Guitarra de
Prata, no centro do Rio de Janeiro, passou a ter aulas de violão com o sambista. Foi
Sinhô, que na época tinha vários sucessos lançados (a maioria em ritmo de samba,
mas também de fox, charleston, toada, cateretê, coco, maxixe, valsa, fado ver
Alencar, 1981), quem convidou Mário Reis para cantar,
P. 120
em 1928, na gravação de seu samba Que vale a nota sem o carinho da mulher (ver
o verbete "Mário Reis" na Enciclopédia da música brasileira). No ano seguinte a essa
primeira gravação, Mário estava famoso o suficiente para gravar sambas de um
compositor estreante em disco, o seu colega de Faculdade de Direito Ari Barroso (filho
de promotor público de Ubá, Minas Gerais). O samba, naquela época, não era visto
como propriedade de um grupo étnico ou uma classe social, mas começava a atuar
como uma espécie de denominador comum musical entre vários grupos, o que
facilitou sua ascensão ao status de música nacional.
No final dos anos 30 outro grupo de jovens de classe média (da baixa à alta
classe média) branca começou a ter uma participação decisiva na história do samba:
foi a turma de Vila Isabel, que incluía nomes como Noel Rosa (filho de gerente
comercial e professora), Almirante (órfão aos 15 anos, trabalhou como caixeiro e
serviu na Marinha daí seu apelido) e Braguinha (filho de industrial). Os Oito
Batutas, em sua passagem por Recife, em 1921, motivaram a formação dos Turunas
Pernambucanos, que por sua vez motivaram o aparecimento dos Turunas da
Mauricéia, os quais, tocando no Rio de Janeiro em 1927, serviram de inspiração para
a formação do regional (o nome sugestivo pelo qual eram conhecidas as bandas de
música popular da época) Flor do Tempo, depois chamado de Bando de Tangarás,
pela turma de Almirante (ver Almirante, 1977).
Sérgio Cabral, em sua biografia de Almirante, cita a opinião do radialista
Haroldo Barbosa de que a Vila Isabel do final dos anos 20 e início dos anos 30 seria
comparável à Ipanema dos anos 60 em matéria de boemia artística de classe média
(ver Cabral, 1990: 42). A banda Flor do Tempo ensaiava na casa do empresário
Eduardo Dale, na Tijuca. Almirante se lembra dessa época:
Homem de enormes relações em todos os meios sociais, e vendo no
pequeno grupo um bom elemento de contato com alguns destacados
figurões da política, gente influente e útil aos negócios de sua casa
comercial, Eduardo Dale levava o grupo para cantar em casas de
ministros, de altos funcionários, de diretores de repartições públicas
etc. (citado em Cabral, 1990: 44).
P. 121
O Bando dos Tangarás, em 1929, lançava discos. A influência "regional" era
marcante, tanto que no samba Façanha do bando eles cantavam: "Quando nós
saímos do Norte/Foi pra no mundo mostrá/Como canta aqui nesta terra/Um bando de
tangará." No final de 1929 eles lançaram Na Pavuna, a primeira gravação de samba
a usar "a batucada própria de escola de samba" (Almirante, 1977: 68), agremiação
carnavalesca que naquele ano tinha saído em desfile pela primeira vez. Portanto, não
demorou muito tempo, desde o nascimento do "samba de morro" (que não nasceu
exatamente no morro, mas sim em algum lugar entre os morros e as ruas da Cidade
Nova), para encontrá-lo utilizado pelos músicos brancos de classe média. A turma de
Noel Rosa participou inclusive do processo de definição desse samba "autêntico". O
próprio Noel compôs sambas em parceria com Ismael Silva, talvez o principal
fundador da "primeira" escola de samba, a Deixa Falar. Em sua minuciosa biografia
de Noel Rosa, João Máximo e Carlos Didier comentam: "Sempre querendo conhecer
o que produzem estes sambistas de morro, trocar informações com eles, somar
experiências, Noel segue peregrinando. Salgueiro, Mangueira, outros morros. Faz
expedições aos subúrbios, ouvidos atentos" (Máximo & Didier, 1990: 204).
É preciso lembrar que essas expedições acompanhavam a transformação da
cidade, tanto em seu crescimento para os subúrbios quanto no surgimento de favelas
em vários morros. A população pobre começava a viver realmente separada da
população rica. Antes de 1930 as classes sociais se misturavam mais
desordenadamente no espaço geográfico do Rio de Janeiro. JoRamos Tinhorão
se pergunta sobre as razões de o samba "noelesco" ter atingido o gosto "popular" e,
mais tarde, a bossa nova não ter tido o mesmo êxito, permanecendo (sempre
segundo Tinhorão) como música da classe média. Sua resposta é a seguinte:
Noel Rosa e seu grupo viviam um tempo em que as classes baixa e
média da cidade, embora já suficientemente distanciadas, a ponto de
não se confundirem, coexistiam, por dizer assim, em uma mesma área
urbana, por efeito da proliferação dos cortiços e das casas de
cômodos, que apareciam ao lado das casas das boas famílias
(Tinhorão, s/d: 43).
P. 122
Tal proximidade, porém, não explica muita coisa. A antropologia da vida em grandes
metrópoles nos ensinou que fenômenos culturais diversos podem existir lado a lado
sem que se estabeleça nenhum contato entre eles. A curiosidade é necessária para
que membros de um grupo passem a freqüentar outros grupos, transformando-se
naquilo que estou chamando de "mediadores transculturais". E é necessário também
um "ambiente" propício, o campo de possibilidades a que se refere Gilberto Velho,
para que essas trocas de informações intergrupos possam acontecer. Noel Rosa não
apenas "caiu no gosto popular", ele também ajudou a definir esse gosto. O caso da
bossa-nova é diferente: quando ela apareceu existia um gosto musical/popular
brasileiro definido, com o qual devia ser estabelecido um diálogo. O próprio Tinhorão
afirmou que "a verdade é que, até essa época [1930], a sica popular carioca
ainda não havia conseguido fixar seus diferentes gêneros" (Tinhorão, s/d: 47).
A "fixação" desses gêneros acontece ao redor do samba de escolas de samba,
que passou a ser conhecido como samba de morro. [NOTA 10] O interessante é que
o "autêntico" nasce do "impuro", e não o contrário (mas em momento posterior o "au-
têntico" passa a posar primeiro e original, ou pelo menos de mais próximo das
"raízes"). O primeiro samba misturou muitas "expressões" musicais, logo foi
"amaxixado" e, depois, "depurado" pelos compositores do Estácio. Ismael Silva se
P. 123
explicou assim a Sérgio Cabral: "O estilo (antigo) não dava para andar. Eu comecei a
notar que havia uma coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava.
Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí a gente começou a fazer um samba
assim: bum bum paticumbumpruburumdum” (Cabral, 1974: 28). O que era uma
modificação no samba passou a ser o verdadeiro samba. Numa discussão entre
Donga e Ismael Silva, este dizia que Pelo telefone, composição "de" Donga, não era
samba e sim maxixe; e aquele dizia que Se você jurar, composição de Ismael Silva,
não era samba e sim marcha. Quem tem a verdade do samba? Verdade, raiz: esse
não é o mistério de qualquer tradição? Toda tradição não exige sempre a formação
de "hermeneutas" que identifiquem onde ela aparece em sua maior pureza?
Não se pode dizer que as escolas de samba fossem fenômenos puros, mas se
criou em torno delas um aparato que defende essa pureza, condenando toda
modificação introduzida no samba. Não foi por isso que Paulinho da Viola gravou em
1975 um samba de sua autoria que dizia "Tá legal/Eu aceito o argumento/Mas não
me altere o samba tanto assim/Olha que a rapaziada está sentindo falta/De um
cavaco, de um pandeiro/Ou de um tamborim"? [NOTA 11] Quanto é "tanto assim"? O
que não pode ser alterado? Quem define o que pode ser alterado? Quem define o
verdadeiro ritmo do samba? Uma coisa é certa: a idéia da preservação do samba tem
uma força considerável. Tanto que esse é talvez o único gênero da música afro-
americana (ao contrário do merengue da República Dominicana, do calipso de
Trinidad e Tobago, do són cubano, da cadence da Martinica) que não se misturou,
em
P. 124
sua maioria quase absoluta, ao funk norte-americano ou que não adotou instrumentos
eletrônicos em suas bandas.
Esse "instinto preservacionista" ou preocupação com a autenticidade do
samba já existia muito tempo. Jota Efegê cita a publicidade de um tal Skating-Rink
carioca em 1878 anunciando um show do "verdadeiro samba de boa fama, grande
dança baiana executada por quatro engraçadas baianas". Se se falava em verdadeiro
samba, interpreta Jota Efegê, era porque "um outro, falso, deturpado, era o correntio"
(Efegê, 1980, vol. 1: 171). Pode até ser uma interpretação correta. Mas o fato é que
a luta pela preservação do autêntico ganha mesmo terreno logo depois da formação
das primeiras escolas de samba. E a "autenticidade" conquista apoio oficial. O
primeiro desfile da Deixa Falar, em 1929, tem seu "caminho aberto por uma comissão
de frente que montava cavalos cedidos pela polícia militar, e tocava clarins" (Tinhorão,
s/d: 82). Quatro anos depois dessa estréia, o desfile de escolas de samba já ganhara
ajuda financeira da Prefeitura do Rio de Janeiro e o patrocínio do jornal O Globo, que
também "formulou um regulamento para o certame, no qual se estabelece a proibição
dos instrumentos de sopro e a obrigatoriedade da ala das baianas" (Santos & Silva,
1980: 63). em 1935 o desfile passara a constar do programa oficial do carnaval
carioca elaborado pela Prefeitura. Seis anos não é um tempo longo para a
oficialização de uma prática cultural tão nova. Em 1937 o Estado Novo determinou
que os enredos das escolas de samba tivessem caráter histórico, didático e patriótico
(ver Matos, 1982). Os sambistas de morro aceitaram a determinação. E o carnaval do
Rio, exportado para o resto do Brasil (existem escolas de samba em Manaus e em
Porto Alegre), serviu de padrão de homogeneização para o carnaval de todo o país.
A atuação dos governos de Getúlio Vargas (incluindo o período ditatorial do
Estado Novo) foi firme em seu apoio, oficial ou não, ao samba e ao carnaval. Em
1932, ao mesmo tempo em que o Teatro Municipal abria as portas para a realização
de seu primeiro baile carnavalesco, o interventor no Distrito Federal (Rio de Janeiro),
Pedro Ernesto, contemplou com "subvenções mínimas de dois contos de réis" todas
"as chamadas Grandes Sociedades (Tenentes do Diabo, Fenia-
P. 125
nos, Democráticos etc.), todos os ranchos carnavalescos, vários blocos e escolas de
samba" (Cabral, s/d: 37), e no desfile de ranchos promovido pelo Jornal do Brasil, a
escola de samba Deixa Falar apresentou o enredo A primavera e a Revolução de
Outubro (a revolução de 1930 no Brasil e não a de 1917 na Rússia).
Em 1933, depois de um concerto da Orquestra Típica Brasileira, que tinha
Pixinguinha como maestro e foi apresentada por Mário Reis, o ministro Oswaldo
Aranha (outro ministro, Maciel Filho, também estava na platéia) declarou aos
jornalistas:
posso ter palavras de elogio para o que acabo de ver e ouvir: gente
do meu país. Sou dos que sempre acreditaram na verdadeira música
nacional. Não creio na influência estrangeira sobre a nossa melodia.
Nós somos um povo novo. E a praxe é que os povos novos vençam
os antigos. O Brasil, com a sua música nova e própria, há de vencer
(Cabral, s/d: 38).
Nessa declaração estão como que condensadas várias idéias do nacionalismo
triunfante no país, incluindo suas conotações "populares", o repúdio à influência
estrangeira e o elogio da "novidade" (vencedora no futuro) da cultura brasileira. Dois
anos depois, em 1935, Villa-Lobos incorporou, numa de suas monumentais
apresentações de canto orfeônico, um samba de Ernani Silva, a quem conhecera
quando foi assistir a um ensaio da Escola de Samba Recreio de Ramos acompanhado
pelo educador Anísio Teixeira. E em 1936 um samba da escola Mangueira foi incluído
na edição especial da Hora do Brasil transmitida diretamente para a Alemanha
nazista. Gostaria de saber qual foi a reação dos ideólogos da "supremacia ariana"
(que ainda acalentavam a esperança de algum pacto com o governo brasileiro) diante
daquela batucada afro-brasileira. Mas os radialistas brasileiros não parecem ter
pensado duas vezes: o samba representaria a "nossa" cultura em qualquer situação
internacional.
O samba carioca era apresentado como "delícia" nacional a todo visitante
ilustre que aqui aportava. A sauvage Josephine Baker, em 1929, participou de uma
feijoada com samba na Confeitaria Colombo (Efegê, 1980, vol. 2: 191). Em 1941
P. 126
Walt Disney foi conhecer as escolas de samba, tendo como cicerone Paulo da Portela
(Efegê, 1980, vol. 1: 63). Jota Efegê gosta de contar mais um caso pitoresco, o do
"famoso pintor japonês" Tzuguharu Fujita, que virou um fanático por samba ao escutar
o "ritmo nacional" na casa do futuro acadêmico Múcio Leão, em 1931. Fujita ficou tão
encantado com o que ouviu que "articulou com os alunos da Escola Nacional de
Belas-Artes um conjunto" (Efegê, 1980, vol. 1: 63). Não deve ter sido o primeiro
encontro do pessoal das Belas-Artes com o samba. Nem foi o último: sabemos como
artistas "formados" influenciaram o desfile das escolas de samba na condição de
carnavalescos.
Enquanto esses estrangeiros se divertiam entre sambistas, Getúlio Vargas
convidava rio Reis e o grupo Bando da Lua, que acompanhou Carmen Miranda,
para suas receões no Palácio do Catete (sua filha Alzira Vargas era amiga de
Aloísio de Oliveira, do Bando da Lua). Mais tarde a Exposição Nacional do Estado
Novo, realizada em 1939, teve sua agenda musical organizada por Villa-Lobos (que
tinha um cargo oficial no governo desde 1932, como diretor da SEMA
Superintendência de Educação Musical e Artística), incluindo apresentações de
Francisco Alves, Carmen Miranda, Patrício Teixeira, Almirante, o regional de Benedito
Lacerda e Donga etc., além de um espetáculo folclórico com jongo, cateretê, pastoril,
"terminando com uma apresentação das principais escolas de samba cariocas"
(Cabral, s/d: 40) o que mostrava que o samba ainda era visto como folclore
brasileiro. Em 1940 o mesmo Villa-Lobos participava dos ensaios do Sodade do
Cordão, no morro do Quitungo (Irajá, subúrbio do Rio de Janeiro), bloco patrocinado
pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o órgão de censura do Estado
Novo (ver Mariz, 1989: 34/35). Como se vê, o interesse oficial pelo samba e pelas
"coisas brasileiras" era mais do que explícito. O aparelho governamental da "Era
Vargas" esteve muito envolvido com o progresso da nacionalização do samba, desde
o morro à Exposição Nacional.
O samba, em pouco tempo, alcançou a posição de música nacional e colocou
em plano secundário os outros gêneros "regionais". Por exemplo: em 1932 a dupla
Jararaca e Ratinho
P. 127
(ex-componentes dos Turunas Pernambucanos) juntou-se ao dançarino de maxixe
Duque, a Pixinguinha e à atriz Dercy Gonçalves para criar, na Praça Tiradentes do
Rio de Janeiro, a Casa do Caboclo, também chamada de "casa da canção nacional".
O cenário do primeiro espetáculo ali apresentado era uma casa caipira. Em 35 o palco
já era ocupado pela peça Reino do samba (ver Rodrigues, 1983).
A vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização e
modernização da sociedade brasileira. O Brasil saiu do Estado Novo com o elogio
(pelo menos em ideologia) da mestiçagem nacional, a Companhia Siderúrgica
Nacional, o Conselho Nacional do Petróleo, partidos poticos nacionais, um ritmo
nacional. Na música popular, o Brasil tem sido, desde então, o Reino do Samba.
P. 129
8
LUGAR NENHUM
O dia 5 de julho de 1940 (poucos meses depois do desfile do bloco Sodade do
Cordão, patrocinado pelo DIP) foi uma data sombria na vida de Carmen Miranda.
Depois de seu grande sucesso nos Estados Unidos, depois de ter cantado até na
Casa Branca para o presidente Franklin Roosevelt, ela voltou a se apresentar no
Cassino da Urca, Rio de Janeiro, o palco principal do show business brasileiro
daquela época. A expectativa era de uma recepção consagradora, algo que repetisse
a aclamação popular de que Carmen foi alvo ao desembarcar do navio que a trouxe
de Nova York para o Brasil. Mas a reação do público durante o show, que continha
novas músicas em inglês, foi de uma frieza e desaprovação bastante significativas,
que depois se transformaram na lebre acusação de “falsa baiana". Carmen se
retirou para o camarim chorando, mas buscando uma forma de responder às
críticas da elite carioca.
A resposta se tomou pública poucas semanas depois daquele show, que foi
cancelado logo após a estréia, quando Carmen lançou o samba Disseram que eu
voltei americanizada. Essa música pode ser considerada profética, pois daí em diante
o problema da "americanização" vai se tornar cada vez mais central, não para o
debate sobre a “identidade brasileira", como também para a crítica do imperialismo
cultural", ou do "colonialismo cultural" em todo o mundo. A "americanização" de
Carmen era um caso pioneiro (depois
P. 130
da acusação a Carinhoso, de Pixinguinha), e por isso escandaloso. Mas casos como
esse iriam se tornar rotina.
Carmen Miranda pode ser considerada a estrela mais internacional (talvez
comparável a João Gilberto e Antônio Carlos Jobim, os criadores da bossa nova, cuja
"brasilidade", como veremos, também foi motivo de debates), que a música
brasileira já produziu. Essa internacionalidade foi conquistada com uma preocupação
obsessiva em se afirmar como brasileira, como representante da cultura brasileira.
Carmen, que era portuguesa de nascimento e nunca conseguiu obter um passaporte
brasileiro, "inventou" [NOTA 1] uma imagem do Brasil para ser vendida no exterior.
Essa imagem, com suas bananas e balangandãs, surgiu no momento em que o
"paradigma mestiço", divulgado principalmente por Gilberto Freyre, como vimos,
tornava-se hegemônico no debate sobre a identidade brasileira.
Branca européia, Carmen Miranda não via nenhuma contradição em se vestir
de baiana (usando a roupa "típica" das negras da Bahia [NOTA 2]), ou em cantar ou
dançar samba (música de origem negro-africana). Seu projeto (ela disse: "Olhem para
mim e vejam se eu o tenho o Brasil em cada curva do meu corpo") era ser brasileira
e nele estava incluída a utilização tanto do traje de baiana quanto do samba,
transformados em símbolos da brasilidade, em símbolos da nacionalidade "mestiça".
Esse projeto não despertava críticas, e era avisto como algo corriqueiro no início
da carreira de Carmen, nos anos 20. Mas com a consolidação do samba como música
nacional (e com a definição da brasilidade mestiça) recrudesceram as cobranças de
coerência "sambista".
A denúncia da "americanização" de Carmen Miranda mostrava que existia no
Brasil de 1940 um movimento difuso que defendia a correta utilização desses novos
símbolos nacionais. A mistura do samba com a música norte-americana, por exem-
P. 131
plo, não podia ultrapassar determinados limites. existia uma autenticidade a ser
preservada no campo da cultura popular brasileira. Mas quem separava aquilo que é
"verdadeiramente" brasileiro do que foi corrompido pela americanização ou por
qualquer outro internacionalismo?
Neste capítulo pretendo apenas citar alguns (quero frisar bem: são apenas
alguns poucos) dos debates que envolveram a defesa do samba ou a defesa da
música "realmente brasileira" contra "ameaças" de descaracterização dos "nossos
verdadeiros valores culturais", valores que foram definidos no momento de criação do
paradigma mestiço (que envolvia a transformação do samba em música brasileira por
excelência). Não é meu objetivo aprofundar a análise de cada um dos debates (o que
poderia ser tema de outro livro). Quero apenas apontar, o mais brevemente possível,
alguns dos efeitos (reações, desenvolvimentos) mais contemporâneos da valorização
das "coisas brasileiras", alçadas à condição de símbolos nacionais em torno dos anos
30.
Um efeito não desejado, ao menos pelo que é possível perceber, por exemplo,
nos argumentos cosmopolitas de um Gilberto Freyre ou de um Afonso Arinos, foi a
cristalização do samba principalmente o chamado "samba de morro" numa
fórmula musical que passou a ser preservada a todo custo por nacionalistas. Quando
a bossa nova surgiu, no final dos anos 50, muitos defensores da "verdadeira
brasilidade" do samba atacaram essa nova música como se fosse uma traição à
pátria. O crítico musical José Ramos Tinhorão, com o seu reconhecido radicalismo
na defesa da "música brasileira", resume bem as idéias dos opositores [NOTA 3] da
bossa nova:
O movimento chamado de bossa nova a partir de 1958 veio finalmente
agravar essa quebra de tradição [iniciada pelo samba-bolero e o
samba-canção dos anos 40], apro-
P. 132
fundando a influência do jazz be-bop, ao mesmo tempo que
modificava a batida tradicional do samba, através de uma espécie de
esquematização destinada a transformar esse gênero de música
popular carioca no âmbito da classe média numa pasta sonora, mole
e informe (Tinhorão, s/d: 48/49).
Em outro texto, Tinhorão afirmou que a bossa nova foi criação de "um grupo de
moços" que "rompeu definitivamente com a herança do samba popular, modificando
o que lhe restava de original, ou seja, o próprio ritmo" (Tinhorão, 1986: 231).
Do outro lado desse debate, os defensores da bossa nova também usavam
argumentos nacionalistas. Caetano Veloso, em texto escrito em 1965-66 (quase como
uma resposta a José Ramos Tinhorão), diferenciava a música de João Gilberto e
Antônio Carlos Jobim daquela de "artistas como Johnny Alf, Dick Farney". As
composições desses últimos corresponderiam "a uma alienão da classe média
subdesenvolvida cuja meta é assemelhar-se à sua correspondente no país
desenvolvido dominante" (Veloso, s/d: 3). Mas não aconteceria o mesmo com a bossa
nova: "João Gilberto é, de todos os tempos, o intérprete brasileiro que melhor
compreende a bossa, esse mistério que habita o sambista, e melhor pode jogar com
ela" (Veloso, s/d: 8). Para fazer tal afirmação, Caetano sabia que era necessário
relativizar a idéia de "tradição do samba", revelando tudo que ela continha de
construção cultural:
Se acompanharmos a evolução do samba até onde nos agrada e o
cristalizarmos num momento que nos parece definitivo, poderemos
nos ater ao samba de roda da Bahia e renegar até o mais primitivo
partido-alto carioca. Reagindo contra a possível inautentificação do
samba, muitos se voltaram para o morro e alguns acreditaram que
somente ele existe realmente: Carlos Lyra fez um samba sobre o
assunto e foi compor com Kéti e Cartola. Entretanto o samba
muito que deixou de se restringir à Bahia. E ninguém pode acusar de
boa-fé Ary Barroso de uma apropriação indébita por expressar-se em
samba sem ter vivido no morro e sem ser semi-analfabeto (Veloso,
s/d: 5).
Caetano acabou também sendo acusado de alienado e traidor da música brasileira
ao interpretar suas canções acompanha-
P. 133
do por guitarras elétricas nos festivais de música do final dos anos 60, quando iniciou
(junto com outros artistas, como Gilberto Gil) outro "movimento" musical, conhecido
como tropicalismo. Em entrevista à revista Manchete, em 1967, polemizava:
"Algumas pessoas ficaram histéricas quando ouviram Alegria, alegria com arranjo de
guitarras elétricas. A estes, tenho a declarar que adoro guitarras elétricas. Outros
insistem que devemos nos folclorizar. (...) Ora, sou baiano, mas a Bahia não é
folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também
lanchonetes e hot dogs, como em todas as cidades grandes" (Veloso, s/d: 23).
Gilberto Gil descrevia assim, em 1968, as pessoas que reagiram ao uso do
rock e das guitarras elétricas por parte do tropicalismo: "Sabia o tipo de gente que
estava lá: jovens ligados ao movimento universitário, com um condicionamento
ideológico ante a música, uma turma comprometida com chavões sociais" (Gil, 1982:
33). O tropicalismo lutava contra esses chavões: "era preciso desmistificar aquela
coisa nazista no sentido isolado e aquela abstração no sentido nacional de
brasilidade" (Gil, 1982: 35). O poeta concretista Augusto de Campos, em artigo de
1967, fazia a defesa dos tropicalistas contra
a crise de insegurança que, gerando outros preconceitos, tomou conta
da música popular brasileira e ameaçou interromper a sua marcha
evolutiva. Crise que se aguçou nos últimos tempos, com a
sintomatologia do temor e do ressentimento, ante o fenômeno musical
dos Beatles, sua projeção internacional e sua repercussão local na
música da jovem guarda (Gil, 1982: 19).
Augusto de Campos compara a situação dos tropicalistas àquela enfrentada
pelos criadores da bossa nova: "Tivessem esses renovadores dado ouvidos aos
conselheiros de então, que advertiam sobre os perigos de ser desafinado, e só viam
na bossa nova a jazzificação da nossa música, e continuaríamos ahoje exportando
'macumba para turistas', como diria Oswald." E conclui seu artigo com um apelo:
"Deixemos nossa música andar. Sem peias e sem preconceitos ["supostamente
'nacionalistas'"]. Sem lenço e sem documento" (Gil, 1982: 23).
P. 134
Um apelo parecido com esse foi musicado por Gilberto Gil, em 1985, em seu
sucesso radiofônico chamado Roque Santeiro, o rock: "Deixa ele tocar o rock." No
restante da letra, Gil revela a que rock está se referindo: são citados textualmente
Lobão, Paralamas, Ultraje a Rigor e Titãs, todos eles nomes de grupos ou de cantores
que se tornaram estrelas do cenário musical brasileiro durante os anos 80. Com quem
Gilberto Gil está falando? Existe alguém que não quer deixar que ele toque o rock?
A canção Roque Santeiro, o rock foi lançada, como falei, em 1985,
justamente o ano em que se realizou o festival Rock in Rio, talvez o momento de
exposição máxima do rock na mídia brasileira. O evento provocou muitas reações em
defesa da "verdadeira" música brasileira contra a "invasão" do rock. Os nacionalistas
encontravam aliados em muitas frentes, não importando se eram politicamente
"progressistas" ou "conservadores". D. Mauro Morelli, bispo de Duque de Caxias,
sintetizou com a seguinte declaração (publicada na Folha de São Paulo, em 24/11/84,
portanto há pouco menos de dois meses do Rock in Rio) vários dos argumentos mais
repetidos pelos defensores do "nacionalismo": "Nós todos [referindo-se aos bispos do
Estado do Rio de Janeiro, incluindo a ala "conservadora" de D. Eugênio Sales]
concordamos que o festival de rock traz em si duas questões que o desaconselham.
Sob o ponto de vista social, e na minha opinião este é o aspecto mais importante, ele
é alienante na medida em que desvia a juventude e a sua força dos graves problemas
que afetam o país neste momento. (...) O outro aspecto é cultural. Que contribuição
traz para a cultura brasileira uma manifestação como esta, toda importada e que não
valoriza a nossa própria cultura?"
Esse tipo de argumentação não deve ser considerado propriedade de uma
minoria inexpressiva. Ao contrário: as críticas ao rock estão disseminadas por vários
segmentos da sociedade brasileira e reaparecem com freqüência razoável na
imprensa do país. Desde 1982, ano em que se popularizou o rótulo rock brasileiro
[NOTA 4] e que dá início a um período de grande
P. 135
sucesso para os novos grupos cuja música assim foi rotulada (tendo como marco
inicial o lançamento do compacto que continha Você não soube me amar, do grupo
Blitz), a pregação nacionalista adquiria novamente vigor e espaço, mais ou menos
generoso dependendo do órgão de imprensa, para ser emitida.
O rock brasileiro foi chamado de "produto artificial" (vide artigo de José
Nêumanne Pinto no Jornal do Brasil de 25/10/83, Caderno B, p.2) ou foi considerado
"a expressão de um povo sufocado pelos trustes internacionais" que "procuram
dificultar o consumo de formas autenticamente brasileiras pelas grandes massas
urbanas" (como diz o sambista Nei Lopes no Jornal do Brasil em 25/05/85, Caderno
B, p. 8).
Do outro lado (na verdade, nesses debates existem muito mais "lados" do que
o pró e o contra), os defensores do rock também eram numerosos. Gilberto Gil, para
continuar com esse exemplo, reconheceu a paternidade do tropicalismo com relação
ao rock brasileiro em entrevista ao programa Conexão nacional, exibido na Rede
Manchete de Televisão em 1985:
Sou coruja. É preciso não esquecer que a gente de certa forma abriu
muito espaço para esse pessoal. O tipo de briga que a gente teve com
a tropicália, o serviço de tratoragem, de revolver terra, é um trabalho
que ofereceu terreno pra esse pessoal todo. A gente fica um pouco
assim dizendo: puxa vida, olha o tropicalismo, olha as questões que
a gente defendia, as brigas que a gente tinha com o tropicalismo. A
gente imaginava que era assim que as coisas deveriam estar por volta
de 1985. [NOTA 5]
José Ramos Tinhorão também aponta o "serviço de tratoragem" que o
tropicalismo fez para o rock brasileiro, só que com outra interpretação:
P. 136
(...) o tropicalismo (...) não deixou de cumprir seu papel de vanguarda
do governo de 1964 na área da sica popular: rompidas as
resistências da parte politicamente consciente da classe dia
universitária, que tentava a defesa de uma música de matrizes
brasileiras, as guitarras do som universal puderam completar sua
ocupação do mercado brasileiro. E assim, a partir da década de 70,
em lugar do produto musical de exportação prometido pelos baianos
com a “retomada da linha evolutiva", institui-se nos meios de
comunicação e da indústria do lazer, definitivamente, a era do rock. O
qual, aliás, muito tropicalisticamente, o espírito satisfeito dos
colonizados passaria a chamar, a partir da década de 1980, de rock
brasileiro (Tinhorão, 1986: 267).
A visão do Brasil contida nas letras do rock brasileiro dos anos 80 não pode
ser rotulada de nacionalista ou patriótica. Elas montam um retrato pessimista, sem
nenhuma sutileza, da nação: [NOTA 6] “nas favelas, no senado, sujeira pra todo lado"
(Que país é este, 1987, Legião Urbana); "e agora você quer um retrato do país, mas
queimaram o filme, e enquanto isso na enfermaria todos os doentes cantam sucessos
populares e todos os índios foram mortos" (Mais do mesmo, 1987, Legião Urbana);
"desempregado, despejado, sem ter onde cair morto, endividado sem ter mais com
que pagar, esse país, esse país que alguém disse que era nosso" (Perplexo, 1989,
Paralamas do Sucesso); "sinto um imenso vazio e o Brasil, que herda o costume
servil, não serviu para mim terra linda, sofre ainda a vinda de piratas, mercenários
sem direção, que até eu mesmo sei quem são" (Juvenília, 1985, RPM); "mais uma
briga de torcidas, acaba tudo em confusão, a multidão enfurecida queimou os carros
da polícia, os preços fogem do controle, mas que loucura essa nação" (Desordem,
1987, Titãs); "a gente não sabemos escolher presidente, a gente não sabemos tomar
P. 137
conta da gente, a gente não sabemos nem escovar os dentes, a gente pede grana e
não consegue pagar, a gente somos inútil" (Inútil, 1985, Ultraje a Rigor).
Ironia, desprezo, desencanto, horror: não existe qualquer elogio à pátria em
qualquer das letras mencionadas. Não existe nada como o samba de exaltação às
maravilhas da raça ("Eu só pé, eu sou chão, eu só pó, eu sou poeira, sou filha desse
torrão, eu sou a raça brasileira": assim canta Elaine Machado em Raça brasileira, de
1985, música do disco Raça brasileira, coletânea de sambistas surgidos nos anos 80
auge da febre rock que deu início ao primeiro boom comercial do pagode). Não
existe motivo para orgulho, talvez para consternação ou piedade. O roqueiro, em
muitos momentos, tem consciência de que também é parte dessa "mistura" que faz
do Brasil brasil. A sica que torna mais claro esse envolvimento do compositor de
rock com a "loucura" da nação é Brasil (1988), de Cazuza: "Grande pátria
desimportante, em nenhum instante eu vou te trair." E ainda: "Brasil, mostra a tua
cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim, Brasil, qual é o teu negócio, o nome
do teu sócio, confia em mim."
Outros compositores não mostram nenhum envolvimento com o desatino
nacional. Alguns questionam o próprio sentido do conceito de identidade, até
duvidando da existência de uma cara para o Brasil. Os Titãs são o grupo que tomou
a posição mais radical nesse debate, com a música Lugar nenhum (1987): "Não sou
brasileiro, não sou estrangeiro, não sou de lugar nenhum." E ainda: "Nenhuma pátria
me pariu." Talvez seja a declaração mais esperada de se ouvir na boca de quem faz
rock no Brasil.
É interessante comparar essas letras do rock brasileiro com aquelas dos vários
novos estilos de música popular surgidos na Bahia durante os anos 80 e que
acabaram se transformando em moda nacional em 1992-3 (vide o caso da cantora
Daniela Mercury). O sucesso dessa música popular baiana (principalmente a música
dos trios elétricos e dos blocos afros) pode ser pensado também como a criação de
um mercado regional de discos (semelhante aos mercados fortalecidos a partir dos
anos 70 do forró em todo o Nordeste, e da lambada na Região Norte tendo a
cidade de Belém como centro) que praticamente não depende do eixo Rio/São Paulo,
onde estão
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concentradas as grandes gravadoras multinacionais e as sedes dos grandes meios
de comunicação eletrônica. As letras refletem essa regionalização mercadológica. Se
podemos ouvir alguns arroubos (pois a música dos trios elétricos é preferencialmente
otimista, ao contrário do pessimismo do rock) nacionalistas, como em brasileira
(1987) do grupo Chiclete com Banana ("Verde e amarelo, tenho a fé brasileira, sei o
que quero, tenho a minha nação"), chegamos logo à conclusão de que o alvo principal
da exaltação musical é a beleza do baiano e da cidade de Salvador. São variações
em torno de "toda a cidade brilha" e de "toda essa gente irradia magia", como aparece
em É d'Oxum (1985), composição de Gerônimo e quase um hino dos últimos
carnavais baianos.
Um capítulo à parte (ou um livro à parte) poderia ser escrito sobre as letras dos
chamados blocos afros, como Olodum, Muzenza, Ara Ketu e Ilê Aiyê. Nessa música,
que até recentemente era feita apenas com percussão acústica e voz (ao contrário
do barroco eletrônico dos trios elétricos, que m uma formação parecida com a de
uma banda de rock, isto é, guitarra, baixo, bateria, teclados eletrônicos e percussão),
os temas privilegiados são a cultura negra e africana. Os blocos afros inventam outra
resposta, diferente da(s) do rock brasileiro, para a pergunta sobre o que é ser
brasileiro hoje. A brasilidade de sua música parece mesmo não ser grande fonte de
preocupação para os componentes de um grupo musical que pode se intitular Banda
Reggae Olodum ou Bloco Afro Olodum. A própria escolha das palavras reggae e afro
para definir seu tipo de atividade musical e carnavalesca denuncia pretensões
cosmopolitas. Mas aqui encontramos um cosmopolitismo bem diferente daquele dos
roqueiros brasileiros. Os blocos afros redefinem a visão de mundo e o estilo de vida
cosmopolitas a partir de outra perspectiva e dentro de outro contexto: aqueles ligados
política e culturalmente às noções de negritude e de Terceiro Mundo.
Essas noções, tal como são utilizadas, por exemplo, pelos integrantes do
Olodum, não o excludentes, como pode parecer à primeira vista, tanto em termos
de quem pode participar do Olodum (pois qualquer pessoa, independente de raça,
pode desfilar com o bloco), quanto de que ingredientes musicais podem ser
misturados em suas composições. Como
P. 139
acontece com várias outras noções já analisadas neste livro, a negritude e o terceiro-
mundismo do Olodum têm grande fluidez, adquirindo significados e pesos diferentes
em situações e momentos diversos de suas atividades. O Olodum, apesar das
aparências, pode ser muito mais aberto a diferenças (sejam elas não-negras e não-
terceiro-mundistas, ou de qualquer outro tipo) do que uma banda de rock. O Olodum
insiste em se propagandear como a maior democracia racial do planeta.
É incorreto até mesmo classificar o bloco afro como grupo musical. O Olodum,
para insistir no exemplo, inclui um grupo musical, mas suas atividades (do Olodum
em geral e de seus integrantes mais diretamente identificados como músicos)
também compreendem a produção de peças teatrais, a manutenção de uma loja (que
vende livros, jornais e roupas da grife Olodum) e a organização de debates e
seminários sobre os mais diversos assuntos. Sua sede fica localizada no Largo do
Pelourinho, em Salvador, bairro até então antes de sua "reforma" pauperizado
(apesar de tombado pelo Patrimônio Histórico Nacional e de ser ponto de visita
obrigatório para os turistas que passeiam pela capital baiana), que teve com o Olodum
sua recriação como comunidade. Esse grupo inventou (principalmente através das
canções) um novo orgulho de viver naquela área abandonada pelas políticas sociais
da cidade.
O Olodum seria mais apropriadamente chamado de grupo cultural (ou parte
integrante de um movimento social que engloba as entidades negras de Salvador),
porém é mais conhecido como bloco afro, por ter se destacado em seus desfiles
durante o carnaval de Salvador. A expressão "bloco afro" adquiriu popularidade no
final dos anos 70 e início dos anos 80. O primeiro bloco afro foi o Ilê Aiyê, formado no
bairro da Liberdade, outra grande concentração negra e popular da capital baiana
(segundo Antônio Risério, seus fundadores freqüentavam os bailes soul de Salvador
ver Risério, 1981: 31-2). Ficou conhecido em todo o Brasil quando Gilberto Gil
gravou e lançou com grande sucesso, em 1977, a música Ilê Aiyê, cuja letra continha
os seguintes versos: "Branco, se você soubesse/ O valor que preto tem/ Tu tomava
banho de piche/
P. 140
Ficava preto também." A tematização, com tal franqueza, da questão do orgulho
negro e da discriminação racial existente no Brasil logo provocou polêmicas. A
resolução do Ilê Aiyê de permitir o ingresso, para o desfile no carnaval, de pessoas
negras (e tinham que ser bem negros: conheço a história de mulatos que foram
barrados o que mostra uma classificação racial diferente da norte-americana, na
qual os mulatos o identificados como negros) foi muito discutida e criticada, por
membros da elite branca (ou mulata clara) baiana, como racismo.
O exemplo do Ilê Aiyê foi seguido, com variações mais ou menos significativas,
na criação de vários outros blocos afros em Salvador. Discutirei mais o caso do
Olodum, pois foi o bloco que inventou o samba-reggae, ritmo que coloca novos
problemas para o tema principal deste livro, que é a invenção do samba como música
nacional brasileira. Como vimos, nas palavras de Paulinho da Viola citadas no último
capítulo, os sambistas cariocas (excluindo talvez os da novíssima geração, partidários
do que ficou conhecido como "suingue") consideram-se guardiães da tradição do
samba, condenando qualquer tipo de mudança mais substancial no gênero. Os
sambistas dos blocos afro-baianos não têm esse tipo de preocupação, e misturam o
samba tanto com o reggae como com outros ritmos afro-caribenhos (tudo no limite de
seu cosmopolitismo negro).
João Jorge, diretor cultural do Olodum, resumiu (em entrevista que fiz com ele
em 1988) a ideologia do Olodum da seguinte maneira: "O Olodum é muito marginal.
Marginal no sentido de não ter grandes heranças filosóficas e musicais. Então nós
somos pós-modernos, pós-punk, pós-yuppie, pós-tropicalistas." Em outro momento
dessa entrevista, João Jorge definiu a musicalidade do Olodum com palavras que
poderiam deixar Gilberto Freyre confiante no acerto de seu diagnóstico para a cultura
brasileira:
Nós somos a síntese. é possível ser brasileiro se puder ser a
síntese, a síntese de um conjunto amplo de cores, de povos, de
línguas, de costumes, de culturas. E essa música pode ser
brasileira, nova, velha, atual, passada, se ela puder ser essa síntese,
se ela não excluir, não for excludente.
P. 141
Essas palavras poderiam ser surpreendentes levando-se em conta o papel de João
Jorge como integrante do movimento negro baiano. Seria possível esperar um
discurso excludente, sobretudo com relação à elite branca. Mas não é isso que
acontece. Nem musicalmente, a meu ver, o Olodum está preocupado com
autenticidade, ou preservação da verdadeira" cultura brasileira ou baiana. Essas
características são invisíveis para muitos críticos norte-americanos que recomendam,
desde que o Olodum participou de um disco do cantor Paul Simon, os shows e discos
do bloco afro-baiano para seus leitores. Uma outra interpretação, para "gringo" ver (e
principalmente para gringo interessado nos problemas do Terceiro Mundo, e com
sentimento de culpa por uma hipotética ocidentalização do planeta), é construída,
transformando o Olodum na mais autêntica pureza brasileira. Na revista Spin, uma
das mais importantes fontes de informação musical para a juventude norte-
americana, o crítico Larry Birnbaum define a música do Olodum como "um hipnótico
cruzamento do samba pop despido até sua essência crua com os cânticos rituais dos
cultos iorubanos do candomblé". Nem sombra de menção ao reggae: talvez por
desinformação, mas certamente com a "boa intenção" de preservar a "essência crua",
algo visto de forma positiva pelo jornalista. No jornal New City, de Chicago, o
empolgado crítico chega a citar os ritmos caribenhos, mas faz isso de forma curiosa:
"Acordes lembram as raízes do hip-hop, calipso, merengue etc." As semelhanças
notadas pelo jornalista são jogadas para o terreno confortável (para quem procura a
pureza) das raízes históricas comuns. Não parece possível, para o crítico do New
City, que os músicos do Olodum possam ter acesso a discos de reggae e tentar copiar
o que escutam.
Os ritmos transculturais do Olodum conquistaram todo o Brasil (mas primeiro
conquistaram as bandas dos trios elétricos, de onde saiu uma cantora como Daniela
Mercury) em 1991. Nesse ano e em 1992, o Olodum se apresentou nas principais
casas de espetáculos musicais das grandes cidades brasileiras. A música baiana,
depois da música sertaneja, havia ultrapassado o rock brasileiro em matéria de
vendas de discos e popularidade nacional. Os grupos iniciantes de rock
P. 142
voltaram a sobreviver num circuito underground (como os próprios roqueiros gostam
de chamar) que inclui pequenas casas noturnas e gravadoras independentes.
Esses novos grupos são bem diferentes de seus antecessores do rock
brasileiro dos anos 80. Um marco em suas trajetórias foi o sucesso mundial da banda
mineira Sepultura (que agora lota estádios até na Indonésia), com discos gravados
inteiramente em inglês, no gênero musical trash (ou speed) metal. A revista musical
Bizz (ano 9, nº 5), fazendo um balanço dos discos lançados por "artistas novos" entre
janeiro de 1992 e maio de 1993, chegou aos seguintes números: foram lançados 188
trabalhos de novos nomes, dentre os quais 110 eram cantados em inglês (p. 29). Essa
quantidade de lançamentos em inglês é uma novidade na história da música popular
brasileira e mesmo na história do rock brasileiro. No Brasil não se repetiu o padrão
constatado pela pesquisa comparativa, realizada pelos etnomusicólogos Krister Malm
e Roger Wallis, sobre o funcionamento da indústria fonográfica (e a penetração da
música "ocidental") em 12 países de todos os continentes intitulada The music
industry in small countries. Malm e Wallis apontam alguns dos traços comuns do
material coletado nessa pesquisa:
Quando o movimento de música sueca explodiu em tomo de 1970,
milhares de grupos subitamente começaram a cantar na sua própria
língua. O mesmo processo ocorreu no País de Gales (...) O primeiro
disco pop cantado em sinhala foi lançado no Sri Lanka em 1969.
Durante os anos 70 a Jamaica experimentou a transição do rock
steady para o reggae. O Quênia estava produzindo os primeiros
discos do pop lou. Outras variantes tribais se seguiram durante a
década. As bandas tanzanianas de jazz estavam desenvolvendo suas
próprias versões em suaíli da música popular do Leste Africano.
Depois de quase uma década copiando os Beatles, Elvis ou Chubby
Checker, sicos das "pequenas" nações começaram a desenvolver
suas próprias formas nacionais de música popular. Cantar na sua
própria língua ou dialeto era uma mudança significativa, pois
introduzia um novo elemento comunicativo entre o músico e o ouvinte
(Wallis & Malm, 1990: 179).
P. 143
O esquema de Wallis e Malm parece funcionar por décadas. Uma década depois da
invasão da música estrangeira, os cantores locais começam a cantá-la em suas
próprias línguas ou a misturá-la com tradições locais. Outros dez anos são
necessários para que as inovações transculturais (Wallis e Malm definem
transculturação como "um processo através do qual elementos da sica e da
tecnologia musical difundidos pela indústria transnacional são incorporados à música
local" [NOTA 7] Wallis & Malm, 1990: 179) sejam assimiladas pelas elites locais:
"Durante os próximos dez anos essas formas locais de pop e rock passam a ser
aceitas, primeiro pelo público juvenil e, então, gradualmente, pelas autoridades
governamentais e pelas mídias de massa nacionais" (Wallis & Malm, 1990: 179).
Se esse esquema é realmente uma regra geral, o caso brasileiro é uma
exceção. O rock no Brasil desde o início foi cantado, em sua maioria quase absoluta,
em português. O rápido sucesso da Jovem Guarda, criado com toda a ajuda da
televisão e do rádio, também mostra que as mídias de massa brasileiras não
demoraram muito para aceitar o rock nacional. E hoje temos um número grande
de roqueiros que preferem cantar em inglês.
A tendência para o inglês, contudo, não é a única existente no atual rock
brasileiro. O panorama roqueiro (seria possível falar a mesma coisa do panorama
sambista, ou do panorama sertanejo etc.) dos anos 90 é muito mais complexo do que
o de meados dos anos 80, com inúmeras subdivisões estilísticas (metal, industrial,
hardcore etc.) que muitas vezes não têm nenhum contato entre si. Outra tendência
que está se tornando cada vez mais forte é a da mistura desses estilos internacionais
do rock com alguma "tradição" musical brasileira. É o caso, entre inúmeros exemplos,
da banda brasiliense Raimundos, que já conquistou numerosa legião de fãs com sua
mistura de trash e hardcore com forró (seus componentes são filhos de nordestinos
que foram morar em Brasília). Outro exemplo é o da banda recifense Chico Science
& Nação Zum-
P. 144
bi, uma mistura de raças/classes sociais (de seus integrantes) e estilos musicais
(metal, rap, maracatu, ciranda), que mais parece uma versão pós-moderna da obra
de seu conterrâneo Gilberto Freyre. A idéia de produzir tal mistura (já conhecida como
"mangue beat") partiu dos componentes mais brancos, e mais de classe média, da
banda. Eles tiveram que convencer os integrantes mais negros e mais pobres (que
antes faziam parte de um bloco afro de Recife, imitando a música do Olodum) a
aprender a tocar os ritmos "verdadeiramente" pernambucanos.
Nessas misturas de rock com elementos musicais brasileiros, não parece
existir interesse em autenticidade ou identidade nacional. Como analisou, em 1986,
a jornalista Ana Maria Bahiana, veterana crítica de rock no Brasil:
Não se trata, propriamente, de uma "busca de raízes" nem de um
"mea culpa" coletivo por parte dos roqueiros; nem mesmo de um
projeto de síntese, como já aconteceu em outros momentos. A julgar
pelo que dizem, pelo que tocam e criam, e pelo que imaginam,
estamos diante, sim, de um novo atalho num velho caminho: um
estado de estafa e tédio musicais superado pela busca de novos
alimentos e idéias (O Globo, 08/04/1986, Segundo Caderno, p.1).
Não um projeto de "nacionalização". Nem uma complexa rede de relações
transculturais, como a que produziu a transformação do samba em música nacional
por volta de 1930, na base dessas novas fusões. Salvo engano, o que parece existir
é uma multidão de grupos diferentes com projetos culturais diferentes, sem
preocupação com unidades de qualquer espécie. Relembrando as palavras citadas
de Paulinho da Viola: não mais comunidade do samba. Mas também não
comunidade do rock ou do samba-reggae. Será que isso significa também o fim do
"paradigma mestiço", daquela identidade nacional produzida com tanto cuidado e
esforço por tantos grupos interessados nas "coisas brasileiras"? O que ainda pode
assegurar a unidade (mesmo que seja apenas musical) da pátria?
P. 145
CONCLUSÕES
duas maneiras de se integrar sistemas. Uma é impor padrões
uniformes. O que é motivo para grandes debates. A outra é não
integrar, não ter padrões integrativos, mas sim valer-se de
adaptadores inteligentes.
Alvin Toffler
No carnaval de 1994, o enredo da Mangueira, talvez a escola de samba mais
respeitada pelos advogados da "autenticidade", foi uma homenagem aos músicos
baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Por uma
interessante coincidência o tema do carnaval do Olodum foi o tropicalismo. Estaria a
Mangueira deixando de lado a "pureza" do samba para se aproximar da "geléia geral"
dos inventores tropicalistas e s-tropicalistas (como se autodefine o diretor cultural
do Olodum) baianos? Mais uma vez o Rio de Janeiro tenta inventar um novo Brasil
homenageando a Bahia? Qualquer conclusão não deve ser precipitada. O Olodum
pode cantar, numa das sicas feitas para 1994 (os blocos afros o têm um único
samba-enredo como as escolas de samba do Rio de Janeiro), que "Olodum tá hippie,
Olodum pop, Olodum rock, Olodum pirou de vez". Mas a Mangueira preferiu fugir
dos temas mais polêmicos do tropicalismo (e de todo o restante da carreira de seus
homenageados), investindo, em seu enredo, numa imagem "cartão-postal" da vida na
Bahia. [NOTA 1]
O fato de a maioria dos baianos preferir cantar as músicas do Olodum aos
sambas cariocas parece não ter tanta importância. O carnaval do Rio de Janeiro ainda
permanece como
P. 146
a festa nacional "por excelência", sendo transmitido pela televisão para todo o Brasil,
ao passo que o carnaval baiano (cuja música é mais popular do que o samba das
escolas cariocas na maior parte do território brasileiro) aparece apenas em flashes na
cobertura jornalística dos meios de comunicação eletrônicos. Não é apenas uma
"imposição" da Rede Globo, sediada no Rio de Janeiro. O samba carioca, mesmo não
tendo a popularidade que conquistou nos anos 30 (agora recuperada, em parte, com
a moda do "suingue" mas esse não é um estilo, como vimos nas palavras de
Paulinho da Viola, avalizado pelos sambistas mais "autênticos", e muitos dos grupos
de sucesso nasceram em São Paulo), permanece atuando como agente unificador
nacional. Tanto que o baiano Caetano Veloso declarou, em entrevista recente, que "a
Mangueira, e por extensão o Rio de Janeiro, representam a unidade nacional. Agora
que se fala tanto em separatismo [NOTA 2] é bom fortalecer o Rio como símbolo da
nacionalidade" (Jornal do Brasil, Caderno B, p.1, 01/06/1990).
Caetano Veloso não está dizendo que a música carioca é melhor que a baiana,
ou que o Rio de Janeiro é melhor que Salvador. Fala apenas que o Rio de Janeiro
(incluindo o samba carioca) tem mais condições de atuar como representante da
unidade brasileira do que qualquer outra cidade (ou qualquer outra música) do país,
mesmo depois de 30 anos da mudança da capital para Brasília. A escolha do Rio é
política: não significa que essa cidade se aproxime, mais que as outras, da verdadeira
brasilidade, ou das raízes da nacionalidade. A Unidade, o Nacional e o Brasil são
inventados todos os dias (evocando Ernest Renan), são plebiscitos diários, e essas
invenções devem ser fortalecidas com todo o cuidado se ainda está em pauta
um projeto de "unificação" política, social e cultural para o país. A escolha do Rio de
Janeiro como símbolo nacional é precedida por outras escolhas que valorizam o
nacional e a unidade. Muitos brasileiros continuam achando que esse é o melhor
caminho (contra a segmentação, contra uma heterogeneidade mais "radical") para o
Brasil.
P. 148
Mais do que isso: o caminho da unidade nacional (vista como uma
homogeneização à la Gilberto Freyre) ainda é valorizado como fonte de originalidade
para a "civilização brasileira", aquilo que nos faz diferentes e que, justamente por
constituir uma experiência inédita, pode enriquecer a civilização mundial. Caetano
Veloso reatualizou e complexificou, em seu poema Americanos (recitado durante o
show Circuladô de 1992), algumas idéias anunciadas por Gilberto Freyre (ou por
Jorge de Lima, no poema A minha América) mais de 50 anos: "para os americanos
branco é branco, preto é preto (e a mulata não é a tal), bicha é bicha, macho é macho,
mulher é mulher, e dinheiro é dinheiro. E assim ganham-se, barganham-se, perdem-
se, concedem-se, conquistam-se direitos, enquanto aqui embaixo a indefinição é o
regime e dançamos com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei."
Esse regime de "indefinição" (entre o branco e o preto, entre o homem e a
mulher, entre a casa-grande e a senzala) continuaria a ser pensado como nossa
principal característica, nossa grande particularidade, e também como aquilo que nos
"graça". o mais se trata, como muitas vezes sugeriu (explícita ou implicitamente)
Gilberto Freyre, de uma superioridade. É um caminho diferente, que deve ser
preservado (preservando-se a unidade, a nacionalidade) para que não nos
transformemos em "americanos", como os do Norte. Tudo se resume, então, na luta
entre duas maneiras de se "organizar", se "pensar", se "querer" a cultura, ou como
quer Benedict Anderson de se "imaginar" a comunidade: o caminho da
heterogeneidade (onde as diferenças estão claramente definidas e incentivadas) ou
o caminho da homogeneidade (onde a indefinição contamina, mas não extingue o
heterogêneo). Vejamos que tipo de conseqüências essa escolha homogeneizadora
pode desencadear, tanto para a antropologia quanto para a "cultura nacional".
Uma conseqüência pode parecer óbvia: o caminho da homogeneidade (apesar
de todas as sutilezas que encontramos no pensamento de Gilberto Freyre, para voltar
ao exemplo preferido deste livro), tem, no mínimo, uma forte desconfiança com
relação a toda diferença que tente se expressar com mais vigor. Por isso Freyre pode
dizer, como já foi citado, que "felizmente não há no Brasil uma poesia africana como
aquela
P. 149
nos Estados Unidos". A homogeneidade, a unidade cultural da pátria parece ser
reconhecida como um estado extremamente frágil, a duras penas conquistado, ou
criado por um "acaso feliz" (de os portugueses serem desse jeito e os africanos
daquele outro etc.), que uma perturbação mais persistente (como a dos colonos
alemães da região sul) destruiria para sempre. Gilberto Freyre usa a antropologia para
dar legitimidade a seu papel de guardião da peculiar homogeneidade/indefinição
brasileira. Não é que não veja méritos na poesia africana. É um problema de escolha,
de estratégia política: assim como preferir a culinária pernambucana à baiana, não
por uma questão de gosto, mas em prol de um projeto nacional. No projeto de Gilberto
Freyre não caberia (e nisso ele é exclusivo: exclui o que é definido como excludente)
uma proposta de "presentificação da palavra alheia" e de valorização da "alteridade
poética de índios e africanos", para usar as palavras do texto de contracapa, assinado
por Eduardo Viveiros de Castro, que encontramos no livro Textos e tribos, de Antônio
Risério, talvez a tentativa mais determinada de denunciar a "exclusão" dos textos
ameríndios e africanos das histórias da literatura brasileira (ver Risério, 1993). Para
Freyre, apesar de seu apoio ao "movimento de valorização do negro", seria melhor
que uma tradição poética pura, negra ou ameríndia, servisse apenas como material
"bruto" para a invenção de uma poesia brasileira, miscigenada, mulata. Por isso
também seus aplausos para a "moda" de bronzeamento que tomou conta do Brasil a
partir dos anos 50 (ver Freyre, 1986): o branco total também seria condenável, como
todos os extremos. O "indefinido", o intermediário, seria sempre o melhor caminho. A
mulata (de preferência se for parecida com a atriz Sônia Braga, o exemplo de beleza
brasileira preferido por Gilberto Freyre em seus últimos escritos) é e será sempre a
tal.
Mas como definir uma cultura inventada (ou imaginada, ou projetada) em torno
da indefinição? Seria uma vontade de ser
P. 150
diferente o desejo de se ver sem diferenças internas? São apenas culturas como a(s)
brasileira(s) que lidam com esse problema e essas perguntas? Não será esse um
problema anterior, da própria definição de cultura que foi transformada em crença
para tantos antropólogos? Nessa crença, como já disse Eduardo Viveiros de Castro,
"pensamos que toda sociedade tende a perseverar no seu ser a
cultura sendo a forma reflexiva desse ser e que é necessária uma
pressão maciça e violenta para transformá-la e deformá-la. Nós
acreditamos que o ser de uma sociedade está na sua perseverança:
a memória e a tradição são o mármore identificador no qual é talhada
a imagem da cultura. Nós acreditamos enfim que uma vez convertidas
em outras que elas mesmas, as sociedades que perderam suas
tradições as perderam sem retorno: que não volta, que a forma
anterior foi atingida mortalmente; o melhor que pode acontecer é a
emergência de um simulacro inautêntico da memória, no qual a
"etnicidade" e a consciência disputam entre elas o espaço da
cultura perdida (Viveiros de Castro, 1993: 371-2).
Gilberto Freyre parece ter construído sua obra contra o credo anterior. Tudo o
que ele queria da (e acabava vendo na) cultura brasileira era o contrário da
permanência e da impossibilidade de metamorfose que caracterizam essa definição
de cultura. Tudo o que ele elogiava nos portugueses, ou nos mestiços, era a fluidez,
a possibilidade de mutação constante, de adequação à diversidade. Um elogio que
encontra eco em muitos pensadores/artistas contemporâneos, principalmente latino-
americanos: Mário Vargas Llosa já declarou que "houve, há e Deus faça que haverá
ainda mais, misturas com o elemento indígena e africano aportado na América com
os exploradores" (Vargas Llosa, 1992: 59). Carlos Fuentes, como Gilberto Freyre
(mas por motivos diferentes), coloca as sociedades mestiças numa espécie de
vanguarda cultural mundial: "o mundo do futuro será, como o nosso foi, um mundo de
mestiçagem" (Fuentes, 1992: 62). Existem, porém, outras correntes, talvez mais bem
representadas numericamente, do pensamento contemporâneo que encaram
qualquer "projeto" mestiço com muita desconfiança.
P. 151
O maior "perigo" do "projeto mestiço" seria acabar produzindo um mundo
dominado pelo Mesmo. De muitas formas, as sociedades contemporâneas já
aprenderam a lidar com o "elogio do diferente" ou o "elogio do Outro", aquilo que Jean
Baudrillard identifica como uma "orgia de compreensão política e psicológica do outro"
(Baudrillard, 1990: 130). A mestiçagem implica sempre alguma forma de
homogeneização que poderia desencadear, por sua vez, um processo de extinção
das diferenças. Desde Raça e história, texto clássico de Lévi-Strauss, rios
importantes organismos de relações internacionais transformaram em política
oficial a teoria de que as diferenças culturais (e seu "afastamento diferencial") são
imprescindíveis para que a humanidade continue a dar seus "saltos" evolutivos. Lévi-
Strauss afirma que "uma humanidade confundida num gênero de vida único é
inconcebível, pois seria uma humanidade petrificada" (Lévi-Strauss, 1976: 365). Toda
sociedade, interna e externamente, deveria buscar um "optimum de diversidade".
Essas idéias de Lévi-Strauss têm semelhança muito significativa com outra
poderosa crença que perpassa várias ciências contemporâneas: a lei da entropia. A
entropia pode ser definida como uma medida da desordem "contida" em determinado
sistema físico (incluindo aqui sistemas de informação). O aumento de entropia é um
aumento de desordem. Mas esse aumento de desordem não é um aumento da
heterogeneidade. Muito pelo contrário: quanto mais desordenado, mais o sistema se
aproxima do equilíbrio e do homogêneo. A heterogeneidade (por exemplo, a
existência de dois líquidos com temperaturas diferentes num mesmo sistema) é uma
precondição para a existência da ordem, e a ordem é uma precondição para que o
sistema possa produzir qualquer coisa de "interessante" (um resumo "para leigos" da
história do conceito de entropia e principalmente suas aplicações no campo das
ciências da informação pode ser encontrado em Campbell, 1982). Sem
heterogeneidade não criatividade; a homogeneidade é comparável à morte do
sistema, e uma perturbação vinda do exterior pode produzir novamente alguma
diferenciação interna, gerando "trabalho" ou "energia".
O elogio da mestiçagem não pode deixar de estabelecer algum diálogo com
esse (quase) todo-poderoso "paradigma"
P. 152
da diferença. Gilberto Freyre, em muitas das passagens citadas nos capítulos
anteriores (tentando se defender dos perigos de uma entropia mulata), parece
advogar um optimum de diversidade como aquele de Lévi-Strauss. O problema é
encontrar essa medida. Seu mundo, de alguma forma, parece ser antientrópico. A
heterogeneidade é primeira. A homogeneidade é um projeto, uma tendência
(fortalecida artificialmente), um acontecimento raro, sempre às voltas com uma
provável rebelião da heterogeneidade (no caso brasileiro, Sobrados e mucambos
pode ser pensado como a descrição de uma dessas "rebeliões"). Gilberto Freyre teme
a tendência exclusivista da heterogeneidade e acaba correndo o risco de inventar
uma homogeneidade (elogiada, não paradoxalmente, por ser aberta e indefinida,
podendo abarcar qualquer diferença) também exclusivista.
Estas conclusões continuam precipitadas. Onde o samba entra nisso tudo?
Como o processo descrito nos outros capítulos pode justificar ou embasar esses
pensamentos/afirmações/sugestões conclusivos?
Vejamos (recapitulando os principais pontos deste livro): a invenção do samba
como música nacional foi um processo que envolveu muitos grupos sociais diferentes.
O samba não se transformou em música nacional através dos esforços de um grupo
social ou étnico específico, atuando dentro de um território específico (o "morro").
Muitos grupos e indivíduos (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos,
folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionários, poetas e até mesmo um
embaixador norte-americano) participaram, com maior ou menor tenacidade, de sua
"fixação" como gênero musical e de sua nacionalização. Os dois processos não
podem ser separados. Nunca existiu um samba pronto, "autêntico", depois
transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado
concomitantemente à sua nacionalização.
Outro ponto importante a ser ressaltado é a ausência de uma coordenação e
de uma centralização desses processos (o fato de alguns grupos terem mais "poder"
do que outros não é relevante em qualquer situação). As relações entre os diversos
grupos nunca se institucionalizaram, nem adquiriram formas estáveis. Além disso,
nenhum grupo controlava ma-
P. 153
quiavelicamente o rumo dos acontecimentos (enganando seus parceiros para atingir
seus objetivos "secretos"). Os vários grupos usavam uns aos outros para atingir
objetivos diversos: este podia estar interessado na construção da nacionalidade
brasileira; aquele em sua sobrevivência profissional no mundo da música; aquele
outro em fazer arte moderna. Em vários momentos era possível estabelecer pactos
entre os vários interesses. Pactos nunca eternos. Pactos sempre renegociáveis.
Não estou querendo negar o importantíssimo papel dos afro-brasileiros na
invenção do samba. Também (reafirmo uma vez mais) não quero negar a existência
de uma forte repressão à cultura popular afro-brasileira, repressão que influenciou
decisivamente a história do samba. Minha intenção é apenas complexificar esse
debate, mostrando como, ao lado da repressão, outros laços uniram membros da elite
brasileira e das classes populares, possibilitando uma definição da nossa
nacionalidade (da qual o samba é apenas um dos aspectos) centrada em torno do
conceito de "miscigenação".
No momento histórico privilegiado neste livro, o grande desafio para os grupos
sociais brasileiros interessados em produzir a "unidade da pátria" e o "nacional’' era
encontrar determinados traços culturais que pudessem ser aceitos, pelo maior
número de "patriotas", como expressão daquilo que existe de mais "brasileiro" em seu
país. As. tentativas de transformar o índio "tupi" em símbolo nacional, colocadas em
prática por muitos românticos, tiveram curta duração. A opção pela valorização da
mestiçagem (sem a perspectiva do branqueamento) foi certamente uma saída
arriscada e original. O Brasil foi talvez o primeiro país no qual se tentou, com relativo
sucesso, a fundamentação da "nacionalidade" no orgulho de ser mestiço e em
símbolos culturais populares-urbanos.
Como todo processo de construção nacional, a invenção da brasilidade passa
a definir como puro ou autêntico aquilo que foi produto de uma longa negociação. O
autêntico é sempre artificial, mas, para ter "eficácia simbólica", precisa ser encarado
como natural, aquilo que "sempre foi assim". O samba de morro, recém-inventado,
passa a ser considerado o ritmo mais puro, não-contaminado por influências
alienígenas, e que precisa ser preservado (afastando qualquer possi-
P. 154
bilidade de mudança mais evidente) com o intuito de se preservar também a "alma"
brasileira. Para tanto, é necessário o mito de sua "descoberta", como se o samba de
morro estivesse ali, pronto, esperando que os outros brasileiros fossem escutá-lo
para, como que numa súbita iluminação, ter reveladas suas mais profundas raízes. O
mito diz: o samba "antigamente era repudiado, debochado, ridicularizado", mas hoje
"ninguém quer saber nem fazer outra coisa. O samba é cogitação dos literatos, dos
poetas, dos escritores teatrais e até mesmo de alguns imortais da Academia de
Letras!" (palavras de Francisco Guimarães, mais conhecido como Vagalume, no livro
Na roda do samba, [NOTA 3] publicado originalmente em 1933 Guimarães, 1978:
28). O vago "antigamente" profundidade histórica (e respeito histórico) a um
fenômeno recentíssimo (o samba "de morro" apareceu, como vimos, no final dos anos
20).
Negociações transculturais, exemplificadas aqui na emergência do samba
como música nacional brasileira, são fenômenos comuns em sociedades complexas.
A coexistência de inúmeros grupos sociais, com estilos de vida e visões de mundo
contrastantes (e mesmo conflitantes), exige esforços cotidianos de negociação da
realidade por parte de cada um desses grupos. Uma longa tradição de pesquisa,
unindo autores tão diversos como Georg Simmel, Alfred Schutz, Louis Wirth, Howard
S. Becker, Gilberto Velho e Peter Burke (só para citar alguns e que não usam o
conceito de complexidade exatamente da maneira que estou empregando neste
livro), analisa processos semelhantes em muitas outras sociedades ou em outros
momentos históricos. Além disso, essas negociações, aqui classificadas como
transculturais, podem ter conseqüências bastante antagônicas. Por exemplo: em
alguns casos podem enfatizar as diferenças (que sempre existem, qualquer que seja
a sociedade); em outros casos, podem enfatizar o que existe de comum, ou o que é
definido como o Comum, entre os grupos diferentes. Aquele é o caminho da
heterogeneidade e este é o caminho da homogeneidade. Um processo de
homogeneização não é incompatível com a natu-
P. 155
reza de uma sociedade complexa, podendo mesmo "complexificar" a complexidade.
Não se trata, portanto, de sugerir que o discurso homogeneizador é uma
“ideologia" inventada para mascarar a heterogeneidade da "realidade social".
Concordo com a seguinte afirmação de Tzvetan Todorov:
(...) os discursos são, eles mesmos, motores da história e não apenas
suas representações. É preciso evitar aqui a alternativa do tudo ou
nada. Sozinhas, as idéias não fazem história, as forças sociais e
econômicas também agem; mas as idéias não são apenas puro efeito
passivo. De início tomam os atos possíveis; em seguida, permitem
que sejam aceitos: trata-se, afinal de contas, de atos decisivos
(Todorov, 1993: 14-15).
O discurso da homogeneidade mestiça, criado no Brasil através de um longo
processo de negociação, que atinge seu clímax nos anos 30, tornou determinados
"atos decisivos" possíveis e aceitos (como, por exemplo, o desfile de escola de samba
com patrocínio do Estado), inventando uma nova maneira de lidar com os problemas
da heterogeneidade étnica e do confronto erudito/popular. Essa nova maneira não
exclui todas as outras possíveis formas de lidar com os mesmos problemas. O
racismo continua existindo; uma enorme e bem policiada distância continua
separando a elite e as camadas populares; o repúdio pela cultura popular continua
dominando o "gosto artístico" de vários grupos da elite. Ao mesmo tempo, outros
grupos dessa elite valorizam o popular e combatem o racismo. Essa multiplicidade de
visões de mundo, estilos de vida, políticas/práticas sociais contrastantes e discursos
contraditórios é uma característica incontornável da complexidade social. Segundo
Gilberto Velho, em sociedades complexas é sempre possível encontrar "diferentes
modos mentais-culturais de construir e interpretar instâncias diferenciadoras do
mundo social e da existência em geral" (Velho, 1989: 1). Enquadrar tudo isso numa
relação de dominância/resistência é, na maioria das vezes, uma forma cômoda de
não aceitar aquilo que Edgar Morin denomina "o desafio da complexidade" (Morin,
1990).
A complexidade não exclui a possibilidade, o projeto ou a realidade da unidade.
A unidade das sociedades pode intera-
P. 156
gir, de inúmeras formas, com a multiplicidade, com os “múltiplos níveis de realidade".
As sociedades "são ao mesmo tempo acêntricas (quer dizer, funcionam de modo
anárquico por interações espontâneas), policêntricas (que têm muitos centros de
controle ou organizações) e cêntricas (que dispõem ao mesmo tempo de um centro
de decisão)" (Morin, 1990: 168). Em sociedades complexas, projetos
homogeneizadores existem simultaneamente a projetos heterogeneizadores, não
estando necessariamente em oposição entre si, e adquirindo cada um deles
maior ou menor relevância dependendo de inúmeros fatores históricos, políticos,
sociais, culturais.
Como o heterogêneo é sempre primeiro (pelo menos esse é um dos
pressupostos básicos deste livro), e o homogêneo uma construção simbólica [NOTA
4] feita a partir da heterogeneidade, a tarefa de colocar as diferenças em interação
(pois elas precisam interagir para existir sociedade ou mesmo "realidade") é
realizada, tanto para criar a diferença quanto para estabelecer o comum, pelos
agentes que, neste contexto específico, estou chamando de "mediadores
transculturais". Mediadores de todos os tipos, e com projetos os mais variados,
transitam pela heterogeneidade, colocando em contato mundos que pareciam estar
para sempre separados, contato que tem as mais variadas conseqüências,
remodelando constantemente os padrões correntes da vida social e mesmo
redefinindo as fronteiras entre esses mundos diferentes. O filósofo Gilles Deleuze
em outro contexto, mas com enorme pertinência para o assunto (a "descoberta" do
samba) abordado aqui já afirmou:
Os mediadores são fundamentais. A criação é coisa de mediadores.
Sem eles, nada acontece. (...) É uma série: se você não pertence a
uma série, mesmo uma completamente imaginária, está perdido. Eu
preciso de meus mediadores para me exprimir, e eles nunca se
expressam sem mim: você está sempre trabalhando em grupo,
mesmo quando não parece ser o caso (Deleuze, 1992: 285).
P. 157
A mediação, quando é homogeneizadora, não tem capacidade para destruir
integralmente a multiplicidade (talvez essa nunca seja a intenção dos mediadores).
Seu trabalho é semelhante ao do trickster, personagem do pensamento mítico de
quase todos os povos indígenas norte-americanos, que pode ser visto, segundo Lévi-
Strauss, como um mediador que "retém qualquer coisa da dualidade que tem por
função superar" (Lévi-Strauss, 1975: 261). O mestiço de Gilberto Freyre também
retém, quase como que isoladamente, "qualquer coisa" das raças (ou das culturas)
que o formaram. Daí a peculiaridade (e talvez a dificuldade lógica que Gilberto
Freyre incentiva ao elogiar o "regionalismo transnacional" Freyre, s/d: 135) de seu
projeto homogeneizador. Um projeto que tem tido uma repercussão profunda e
duradoura nas tentativas de definir a partir da "indefinição" a identidade
brasileira.
A homogeneização seria então uma "preferência nacional" no Brasil? Não
exatamente. Ela é apenas um dos estilos, talvez o dominante em determinados
grupos sociais, que os brasileiros (nem todos eles pois muitos nem se imaginam
nacionalmente) utilizam para "imaginar" sua comunidade nacional. Pode ser que esse
estilo tenha mesmo saído de moda, ou se tenha colocado, mais ou menos
propositadamente, na contramão da história. Talvez não haja mais lugar não só para
a comunidade do samba, mas para qualquer comunidade nacional integrada em
moldes, digamos assim, freyreanos.
De uma forma muito peculiar e interessante, toda a história da consciência
nacional brasileira ganhou impulso e esteve fundamentada no diagnóstico de nosso
"atraso" com relação aos países "civilizados". Muitas propostas foram feitas para
"desenvolver" o Brasil, para que o país ficasse cada vez mais parecido com o
chamado Primeiro Mundo. Gilberto Freyre e todos os que tornaram possível a
transformação do samba em símbolo nacional brasileiro queriam para o Brasil uma
modernidade "diferente", uma modernidade que incorporasse os elementos culturais
até então considerados sintomas ou causas de nosso "atraso" (entre eles a
mestiçagem e o próprio samba). Esse projeto e essa práxis já tiveram dias melhores.
Outros "planos" de modernização tomaram a frente da vida sociocultural nacional. O
desenvolvimentismo JK tentou até
P. 158
criar um novo símbolo e um novo centro geográfico para a unidade da pátria. Mas
Brasília, hoje com 35 anos, não se tornou um emblema da nacionalidade plenamente
ou amplamente reconhecido. E o Brasil não conquistou seu lugar no Primeiro Mundo.
O próprio capitalismo passou a desautorizar os projetos nacionalistas que
antes eram propostos em seu nome. Vivemos numa sociedade globalizada ao
extremo, e também fragmentada ao extremo, que cria um dilema inevitável para as
"economias periféricas". Roberto Schwarz, comentando algumas idéias de Robert
Kurz, afirma que "a falência do desenvolvimentismo (...) abre um período específico,
essencialmente moderno, cuja dinâmica é a desagregação". A constatação resulta
num conjunto de perguntas sinistro, mas familiar: "E se a parte da modernização que
nos tocou for esta mesma dissociação agora em curso, fora e dentro de nós? E quem
somos nós nesse processo?" (Schwarz, 1994: 6-6).
Daí a contramão da história: a "desagregação" capitalista atual tem sentido
contrário ao da "unidade da pátria", da mestiçagem, do elogio do transculturalismo.
Hoje torna-se um fato cada vez mais comum ouvir, no Brasil, declarações como esta
de Camila Pitanga, nova estrela da televisão brasileira, para a revista Ist (21/12/94,
p. 84): "Costumam dizer que sou moreninha. Acham que estão me agradando. Não
estão. Tenho orgulho de minhas raízes." Vitória contra o racismo à brasileira?
Certamente. Mas divagando: para combater o racismo é necessário nos
transformarmos em Americanos como os do poema de Caetano Veloso? Devemos
arquivar o projeto da "indefinição", do "arco-íris de todas as raças" (vide Jorge de
Lima), da "mestiçagem"? Então de agora em diante fica combinado: "branco é branco,
preto é preto"? existe essa maneira de não sermos racistas? Ou essa é a maneira
mais fácil de tentarmos novamente nos ajustar à modernidade do capitalismo
(fragmentário) internacional? E repetindo: quem somos s nesse processo? Existe
ainda a possibilidade de um "nós" brasileiro?
Podemos insistir na primeira pessoa do plural. Um dia nós descobrimos, com
Gilberto Freyre, o orgulho de viver num país moreno, onde tudo é misturado. Até o
sociólogo francês Roger Bastide, ao nos visitar, acreditou nessa história que
gostamos de contar para nós próprios:
P. 159
(...) o sociólogo que estuda o Brasil não sabe mais que sistema de
conceitos utilizar. Todas as noções que aprendeu nos países
europeus ou norte-americanos não valem aqui. O antigo mistura-se
ao novo. As épocas históricas emaranham-se umas nas outras. (...)
Seria necessário, em lugar de conceitos rígidos, descobrir noções de
certo modo líquidas, capazes de descrever fenômenos de fusão, de
ebulição, de interpenetração, noções que se modelariam conforme
uma realidade viva, em perpétua transformação. O sociólogo que
quiser compreender o Brasil não raro precisa transformar-se num
poeta.
Ficamos encantados ao descobrir que éramos tão originais. Poderíamos ter
continuado a acreditar em nossa "poesia" social. Seríamos até precursores de um
finado pós-modernismo que acreditou que o chique era o híbrido, ou de uma militância
norte-americana que hoje quer a criação da categoria multirracial no censo dos EUA.
Ou seríamos, como sugere Roberto da Matta, uma sociedade "missionária" da
possibilidade de "sintetizar" que "já se esesgotando no mundo ocidental" (Da Matta,
1984: 113). Porém, depois de anos de crítica acirrada ao Brasil segundo Gilberto
Freyre, acabamos também por nos convencer de que "nosso" estilo
"homogeneizante" desemboca em perigosas pretensões universalistas. Um samba
bastante conhecido diz: "Quem não gosta de samba bom sujeito não é, é ruim da
cabeça ou doente do pé." encontramos o efeito paradoxal/perverso do projeto
brasileiro-mestiço de Gilberto Freyre. Aquilo que era elogiado por ser aberto ao
diferente, por abarcar o diverso, passou a excluir a diversidade em nome de sua
ortodoxia. Na cartilha dessa ortodoxia, o samba nacional, produto do relacionamento
de diferentes grupos sociais, acabou se transformando em agente "colonizador"
interno, em regra de boa conduta, em possibilidade única de ser brasileiro. O
indefinido tomou-se a regra da definição.
Era esse o projeto do "samba"? Foi isso que Gilberto Freyre desejou? Não
importa tanto a resposta. Outras possibilidades de ser brasileiro e de imaginar o
nacional sempre existiram, existem e existirão. Mesmo que, e talvez justamente por
isso, o Brasil continue a ser para sempre o Reino do Samba. Pois o samba pode
muito bem ser também para sempre a melhor descoberta feita por brasileiros.
P. 160
ANEXO 1
NACIONAL-POPULAR
O objetivo deste anexo é discutir com mais cuidado alguns conceitos utilizados
ao longo de todo o livro e que servem de pano de fundo teórico para o que foi tratado
até agora:
NACIONAL
O debate sobre o que define a cultura nacional tem diferentes pesos e
conseqüências conforme o país em questão. Sendo assim, a defesa do nacional
adquire formas bastante variadas, dependendo do contexto político, social, cultural e
histórico que a torna plausível. É possível estabelecer comparações entre diversos
tipos de "nacionalismos", buscando complexificar ainda mais o caso brasileiro.
Para muitos autores, citados a seguir, a "consciência nacional", da maneira
como a entendemos hoje, é um fenômeno "artificial" e recente na história de
humanidade, podendo mesmo ser considerada uma visão de mundo específica dos
tempos modernos. Eric Hobsbawn se junta a Ernest Gellner para definir o processo
de construção do nacional:
(...) com Gellner, eu enfatizaria o elemento do artefato, da invenção e
da engenharia social que entra na formação das nações. "As nações,
postas como modos naturais e divinos de classificar os homens, como
destino potico inerente, são um mito; o nacionalismo, que às vezes
toma culturas preexistentes e as transforma em nações, algu-
P. 161
mas vezes as inventa e freqüentemente oblitera as culturas
preexistentes: isto é uma realidade." Em uma palavra, para os
propósitos da análise, o nacionalismo vem antes das nações. As
nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto
(Hobsbawn [NOTA 1], 1990: 19).
Benedict Anderson, com outras palavras, mas com objetivo semelhante ao de
Hobsbawn (e de Gellner), define nação como "uma comunidade política imaginada
e imaginada como implicitamente limitada e soberana" (Anderson, 1989: 14). Para
Anderson, "todas as comunidades maiores do que as primitivas aldeias de contato
face a face (e, talvez, até mesmo estas) são imaginadas. As comunidades não devem
ser distinguidas por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são
imaginadas" (Anderson, 1989: 15). O estilo "nacional" surgiu apenas "por volta dos
fins do século XVIII" e se transformou numa "norma internacional legítima" (o
Estado-nação) com o fim da Primeira Grande Guerra e a criação da Liga das Nações
(Anderson, 1989: 124). [NOTA 2]
Nos três autores citados, Hobsbawn, Gellner e Anderson, fica enfatizada a
idéia da nação como uma construção simbólica. [NOTA 3] Antes do século XVIII as
sociedades européias eram governadas por outros símbolos, mantidos
principalmente (depois da Idade Média) por linhagens reais que "derivavam seu
prestígio, à parte de qualquer aura de divindade, da miscigenação, poderíamos dizer.
Pois tais misturas eram símbolos de um status superior" (Anderson, 1989: 29). A
nobreza não pertencia a um único "povo" ou "nação": "Que 'naciona-
P. 162
lidade' devemos atribuir aos Bourbon?" A pureza racial ou o pertencimento a um único
"torrão-natal" não eram fenômenos valorizados pela aristocracia. Georg Simmel se
refere à pouca importância de "fronteiras políticas e geográficas comparadas com
aquilo que é comum a todos os nobres simplesmente porque eles são nobres"
(Simmel, 1971: 205), e ressalta
o fato peculiar de que muitas famílias de alto status nobre nos países
europeus têm origens estrangeiras. Na Inglaterra, os Fitzgerald e os
duques de Leicester vieram de Florença, os duques de Portland da
Holanda. Na França, os Broglies vieram do Piedmont, os duques de
Cars da Perúgia, os Luynes de Arezzo. Na Áustria, os Clarys vieram
de Florença. Na Prússia, os Lynars vieram de Faença. Na Polônia, os
Poniatowskis vieram de Bolonha. Na Itália, os Roccas vieram da
Croácia, os Ruspolis da Escócia, os Torlonias da França, e assim por
diante (Simmel, 1971: 204).
A homogeneidade da nobreza daria estabilidade política a impérios totalmente
heterogêneos etnicamente, como o austríaco. Essa "desatenção" com relação à
origem geográfica de seus aliados políticos, que caracterizava os nobres (diríamos
seu "internacionalismo", se as nações tivessem sido inventadas), foi de certa
maneira herdada por seus inimigos da Revolução Francesa, que, por exemplo,
puderam eleger o norte-americano Thomas Paine para sua Assembléia Nacional (ver
Hobsbawn, 1990:32). A união política era legitimada pela luta contra o privilégio
absolutista e não pelo vínculo a uma mesma comunidade nacional. Com o advento
do nacionalismo, a legitimidade e estabilidade estariam assentadas em outra fonte: a
homogeneidade do povo de cada país. Como todos os países são heterogêneos, a
homogeneidade deveria ser criada um delicado trabalho pelos pioneiros do
nacional.
Parte do trabalho "imaginativo" das comunidades em via de se transformar em
nações é inventar aquilo que, para voltar a citar algumas idéias que foram
apresentadas no primeiro capítulo deste livro, Richard Peterson chama de
autenticidade fabricada, e que implica uma deformação parcial do passado (ver
Peterson, 1992). A nova autenticidade é a criação de um
P. 163
outro passado: um passado estável (as "raízes" nacionais) que chega a um "tempo
imemorial" e torna obscura "a natureza essencialmente dinâmica e freqüentemente
'híbrida' das culturas" [NOTA 4] (Tomlinson, 1991: 92). Por exemplo: se o brasileiro
gosta de samba (um ritmo que passa a ser visto como puro) é porque "sempre foi
assim", ou "é da natureza brasileira o gosto pelo samba". A autenticidade fabricada
do samba (que para existir precisa escamotear esse seu caráter fabricado) torna
eterna uma música criada muito recentemente.
A "autenticidade" nacional, como afirma Eric Hobsbawn, é construída
"essencialmente pelo alto", mas deve também ser analisada "de baixo, ou seja, em
termos das suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das
pessoas comuns, as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda
nacionalistas" (Hobsbawn, 1990: 19/20). Ou seja, o é porque ficou definido que o
samba é a música brasileira por excelência, o "nosso" ritmo nacional, que todo
brasileiro vai se identificar com essa definição. Ele pode continuar, pelo resto da vida,
preferindo forró e nunca ouvindo samba. Como também lembra Hobsbawn: "Não
podemos presumir que, para a maioria das pessoas, a identificação nacional
quando existe exclui ou sempre é superior ao restante do conjunto de
identificações que constituem o ser social" (Hobsbawn, 1990: 20). A homogeneização
nunca é perfeita a ponto de excluir toda a heterogeneidade.
VÁRIOS "NACIONAIS"
1. Alemanha
Autores como Norbert Elias, Peter Burke e Isaiah Berlin (ver Elias, 1978; Burke,
1989; Berlin, 1991) mostram que a preocu-
P. 164
pação com a definição e a valorização dessa autenticidade nacional tem origem na
Alemanha do século XVIII, principalmente no pensamento do poeta e filósofo Johann
Gottfried Herder, o autor que desenvolve os conceitos de Volksgeist e Nationalgeist,
valorizando a cultura popular alemã contra o internacionalismo (basicamente francês)
da nobreza prussiana da época.
Herder contrapõe o conceito alemão de Kultur (“ênfase nas diferenças
nacionais e na identidade particular dos grupos" Elias, 1978: 5) ao conceito francês
de civilisation (“enfatiza o que é comum a todos seres humanos ou deveria ser"
Elias, 1978: 5). Essa contraposição, como sugere Isaiah Berlin, gera um estranho
orgulho nacional, que tem suas causas no ressentimento: "[o nacionalismo] parece
usualmente ser causado por feridas, alguma forma de humilhação coletiva. Deve ter
sido isso que aconteceu nas terras alemãs, pois elas ficaram à margem do grande
renascimento da Europa Ocidental" (Berlin, 1991: 245). Portanto, a operação
conceitual de Herder era dupla: ele atacava o estilo de vida "afrancesado" da corte de
Frederico o Grande, valorizando aquilo que essa nobreza achava mais desprezível:
a cultura do "povo alemão" (ou o que é definido por Herder como tal).
Herder fazia parte da intelligentsia da nascente burguesia alemã, que não tinha
nenhum acesso ao mundo aristocrático. Os nobres chegavam mesmo a falar francês,
pois consideravam o alemão uma língua plebéia. A intelligentsia burguesa tinha então
a tarefa difícil de transformar o plebeu e o "simples" em qualidades a serem cultivadas.
Para isso era necessário acusar os costumes franceses de superficiais, falsos,
imorais. A rude autenticidade alemã passou a ser considerada superior à
artificialidade francesa. Herder e seus companheiros (entre eles o filósofo Johann
Fichte, autor dos Discursos à nação alemã, de 1807-8) pareciam dizer: "Nós podemos
ser primitivos, pobres e mesmo bárbaros, mas nosso genuíno atraso é um sintoma
de nossa juventude, de nosso poder vital ainda não exaurido; nós somos os herdeiros
do futuro que as nações velhas, cansadas, corruptas, em declínio, mesmo com toda
a sua arrogante superioridade no presente, não podem mais desejar" (Berlin, 1991:
247). Qualquer semelhança com o mito do Brasil, País do Futuro, o é mera
coincidência.
P. 165
Como já foi dito, Gilberto Freyre e seus companheiros também tentaram transformar
a mestiçagem, até então considerada uma das razões principais do "atraso" brasileiro,
em fonte do orgulho nacional. Nesse movimento, o samba, a feijoada e o traje de
baiana deixam de ser menosprezados e passam a simbolizar a vitalidade da cultura
brasileira. Parece, contudo, que esse tipo de valorização do desprezado é uma
operação condenada à incompletude. Parece que resta sempre uma dúvida, ou pelo
menos um motivo para piadas antinacionalistas: será que o antes-desprezado-agora-
motivo-de-orgulho não deveria continuar para sempre desprezado? E a questão
principal, "que somos nós?" (e a defesa daquilo que somos, que nos tornará fortes no
futuro, mas que hoje ainda nos deixa fracos), continua a nos preocupar como antes.
2. "Segurança" lusitana
Existem povos mais seguros de sua identidade? Norbert Elias afirma que "as
perguntas 'Que é realmente francês? Que é realmente inglês?' há muito deixaram de
ser assunto de muito debate para os franceses e ingleses. Mas por séculos a pergunta
'Que é realmente alemão?' não foi colocada para repousar" (Elias, 1978: 6). O
português Eduardo Lourenço, no livro Nós e a Europa, também diferencia o seu
"povo" do alemão: "Portugal, o de ontem e ainda mais o de hoje, não teve nunca, nem
tem, propriamente problemas de identidade (...). Não se pode dizer dos portugueses
aquilo que Nietzsche dizia dos alemães (ou se pode dizer de outros povos) que
era uma gente que passava (passa?) a vida a perguntar: O que é ser alemão? Todos
os portugueses são, ou se sentem, por assim dizer, 'hiperportugueses"' (Lourenço,
1988: 19). Não interessa aqui discutir a veracidade dessas afirmações sobre
franceses, ingleses e portugueses, mas apenas mostrar que elas são possíveis. Não
conheço nenhum autor brasileiro que afirme, com tanta segurança, que o Brasil não
tenha problemas de identidade. Independentemente das várias posições no debate,
todos os autores parecem concordar em que o Brasil tem sérios problemas de
identidade. E é a partir dessa constatação que surge a necessidade da pergunta "Que
é ser brasileiro?". O Brasil e a
P. 166
Alemanha fazem parte do grupo de nações "que têm que procurar e constituir suas
fronteiras novamente, num sentido tanto político como espiritual, e têm que se
perguntar muitas vezes: 'Qual é realmente nossa identidade?'" (Elias, 1978: 5/6).
3. Romanos e japoneses e os Outros
A maior ou menor segurança de uma "nação" com relação à sua identidade
também está intimamente ligada à atitude que essa nação pode ter diante de culturas
estrangeiras. Não existe sempre uma atitude de desconfiança, protecionismo ou
repugnância diante do Outro ou do Diferente, como parece ter sido o caso para muitos
nacionalistas brasileiros. Talvez os exemplos clássicos de sociedades oficialmente
abertas ao consumo de produtos e idéias culturais estrangeiras sejam o Império
Romano e o Japão pós-Meiji. No caso romano é até difícil falar numa identidade
própria: "Os romanos não têm cultura específica. Eles têm por cultura aquela da
Grécia, no todo e desde o início." Não havia problema em consumir a cultura do Outro
ou mesmo em encontrar na cultura do Outro o fundamento para seu próprio modo de
vida: [NOTA 5] "O admirável é a audácia sem complexos com a qual os romanos se
apoderaram dos valores gregos, enquanto outros povos, é verdade que menores,
defendem ciosamente seu patrimônio. Quando a França defende seu patrimônio
contra o americanismo, isso prova muito simplesmente que ela o tem mais vigor
cultural" (Veyne, 1991: 43).
A adoção de traços culturais ocidentais pelos japoneses é um caso diferente:
o Japão não era um império todo-poderoso, como o Romano, adotando a cultura de
uma futura colônia. A Restauração do imperador Meiji, que tenta ocidentalizar o
P. 167
país à força a partir de 1868, tem início com um diagnóstico desvantajoso da situação
japonesa, semelhante ao "atraso" brasileiro apontado por Sílvio Romero. que a
solução nipônica é radical: é preciso eliminar a desvantagem eliminando tudo o que
faz o povo japonês ser diferente do ocidental. O próprio imperador dava o exemplo
vestindo terno, comendo bife frito e dando início à industrialização do país. Erwin von
Baelz, médico alemão que morou em quio nessa época, descreve assim as
opiniões dos intelectuais japoneses com quem conviveu: "Eles insistiam em que não
queriam saber nada sobre seu passado; de fato, declaravam que qualquer pessoa
cultivada poderia ficar envergonhada dele (...) 'tudo no nosso passado é
completamente bárbaro (...) Nós não temos história, pois nossa história está por
começar'" (citado por Kuwabara, 1983: 135).
Na Restauração Meiji, que está na base do poder industrial do Japão
contemporâneo, não havia nenhuma proposta de mestiçagem cultural como no caso
brasileiro: para ser moderno, era preciso ser ocidental, pura e simplesmente. Foi
justamente contra essas idéias radicalmente ocidentalizantes que o "paradigma
mestiço" brasileiro se revoltou, principalmente aquelas defendidas por grupos
intelectuais da belle époque carioca. Segundo Lúcia Lippi de Oliveira, o Ocidente da
belle époque tinha como modelo de cosmopolitismo a cultura francesa, expressando
uma reação republicana (sobretudo a dos jacobinos republicanos liderados por
Floriano Peixoto) a tudo aquilo que simbolizava um passado ligado a Portugal. As
reformas urbanísticas realizadas no Rio de Janeiro da virada do século pretendiam,
além de "sanear" a cidade, destruir os vestígios da arquitetura portuguesa. A herança
lusitana era considerada um obstáculo à modernização: "a geração dos
'mosqueteiros-intelectuais' desejava integrar o Brasil na civilização ocidental"
(Oliveira, 1990:113). Tais idéias nunca tiveram vida longa no campo intelectual
brasileiro. [NOTA 6] A mestiça-
P. 167
gem e o lusotropicalismo de Gilberto Freyre, apesar de todas as polêmicas que
desencadearam, têm influência mais duradoura nas histórias “que todo brasileiro
gosta de contar para si mesmo".
O INFERNO E O OUTRO E A PUREZA PERDIDA
Os casos extremos do Japão e do Império Romano mostram que as relações
com o Outro não são necessariamente antagônicas. O Outro também pode ser visto
com admiração, mesmo em situações em que é claramente inferior política e
economicamente (Roma-Grécia). As relações interculturais são mais complexas e
podem adquirir formas surpreendentes. O Outro (ou determinados aspectos do Outro
pois nenhum outro é uma entidade totalmente homogênea) pode ser visto como
superior e servir de modelo a ser copiado. Ou como inferior e ainda assim ter aspectos
admiráveis. Culturas combinam-se de maneiras sempre renovadas, seguindo ou não
o padrão das relações políticas e econômicas que existem entre as várias sociedades.
No entanto, os construtores da identidade nacional brasileira parecem ter desejado
não dar nenhuma ênfase a essas relações diversificadas com a alteridade para
buscar a essência da “não-imitação" da cultura popular mestiça, que deveria ser
puramente nacional.
O mito da pureza cultural também foi forjado junto com o conceito de Herder
sobre o espírito do povo. O que é alemão é alemão, puramente alemão, e não
pertence a mais ninguém, nem deve ser copiado por mais ninguém (o que contrariaria
as regras da autenticidade). O popular seria definido como o locus da autenticidade
de uma nação, fonte puríssima da identidade nacional. Autores mais recentes
mostram que a autenticidade sempre foi uma questão de definição e de quem tem
poder para definir o que pertence a cada cultura.
P. 169
Em seu livro Cultura popular na Idade Média, Peter Burke mostra detalhadamente
como a autenticidade das culturas dos camponeses europeus (entre eles o "povo
alemão" de Herder) era produto de bricolagens interétnicas. Falando dessas misturas
de diversas tradições culturais em outro tempo, Paul Veyne conjectura: "Havia tantos
vasos gregos no mundo mediterrâneo como há hoje garrafas de Coca-Cola num rio
de Bornéu" (Veyne, 1991: 43).
Todas as culturas sempre misturaram elementos de procedências diferentes.
Muitos autores, há muito tempo (talvez desde sempre), combatem a visão purista dos
fenômenos culturais. Um exemplo explícito desse combate, no âmbito dos estudos
da história das religiões, está nesta passagem de um livro de Mircea Eliade sobre o
xamanismo:
Mas nunca se repetirá bastante: não há nenhuma chance de se
encontrar no mundo ou na história um fenômeno religioso "puro" e
perfeitamente "original". Os documentos paleoetnológicos e pré-
históricos de que dispomos não vão além do paleolítico e nada
permite acreditar que, durante as centenas de milhares de anos que
precederam a mais antiga idade da pedra, a humanidade não tenha
conhecido uma vida religiosa tão intensa e tão variada quanto durante
as épocas posteriores. É quase certo que uma parte ao menos das
crenças mágico-religiosas da humanidade prelítica foi conservada nas
concepções religiosas e nas mitologias posteriores. Mas é também
fortemente provável que essa herança espiritual da época prelítica
não tenha cessado de sofrer modificações, na seqüência de
numerosos contatos entre as populações pré e proto-históricas
(Eliade, 1968: 27).
Assim sendo, nem na pré-história poderíamos encontrar grupos vivendo
totalmente isolados uns dos outros, garantindo dessa maneira a pureza e a
originalidade de suas concepções culturais. Seria também interminável uma lista de
"grandes" acontecimentos históricos posteriores que dependeram de relações
interculturais. Mas é interessante citar alguns deles: a assimilação de costumes
hindus pelos conquistadores arianos que invadiram o subcontinente indiano; a
utilização, na Antigüidade, do alfabeto cuneiforme por todos os povos da
Mesopotâmia que se misturavam em grandes e cosmopolitas
P. 170
cidades, como Ur e Uruk; a "mestiçagem" de traços micênicos, ciências
mesopotâmicas, alfabeto fenício e arte egípcia que deu origem à cultura grega
clássica e à cultura ocidental. [NOTA 7] É inútil procurar, em tal emaranhado de
heterogeneidades culturais, um povo totalmente original.
VOCÊ VIU ALGUMA SOCIEDADE SIMPLES POR AÍ?
Essa dificuldade é percebida também por antropólogos que estudam
sociedades anteriormente consideradas simples. A recente antropologia das
sociedades indígenas das terras-baixas sul-americanas está repleta de afirmações
como esta, feita por Joanna Overing Kaplan: "na América do Sul, a sociedade recria
a si própria de outro modo a cada geração, e 'grupo' é um conceito tão enganoso
como 'descendência' o que poderíamos esperar dado o fato de raramente
encontrarmos uma lógica verdadeira, uma lógica explícita, para a perpetuação"
(Kaplan, 1977: 10). Ou esta outra de Graham Townsley: "Está ficando claro nos
estudos amazônicos que nós interpretamos mal a natureza desses sistemas sociais
se insistimos na idéia implícita ou explícita de que eles são grupos étnicos com
fronteiras claras e sem ambigüidades" (Townsley, 1988: 5). Antropólogos
"africanistas", como Marc Augé, também chegam a conclusões similares: "ninguém
nunca ignorou a realidade dos outros grupos (na África, numerosas narrativas de
fundação são primeiro narrativas de guerra e de fuga), e assim também de outros
deuses, nem a necessidade de começar ou de ir tomar mulheres fora" (Augé, 1992:
62).
Resumindo: mesmo tribos formadas por centenas de pessoas sempre tiveram
(e isso não foi conseqüência de seus encontros com os "brancos") problemas ao
tentar definir/construir sua identidade, e nesse processo sempre levaram os Outros
em consideração, o apenas como "contraste". Resta perguntar por que, por tanto
tempo, o ideal de tantos antropólogos (e nacionalistas) foi "que cada etnia [e cada
P. 171
nação, para os nacionalistas] fosse uma ilha, eventualmente ligada a outras, mas
diferente de todas as outras, e que cada ilhéu fosse o homólogo exato de seus
vizinhos" (Augé, 1992: 66).
O POPULAR
E por que as culturas populares teriam o "privilégio", entre todas as outras, de
serem puras, homogêneas ou originais? Gilberto Velho é um dos autores que
combatem essa visão "purista" da cultura popular, afirmando que "o fenômeno da
diferenciação é identificado tanto dentro das camadas populares como das elites"
(Velho, 1993: 59). Peter Burke mostra, ao estudar as culturas populares medievais,
como mesmo as culturas camponesas mais afastadas passaram por muitas
transformações (nunca permanecendo estáticas ou imutáveis por grandes períodos
de tempo); como muitos desses camponeses sabiam ler e misturar informações
culturais de procedências diversas (incluindo a cultura erudita da época); como muito
do que é hoje considerado autenticamente popular foi na verdade produzido para o
povo (muito antes da comunicação de massa) e não pelo povo; como um mercado
cultural influía na produção desses bens tido como "tradicionais"; e, finalmente,
como os mesmos bens culturais (por exemplo, a Bibliothèque bleue) foram
apropriados de maneiras diferentes pelos diversos grupos sociais integrantes das
sociedades européias daquela época (para um resumo instigante dessas idéias, ver
Burke, 1981).
Ao discorrer sobre as culturas populares contemporâneas, Néstor Garcia
Canclini chega a conclusões semelhantes às de Peter Burke para a Idade Média,
sobretudo quando afirma que o "popular não é monopólio dos setores populares", que
o "popular não é vivido pelos sujeitos populares como complacência melancólica com
as tradições" (isto é, as tradições podem ser modificadas), e que a "preservação pura
das tradições não é sempre o melhor recurso popular para se reproduzir e reelaborar
sua situação" (Canclini, 1992: 204-20).
Portanto, a "promiscuidade" entre "elite brasileira" e "povo brasileiro"que foi
fundamental (como já vimos) para
P. 172
a valorização das “coisas brasileiras" (o "popular brasileiro") não foi um
acontecimento sui generis do Brasil do início deste século, mas algo que ocorre em
todas as sociedades, em todas as épocas. Daí o pouco interesse em pensar a cultura
popular" como inteiramente isolada da "cultura dominante/hegemônica" (sendo
"resistente" a essa dominação/hegemonia). Daí, também, não interessar aqui definir
o que é o "popular", ou saber onde está o "popular", ou determinar qual o "popular"
mais autêntico, ou ainda diferenciar o "popular" do "hegemônico". Meu objetivo foi
colocar em relação as diversas definições (produzidas por outros indivíduos sejam
eles antropólogos, como Gilberto Freyre, ou músicos, como Catulo da Paixão
Cearense e por grupos sociais brasileiros) sobre o que é popular no Brasil
principalmente o que é música popular no Brasil, e como esse popular (assim
definido) participa da construção de "nossa" identidade nacional.
O TRANSCULTURAL
O antropólogo cubano Fernando Ortiz, estudioso da música popular de seu
país, publicou em 1940 o livro Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (que
recebeu um prefácio entusiasta de Malinowski), em que introduz o conceito de
transculturalismo. Apesar de não ter obtido grande impacto ou seguidores na
antropologia posterior, esse conceito me parece o mais adequado para nomear as
relações interculturais descritas nos parágrafos anteriores e no restante deste livro.
Nas palavras de Malinowski, resumindo as idéias de Fernando Ortiz, transculturalismo
é um processo no qual sempre se dá algo em troca do que se recebe;
é um "toma y daca", como dizem os castelhanos. É um processo no
qual ambas as partes da equação resultam modificadas. Um processo
no qual emerge uma nova realidade, composta e complexa, uma
realidade que não é uma aglomeração mecânica de caracteres, nem
um mosaico, mas um fenômeno novo, original e independente
(Malinowski, 1991: xxxiii).
P. 173
Definido dessa maneira, transculturalismo me parece um conceito mais preciso e rico
para pensar as relações interculturais do que o de aculturação (assimilação de uma
cultura com destruição da antiga noção criticada por Malinowski, ainda na
introdução do livro de Fernando Ortiz, como "vocábulo etnocêntrico") [NOTA 8] ou
sincretismo (com suas conotações religiosas). [NOTA 9] O único reparo que tenho
que fazer ao conceito, tal como proposto por Fernando Ortiz, é tornar bem explícita a
idéia de que o transcultural não é a combinação de elementos que antes eram puros;
esses elementos (as duas partes da equação de Malinowski), são produtos
transculturais, e nunca na história cultural do mundo pode ser encontrado um
elemento que já não tenha passado por algum processo transcultural.
E ainda: o transculturalismo não ocorre apenas num contexto internacional.
Relações transculturais ocorrem (e não creio que, com tais afirmações, esteja sendo
infiel às idéias de Fernando Ortiz) entre grupos diferentes de uma mesma sociedade.
Uma cultura heterogênea é terreno fértil para todo tipo de transculturalismo; aliás, ela
não permanece viva sem esse tipo de relação transcultural. O "toma lá, dá cá" entre
elite e músicos populares que, como vimos, perpassa a histó-
P. 174
ria da sica popular brasileira é um bom exemplo de dinâmica transcultural que
acaba desembocando na transformação do samba em música nacional brasileira,
criando o “fenômeno novo, original e independente" a que Malinowski se refere em
seu elogio de Fernando Ortiz.
Em minha dissertação de mestrado (transformada no livro O mundo funk
carioca) tentei estudar o fenômeno transcultural da adoção da sica norte-
americana funk pelos subúrbios do Rio de Janeiro. O objetivo era mostrar como
aquela música chega ao Brasil e é usada (a organização das festas, as danças, as
roupas dos dançarinos etc.) de forma inteiramente diferente de seu uso norte-
americano. Neste livro procurei seguir trabalhando com essas idéias, analisando a
invenção do samba como autenticidade nacional, mostrando como o autêntico é
sempre um fenômeno arbitrário (e aqui não importa se essa autenticidade é essencial
ou não para a vida social) e como diversos grupos sociais, com intuitos não
coincidentes, participaram transculturalmente da fabricação dessa
autenticidade.
ETNOMUSICOLOGIA E TRANSCULTURALISMO
Além dos autores já citados até agora, uma inspiração importante durante todo
o desenvolvimento deste livro foi a de trabalhos na área da etnomusicologia que
mostram no campo musical, é claro como as informações ocidentais são
consumidas, interpretadas e utilizadas de maneiras diferentes em culturas diferentes,
relativizando a previsão de uma homogeneização cultural em escala planetária. As
velhas diferenças estão sendo substituídas por novas diferenças transculturais,
produto do encontro das informações ocidentais e "tradicionais". No território da
música popular, o incontáveis os exemplos desses tipos de novas diferenças,
levando o etnomusicólogo Bruno Nettl a afirmar que, "enquanto a chegada da música
ocidental é freqüentemente vista como o decreto de morte da variedade musical no
mundo, o exame de seus muitos efeitos mostra as músicas mundiais no século XX,
em parte como resultado da pressão gerada pela cultura musical ocidental, num
estado de diversidade sem preceden-
P. 174
tes" (Nettl, 1985: 3). O sociólogo Simon Frith aponta "o vigor, a habilidade e a
imaginação notável com que músicos e fãs e empresários locais tomaram as formas
do pop 'hegemônico' para uso próprio" (Frith, 1989: 5). O conceito de
transculturalismo é moeda corrente nos debates etnomusicológicos atuais, ajudando
a explicar a heterogeneidade. Meu objetivo, ao estudar o samba, apesar de inspirado
nos estudos citados acima, é outro. Este livro pode ser visto como uma tentativa de
mostrar que o transculturalismo também é útil para nos ajudar a compreender a
invenção da homogeneidade.
P. 175
ANEXO 2
"MELTING POT"
Farei aqui uma breve comparação entre as relações elite/cultura popular no
Brasil e nos Estados Unidos, no início deste século. Essa comparação, mesmo
superficial, é importante, pois sugere novos dados para futuros estudos sobre as
diferentes versões da atitude racial/cultural nos dois países, um ramo comparativo
que produziu inúmeros debates. Além disso, acho que esses dados podem situar
melhor o pensamento do jovem Gilberto Freyre, tão influenciado por seu contato com
o pensamento norte-americano.
Os Estados Unidos poderiam ter "adotado" uma política, mesmo que não-
oficial, de homogeneização racial como a do Brasil (pós-1930). A possibilidade dessa
escolha foi discutida por alguns de seus intelectuais, políticos, artistas e outros
membros de sua elite. Os argumentos eram semelhantes aos utilizados por grupos
equivalentes brasileiros. Durante as primeiras cadas deste século, um intenso
debate norte-americano também colocou em relação conceitos como raça,
mestiçagem, nacionalismo, regionalismo, cultura popular (e principalmente música
popular nesse tempo estavam sendo inventados gêneros como o jazz, o folk e o
country, como veremos adiante), folclore, modernidade e unidade da pátria.
P. 177
Na troca de idéias, nem sempre cordial, estiveram envolvidos nomes bem distintos
como Theodore Roosevelt, Franz Boas, Malcolm Cowley, Alfred Stieglitz, Ezra Pound,
Constance Rourke, Edith Wharton, Zora Neale Hurston, Henry James e tantos outros.
Nessa época, a expressão melting pot (cadinho), usada para designar a mistura de
raças que caracterizava a cultura norte-americana, não era ainda politicamente
incorreta.
Muito pelo contrário: o ideal de uma amálgama de raças que está por trás do
elogio do "melting pot norte-americano" quase chegou a ser um exemplo de correção
política. Pelo menos parecia ser essa a intenção do presidente Theodore Roosevelt
(republicano, formado em Harvard e um dos ídolos do jovem Gilberto Freyre) [NOTA
1]. No dia 5 de outubro de 1908, ao assistir, no Columbia Theater de Washington DC,
à estréia da peça Melting Pot (que não criou, mas popularizou a expressão), escrita
e encenada por Israel Zangwill, durante os aplausos Roosevelt teria gritado de seu
camarote: "Esta é uma grande peça, Mr. Zangwill, esta é uma grande peça!" (Mann,
1979: 100). Logo depois escreveu para Zangwill: "Eu não sei quando eu vi uma peça
que tenha me excitado tanto" (Mann, 1979: 100).
Que teria agradado tanto a Roosevelt? Vejamos: o enredo era simples, parecia
um pouco com o do filme West Side Story, e tratava dos problemas de imigração e
de preconceitos raciais, religiosos e culturais através do romance, passado em Nova
York, entre dois jovens, um judeu russo e uma cristã russa. Zangwill descendente
de judeus russos, nascido na Inglaterra, casado com uma cristã inglesa defendia
a formação de um novo americano a partir da união (também sexual pois se trata
de um romance com final feliz) de todas as diferenças. Roosevelt, um crítico daquilo
que passou a ser conhecido como hyphenated Americanism, [NOTA 2] afirmando só
haver
P. 178
americanos, se reconheceu no otimismo homogeneizador de Zangwill.
Melting Pot, a peça, fez grande sucesso. Ficou seis meses em cartaz em
Chicago e foi apresentada 136 vezes em Nova York. Seu texto era leitura obrigatória
em escolas e universidades. O livro com a peça de Zangwill foi reeditado pelo menos
uma vez por ano até os Estados Unidos entrarem na Primeira Guerra Mundial, em
1917. Esses números demonstram o interesse que o assunto despertava entre os
americanos no período imediatamente anterior à chegada de Gilberto Freyre àquele
país.
Diante de tal situação, nada levava a indicar que, no início dos anos 70, a
expressão melting pot seria condenada por grande parte da sociedade norte-
americana, e essa condenação oficializada no Ethnic Heritage Studies Programs Act
em 1972, pelo presidente Nixon. O senador Roman L. Pwcinski (democrata, Polish-
American), um dos principais nomes por trás da implementação dessa lei (foi
chairman do General Subcommitte of the House Committee on Education and Labour)
declarou: "Eu acho francamente toda a doutrina do melting-pot muito repugnante. Eu
não quero ser dissolvido [dissolver = to melt] num monólito" (citado em Mann, 1979:
118). Não é difícil perceber as semelhanças entre esse tipo de declaração e os
discursos "antiluso-brasileiros" que tanto irritaram Gilberto Freyre, levando-o a
escrever a conferência Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira.
Em 1908, ano da estréia de Melting Pot, Franz Boas publicou Race Problems
in America, artigo em que atacava intelectuais que enxergavam na mestiçagem norte-
americana sintomas de degeneração, mostrando como esse problema (incluindo a
condenação das misturas raciais) era relevante para os Estados Unidos daquela
época. Boas dizia:
Freqüentemente se alega que o fenômeno da mistura presente nos
Estados Unidos é único, que uma intermistura similar nunca ocorreu
antes na história do mundo e que a nossa nação está destinada a se
transformar naquilo que alguns autores chamam de uma nação "vira-
lata" numa medida que nunca foi igualada em nenhum outro lugar
(Boas, 1974b: 320).
P. 179
Contra esses argumentos, Boas tentava destruir o mito de que as nações européias
teriam sido puras algum dia, concluindo, contra os "advogados da teoria da
degradação", que um processo de "vira-latização" não havia ocorrido, apesar de todas
as misturas pelas quais passaram as atuais "raças" da Europa.
A partir dessa conclusão, Boas começa a discutir diretamente o problema do
negro norte-americano, que parecia ser o grupo étnico que mais preocupava os
autores eugenistas que condenavam a mestiçagem e previam um futuro degenerado
para os Estados Unidos. Em outro artigo, publicado pouco antes do anterior e
intitulado Changing the Racial Attitudes of White Americans, Boas já havia defendido
os negros utilizando, entre outros, o seguinte argumento: "a evidência das conquistas
culturais do negro na África indica que sua inventividade, o poder de suas
organizações políticas e sua firmeza de intenção igualam ou mesmo superam os de
outras raças em estados similares de cultura" (Boas, 1974a: 317). Tal relativização
não significava o abandono de determinados debates que levavam em consideração
preocupações biológicas:
Não acredito que o negro seja, em sua composição física e mental,
igual aos europeus. As diferenças anatômicas são o grandes que as
correspondentes diferenças mentais são plausíveis. Podem existir
diferenças em caráter e na direção de atitudes específicas (Boas,
1974b: 328/9). [NOTA 3]
Devemos lembrar que as palavras acima foram escritas numa época posterior
em mais de uma década à publicação de textos, hoje considerados clássicos, como
Limitações do método comparativo em antropologia, de 1896, que criticaram os
pressupostos mais caros ao evolucionismo antropológico. Mesmo já tendo formulado
boa parte de suas revolucionárias idéias relativistas, isso não impedia que Boas
chegasse a admitir
P. 180
uma diferença entre os cérebros de brancos e negros nos seguintes termos: "o
tamanho ligeiramente inferior, e talvez a menor complexidade da estrutura, de seu
cérebro [do negro]" (Boas, 1974b: 329). Apesar disso, o negro o seria inferior ao
branco. Nem o mulato. Boas propõe inclusive a criação de um African Institute, para
estudar a cultura dos negros norte-americanos e seu passado africano, e uma linha
de pesquisa que dê prioridade ao estudo da mestiçagem. [NOTA 4] O trabalho de
Gilberto Freyre estava bem enquadrado nas preocupações centrais de seu mestre da
Columbia.
Segundo Lewis Perry, em seu livro Intellectual Life in America, até a segunda
metade dos anos 10 as idéias relativistas de Franz Boas ficaram conhecidas apenas
por um círculo restrito de discípulos. A partir dessa data o trabalho de Boas começou
a influenciar grande parte da academia norte-americana e seus alunos iniciaram a
publicação de livros e artigos, despertando a atenção até mesmo de um público leigo
(como aconteceu nas décadas de 20 e 30, com o lançamento do Corning of Age in
Samoa, de Margareth Mead, em 1928, e do Patterns of Culture, de Ruth Benedict, em
1934). A antropologia passava a ser encarada também como uma autocrítica do
Ocidente, muitas vezes encontrando a salvação no Outro, fosse ele o adolescente de
Samoa ou o esquimó da ilha Baffin. A cultura das sociedades industrializadas era
chamada de competitiva, em contraste com a cultura cooperativa dos "primitivos"
(Benedict), ou de espúria, diferenciando-a do genuíno "tradicional", como aparece em
Culture, Genuine and Spurious, artigo muito influente de Edward Sapir. O folclore tam-
P. 181
bém seria considerado genuíno. Sapir, em sua passagem pelo Museu Nacional do
Canadá, entre 1910 e 1925 (depois de defender seu PhD na Columbia University),
coletou canções folclóricas franco-canadenses, chegando a publicar um livro com o
resultado dessa pesquisa (ver Mandelbaum, 1963). O que parecia estar fora do
campo da genuinidade, e portanto alvo de muitas críticas dos antropólogos
boasianos, era a cultura urbana e industrial.
Essas críticas antropológicas somavam-se às críticas modernistas também
feitas à "cultura ocidental". Os Estados Unidos viviam suas primeiras manifestações
do "espírito moderno", como a exposição do Armory Show, em 1913, ou a boemia do
Greenwich Village (que Gilberto Freyre freqüentou), ambas em Nova York. Os
modernistas norte-americanos, segundo Michael Kammen (no livro The Mystic
Chords of Memory), dividiam-se, esquematicamente, em duas grandes correntes: os
nacionalistas, geralmente elitistas, como Alfred Stieglitz, Frank Lloyd Wright e Ezra
Pound (pró-unificação da cultura norte-americana), e os regionalistas, que
desenvolviam um interesse pela definição do nacional através da cultura popular e
"afagavam a diversidade étnica" (Kammen, 1991: 408).
A posição regionalista foi ganhando terreno com o final dos anos 20,
justamente quando a influência de Boas mais se fez notar no panorama intelectual
norte-americano. Michael Kammen chega a dizer que "este padrão nos permite
delinear o que equivale a uma 'mudança de paradigma' que teve lugar entre duas
gerações" (Kammen, 1991: 415), e que na antropologia poderia ser representada (a
mudança de paradigma) por uma troca de Frazer (que era citado por autores como
Edith Wharton e T.S. Eliot) por Boas.
Muitos intelectuais e artistas norte-americanos estavam retornando aos
Estados Unidos depois de exílios voluntários na Europa. E voltavam com um interesse
renovado pela cultura norte-americana. Constance Rourke, que foi influenciada por
Boas [NOTA 5] (ver Kammen, 1991:414-15), ao regressar teve papel
P. 182
fundamental no incentivo aos estudos folclóricos; defendendo a posição de que a
cultura popular deveria ser tratada com o mesmo respeito que a literatura clássica.
Esse período foi chamado de redescoberta da América pelos intelectuais dos
Estados Unidos, o “final" daquilo que, em 1930, o importante crítico literário Malcolm
Cowley criticou como “o divórcio, nos Estados Unidos, entre vida intelectual e todos
os modelos de importância e realidade" (citado em Perry, 1984: 332). A
"redescoberta" desencadeou a publicação de inúmeros livros com a transcrição de
"lendas" norte-americanas de várias procedências (índios, negros, brancos etc.), além
da realização de festivais folclóricos. Constance Rourke participou da organização do
National Folk Festival at Saint Louis, em 1934. Eleanor Roosevelt, mulher do então
presidente Franklin Roosevelt (do Partido Democrata), foi "persuadida a comparecer
ao White Top Folk Festival como convidada de honra" (Kammen, 1991: 429), em
1933, e no ano seguinte participou, diretamente da Casa Branca, da estréia de um
programa de rádio sobre a música folclórica dos Estados Unidos, apresentado em
"cadeia nacional" pela NBC. Os Estados Unidos viam as invenções da música folk
(que em 1940 foi tocada na convenção do Partido Republicano), da música country
(para um resumo de sua "fabricação", ver Peterson, 1993) e a consolidação comercial
do jazz como novos estilos que poderiam disputar o título de música nacional. Tudo
isso aconteceu ao mesmo tempo em que, no Brasil, o samba ganhava apoio oficial,
e livros como Casa-grande e senzala, também de "descoberta" da pátria, alcançavam
grande sucesso. No entanto os dois movimentos de "reaproximação" entre
elites/intelectuais e cultura popular tiveram resultados bem diversos no caso brasileiro
e no caso norte-americano. Não é o objetivo deste Anexo explicar a diferença. Basta
constatá-la.
Os Estados Unidos de 1930 contavam com uma indústria cultural
desenvolvida e em via de solidificar sua hegemonia em todo o mundo (o que
aconteceu realmente depois da Segunda Guerra Mundial). O jazz foi, dentre as novas
músicas norte-americanas, a que melhor soube utilizar as facilidades da nascente
massificação cultural para ampliar sua influência sobre todo o planeta, inclusive sobre
os sambistas brasileiros,
P. 183
tomando o lugar da polca e da valsa na preferência dos dançarinos.
O boom econômico pelo qual os Estados Unidos passaram na última virada de
século era evidente. Se em 1895 suas exportações somavam 800 milhões de dólares,
em 1914 esse número tinha se multiplicado para 2 bilhões e 300 milhões de dólares
(ver Rosenberg, 1982:16). Os norte-americanos foram pioneiros na produção em
massa e também nas estratégias de marketing, levando nomes como Columbia,
Singer, Kodak, Colgate, General Motors e General Electric a serem reconhecidos em
todos os continentes no início deste século, sem necessitar das técnicas
"tradicionais" de colonialismo desenvolvidas pelo capitalismo europeu em sua
expansão mundial. Produtos culturais dos Estados Unidos se aproveitaram desse
novo conceito de vendas e desse novo poderio da economia de seu país: no início da
década de 1890 o show de Buffalo Bill já tinha dado a volta ao planeta.
Esse know-how norte-americano desenvolveu-se em várias áreas em
pouquíssimo tempo: "Durante a Primeira Guerra Mundial e através dos anos 20, os
Estados Unidos expandiram rapidamente sua posição global em comunicação por
cabo, telegrafia sem fio, serviços de notícias, cinema e serviços de companhias de
aviação" (Rosenberg, 1982: 87). Os resultados numéricos da expansão são
impressionantes: em 1925, por exemplo (depois do colapso da indústria
cinematográfica européia durante a Primeira Guerra Mundial), 95% dos filmes vistos
na Inglaterra e Canadá, 70% dos filmes vistos na França e 80% dos filmes vistos na
América do Sul foram produzidos nos Estados Unidos. No final dos anos 20 as
companhias de discos norte-americanas também penetraram em mercados de todo
o mundo. O mais impressionante não é constatar que o jazz tenha influenciado o
samba antes mesmo dos anos 30, mas sim o fato de o ritmo norte-americano não ter
exercido influência mais decisiva a ponto de impedir ou retardar o nascimento de
nossa "música nacional".
um mistério na história do jazz, semelhante àquele da história do samba
(sem a transformação, é claro, do jazz em música nacional). Segundo James Lincoln
Colver, em seu The Reception of Jazz in America, um outro mito domina essa história.
Esse mito tenta afirmar que "o povo americano, até
P. 184
época relativamente recente, ignorou ou desprezou o jazz, que viveu seus primeiros
anos como a música dos guetos negros, apreciada em outros lugares apenas por
meia dúzia de críticos e músicos brancos iluminados" (Colver, 1988: 1). Colver
acrescenta: "Não consegui encontrar, em comentários sobre o jazz publicados desde
1940, uma afirmação de que o jazz tenha sido amplamente popular nos Estados
Unidos antes de uma data recente" (Colver, 1988: 2). No caso de alguma música
parecida com jazz ter se tornado popular entre os brancos norte-americanos, ela tem
sido logo desqualificada como "jazz derivativo", em oposição ao "jazz verdadeiro" (ver
Laforse & Drake, 1981 uma oposição semelhante ao par genuíno/espúrio de Sapir).
Um texto muito importante sobre a dificuldade da elite norte-americana em
aceitar o jazz é o Traditionalist Opposition to Jazz (Nell, 1972), de Leonard Nell. Como
exemplos dessa oposição, Nell cita principalmente artigos de jornal, ou de revistas
especializadas, assinados por amantes e críticos de sica clássica, como o pianista
Ashley Petters ou o professor de música de Harvard Walter R. Spalding. Parece-me
óbvio que essas pessoas se sentiam obrigadas a repudiar o jazz, usando os critérios
de legitimação de uma obra de arte inventados em seu próprio mundo artístico, que
valorizava, entre outras coisas, a educação "formal" dos músicos. Mas estender essas
opiniões a toda a elite ou mesmo a todos os "brancos" norte-americanos conduz a
vários erros de interpretação. Como também é bastante problemático considerar as
idéias publicadas em jornais da época como representativas do que os "americanos
brancos" pensavam sobre o jazz.
É possível citar vários fatos e tantas outras opiniões que colocam em dúvida
as generalizações do "mito" do jazz. Martin Laforse e James Drake, em Popular
Culture and American Life, consideram "a interação de brancos e negros nos
interstícios da cultura americana, longe dos centros do poder ou dos focos da cultura
popular, um importante elemento na história do jazz" (Laforse & Drake, 1981: 68).
Para esses autores, a interação brancos/negros torna-se possível na periferia da
cultura popular. Mas como diferenciar os centros de poder da periferia da cultura
popular, já que esses territórios
P. 185
estão em constante e rápida mudança? [NOTA 6] James Colver mostra como essas
interações aconteceram em todos os lugares, perto e longe dos transitórios centros
de poder. Por exemplo: os cabarés black-and-tan ou dance halls da virada do século
eram freqüentados por muitos brancos; em Nova Orleans, os brancos ricos gostavam
de jazz desde o início, levando os primeiros jazzistas a tocar em clubes exclusivistas
como o New Orleans Country Club ou na Tulane University (onde estudavam
brancos); em 1916 bandas formadas só por brancos tocavam em Chicago (é bom
lembrar que o termo "jazz" aparece pela primeira vez na imprensa em 1913); o Jornal
de Folclore Americano, nos anos 10 (portanto, durante a gestão de Franz Boas),
publicou artigos sobre música negra norte-americana, e em 1917 William Morrison
Patters, professor da Columbia, escrevia sobre jazz na revista Literary Digest. A
conclusão de Colver é a seguinte: "(...) a evidência aponta que os antis eram minoria,
e possivelmente uma bem pequena minoria" (Colver, 1988: 6).
O mito da impopularidade do jazz em seus primórdios norte-americanos e a
história paralela do respeito com que a Europa recebeu esse estilo musical, nos
anos 20 é preservado inclusive por jazzistas. Assim como aos sambistas
brasileiros, aos sicos de jazz parece interessar uma narrativa em que se
estabelece uma raiz pura de sua música no "princípio" da História. É um mito
conveniente (não estou dizendo que seja falso ou verdadeiro) para quem tanto preza
a autenticidade e o anticomercialismo (o que é mais intencional no jazz de hoje do
que no samba), pretendendo cultivar uma imagem de "maldição" artística. Uma
imagem que, sem dúvida, tem espaço nobre na indústria cultural.
P. 186
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P. Orelha Capa
O MISTÉRIO DO SAMBA
Um encontro de bar ocorrido em meados dos anos 20, tendo Pixinguinha e
Gilberto Freyre como principais protagonistas, é o ponto de partida e o mote deste
livro, que busca elucidar um mistério: como o samba música de morro discriminada
pelo resto da população e reprimida pela polícia transformou-se em símbolo da
identidade nacional brasileira?
Os estudos anteriores sobre o tema passavam ao largo do mistério”, limitando-
se a constatá-lo, como se, de súbito e num passe de mágica, o recalcado passasse
a ser louvado, tornando-se quase sinônimo de uma nação. Em terras brasileiras,
“quem não gosta de samba é ruim da cabeça ou doente do pé”.
Neste livro, Hermano Vianna não se furta ao enigma: ao mostrar que a
nacionalização do samba não consiste em fato isolado sendo resultado de um longo
processo de interação entre grupos sociais --, verifica que essa “virada” se deu em
momento decisivo de nossa história. Afinal, nas décadas de 20 a 30 inaugurava-se
uma idéia de brasilidade, sendo lançadas as principais concepções que ainda hoje
integram nossa visão de identidade nacional.
O inusitado (e pouco conhecido) encontro entre Pixiguinha e Freyre é, portanto,
visto a partir dos acontecimentos que propiciaram. Nesse sentido, os aspectos mais
instigantes subjacentes à maneira como os brasileiros pensam seu país são aqui
abordados: desde a idéia de que somos um povo mestiço (e do elogio da mestiça-
P. Orelha Contracapa
gem) aa influência das vanguardas modernistas internacionais na relação entre
elite nacional e cultura do povo (um povo que estava sendo inventado naquele
momento).
De Catulo da Paixão Cearense a Chico Science, de Afonso Arinos a Caetano
Veloso, passando por Blaise Cendras e Carmen Miranda, esboça-se um complexo
painel dos inúmeros caminhos abertos pela música popular na tentativa de responder
à pergunta mais insistente de nossa cultura: afinal, que cultura é essa? Em outras
palavras, o que é ser brasileiro?
Neste livro, a possibilidade de transformação do samba, e das outras formas
de cultura popular mestiça, em motivo de orgulho nacional é vista como parte
essencial, talvez mesmo principal, de um processo que confere originalidade e vigor
à totalidade da cultura brasileira.
Hermano Vianna nasceu em João Pessoa em 1960, morou longo tempo em
Brasília, vindo para o Rio de Janeiro em 1978. Doutor em antropologia social pelo
Museu Nacional/UFRJ, é autor de O mundo funk carioca (Jorge Zahar, 1988), que lhe
valeu o troféu Amigo do funk de 1994. Também trabalha para a televisão para a
televisão, tendo participado da realização de programas como “African Pop”, “Baila
Caribe”, “Programa Legal”, “Na Geral” e “Brasil Legal”.
Capa: Mariana Zahar e Marcus Moraes; foto de Os Batutas e partitura de Já te
digo (Pixinguinha e China) do acervo de Humberto Francheschi.
P. NOTAS DE RODA
APRESENTAÇÃO
NOTA 1 DA APRESENTAÇÃO: OK: se esses argumentos e o restante da tese
não convencerem o leitor, aceito ser acusado de "cariocacêntrico" e
"gilbertofreyrecêntrico". não digam que o livro é polêmico. Nada pode estar mais
distante de meus objetivos: detesto polêmicas. [Voltar]
CAPÍTULO 1: O ENCONTRO
NOTA 1 DO CAPÍTULO 1: Outros filmes anunciados nos jornais da época: Em
busca do ouro, de Charles Chaplin; A viúva alegre, de Eric von Stroheim; e De Santa
Cruz, um filme da Comissão Rondon, mostrando "os legítimos brasileiros", índios dos
"sertões de Matto Grosso" que são "extranhos na própria terra, fóra da civilização,
elles vivem em pleno século do radium na edade da pedra lascada". A propaganda
de De Santa Cruz determinava: dever de todo brasileiro conhecer o Brasil." [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 1: Esse samba foi citado por Oswald de Andrade em
seu Manifesto antropofágico, publicado em 1928: "Nunca fomos catequizados.
Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em
Belém do Pará" (Andrade, 1972: 14). [Voltar]
CAPÍTULO 2: ELITE BRASILEIRA E MÚSICA POPULAR
NOTA 1 DO CAPÍTULO 2: A modinha também continua a "voltar" para a
Europa: em 1824 foi publicado em Paris um livro com as modinhas de Joaquim
Manuel, outro mulato (segundo Gilberto Freyre, 1974: 104), harmonizadas pelo
compositor Sigismund Neukomm, o "discípulo preferido de Joseph Haydn" (segundo
o verbete "modinha" da Enciclopédia de música brasileira). Essa relação entre
Joaquim Manuel e Neukomm, que morou no Rio de Janeiro entre 1816 e 1821, mostra
como eram fluidas as fronteiras entre músicos eruditos e populares naquela época. E
durante todo o século XIX Carlos Gomes também assinou várias modinhas. [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 2: Michel Vovelle, em seu livro Ideologias e
mentalidades, chama de mediadores culturais principalmente os personagens que
colocam em relação o erudito e o popular (ver Vovelle, 1978). [Voltar]
NOTA 3 DO CAPÍTULO 2: Na atual Praça Tiradentes também estavam
situadas as casas da baronesa de Jundiaí e do dr. Dias da Cruz. A promiscuidade
entre classes e culturas era evidente e facilitava as mediações interculturais de que
venho falando. [Voltar]
NOTA 4 DO CAPÍTULO 2: Tendência dominante ma non troppo: Wilson
Martins tem razão ao criticar Jeffrey Needell por superestimar a extensão e a
profundidade que teve, no Brasil, a imitação francesa (Martins, 1994: 4). [Voltar]
NOTA 5 DO CAPÍTULO 2: Lembremos que os primeiros estudos sobre o
folclore brasileiro estavam sendo publicados nessa época, sob a influência de Sílvio
Romero. [Voltar]
CAPITULO 3: A UNIDADE DA PÁTRIA
NOTA 1 DO CAPÍTULO 3: O que leva Lauerhass a afirmar que essa aliança
se havia "formado principalmente em resposta a descontentamentos regionais, e não
nacionalistas" (Lauerhass, 1986:94) [Voltar]
CAPÍTULO 4: O MESTIÇO
NOTA 1 DO CAPÍTULO 4: Para um resumo das idéias eugenistas, ver
Schwarcz, 1992, principalmente p. 61-2. [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 4: À memória de quem Gilberto Freyre dedica seu livro
Brasis, Brasil e Brasília. Nessa dedicatória, J.B. de Lacerda é descrito como "o
primeiro homem de ciência, não do Brasil como da América, a sugerir (...) em 1911
(...) a possível contribuição que o Brasil traria para a solução dos problemas de
relação entre raças e de civilizações diferentes" (Freyre, s/d). [Voltar]
NOTA 3 DO CAPÍTULO 4: Mas mesmo José de Alencar procurou autenticidade
e brasilidade em outras fontes. Em suas palavras: nas trovas populares que sente-
se mais viva a ingênua alma de uma nação" (Alencar, 1972: 168). [Voltar]
CAPÍTULO 5: GILBERTO FREYRE
NOTA 1 DO CAPÍTULO 5: Termo que, segundo seu biógrafo, parente e
"espécie de secretário" Dingo de Melo Menezes, Gilberto Freyre "talvez tenha sido o
primeiro a empregar no Brasil" (Menezes, 1944: 167). [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 5: E numa carta para Oliveira Lima, de 17 de janeiro
de 1921 portanto um semestre depois de sua chegada a Nova York , seu
comentário é mais seco: "Hoje estive em Brooklyn e dei um salto ao 'Minas' que ainda
está em reparos nos estaleiros. Aqui ancorou em agosto" (Freyre, 1978: 172).
[Voltar]
NOTA 3 DO CAPÍTULO 5: Se Gilberto Freyre tivesse ouvido o elogio de Rui
Barbosa aos Turunas Pernambucanos, citado mais adiante, ou se lhe tivesse visto as
lágrimas ao escutar Catulo da Paixão Cearense, talvez não fosse tão duro em sua
crítica. [Voltar]
NOTA 4 DO CAPÍTULO 5: Em outro artigo Gilberto Freyre também lamenta o
fato: "qualquer Tom Mix é hoje, no Brasil, o herói de muito maior número que José
Bonifácio ou o Almirante Barroso ou o Padre Feijó" (Freyre, 1979, vol I: 300). [Voltar]
NOTA 5 DO CAPÍTULO 5: Segundo Gilberto Freyre, Getúlio Vargas também
foi influenciado por essas suas idéias: "Mais de uma vez [Getúlio Vargas] me disse
muito dever às páginas que eu escrevera sobre a monocultura latifundiária no Brasil
e à crítica que eu desenvolvera ao usineirismo parasitário entre nós; páginas e crítica
cujo conhecimento considerava indispensável aos homens públicos brasileiros"
(Freyre, 1979a: 191). [Voltar]
NOTA 6 DO CAPÍTULO 5: É curioso notar que nesse mesmo artigo Gilberto
Freyre fale da cultura brasileira como melting-pot. [Voltar]
NOTA 7 DO CAPÍTULO 5: Toda a "bibliografia de propaganda antiluso-
brasileira", apêndice do livro em que está publicada essa conferência, é de autoria
alemã ou "teuto-brasileira". [Voltar]
NOTA 8 DO CAPÍTULO 5: Esse trecho é a seqüência de uma reflexão que
poderia muito bem adequar-se a determinadas manifestações do Brasil
contemporâneo: "O que os negros e pardos fizeram, explodindo algumas vezes em
desordeiros, foi dar alívio a energias normais em homens ou adolescentes vigorosos
que a gente dominante nem sempre soube deixar que se exprimissem por meios
menos violentos" (Freyre, 1968: 522). [Voltar]
CAPÍTULO 6: O SAMBA MODERNO
NOTA 1 DO CAPÍTULO 6: Por exemplo, os modernistas Oswald de Andrade e
Menotti del Picchia, junto com Monteiro Lobato, foram convidados por Washington
Luís a formar uma comissão oficial que se encarregaria de criar um monumento em
homenagem aos bandeirantes, a ser inaugurado no centenário da independência, em
1922. As críticas dos jornais paulistas ao projeto, desenvolvido por Brecheret, foram
muito favoráveis, mas a gigantesca (e moderna) escultura não foi erguida naquela
ocasião por causa de uma disputa com o grupo de imigrantes portugueses de São
Paulo, que queria dar à cidade um outro monumento (ver Brito, 1974: 122-7). [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 6: Também membro da Liga Nacionalista, colaborador
da Revista do Brasil e precursor/incentivador dos estudos folclóricos no Brasil. [Voltar]
NOTA 3 DO CAPÍTULO 6: É bom notar: não se trata de um regionalista como
Gilberto Freyre, amante confesso da água de coco, do arroz-doce, e que não vivia no
exterior sem receber sua cota de doce de caju. [Voltar]
NOTA 4 DO CAPÍTULO 6: Todo brasileiro que já morou no exterior sabe como
é difícil encontrar os ingredientes para o preparo de uma feijoada, ou de uma simples
caipirinha, fora do Brasil. Fico pensando nas dificuldades da "pioneira" Tarsila do
Amaral. Onde ela conseguia feijão e bacuri na Paris dos anos 20? Mandava buscar
tudo no Brasil? E quem cozinhava? Tarsila? Oswald? Ou nossos modernistas
viajavam com criados brasileiros? [Voltar]
NOTA 5 DO CAPÍTULO 6: Jornalista descrito por Cendrars como o “cronista
mais feroz do Rio de Janeiro" (Cendrars, 1976: 35). [Voltar]
NOTA 6 DO CAPÍTULO 6: Para uma interpretação menos simplista da relação
entre Picasso e arte africana, ver Sevcenko, 1992: 195-7, em que podemos ler:
"Picasso, como se vê, está muito longe de procurar algo assim como a autenticidade
do primitivo, a verdade das formas, a espontaneidade do inconsciente ou a pureza da
origem." [Voltar]
NOTA 7 DO CAPÍTULO 6: Em entrevista à rádio francesa publicada no livro
Blaise Cendrars vous parle, depois de tomar pública sua admiração por Gregório de
Matos, Blaise Cendrars diz que não incluiu brasileiros na sua Antologia negra porque
dela só saiu o primeiro volume (ver Cendrars, 1952: 66-7). [Voltar]
NOTA 8 DO CAPÍTULO 6: Antes disso Blaise Cendrars falara de suas
andanças pelo morro da Favela, aonde teria ido sozinho, contra as recomendações
do prefeito do Rio de Janeiro (que até colocou à sua disposição um agente policial
para acompanhá-lo quando viu que o poeta francês estava mesmo determinado a
visitar aquela região "perigosa"). Blaise Cendrars aumenta, para o público da dio
francesa, a dramaticidade de sua narrativa, descrevendo o morro da Favela, que
ficava no Centro da cidade e foi demolido, como um lugar onde "se está em plena
selvageria" e seus habitantes "não desciam para a cidade quase nunca, salvo para o
carnaval" (Cendrars, 1952: 68/69). [Voltar]
NOTA 9 DO CAPÍTULO 6: Segundo a opinião citada de Gilberto Freyre,
Donga seria apenas "outro mulato". [Voltar]
NOTA 10 DO CAPÍTULO 6: Donga teria dito que comporia essa música "em
homenagem à Paris que eu não conheço" (Cendrars, 1957: 73). Como se , não
podemos confiar nas informações contidas nesse tipo de depoimentos. Donga
conhecia Paris, onde ficou seis meses tocando com os Oito Batutas. Será que Blaise
Cendrars não sabia disso? [Voltar]
NOTA 11 DO CAPÍTULO 6: Artigo publicado inicialmente no jornal O Estado
do Pará, em 22 de julho de 1928, transformado em capítulo do livro Ensaio sobre a
música brasileira. [Voltar]
CAPÍTULO 7: O SAMBA DA MINHA TERRA
NOTA 1 DO CAPÍTULO 7: Seis anos depois, em 1929, o mesmo Roquette
Pinto estaria participando de um Congresso Brasileiro de Eugenia, em que fez
contra os arianistas uma vigorosa defesa do mestiço brasileiro, citada por Gilberto
Freyre no Prefácio à 1a Edição de Casa-grande e senzala. [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 7: Um presidente que tinha muita consciência do papel
que os meios de comunicação de massa poderiam desempenhar na realização de
seu plano de unidade nacional. Tanto que, em sua mensagem ao Congresso em 1o
de maio de 1937, declarou: "O Governo da União procurará entender-se a propósito,
com os estados e municípios, de modo que, mesmo nas pequenas aglomerações,
sejam instalados aparelhos rádio-receptores, providos de alto-falantes, em condições
de facilitar a todos os brasileiros (...) toda sorte de notícias tendentes a entrelaçar os
interesses diversos da nação." E continua: "A iniciativa mais se recomenda quando
consideramos o fato de não existir no Brasil imprensa de divulgação nacional" (citado
em Cabral, s/d: 39). [Voltar]
NOTA 3 DO CAPÍTULO 7: A casa não era um local de freqüência
exclusivamente negra. Ari Vasconcelos aponta, entre os músicos que participavam
das rodas de samba de Tia Ciata, o cigano Saudade. Aliás, ainda segundo Ari
Vasconcelos, os ciganos não tiveram papel secundário na invenção do ritmo nacional
brasileiro: "Pixinguinha e João da Baiana me revelaram que havia um grupo de
compositores, cantores e músicos ciganos que cultivavam o samba com grande
maestria e que trouxeram também uma contribuição importante, talvez mesmo
decisiva, ao gênero" (Vasconcelos, 1993: 108). Essa informação, além de reafirmar a
importância da linhagem étnica de Laurindo Rabello para a história da música popular
brasileira, também complexifica ainda mais a intricada rede de mediações
transculturais que deu origem à nacionalização do samba. [Voltar]
NOTA 4 DO CAPÍTULO 7: Sobre a importância da casa de Tia Ciata para a
formação da cultura popular carioca no início deste século, ver o excelente livro Tia
Ciata, de Roberto Moura (Moura, 1983). [Voltar]
NOTA 5 DO CAPÍTULO 7: Não vou entrar aqui nas polêmicas que identificam
outras músicas, como A viola "samba" de Catulo da Paixão Cearense gravado em
1914 como antecessores fonográficos de Pelo telefone. [Voltar]
NOTA 6 DO CAPÍTULO 7: Guinle, entre outras atividades, era patrocinador do
Fluminense Football Club (tendo inclusive feito o discurso de inauguração de sua
sede social em 18 de novembro de 1920) e tradutor/adaptador do Manual do
escoteiro, publicado pela primeira vez no Brasil em 1922. tinha também recebido
homenagem de outro sambista: o "rei" Sinhô compusera o batuque Ojo Burucu como
uma homenagem conjunta a Arnaldo Guinle e Villa-Lobos (Efegê, 1980, vol. 2: 123).
[Voltar]
NOTA 7 DO CAPÍTULO 7: Tinhorão afirma que nos "bailes do tipo gafieira,
realizados em sobrados do Centro, do Catete e de Botafogo, onde se divertia o grosso
da população negra e mestiça, as orquestras eram chamadas simplesmente de jazz
e segundo depoimento de Jota Efeno livro O cabrocha tocavam eles, em
1930, indiferentemente, sambas, maxixes, fox-blues e valsas" (Tinhorão, s/d: 47).
[Voltar]
NOTA 8 DO CAPÍTULO 7: Junto com Donga estava Sebastião Cirino, outro
componente dos oito Batutas que tocou para Gilberto Freyre na "noitada" do Catete.
Sebastião Cirino morou em Paris por 14 anos, período no qual chegou a dar aulas de
violão para a princesa Maria Thereza d'Orleans e Bragança (Efegê, 1980, vol. 1: 239).
Como é possível perceber, o violão deixou rapidamente de ser uma vergonha para a
elite. [Voltar]
NOTA 9 DO CAPÍTULO 7: A propósito, as pessoas que aplaudiam e cantavam
com Sinhô nos salões das residências mais elegantes da cidade não compareceram
a seu enterro. A descrição de Manuel Bandeira para o velório é um painel pitoresco,
lembrando uma cena de romance de Jorge Amado, das “camadas populares" da
época: "A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam bem
ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros, donas de rendez-
vous, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (estava o velho Oxumã da Praça Onze,
um preto de dois metros de altura com uma belida num olho), todos os sambistas de
fama, os pretinhos dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito
Hipólito, mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas. As
flores estão num botequim em frente, prolongamento da câmara-ardente" (Bandeira,
1937a: 110). [Voltar]
NOTA 10 DO CAPÍTULO 7: O sambista e pesquisador Nei Lopes, um dos mais
contundentes defensores da “autenticidade" do samba contra qualquer ameaça de
"comercialismo" ou "imperialismo", assim resume a história desse gênero musical:
"Traçando a linha evolutiva que vem do batuque de Angola e do Congo até o partido-
alto, vamos encontrar: a) primeiro, o lundu bailado, dando origem ao lundu puramente
canção dos salões imperiais, aos sambas rurais da Bahia e de São Paulo, a um lundu
campestre ainda dançado, e a outras manifestações; b) depois, todas essas
expressões (com a chula do samba baiano ganhando status de manifestação
autônoma) confluindo para o que chamaremos de samba da 'Pequena África da Praça
Onze', onde o núcleo irradiador foi a casa de Tia Ciata; c) depois ainda, o samba
amaxixado da 'Pequena África', dando origem ao samba de morro; d) finalmente, esse
samba de morro se dicotomizando em samba urbano (a partir do Estácio), próprio
para ser dançado e cantado em cortejo, e em partido-alto, próprio para ser cantado
em roda" (Lopes, 1992: 47). [Voltar]
NOTA 11 DO CAPÍTULO 7: Em entrevista recente, Paulinho da Viola voltou a
condenar as transformações pelas quais o samba está passando: "O ritmo do samba
ficou comprometido nessa coisa que se chama 'suingue'. Antes, todos tocavam em
função de todos. Agora cada ritmista faz o seu solo. Isso compromete o verdadeiro
ritmo do samba. No meu modo de ver, a coisa está empobrecida. Eu me surpreendo
com a multiplicação dos artistas populares, mas não é mais possível falar de samba
como uma música fechada no tempo. Até há pouco existia a comunidade do samba.
Agora não tem mais. Existe uma corrente jovem, que tenta fazer coisas diferentes.
Os tempos já são outros" (O Globo, Segundo Caderno, p. 1, 10/10/1993). [Voltar]
CAPÍTULO 8: LUGAR NENHUM
NOTA 1 DO CAPÍTULO 8: Na verdade, foi uma invenção coletiva, na qual
colaboraram muitos artistas, incluindo, por exemplo, o compositor Dorival Caymmi,
que ensinou a coreografia baiana a Carmen Miranda (ver Risério, 1993: 31). [Voltar]
NOTA 2 DO CAPÍTULO 8: Que depois foi “oficializada" como o traje típico da
"Miss Brasil" em concursos de beleza internacionais. [Voltar]
NOTA 3 DO CAPÍTULO 8: Em momento algum pretendo utilizar as idéias
citadas a partir de agora como se fossem exemplos de uma tendência geral ou
majoritária dentro do debate cultural brasileiro. São apenas idéias de determinados
grupos. Mesmo assim, o fato de elas terem sido divulgadas, em larga escala e em
muitas ocasiões, mostra que não são idiossincráticas, mas parte importante desse
debate. [Voltar]
NOTA 4 DO CAPÍTULO 8: Grupos de rock compostos por brasileiros atuam no
país desde meados dos anos 50, tendo inclusive alcançado grande sucesso comercial
nos anos 60, com a chamada Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos. Mas o
rótulo "rock brasileiro" só se popularizou nos anos 80. [Voltar]
NOTA 5 DO CAPÍTULO 8: Nessa mesma entrevista, Gil falou sobre os "efeitos"
do rock na sociedade brasileira: "Você pode dizer: não, mas é terrível, acaba com a
música brasileira, acaba com a cultura brasileira, acaba com a alma brasileira, acaba
com a economia brasileira, a língua brasileira, tudo, aliena. É verdade. Mas ao mesmo
tempo está acabando com uma tal cultura brasileira e está criando uma outra tal."
[Voltar]
NOTA 6 DO CAPÍTULO 8: Para facilitar as citações, não respeitarei a métrica
dos versos de cada letra. [Voltar]
NOTA 7 DO CAPÍTULO 8: E a repercussão do reggae jamaicano em todo o
mundo mostra que esse processo não tem apenas a mão única do Primeiro para o
Terceiro Mundo. [Voltar]
CONCLUSÕES
NOTA 1 DAS CONCLUSÕES: Não estou fazendo uma crítica. Gosto muito de
cartão-postal. [Voltar]
NOTA 2 DAS CONCLUSÕES: Na época dessa declaração, o separatismo
virara um tema constante na imprensa brasileira, principalmente depois que grupos
políticos gaúchos propuseram a independência dos estados da região sul do Brasil.
[Voltar]
NOTA 3 DAS CONCLUSÕES: Onde também lemos que o "samba é hoje uma
das melhores indústrias pelos lucros que proporciona aos autores e editores"
(Guimarães, 1978: 28). [Voltar]
NOTA 4 DAS CONCLUSÕES: Não estou dizendo que a heterogeneidade não
seja também uma construção simbólica. [Voltar]
ANEXO 1
NOTA 1 DO ANEXO 1: A citação de Gellner foi extraída por Hobsbawn do livro
Nations and Nationalism, Oxford, 1983, p. 48-9. [Voltar]
NOTA 2 DO ANEXO 1: Immanuel Wallerstein fornece uma periodização um
pouco diferente, mas não contraditória: "Um mundo constituído por esses estados-
nações começou a existir ainda que parcialmente no século XVI. Esse mundo foi
teorizado e se tomou matéria de consciência comum ainda mais tarde, no século
XIX. Ele se transformou num fenômeno universal inescapável de fato depois de
1945" (Wallerstein, 1991: 185). Sendo assim, o Brasil não estaria exatamente
atrasado com sua "unificação nacional" pós-30. [Voltar]
NOTA 3 DO ANEXO 1: E nisso eles são herdeiros de Emest Renan, pensador
francês que em 1882, no ensaio Qu'est-ce que c'est une nation?, escreveu uma frase
que se tomou célebre e poderia ser a epígrafe deste livro: "Uma nação é um plebiscito
diário." [Voltar]
NOTA 4 DO ANEXO 1: Mesmo as línguas nacionais não podem ser vistas
como fenômenos homogêneos: "É difícil conceber uma 'língua nacional'
genuinamente falada que envolva uma base puramente oral e que não seja híbrida"
(Hobsbawn, 1990: 69). [Voltar]
NOTA 5 DO ANEXO 1: Nos primeiros anos de Roma aconteceram alguns
episódios que poderiam ser considerados anti-helênicos, como a expulsão dos
filósofos gregos de Roma, mas com o fortalecimento do Império esses conflitos
desapareceram. Para mais detalhes da relação entre Roma e a cultura grega, ver,
por exemplo, Gruen, 1992. [Voltar]
NOTA 6 DO ANEXO 1: Apesar de surgirem sempre, aqui e ali, defensores
como o jornalista Paulo Francis de uma total "ocidentalização" do país. Nos últimos
tempos, com a voga do neoliberalismo (que teve um período de grande destaque na
política nacional durante o governo Collor), essa defesa "ocidentalizante",
principalmente no âmbito econômico, teve maior divulgação. Seria interessante fazer
uma pesquisa sobre os reflexos do neoliberalismo nas representações sobre o que
caracteriza (ou deve caracterizar) a cultura brasileira. [Voltar]
NOTA 7 DO ANEXO 1: Para uma análise das influências africanas e asiáticas
na civilização da Grécia clássica, ver Black Athena, de Martin Bernal (ver Bernal,
1991). [Voltar]
NOTA 8 DO ANEXO 1: Essa crítica não é ponto pacífico. O antropólogo Melville
Herskovits pensa que aculturação e transculturação querem dizer exatamente a
mesma coisa, isto é, qualquer empréstimo cultural. Ele diz que acculturation nunca
significou uma qualidade etnocêntrica (Herskovits, 1952: 572). Parece que Fernando
Ortiz venceu esse debate. Hoje o conceito de transculturação ultrapassou as
fronteiras da antropologia e é utilizado por críticos literários, teóricos da performance
etc. [Voltar]
NOTA 9 DO ANEXO 1: Outro conceito interessante é o de hibridação, proposto
pelo sociólogo argentino Néstor Garcia Canclini (não é coincidência a presença de
tantos latino-americanos nesse debate): "Encontram-se menções ocasionais dos
termos sincretismo, mestiçagem e outros empregados para designar processos de
hibridação. Prefiro este último porque abarca diversas misturas interculturais não
as raciais a que se pode limitar a 'mestiçagem' e que permite incluir formas
modernas de hibridação melhor que 'sincretismo', fórmula referida quase sempre a
fusões religiosas ou de movimentos simbólicos tradicionais" (Canclini, 1992: nota de
de gina, p. 14-5). O termo "híbrido'’ também é utilizado rias vezes por Gilberto
Freyre como sinônimo de "mestiço". Prefiro o termo "transcultural" por sua maior
vinculação à linguagem conceitual da antropologia. [Voltar]
ANEXO 2
NOTA 1 DO ANEXO 2: Em 1913 Roosevelt viajou pelos estados de Mato
Grosso e Amazonas, sendo acompanhado por Cândido Rondon. [Voltar]
NOTA 2 DO ANEXO 2: O costume, transformado em estratégia política de
afirmação étnica, de classificar os norte-americanos através da utilização daquilo que
a gramática portuguesa denomina adjetivos pátrios compostos, sempre contendo
hifens, como Native-American, African-American, Chinese-American e Irish-
American, entre muitos outros. [Voltar]
NOTA 3 DO ANEXO 2: Declarações como essa mostram como Gilberto Freyre
não estava se afastando de determinadas idéias contidas no projeto boasiano ao
sublinhar as diferentes características psicológicas e culturais das "raças" que forma-
ram o Brasil contemporâneo. [Voltar]
NOTA 4 DO ANEXO 2: Um dos resultados práticos desses interesses de Boas
foi a pesquisa folclórica realizada em 1927 e 1928 por uma de suas alunas, Zora
Neale Hurston, sobre comunidades rurais negras do Sul dos Estados Unidos, e que
resultou na publicação do livro Mules and Men, em 1935, o primeiro livro sobre folclore
afro-americano escrito por um negro. Nessa mesma época, Zora Neale Hurston
também visitou as comunidades mestiças da Jamaica, conhecidas como maroons ou
quilombos, sobre as quais escreveu no livro Tell My Horse. E, como já mencionei, ela
também participou do movimento literário conhecido como Harlem Renaissance, que
revelou vários poetas e escritores negros, todos ligados ao nascente mundo do jazz
nova-iorquino (ver Kammen, 1991). [Voltar]
NOTA 5 DO ANEXO 2: Que também foi diretor do Jornal do Folclore
Americano, de 1908 a 1925 (ver Kardiner & Preble, s/d). [Voltar]
NOTA 6 DO ANEXO 2: Ver, por exemplo, o caso da música sertaneja no Brasil,
que passou velozmente dos bastidores para o palco principal da música popular
brasileira nos anos 80. [Voltar]
P. Contracapa
O MISTÉRIO DO SAMBA
"Sou grato a Hermano Vianna por ter elaborado um trabalho acadêmico
perfeitamente inteligível para qualquer um de nós, simples mortais. Mas, apaixonado
pela música popular brasileira de todas as épocas, sou mais grato ainda pelas portas
que abriu para que os apaixonados e estudiosos penetrássemos na história de nossa
música.
Hermano não é (nem de longe) desses intelectuais que criam teorias e saem
procurando fatos para justificar as suas teorias. Antes de defender os seus pontos de
vista, mergulhou na história da música popular brasileira e trouxe, do fundo,
momentos raros de nossa bibliografia musical. (...) Considero o trabalho de Hermano
Vianna uma valiosíssima contribuição à bibliografia da música popular brasileira por
analisar, por exemplo, questões como o que poderíamos chamar de ascensão social
do samba, um gênero tão execrado pelas classes dominantes das primeiras décadas
do século que (...) ai daquele que andasse pelas ruas carregando um violão."
do prefácio de Sergio Cabral.
J.Z.E Jorge Zahar Editor
UFRJ Editora