Título:
Teoria da norma jurídica
Autor: Norberto
Bobbio
Este
material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1988,
não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado
por: Fernanda Rodrigues.
Adaptado
em: junho de 2022.
Padrão
vigente a partir de março de 2022
Referência:
BOBBIO, Norberto. Justiça, validade
e eficácia; As proposições prescritivas. In: BOBBIO, Norberto. Teoria
da norma jurídica. São Paulo: Edipro,
2016. cap. 2 e 3. p. 45-104.
P.45
Capítulo II
Justiça, validade e eficácia
Sumário:
9. Três critérios de valoração
10. Os três critérios são independentes
11. Possíveis confusões entre os três
critérios
O estudo das regras de conduta, em
particular das regras jurídicas, apresenta muitos problemas interessantes e
atuais, não só da teoria geral do direito (sobretudo depois de Kelsen), mas
também da lógica e da filosofia contemporânea. Este curso se propõe a enfrentar
alguns destes problemas.
O primeiro ponto que, a meu juízo, é
preciso ter bem claro em mente se quisermos estabelecer uma teoria da norma
jurídica com fundamentos sólidos, é que toda norma jurídica pode ser submetida
a três valorações distintas, e que estas valorações são independentes umas das
outras. De fato, frente a qualquer
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norma jurídica podemos colocar uma tríplice ordem de problemas: 1) se é justa
ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se é eficaz ou ineficaz. Trata-se dos
três problemas distintos: da justiça, da validade e da eficácia de uma norma
jurídica.
O problema da justiça é o problema da
correspondência ou não da norma aos valores últimos ou finais que inspiram um
determinado ordenamento jurídico. Não tocamos aqui na questão se existe um
ideal de bem comum idêntico para todos os tempos e para todos os lugares. Para
nós, basta constatar
que todo ordenamento jurídico persegue certos fins, e convir
sobre o fato de que estes fins representam os valores a cuja realização o
legislador, mais ou menos conscientemente, mais ou menos adequadamente, dirige
sua própria obra. No caso de se considerar que existam valores supremos,
objetivamente evidentes, a pergunta se uma norma é justa ou injusta equivale a
perguntar se é apta ou não a realizar esses valores. Mas, também no caso de não
se acreditar em valores absolutos, o problema da justiça ou não de uma norma
tem um sentido: eqüivale a perguntar se essa norma é
apta ou não a realizar os valores históricos que inspiram certo ordenamento
jurídico concreto e historicamente determinado. O problema se uma norma é justa
ou não é um aspecto do contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o que
deve ser e o que é: norma justa é aquela que deve ser; norma injusta é aquela
que não deveria ser. Pensar sobre o problema da justiça ou não de uma norma
equivale a pensar sobre o problema da correspondência entre o que é real e o
que é ideal. Por isso, o problema da justiça se denomina comumente de problema
deontológico do direito.
O problema da validade é o problema da
existência da regra enquanto tal, independentemente do juízo de valor sobre ela
ser justo ou não. Enquanto o problema da justiça se resolve com um juízo de
valor, o problema da validade se resolve com um juízo de fato, isto é, trata-se
de constatar se uma regra jurídica existe ou não, ou melhor, se tal regra assim
determinada é uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma equivale à
existência desta norma como regra jurídica. Enquanto para
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julgar a justiça de uma norma, é preciso compará-la a um valor ideal, para
julgar a sua validade é preciso realizar investigações do tipo
empírico-racional, que se realizam quando se trata de estabelecer a entidade e
a dimensão de um evento. Em particular, para decidir se uma norma é válida
(isto é, como regra jurídica pertencente a um determinado sistema), é
necessário com freqüência realizar três operações: 1)
averiguar se a autoridade de quem ela emanou tinha o poder legítimo para emanar
normas jurídicas, isto é, normas vinculantes naquele determinado ordenamento
jurídico
(esta investigação conduz
inevitavelmente a remontar até a norma fundamental, que é o fundamento de
validade de todas as normas de um determinado sistema); 2) averiguar se não foi
ab-rogada, já que uma norma pode ter sido válida, no sentido de que foi emanada
de um poder autorizado para isto, mas não quer dizer que ainda o seja, o que
acontece quando uma outra norma sucessiva no tempo a tenha expressamente
ab-rogado ou tenha regulado a mesma matéria; 3) averiguar se não é incompatível
com outras normas do sistema (o que também se chama ab-rogação implícita),
particularmente com uma norma hierarquicamente superior (uma lei constitucional
é superior a uma lei ordinária em uma Constituição rígida) ou com uma norma posterior,
visto que em todo ordenamento jurídico vigora o princípio de que duas normas
incompatíveis não podem ser ambas válidas (assim como em um sistema científico
duas proposições contraditórias não podem ser ambas verdadeiras). O problema da
validade jurídica pressupõe que se tenha respondido à pergunta: o que se
entende por direito? Trata-se, querendo adotar uma terminologia familiar entre
os jusfilósofos, do problema ontológico do direito.
O problema da eficácia de uma norma é o
problema de ser ou não seguida pelas pessoas a quem é dirigida (os chamados
destinatários da norma jurídica) e, no caso de violação, ser imposta posta
através de meios coercitivos pela autoridade que a evocou. Que uma norma exista
como norma jurídica não implica que seja também constantemente seguida. Não é
nossa tarefa
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aqui indagar quais possam ser as razões para que uma norma seja mais ou
menos seguida. Limitamo-nos a constatar que há normas que são seguidas
universalmente de modo espontâneo (e são as mais eficazes), outras que são
seguidas na generalidade dos casos somente quando estão providas de coação,
outras, ainda, que não são seguidas apesar da coação, e outras, enfim, que são
violadas sem que nem sequer seja aplicada a coação (e são as mais ineficazes).
A investigação para averiguar a eficácia ou a ineficácia de uma norma é de
caráter histórico-sociológico, se volta para o estudo do comportamento dos
membros de um determinado grupo social e se diferencia, seja da investigação
tipicamente filosófica em torno da justiça, seja da tipicamente jurídica em
torno da validade. Aqui também, para usar a terminologia douta, se bem que em
sentido diverso do habitual, pode-se dizer que o problema da eficácia das
regras jurídicas é o problema fenomenológico do direito.
Estes três critérios de valoração de
uma norma dão origem a três ordens distintas de problemas, e são independentes
um do outro, no sentido em que a justiça não depende nem da validade nem da
eficácia, a eficácia não depende nem da justiça nem da validade. Para mostrar
estas várias relações de independência pendência, formulemos as seis
proposições seguintes:
1. Uma norma pode ser justa sem ser válida. Para dar um exemplo clássico, os teóricos do direito natural formulavam
em seus tratados um sistema de normas advindo de princípios jurídicos
universais. Quem formulava estas normas, considerava-as justas, porque as
inferia de princípios universais de justiça. Mas estas normas, a não ser que
fossem escritas em um tratado de direito natural, não eram válidas. Tornavam-se
válidas apenas na medida em que eram acolhidas por um sistema de direito
positivo. O direito natural pretende ser o direito justo por excelência, mas
somente pelo fato de ser justo não é também válido.
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2.
Uma norma
pode ser válida sem ser justa. Aqui não é preciso ir muito longe para
buscar exemplos. Nenhum ordenamento jurídico é perfeito: entre o ideal de
justiça e a realidade do direito há sempre um vazio, mais ou menos grande,
dependendo dos regimes. Certamente o direito, que em todos os regimes de um
certo período histórico e em alguns contemporâneos que consideramos civilmente
ultrapassados, admite a escravidão, não é justo, mas nem por isso é menos
válido. Não faz muitos anos vigoravam leis raciais que nenhuma pessoa racional
estaria disposta a considerar justa e, não obstante, eram válidas. Um
socialista dificilmente conceberá como justo um ordenamento que reconhece e
protege a propriedade individual; assim como um reacionário dificilmente
admitirá como justa uma norma que considere a greve lícita. E ainda, nem o
socialista nem o reacionário terão dúvidas sobre o fato de que, em um
ordenamento positivo como o italiano, tanto as normas que regulam a propriedade
individual quanto as que reconhecem o direito de greve são válidas.
3.
Uma norma
pode ser válida sem ser eficaz. O caso mais clamoroso é sempre o das
leis de proibição de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos da América, que
vigoraram durante vinte anos entre as duas guerras. Afirma-se que o consumo de
bebidas alcoólicas durante o regime proibicionista
não era inferior ao consumo do período imediatamente sucessivo, quando a
proibição foi abolida. Certamente se tratava de leis “válidas”, no sentido que
emanadas dos órgãos que tinham competência para tanto, mas não eram eficazes.
Sem ir tão longe, muitos artigos da Constituição Italiana não foram até hoje
aplicados. O que significa a tão freqüente deplorável
desaplicação da Constituição? Significa que nos
encontramos frente a normas jurídicas que, embora válidas, isto é, existentes
enquanto normas, não são eficazes.
4.
Uma norma
pode ser eficaz sem ser válida. Há muitas normas sociais que vão sendo
seguidas espontaneamente ou pelo menos habitualmente, isto é, são eficazes,
como por exemplo, entre um certo círculo de pessoas, as regras da
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boa educação. Estas regras, pelo simples fato de serem seguidas, não se
tornam por isso regras pertencentes a um sistema jurídico, ou seja, não
adquirem validade jurídica. Poder-se-ia objetar que o direito consuetudinário
constitui um exemplo evidente de normas que alcançam validade jurídica, quer
dizer, chegam a fazer parte de um sistema normativo, apenas através da
eficácia. E o que é o uso constante, regular, generalizado, uniforme que se
exige de um costume para que ele se torne jurídico, senão aquilo que chamamos
de “eficácia”? Mas a esta objeção se pode responder que nenhum costume se torna
jurídico só através do uso, porque o que o faz tornar-se jurídico, o que o
insere no sistema, é o fato de ser acolhido e reconhecido pelos órgãos
competentes desse sistema para produzir normas jurídicas, como o legislador ou
o juiz. Enquanto for apenas eficaz, uma norma consuetudinária não se torna
jurídica. Transforma-se em jurídica quando os órgãos de poder lhe atribuem
validade, o que confirma que a eficácia não se transforma diretamente em
validade, e portanto uma norma pode continuar a ser
eficaz sem por isso se tornar jurídica.
5.
Uma norma pode ser justa sem ser
eficaz. Vimos que uma norma pode ser justa sem ser válida.
Não devemos deixar de acrescentar que pode ser justa sem ser eficaz. Quando a
sabedoria popular diz que “não há justiça neste mundo”, refere-se ao fato de
que muitos são aqueles que exaltam a justiça com palavras, poucos são os que a
transformam em ato. Em geral, uma norma para ser eficaz deve também ser válida.
Se é verdade que muitas normas de justiça não são válidas, com maior razão não
são nem mesmo eficazes.
6.
Uma norma pode ser eficaz sem ser
justa. O fato de uma norma ser universalmente seguida não
demonstra sua justiça, assim como também, o fato de não ser absolutamente
obedecida não pode ser considerado prova de sua injustiça. A derivação da
justiça da eficácia poderia equiparar-se a um dos argumentos mais freqüentemente discutidos entre os jusnaturalista,
o chamado consensus humani generis, ou simplesmente
consensus omnium. Perguntam-se os jusnaturalistas:
pode-se
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considerar como máxima de direito natural a que seja acolhida por todos os povos
(alguns diziam “todos os povos civilizados ”)? A resposta dos mais
intransigentes era a negativa explícita e com razão, pois o fato de a
escravidão, por exemplo, ter sido praticada por todos os povos civilizados em
um certo período histórico não a transformava numa instituição conforme a
justiça. A justiça é independente da validade, mas também independente da
eficácia.
Cada um dos três critérios até aqui
examinados delimita um campo bem determinado de investigação para o filósofo do
direito. Pode-se inclusive sustentar que os três problemas fundamentais, de que
tradicionalmente se ocupa e sempre se ocupou a filosofia do direito, coincidem
com as três qualificações normativas da justiça, da validade e da eficácia. O
problema da justiça dá lugar a todas aquelas investigações que visam elucidar
os valores supremos a que tende o direito, em outras palavras, os fins sociais,
cujo instrumento mais adequado de realização são os ordenamentos jurídicos, com
seus conjuntos de leis, de instituições e de órgãos. Nasce daí a filosofia do
direito como teoria da justiça. O problema da validade constitui o núcleo das
investigações que pretendem determinar em que consiste o direito enquanto regra
obrigatória e coativa, quais são as características peculiares do ordenamento
jurídico que o distinguem dos outros ordenamentos normativos (como o moral), e portanto, não os fins que devem ser realizados, mas os
meios cogitados para realizar esses fins, ou o direito como instrumento de
realização da justiça. Daí nasce a Filosofia do Direito como Teoria Geral do
Direito. O problema da eficácia nos leva ao terreno da aplicação das normas
jurídicas, que é o terreno dos comportamentos efetivos dos homens que vivem em
sociedade, dos seus interesses contrastantes, das ações e reações frente à
autoridade, dando lugar às investigações em torno da
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vida do direito, na sua origem, no seu desenvolvimento, na sua modificação,
investigações estas que normalmente são conexas a indagações de caráter
histórico e sociológico. Daí nasce aquele aspecto da filosofia do direito que
conflui para a sociologia jurídica.
Esta tripartição de problemas é hoje
geralmente reconhecida pelos filósofos do direito e, ademais, corresponde em
parte à distinção das três funções da filosofia do direito (funções deontológica,
antológica e fenomenológica) que tem se desenvolvido desde o início do século
XX na filosofia do direito italiano, principalmente por obra de Giorgio Del
Vecchio. Para dar uma prova do consenso geral sobre esta concepção tripartida
da experiência jurídica, cito aqui o testemunho de três teóricos do direito
contemporâneo, pertencentes a três países diversos e a três tradições culturais
diferentes. Eduardo Garcia Maynez, professor da
Universidade do México, seguidor do filósofo espanhol Ortega y Gasset e do seu “perspectivismo”, em um ensaio, La Definición dei Derecho - Ensayo de Perspectivismo Jurídico [A Definição do Direito -
Ensaio de Perspectivismo Jurídico (México, 1948)], diz
que, por “direito”, se compreende geralmente três coisas: o direito formalmente
válido, o direito intrinsecamente válido, o direito positivo ou eficaz. Com a
primeira expressão entende aquelas regras de conduta que “a autoridade política
considera como vinculantes em um determinado território e em uma determinada
época”; com a segunda, pretende indicar o direito justo, isto é, as
regulamentações das relações de coexistência entre os homens que mais
correspondem ao ideal de justiça; com a terceira, indica aquelas regras de
conduta que “determinam efetivamente a vida de uma sociedade em um determinado
momento histórico”. Não precisamos fazer muito esforço para reconhecer, nestes
três modos de compreender o direito, a distinção entre validade, justiça e
eficácia. Como segundo testemunho, citamos Julius Stone, professor da
Universidade de Sidney (Austrália), aluno do mais influente filósofo do direito
de sua época, o americano Roscoe Pound. Stone, na sua
obra de maior empenho, The
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Province and Function of Law as Logic, Justice and Social Control [O Campo e a Função do Direito como Lógica, Justiça
e Controle Social (Sidney, 1946)]. sustenta que o
estudo do direito, para ser completo, resulta destas três partes: 1)
jurisprudência analítica, que é aquela que chamaremos de teoria geral do
direito, ou seja, o estudo do direito do ponto de vista formal; 2)
jurisprudência crítica ou ética, que compreende o estudo dos vários ideais de
justiça e, portanto, do direito ideal nas suas relações com o direito real, e
coincide com a parte da filosofia do direito que chamamos de teoria da justiça;
3) jurisprudência sociológica, que estuda, segundo a expressão preferida de
Pound, não mais o direito nos livros (law in books),
porém o direito em ação (law in action),
e corresponde à sociologia jurídica enquanto estudo do direito vivente na
sociedade. O terceiro testemunho obtemos com Alfred von Verdross,
professor da Universidade de Viena, que segue orientação jusnaturalista.
Em um artigo intitulado Zur Klárung
des Rechtsbegriffes (Para o
Esclarecimento do Conceito de Direito) de 1950, depois de ter distinguido acuradamente
o problema da justiça do problema da validade, precisa que existem três modos
diversos de considerar o direito, segundo seja observado no seu valor ideal
(que é a justiça), no seu valor formal (que é a validade), ou na sua realização
prática (que é a eficácia), e assim se exprime: “O sociólogo pode com seus
meios compreender somente a eficácia do direito, o teórico do direito, só a
forma do direito e a conexão intrínseca das normas positivas, enquanto o
filósofo moral (o teórico do direito natural) se interessa unicamente pela
justiça ética das normas jurídicas e pela sua obrigatoriedade interior” (pp.
98-99).
Nota-se que esta distinção de problemas
não deve ser concebida como uma separação em compartimentos estanques. Quem
desejar compreender a experiência jurídica nos seus vários aspectos deverá
considerar que ela é a parte da experiência humana cujos elementos
constitutivos são: ideais de justiça a realizar, instituições normativas para
realizá-los, ações e reações dos homens frente àqueles ideais e a estas
instituições. Os
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três problemas são três aspectos diversos de um só problema central, que é o
da melhor organização da vida dos homens em sociedade. Se insistimos sobre a
distinção e a independência dos três valores, é porque julgamos prejudicial sua
confusão e, sobretudo, consideramos que não se pode aceitar outras teorias que
não fazem esta distinção claramente, e tendem, ao contrário, a reduzir ora um,
ora outro dos três aspectos, aos outros dois, elaborando, como se costuma
dizer, através de feio neologismo da linguagem filosófica, um “reducionismo”.
Creio que se podem distinguir três teorias reducionistas, à crítica das quais
dedico os últimos três tópicos deste capítulo.
Há uma teoria que reduz a validade à
justiça, afirmando que uma norma só é válida se é justa; em outras palavras,
faz depender a validade da justiça. O exemplo histórico mais ilustre desta
redução é a doutrina do direito natural.
Uma outra teoria reduz a justiça à
validade, quando afirma que uma norma é justa somente pelo fato de ser válida,
isto é, faz depender a justiça da validade. O exemplo histórico desta teoria é
dado pela concepção do direito que se contrapõe à naturalista, que é a
concepção positivista (no sentido mais restrito e limitado do termo).
Finalmente, há uma teoria que reduz a
validade à eficácia, quando tende a afirmar que o direito real não é aquele que
se encontra, por assim dizer, enunciado em uma Constituição, ou em um Código,
ou em um corpo de leis, mas é aquele que os homens efetivamente aplicam nas
suas relações cotidianas: esta teoria faz depender, em última análise, a
validade da eficácia. O exemplo histórico mais radical é dado pelas correntes
consideradas realistas da jurisprudência americana e pelas suas antecipações no
continente.
Consideramos que todas as três
concepções estão viciadas pelo erro do “reducionismo”, que leva à eliminação
ou, pelo menos, ao ofuscamento de um dos três elementos constitutivos da
experiência jurídica e, portanto, a mutilam. A primeira e a terceira não
conseguem ver a importância do problema da
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validade; a segunda julga poder se livrar do problema da justiça. Em seguida, as
examinaremos separadamente.
Não é nossa tarefa ilustrar um problema
tão rico e complexo como o do direito natural. Aqui, a corrente do direito
natural vem à tona apenas devido ao fato de que há uma tendência geral entre os
seus teóricos de reduzir a validade à justiça. Poderiamos
definir esta corrente de pensamento jurídico como aquela segundo a qual uma lei
para ser lei deve estar de acordo com a justiça. Lei em desacordo com a justiça
non est lex sed corruptio legis. Uma recente e exemplar formulação desta
doutrina pode ser lida na seguinte passagem de Gustav Radbruch:
“Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça, por exemplo concede
arbitrariamente ou refuta os direitos do homem, carece de validade... até mesmo
os juristas devem encontrar coragem para refutar-lhe
o caráter jurídico.”; e em outra parte: “Pode haver leis com tal medida de
injustiça e de prejuízo social que seja necessário refutar- lhes o caráter
jurídico... tanto há princípios jurídicos fundamentais mais fortes que toda
normatividade jurídica, que uma lei que os contrarie carece de validade”; e
ainda: “Onde a justiça não é nem mesmo perseguida, onde a igualdade, que
constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada em nome do direito
positivo, a lei não somente é direito injusto como carece em geral de
juridicidade. [Rechtsphilosophie (Filosofia do
Direito), 4a ed., 1950, pp. 336-353].
A esta abordagem do problema da relação
entre justiça e direito nós responderiamos: que o
direito corresponda à justiça é uma exigência, ou se quisermos, um ideal a
alcançar que ninguém pode desconhecer, mas não é uma realidade de fato. Ora,
quando nos colocamos o problema do que é o direito em uma dada situação
histórica, nos questionamos sobre o que é de fato direito e não sobre o que
queríamos que ele fosse ou o que deveria ser Mas, se
nos perguntarmos o que de fato é o
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direito, não poderemos deixar de responder, ao menos, que na realidade vale
como direito também o direito injusto e que não existe nenhum ordenamento
perfeitamente justo.
Em uma só hipótese poderiamos
aceitar reconhecer como direito unicamente o que é justo: se a justiça fosse uma
verdade evidente ou pelo menos demonstrável como uma verdade matemática, de
modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas sobre o que é justo ou injusto. E
esta, na realidade, foi sempre a pretensão do jusnaturalismo
nas suas várias fases históricas. Com uma outra definição, poderia se dizer que
a teoria do direito natural é aquela que se considera capaz de estabelecer o
que é justo e o que é injusto de modo universalmente válido. Mas esta pretensão
tem fundamento? A julgar pelas controvérsias entre os vários seguidores do
direito natural sobre o que há de ser considerado justo ou injusto, a julgar
pelo fato de que o que era natural para uns não era para outros, deveriamos responder que não. Para Kant (e em geral para
todos os jusnaturalistas modernos) a liberdade era
natural; mas, para Aristóteles, era natural a escravidão. Para Locke, era
natural a propriedade individual, mas para todos os utopistas socialistas, de
Campanella a Winstanley e a Morelly,
a instituição mais adequada à natureza humana era a comunhão de bens. Esta
variedade de juízos entre os próprios naturalistas dependia de duas razões
fundamentais: 1) “natureza” é um termo genérico que adquire diversos
significados dependendo do modo como é usado. Já Rousseau dizia: “Ce n’est point sans surprise et sans scanda/e qu’on remarque le peu d’accord
qui règne sur cette importante matière entre les divers auteurs qui en
ont traité. Parmi les plus
graves écrivains, à peine on
trouve-t-on deux qui soient
du même avis sur ce point”[nota 1]
(Discours sur 1’origine et les fondements de l’inégalité, pref.); 2) ainda que o significado do termo
fosse
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unívoco, e todos os que a ele fazem referência estivessem de acordo em aceitar
que algumas tendências são naturais e outras não, da constatação que uma
tendência é natural não se pode deduzir se ela é boa ou má, já que não se pode
deduzir um juízo de valor de um juízo de fato. Hobbes e Mandeville
estavam de acordo em considerar que a tendência natural do homem era o instinto
utilitário: porém, se para Hobbes este instinto conduzia à destruição da
sociedade e precisava ser contido, para Mandeville (o
célebre autor da Fábula das Abelhas) era vantajoso e deveria ser liberado.
Mas então, se a observação da natureza
não oferece base suficiente para determinar o que é justo e o que é injusto de
modo universalmente reconhecível, a redução da validade à justiça leva a apenas
uma só e grave conseqüência: a destruição de um dos
valores fundamentais sobre o qual se apóia o direito
positivo (entendido como direito válido), o valor da certeza. De fato, se a
distinção entre o justo e o injusto não é universal, é preciso colocar o
problema: a quem compete estabelecer o que é justo ou injusto? Há duas
respostas possíveis: a) compete àquele ou àqueles que detêm o poder. Mas esta
resposta é aberrante, porque neste caso se conserva, é verdade, a certeza do
direito, mas se converte a doutrina que transforma a validade em justiça na
doutrina perfeitamente oposta, que considera a justiça como validade, no
momento em que reconhece o justo no que é comandado; b) compete a todos os
cidadãos; neste caso, uma vez que os critérios de justiça são diversos e
irredutíveis, em relação àqueles que desobedecerem a lei porque a julgam
injusta, e sendo injusta é inválida, os governantes nada poderíam
objetar, e a segurança da vida civil no âmbito das leis estaria completamente
destruída.
Por fim, que nesta mesma corrente do
direito natural a redução da validade à justiça seja mais afirmada do que
aplicada parece-me que pode ser demonstrado com dois argumentos tirados da
mesma doutrina jusnaturalista: a) é doutrina
recorrente para os jusnaturalistas que os homens,
antes de entrar no estado civil (dirigido pelo direito positivo), tivessem
vivido no
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estado de natureza, cuja característica fundamental é de ser regido apenas
pelas leis naturais, pois, conforme doutrina aceita, o estado de natureza é
impossível e dele é necessário sair (segundo Locke e Hobbes se trata de um
cálculo utilitário, segundo Kant, de um dever moral) para fundar o Estado. Isto
deve ser interpretado no sentido em que o direito natural não cumpre a função
de direito positivo, onde, se chamamos de “direito” o direito positivo, não
podemos considerar “direito” da mesma maneira o direito natural. Kant,
perfeitamente consciente desta distinção, chamou o direito natural de
“provisório” para distingui-lo do direito positivo que chamou de
“peremptório", dando com isso a entender que somente o direito positivo
era direito no sentido que está impregnado na palavra; b) é doutrina comum para
os jusnaturalistas que o direito positivo em
desconformidade com o direito natural seja considerado injusto, mas não
obstante deve ser obedecido (a chamada teoria da obediência). Porém, o que
significa propriamente "obedecer"? Significa aceitar uma certa norma
de conduta como vinculante, isto é, como existente em um dado ordenamento
jurídico, e portanto válida. E o que é a validade de
uma norma senão a pretensão, de preferência garantida pela coação, de ser
obedecida até mesmo por aqueles que a ela se opõem por considerá-la, segundo um
critério pessoal de valoração, injusta? Pois bem, afirmar que uma norma deve
ser obedecida mesmo se injusta, é um modo de, ainda que indiretamente, alcançar
a mesma conclusão de que partimos, qual seja, a justiça e a validade de uma
norma são duas coisas diversas; é em suma, uma volta mais longa para chegar a
reconhecer que uma norma pode ser válida (isto é, deve ser obedecida) mesmo que
injusta, e que portanto justiça e validade não
coincidem.
A teoria oposta à jusnaturalista
é a doutrina que reduz a justiça à validade. Enquanto para um jusnaturalista clássico tem, ou melhor dizendo, deveria
ter, valor de comando só o que é
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justo, para a doutrina oposta é justo só o que é comandado e pelo fato de ser
comandado. Para um jusnaturalista, uma norma não é
válida se não é justa; para a teoria oposta, uma norma é justa somente se for
válida. Para uns, a justiça é a confirmação da validade, para outros, a
validade é a confirmação da justiça. Chamamos esta doutrina de positivismo
jurídico, embora devamos convir que a maior parte daqueles que são positivistas
na filosofia e teóricos e estudiosos do direito positivo (o termo “positivismo”
se refere tanto a uns quanto a outros), nunca sustentaram uma tese tão
extremada. Entre os filósofos positivistas do direito, tomemos, por exemplo, novamentee'Levi: mesmo que, como positivista, seja
relativista, e não reconheça valores absolutos de justiça, todavia admite que é
preciso distinguir aquilo que vale como direito dos ideais sociais que instigam continuamente
a modificação do direito constituído, e que, portanto, o direito pode ser
válido, sem ser justo. Entre os juristas, tomemos, por exemplo, Kelsen: quando
Kelsen sustenta que aquilo que constitui o direito como direito é a validade,
não quer em absoluto afirmar que o direito válido seja também justo, mesmo
porque os ideais de justiça, para ele, são subjetivos e irracionais; o problema
da justiça, para Kelsen, é um problema ético e é distinto do problema jurídico
da validade.
Se quisermos encontrar uma teoria
completa e coerente do positivismo jurídico, devemos remontar à doutrina
política de Thomas Hobbes, cuja característica fundamental me parece ser, na
verdade, a reviravolta radical do jusnaturalismo
clássico. Segundo Hobbes, efetivamente
não existe outro critério do justo e do injusto fora da lei positiva, quer
dizer, fora do comando do soberano. Para Hobbes, é verdade que é justo o que é
comandado, somente pelo fato de ser comandado; é injusto o que é proibido,
somente pelo fato de ser proibido. Como chega a esta conclusão tão radical?
Hobbes é um racionalista, e como para todos os racionalistas, também para
Hobbes, o que conta é quê a conclusão seja tirada
rigorosamente das premissas. No estado de natureza, como todos estão à mercê
dos próprios instintos e não há leis que determinem a cada um o que é seu,
todos têm
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direito sobre
todas as coisas (ius in omnia)
e nasce a guerra de todos contra todos. Sobre o estado de natureza, somente se
pode dizer que é intolerável e que dele é preciso sair. E de fato, a primeira
lei da razão para Hobbes é a que prescreve buscar a paz (pax
est quaerenda). Para sair do estado de natureza de
modo estável e definitivo, os homens pactuam entre si objetivando renunciar
reciprocamente aos direitos que tinham in natura e transmiti-los a um soberano
(pactum subiectionis). Ora,
o direito fundamental que os homens têm no estado de natureza é o de decidir,
cada um segundo os próprios desejos e interesses, aquilo que é justo e injusto,
e tanto isso é verdade que enquanto perdura o estado de natureza não existe
nenhum critério para distinguir o justo do injusto, exceto o arbítrio e o poder
dos indivíduos. Na passagem do estado de natureza ao Estado civil, os
indivíduos transmitindo todos os seus direitos naturais ao soberano, lhe
transmitem também o direito de decidir o que é justo ou injusto; e assim, desde
o momento em que o Estado civil é constituído, não há outro critério do justo e
do injusto que não seja a vontade do soberano. Esta doutrina hobbesiana está ligada à concepção da simples convencionalidade dos valores morais e, portanto, também da
justiça, segundo a qual não existe um justo por natureza, mas somente um justo
por convenção (também por este aspecto a doutrina hobbesiana
é a antítese da doutrina jusnaturalista). No estado
de natureza, não existe o justo e o injusto porque não existem convenções
válidas. No Estado civil, o justo e o injusto repousam sobre o comum acordo
entre os indivíduos de atribuir ao soberano o poder de decidir o que é justo e
injusto. Para Hobbes, então, a validade de uma norma jurídica e a justiça dessa
norma não se distinguem, porque a justiça e a injustiça nascem juntas
com o direito positivo, isto é, juntas com a validade. Enquanto se permanece no
estado de natureza não há direito válido, mas tampouco há justiça; quando surge
o Estado nasce a justiça, mas esta nasce ao mesmo tempo que o direito positivo,
de modo que, onde não há direito não há também justiça, e onde há justiça,
significa que há um sistema constituído de direito positivo.
P.61
A doutrina de Hobbes tem um significado
ideológico bem preciso, que não cabe discutir aqui: ela é a justificação
teórica mais consequente do poder absoluto. Para nós, basta pôr em evidência
qual conseqüência seríamos obrigados a deduzir do
problema que nos interessa, se aceitássemos o ponto de vista hobbesiano. A conseqüência seria
a redução da justiça à força. Se não existe outro critério do justo e do
injusto além do comando do soberano, é preciso resignar-se a aceitar como justo
o que agrada ao mais forte, uma vez que o soberano, se não é o mais justo entre
os homens, certamente é o mais forte (e permanece soberano, não enquanto for
justo, mas enquanto for o mais forte). A distinção entre validade e justiça
serve justamente para diferenciar a justiça da força. Se esta distinção
desaparece, e a justiça é reduzida à validade, também a distinção entre justiça
e força não é mais possível. Somos assim reconduzidos à célebre doutrina
sofistica sustentada por Trasímaco no livro I de A
República de Platão, e refutada por Sócrates. Trasímaco,
impaciente com a discussão sobre a justiça que Sócrates desenvolve com seus
amigos, intervém como um animal selvagem - escreve Platão - que deseja
dilacerar os presentes, e, depois de afirmar que tudo o que Sócrates estava
dizendo era mentira, enuncia a sua definição com estas célebres palavras: “E me
escutem agora. Eu afirmo que a justiça não é outra coisa senão o útil para o
mais forte" (A República, 338 c.). E algo semelhante tinha dito um outro
sofista, Cálicles, que em um outro diálogo de Platão
(Górgias), dispara esta condenação dos fracos e exaltação dos fortes: “Mas a
própria natureza, em minha opinião, demonstra ser justo que o mais forte esteja
por cima do mais fraco e o mais capaz do menos capaz. Tal critério do justo
aparece também nos outros animais, entre Estado e Estado e entre povo e povo,
isto é, o mais forte dominando o mais fraco e obtendo maiores vantagens"
(Górgias, 483 d.).
A doutrina segundo a qual a justiça é a
vontade do mais forte tem sido refutada várias vezes no curso do pensamento
ocidental. Mas talvez as páginas mais expressivas sejam aquelas que escreveu
Rousseau no início de Do Contrato Social, em
P.62
um capítulo justamente
intitulado “Du droit du plus fort” (Do direito do mais
forte), do qual cito alguns dos trechos mais incisivos: “A força é uma potência
física: não vejo qual moralidade possa derivar dela. Ceder à força é um ato de
necessidade, não de vontade: quando muito, um ato de prudência. Em que sentido
poderia ser um dever?... Admitindo-se que é a força que cria o direito, o
efeito muda com a causa: toda força que supera a primeira tem direito de
sucedê-la. Admitindo-se que se pode desobedecer impunemente, então pode-se
fazê-lo legitimamente e, uma vez que o mais forte tem sempre razão, trata-se
somente de se fazer o mais forte... Se é preciso obedecer por força, não o é
por dever, e se não somos mais forçados a obedecer, tampouco somos obrigados”.
No decorrer do pensamento jurídico do
século XX, em diversos momentos, houve teóricos do Direito que buscaram captar
o momento constitutivo da experiência jurídica não tanto nos ideais de justiça
nos quais se inspiram os homens, ou dizem inspirar-se, ou ainda nos
ordenamentos jurídicos constitutivos, mas sim na realidade social, onde o
direito se forma e se transforma, nas ações dos homens que fazem e desfazem com
seu comportamento as regras de conduta que os governam. Seguindo a terminologia
adotada, poderíamos dizer que estes movimentos, dentre os vários aspectos pelos
quais apresentam o fenômeno jurídico, colocaram em relevo a eficácia, mais do
que a justiça ou a validade. Travam uma batalha em duas frentes: contra o jusnaturalismo, que teria uma concepção ideal do direito, e contra o
positivismo em sentido estrito, que tem uma concepção formal do direito. Em antítese ao primeiro, estas correntes
podem ser chamadas de realistas
e ao segundo, conteudísticas, no sentido em que não vêem o direito como deve ser, mas como efetivamente é, e
nem o entendem como complexo de normas válidas, mas como normas efetivamente
aplicadas em uma determinada sociedade. Segundo o ponto
P.63
de vista por eles
defendido, pecam por abstração tanto os jus- jusnaturalistas
quanto os positivistas, os primeiros porque substituem o direito real pela
aspiração à justiça, os segundos porque o substituem pelas regras impostas e
formalmente válidas, que freqüentemente são pura
forma vazia de conteúdo. Os positivistas veriam apenas o contraste existente
entre direito válido e direito justo. Os sequazes destas correntes vêem também um contraste entre direito imposto e aquele
efetivamente aplicado, e consideram apenas este último o direito em sua
concretude, único objeto passível de pesquisa por parte dos juristas que não
pretendem perder tempo com fantasmas vazios.
Acredito que no século XIX se possa
individualizar ao menos três momentos em que uma peculiar maneira de conceber o
direito emergiu e, emergindo, contribuiu para alargar o horizonte da ciência
jurídica.
O primeiro momento é representado pela
Escola histórica do direito, do grande jurista alemão Friedrich Carl von Savigny, e de seu discípulo Friedrich Puchta,
que floresceu.na época da Restauração. Esta escola representa, no campo do
direito, a mudança de clima do pensamento jurídico derivada da difusão do
romantismo: é a expressão mais genuína do romantismo jurídico. Como o
romantismo em geral combate a abstração racionalista do iluminismo do século
XVIII (ou pelo menos suas degenerações), também a escola histórica do direito
ataca aquele modo racionalista e abstrato de conceber o direito, que é o jusnaturalismo, segundo o qual há um direito universalmente
válido dedutível de uma natureza humana sempre igual. Para a escola histórica,
o direito não se deduz dos princípios racionais, mas é um fenômeno histórico e
social que nasce espontaneamente do povo: o seu fundamento é, para usar uma
expressão que se tornou famosa, não a natureza universal, mas o espírito do
povo (Volksgeist), daí a conseqüência
de existirem tantos direitos diversos quanto diversos são os povos com suas
inúmeras características e em suas várias fases de desenvolvimento. A mudança
de perspectiva no estudo do direito se manifesta sobretudo na consideração do
direito con-
P.64
suetudinário como fonte primária do direito, isto
porque ele surge imediatamente da sociedade e é a expressão genuína do
sentimento jurídico popular em confronto com o direito imposto posto pela
vontade do grupo dominante (a lei) e aqueles elaborados pelos técnicos (o
chamado direito científico). Poderiamos ver nesta
reabilitação do costume como fonte do direito um aspecto de sua valorização
social que se contrapõe tanto ao jusnaturalismo
abstrato quanto ao rígido positivismo estatalista
predominante em geral entre os juristas.
O segundo momento de reação antijusnaturalista e também antiformalista
é representado por um vário e vasto movimento histórico, iniciado na Europa
continental no final do século XIX e podemos chamá-lo de concepção sociológica
do direito. Surge como efeito da defasagem que se vinha criando entre a lei
escrita nos códigos (o direito válido) e a realidade social que seguiu a
revolução industrial (o direito eficaz). O efeito mais relevante desta nova
concepção se traduz na evocação mais insistente, não tanto do direito
consuetudinário, mas do direito judiciário, isto é, daquele elaborado pelos
juízes no contínuo labor de adaptação, da lei às necessidades concretas
emergentes da sociedade, que deveríam constituir, de
acordo com os seguidores desta corrente, o remédio mais eficaz para acolher as
instâncias do direito que se elabora espontaneamente no variado entrelaçar das
relações sociais e no diversificado entre-choque de
interesses contrapostos. Não podemos seguir aqui as múltiplas manifestações
desta corrente. Limitaremo-nos a recordar o movimento
do direito livre, advindo sobretudo da Alemanha, pela obra de Kantorowicz, que escreveu um manifesto em defesa da
liberdade de criação normativa por parte do juiz (La lotta
per la scienza dei diritto [A Luta pela Ciência do Direito], publicado em 1906
com o pseudônimo de Gnaeus Flavius).
Pode-se enumerar, entre as obras mais notáveis deste movimento, os quatro
volumes de François Gény, Science et téchnique en droit
privé positif (Ciência e
Técnica em Direito Privado Positivo) (1914-1924), onde se contrapõe à técnica
do direito, voltada para o objetivo secundário e subordinado de
P.65
adaptar a regra jurídica às
necessidades práticas da legislação, a ciência jurídica, à qual cabe encontrar,
tendo em vista os dados históricos, ideais, racionais e reais, as regras
jurídicas novas; a obra de Eugene Ehrlich sobre a
lógica dos juristas (Die Juristische Logik de 1925), que é uma das mais documentadas e
intransigentes polêmicas contra o positivismo estatalista
em nome da livre apreciação do direito por parte do juiz e do juristas, os
quais devem procurar as soluções das controvérsias não tanto apegando-se ao
dogma da vontade estatal passivamente aceito, mas imergindo-se no estudo do direito
vivente que a sociedade em contínuo movimento permanentemente produz. A
polêmica contra o rígido estatalismo, acompanhada da
polêmica contra uma jurisprudência predominantemente conceituai, a chamada
jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz),
suscitou como reação uma jurisprudência realista cuja tarefa deveria ser julgar
com base na valoração dos interesses em conflito, chamada, pelo seu principal
expoente Philip Heck, de jurisprudência dos
interesses.
Poderiamos considerar como terceiro momento, o
mais violento e radical da revolta antiformalista, a
concepção realista do direito que logrou êxito na primeira metade do século
passado nos Estados Unidos da América. Não se pode esquecer que os países
anglo-saxões são naturalmente mais inclinados às teorias sociológicas do
direito devido à posição que o direito consuetudinário (common lauu) ocupa em seus sistemas normativos, que não conhecem
as grandes codificações. O pai espiritual destas modernas correntes realistas é
um grande jurista, que por longos anos foi juiz da Corte Suprema, Oliver
Wendell Holmes (1841 - 1935), o primeiro, no exercício mesmo de suas funções de
juiz, a repudiar o tradicionalismo jurídico das cortes, e a introduzir uma
interpretação evolutiva do direito, mais sensível às mudanças da consciência
social. Além disso, a jurisprudência sociológica teve como teórico na América o
mais notável filósofo do direito americano destes últimos cinqüenta
anos, Roscoe Pound, o qual, em uma longa série de
escritos que alcançaram grande ressonância entre os juristas americanos, se
P.66
fez defensor da figura do jurista-socíólogo,
entendendo com esta expressão o jurista que leva em conta, em sua interpretação
e aplicação do direito, os fatos sociais dos quais o direito deriva e que deve
regular. A escola realista, por outro lado, que teve como mais radical defensor
Jerome Frank, vai bem mais adiante dos princípios que se podem extrair de
Holmes e Pound. A tese fundamental por ela sustentada é que não existe um
direito objetivo, isto é, objetivamente dedutível de dados determinados, sejam
estes fornecidos pelos costumes, pela lei ou pelo precedente jurídico: o
direito é contínua criação do juiz, é obra exclusivamente do magistrado no ato
em que decide uma controvérsia. Cai deste modo o tradicional princípio da
certeza jurídica, e de fato, qual pode ser a possibilidade de prever a conseqüência de um comportamento - nisto consiste a certeza
-, se o direito é uma contínua nova criação do juiz? Para Frank, realmente, a
certeza, uma das pilastras dos ordenamentos jurídicos continentais, é um mito,
que deriva de uma espécie de aquiescência infantil do princípio de autoridade
[esta tese foi sustentada em um livro dos anos 30, Law and
Modern Mind (Direito e
Pensamento Moderno)]: um mito a ser derrubado para se
elevar sobre as suas ruínas o direito como contínua e imprevisível criação.
A parte o inaceitável extremismo do
realismo americano, grande foi o mérito das correntes sociológicas no campo do
direito, porque impediram a cristalização da ciência jurídica em uma dogmática
sem ímpeto inovador. Outro, porém, é o discurso que aqui nos interessa sobre a
relação entre validade e eficácia. Pode-se dizer que mediante a acentuação do
momento ativo, evolutivo, social do direito, venha a desaparecer a diferença entre
validade e eficácia no sentido de que só o direito válido seja eficaz, isto é,
efetivamente seguido e aplicado? Não acredito nisso. Para circunscrever e
precisar a discussão, tenhamos em vista o fato de que a crítica das correntes
sociológicas se resolve freqüentemente em uma revisão
das fontes do direito, vale dizer, em uma crítica ao monopólio legal, e na
reabilitação de duas outras fontes diversas da lei, o direito con-
P.67
suetudinário e o direito judiciário (o
juiz legislador). Observemos então como se apresentam a relação entre validade
e eficácia nestas duas fontes:
a) No que concerne ao direito
consuetudinário, foi dito que nele validade
e eficácia coincidem, no sentido que embora se possa imaginar uma lei
que seja válida mas não seja eficaz, não se pode imaginar um costume que seja
válido sem ser eficaz, porque, faltando a eficácia, perde-se também a repetição
constante, uniforme e geral, que é um dos requisitos essenciais para
caracterizar o costume. Mas esta afirmação não é de todo exata: se é justo
dizer que no direito consuetudinário a validade vem sempre acompanhada da
eficácia, a proposição inversa, que a
eficácia seja sempre acompanhada da validade, não é aceitável. Dizer que
um costume se torna válido devido a sua eficácia equivalería
a sustentar que um comportamento se faz jurídico pelo simples fato de ser
constantemente repetido. Nota-se, ao invés disso, que não basta que um
comportamento seja efetivamente seguido pelo grupo social para se tornar um
costume jurídico. O que é necessário além disso? E necessário, precisamente,
que o que se chama “validade”, ou seja, aquele comportamento constante que
constitui o conteúdo do
costume, receba uma forma jurídica,
ou venha a ser acolhido em um determinado sistema jurídico, como comportamento obrigatório,
isto é, cuja violação implica uma sanção. Essa forma jurídica é atribuída ao
direito consuetudinário pela lei, quando o invoca, ou pelo juiz quando ele traz
como matéria de sua decisão um costume, ou pela vontade concorde das partes. Os
juristas dizem que para a formação de um costume jurídico se dá, além da
repetição, também o requisito interno ou psicológico da opinio iuris. Mas para que se forme esta opinio iuris, isto é, a convicção que o comportamento é obrigatório, é
necessário que ele seja qualificado como obrigatório por qualquer norma válida
do sistema e isto implica, em última análise, que a norma
P.68
que o regula não seja apenas eficaz, mas também, naquele sistema, válida.
b) No que concerne ao novo e maior relevo
dado pelas escolas sociológicas à figura do juiz criador do direito, aqui nasce
somente o problema de se poder considerar propriamente direito aquele direito
vivente, ou em formação, aquele direito que nasce espontaneamente da sociedade,
a quem os teóricos da corrente sociológica do direito apelam. Socorre-nos, a
este propósito, a distinção entre fontes de cognição e fontes de
qualificação do direito. O direito vivente é pura e simplesmente um fato ou
uma série de fatos de onde o juiz tira conhecimento das aspirações jurídicas
que vêm se formando na sociedade. Mas para que estas aspirações se tornem
regras jurídicas, é necessário que o juiz as acolha e lhes atribua a autoridade
normativa que incorpora a sua função de órgão capaz de produzir normas
jurídicas. O direito vivente não é ainda direito, isto é, norma ou complexo de
normas do sistema, enquanto seja apenas eficaz. Torna-se tal no momento em que
o juiz, reconhecido como criador do direito, lhe atribui também a validade. Na
realidade, pode-se falar de um juiz criador do direito, propriamente na medida
em que as regras que ele descobre na realidade social não sejam ainda regras
jurídicas, e não o serão até que ele as reconheça e lhes atribua força coativa.
Mesmo as famosas opiniões expressas pelo juiz Holmes, na sua atividade de juiz,
embora surgissem da observação da realidade social, e fossem mais sensíveis ao
chamado direito em formação do que as sentenças de seus colegas, não se
tornaram direito positivo dos Estados Unidos enquanto ele as sustentou na
qualidade de minoria, já que naquele sistema era direito válido somente o
reconhecido pela maioria da Corte. Se o direito vivente pode ser considerado
como fonte de cognição jurídica, apenas o juiz (e com maior razão o legislador)
podem ser considerados como fontes de qualificação.
P.69
Capítulo III
As Proposições Prescritivas
Sumário
16...............................................................
A NORMA COMO PROPOSIÇÃO
19.
CARACTERÍSTICAS DAS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS
20. PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS A
PROPOSIÇÕES DESCRITIVAS?
21. PODE-SE
REDUZIR AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES EXPRESSIVAS?
22.
IMPERATIVOS AUTÔNOMOS E HETERÔNOMOS
23.
IMPERATIVOS CATEGÓRICOS E IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS
O ponto de vista pelo qual nos propomos
a estudar a norma jurídica, neste curso, pode-se dizer formal. É formal no
sentido em que consideraremos a norma jurídica independentemente do seu
conteúdo, ou seja, na sua estrutura. Toda norma, assim como toda proposição,
apresenta problemas estruturais que são formulados e resolvidos sem se atentar
para o fato de que ela tenha este ou aquele conteúdo. Como qualquer outra pro-
P.70
posição, a norma também tem uma estrutura lógico-lingüística
que pode ser preenchida com os mais diversos conteúdos.
Assim como a estrutura do juízo “S é P” vale tanto para a proposição: “Sócrates
é mortal” quanto para a proposição “A baleia é um mamífero”, também a estrutura
da norma “Se é A, deve ser B” vale tanto para a prescrição “Se pisou no
canteiro, deverá pagar multa”, como para a prescrição “Se matou com
premeditação, deverá sofrer a pena de prisão perpétua”. O que faremos objeto de
estudo na seqüência do curso será a norma jurídica na
sua estrutura lógico-lingüística. Frente ao complexo
de normas jurídicas, o nosso problema será o de nos perguntarmos que tipo de
proposições são elas, se são proposições prescritivas, que classes de
proposições prescritivas compreendem, e assim por diante.
Entenda-se que o estudo formal das
normas jurídicas que aqui se desenvolve não exclui absolutamente outros modos
de considerar o direito. Se me proponho a conhecer não qual é a estrutura da
norma jurídica, mas qual é a oportunidade ou a conveniência ou a justiça das
normas jurídicas que compõem um determinado sistema, ou qual é a eficácia
social que certas normas exercem em um determinado ambiente histórico, o objeto
da minha investigação não será mais a forma ou estrutura, ou seja, para usar
uma metáfora, o invólucro, o recipiente, mas o conteúdo, o que o recipiente
contém, isto é, os comportamentos regulados. A norma “É proibido pisar no
canteiro” é, do ponto de vista formal, um imperativo negativo, e não difere da
norma “É proibido matar”. Mas se quero saber quais são os motivos pelos quais
esta norma foi emanada, se estes motivos são aceitáveis, se ela é efetivamente
seguida ou continuamente violada, etc., deverei fazer investigações em um campo
completamente diverso daquele que se tornaria meu objeto de estudo se quisesse
fazer perguntas análogas em torno da proibição de matar.
Advertindo desde o princípio que o
ponto de vista formal não é um modo exclusivo de considerar a norma jurídica,
quero evitar que se confunda o estudo formal da norma jurídica com
P.71
um dos tantos
formalismos que têm adquirido direito de cidadania no campo do saber jurídico,
e contra os quais se acendeu, de modo particularmente vivo, a polêmica em
décadas atrás.
Por “formalismo jurídico” se entende
uma consideração exclusiva do direito enquanto forma. Como a polêmica antiformalista nem sempre distingue um tipo de formalismo
do outro, e disto nasça comumente uma grande confusão, creio que, sob o nome
genérico de “formalismo jurídico” hoje se compreendem pelo menos três teorias
diversas, que têm visões diversas e que requerem, posto que se queira
combatê-las, argumentos diversos. Um primeiro tipo de formalismo no direito é o
que se poderia chamar de formalismo ético, vale dizer, a doutrina segundo a
qual é justo o que é conforme à lei, e como tal repele todo critério de justiça
que esteja acima das leis positivas e com base no qual as mesmas leis positivas
podem ser avaliadas. Esta doutrina pode ser considerada formal, no sentido em
que faz a justiça consistir na lei só pelo fato de que é lei, ou seja, de que é
comando posto pelo poder soberano, e por isso prescinde, para produzir um juízo
de valor, do seu conteúdo. Um segundo tipo de formalismo é o que se poderia
chamar mais precisamente de formalismo jurídico, e compreende a doutrina
segundo a qual a característica do direito não é a de prescrever aquilo que
cada um deve fazer, mas simplesmente o modo em que cada um deve agir se quiser
alcançar os próprios objetivos e, portanto, não cabe ao direito estabelecer o
conteúdo da relação intersubjetiva, mas a forma que ela deve assumir para ter
certas conseqüências. Este tipo de formalismo remonta
à velha definição kantiana do direito, que foi retomada pelas correntes neokantianas, segundo a qual, uma das características da
relação jurídica é que nela não entra em consideração a matéria do arbítrio,
isto é, o fim a que alguém se propõe com o objeto que deseja, mas somente a
forma, enquanto os dois arbítrios trios são considerados como absolutamente
livres.
Finalmente, há um terceiro tipo de
formalismo, que se poderia chamar de formalismo científico porque concerne não
ao modo de definir a justiça (formalismo ético), nem ao modo de
P.72
definir o direito (formalismo jurídico), mas ao modo de conceber
a ciência jurídica e o
trabalho do jurista, a quem é atribuída a tarefa de construir o sistema de
conceitos jurídicos tal como se deduzem das leis positivas, tarefa puramente
declarativa ou recognitiva e não criativa, e de
extrair dedutivamente do sistema assim construído a solução de todos os
possíveis casos controversos.
E inútil dizer que os três tipos de
formalismos não devem ser confundidos porque cuidam de problemas diversos. O
primeiro responde à pergunta: “O que é a justiça?”; o
segundo: “O que é o direito?”; o terceiro: “Como deve comportar-se a ciência
jurídica?”. Um autor pode ser formalista no primeiro sentido e não no segundo e
no terceiro, e assim por diante. E deste modo, a polêmica antiformalista
avessa, digamos, ao formalismo jurídico, não vale para o formalismo ético e
para o formalismo científico. Infelizmente, a maior parte dos autores não faz
qualquer distinção e, muitas vezes, sob o nome genérico de “revolta contra o
formalismo” englobam-se conceitos diversos. Para nós, basta aqui ter posto em
evidência que o ponto de vista formal, do qual partimos, não tem nada a ver com
nenhum dos três formalismos, porque não pretende ser uma teoria exclusiva, nem
da justiça, nem do direito, nem da ciência jurídica, mas é pura e simplesmente
um modo de estudar o fenômeno jurídico na sua complexidade, um modo que não só
não exclui, como exige os demais para que se possa obter um conhecimento
integral da experiência jurídica.
Do ponto de vista formal, que aqui
elegemos, uma norma é uma proposição. Um Código, uma Constituição, são um
conjunto de proposições. Trata-se de saber qual é o status dessas proposições
que compõem um Código, uma Constituição. A tese que sustentamos é que as normas
jurídicas pertencem à categoria geral das proposições prescritivas. Assim, a
nossa investigação se desenvolve por meio de quatro fases: 1) estudo
P.73
das proposições prescritivas e sua distinção dos outros tipos de
proposições; 2) exame e crítica das principais teorias sustentadas sobre a
estrutura formal da norma jurídica; 3) estudo dos elementos específicos da
norma jurídica enquanto prescrição; 4) classificação das prescrições jurídicas.
Por proposição entendemos um conjunto
de palavras que possuem um significado em sua unidade. Sua forma mais comum é o
que na lógica clássica se chama juízo, uma proposição composta de um sujeito e
de um predicado, unidos por uma cópula (S é P). Mas nem toda proposição é um
juízo. Por exemplo: “Olhe!”, “Quantos anos você tem?” são proposições, mas não juízos. Além disso, é necessário
distinguir uma proposição de seu enunciado. Por enunciado entendemos a forma
gramatical e linguística pela qual um determinado significado é expresso, por
isso a mesma proposição pode ter enunciados diversos, e o mesmo enunciado pode
exprimir proposições diversas. Uma mesma proposição pode ser expressa por
enunciados diversos quando se altera a forma gramatical. Por exemplo: “Mário
ama Maria” e “Maria é amada por Mário”, o significado é idêntico e o que muda é
apenas a expressão; ou ainda na passagem do mesmo significado de uma expressão
numa língua para o seu equivalente em outra. Por exemplo: “Chove”; “Piove”; “11 pleut”; “lt’s raining”; “Es regnet” são enunciados diversos da mesma proposição. Ao contrário,
com o mesmo enunciado pode-se exprimir, em contextos e circunstâncias
variáveis, proposições diversas. Por exemplo, quando eu digo, voltando-me para
um amigo com quem estou passeando: “Gostaria de beber uma limonada”, pretendo
exprimir um desejo meu e além disso dar ao meu amigo uma informação sobre o meu
estado de espírito; se dirijo as mesmas palavras para uma pessoa que está atrás
do balcão de um bar, não pretendo expressar um desejo nem dar-lhe
uma informação, mas impor-lhe uma determinada conduta. (Enquanto no primeiro
uso da expressão é previsível, por parte do amigo, a resposta: “Eu também”; a
mesma resposta por parte do segundo interlocutor seria quase uma ofensa).
P.74
Quando defino uma proposição como um
conjunto de palavras que possuem um significado em sua unidade, entendo excluir
do uso deste termo conjuntos de palavras sem significado. Um conjunto de
palavras pode não ter um significado em sua unidade, embora tenham um
significado as palavras que o componham, como, por exemplo: “César é um número
primo”; “o triângulo é democrático”. Ou ainda podem não possuir um significado
como unidade, porque as palavras mesmas que o compõem não têm, tomadas
singularmente, um significado, como por exemplo: “Pape Satan,
pape Satan aleppe”. Um
conjunto de palavras sem significado não pode ser confundido com uma proposição
falsa. Uma proposição falsa é sempre uma proposição porque tem um significado.
Por exemplo: “César morreu nos idos de abril”; “o triângulo tem quatro lados”.
E falsa porque, se submetida ao critério de verdade que dispomos para julgá-la,
demonstra-se que não possui os requisitos solicitados para afirmar-se como
verdadeira. Se é uma proposição sintética, o critério para julgá-la é a maior
ou menor correspondência aos fatos; se é uma proposição analítica, o critério é
a coerência ou validade formal. Seja como for, para que uma proposição possa
ser verificada ou falsificada é necessário que tenha um significado.
Quando dizemos que uma norma jurídica é
uma proposição, queremos dizer que é um conjunto de palavras que têm um
significado. Com base no que dissemos acima, a mesma proposição normativa pode
ser formulada com enunciados diversos. O que interessa ao jurista, quando
interpreta uma lei, é o seu significado. Como uma proposição em geral pode ter
um significado, mas ser falsa, também uma proposição normativa pode ter um
significado e ser - não digamos falsa - mas, pelas razões que veremos a seguir,
inválida ou injusta. Também para as proposições normativas, o critério de
significância pelo qual se distinguem as proposições propriamente ditas de um
conjunto de palavras sem significados se diferencia do critério de verdade ou
validade, pelo qual se distinguem proposições verdadeiras e válidas de
proposições falsas ou inválidas.
P.75
Há vários tipos de proposições. Pode-se
distingui-los com base em dois critérios: a forma gramatical e a função[nota 2]
Com base na forma gramatical, as proposições se distinguem principalmente em declarativas, interrogativas, imperativas e
exclamativas. Com respeito às funções, se distinguem em asserções, perguntas, comandos, exclamações.
Exemplos: “Chove” (proposição formalmente declarativa e com função de
asserção); “Chove?” (proposição
formalmente interrogativa e com função de pergunta); “Pegue o guarda-chuva”
(proposição formalmente imperativa e com função de comando); “Como você está
molhado!” (proposição formalmente exclamativa com
função de exclamação). Freqüentemente - como resulta
dos exemplos dados - forma gramatical e função se correspondem segundo a ordem
acima exposta: um comando vem habitualmente expresso na forma imperativa. Mas
os dois critérios se distinguem, porque o primeiro diz respeito ao modo com o
qual a proposição é expressa, e o segundo ao fim a que se propõe alcançar
aquele que a pronuncia. E que os dois critérios sejam distintos, pode-se
mostrar pelo fato de que a mesma função pode ser expressa com formas diferentes
e, inversamente, com a mesma forma gramatical pode-se exprimir funções
diversas.
Entre todos os tipos de proposições,
nos interessam de modo particular os comandos,
ou seja, aquelas proposições cuja função é, como veremos melhor em seguida,
influir sobre o comportamento alheio para modificá-lo, e que por ora chamaremos
genericamente de “comandos”, ainda que seja necessário introduzir distinções
ulteriores. Pois bem, um comando, ou uma proposição que se distingue por uma
função particular, pode ser expresso, segundo as circunstâncias e os contextos
em todas as formas gramaticais mencionadas acima.
P.76
Certamente, a forma mais comum é a
imperativa: “Estude!” (não se
afirma, com isto, que a forma imperativa corresponda
sempre ao modo verbal imperativo; há outras formas gramaticais imperativas como
aquela constituída pelo verbo auxiliar “dever”: “Você deve estudar”). Mas um
comando é às vezes expresso na forma declarativa, como ocorrería
maioria dos artigos de lei que, mesmo tendo uma indubitável função imperativa,
são quase sempre expressos na forma declarativa. Quando o art. 566 do Código
Civil italiano diz: “Ao pai e à mãe sucedem os filhos legítimos em partes
iguais”,[nota 3]
a intenção de quem pronunciou esta fórmula não é a de dar uma informação, mas a
de impor uma série de comportamentos: trata-se manifestamente de uma proposição
declarativa com função de comando. Assim, quando um pai dirigindo-se ao filho
lhe diz com ar ameaçador: “Você não acha que esta tarefa está cheia de erros?”, a proposição é formalmente interrogativa, mas a
função que o pronunciante lhe atribui é de induzir o destinatário a corrigir a
tarefa, e por isso, em última análise, não obstante a forma interrogativa, a
proposição é um comando, ainda que expresso como uma interrogação. Muitas das
“interrogações” que se fazem no Parlamento, segundo um procedimento
estabelecido, são proposições, ou séries de proposições, cujo fim principal não
é tanto aquele de receber informações (o interrogante comumente sabe com
antecedência o que o governo responderá ou não), quanto o de induzir o governo
a modificar o próprio comportamento: também aqui, atrás da forma interrogativa,
aparece, em sentido amplo, a função preceptiva. Por fim, passando em frente de
um portão de uma casa leio um cartaz assim escrito: “Cuidado com o cão!”. É uma exclamação? Se a proposição tivesse a função
exclamativa, significaria que os proprietários da casa quiseram com aquela
frase exprimir publicamente o seu estado de ânimo sobre a periculosidade do seu
cão. Mas não é assim: lendo o cartaz, compreendo que devo passar longe. Mas
isto quer dizer que aquela frase,
P.77
na sua aparência de
exclamação, tem função de comando, ou pelo menos de recomendação, ou seja, não
exprime sentimentos, mas tende a influir no comportamento alheio. Há um sinal
nas estradas que todos conhecemos, composto por uma espécie de ponto
exclamativo: inútil dizê-lo, este sinal não é expressão de um estado de
espírito, mas um convite à prudência.
Assim como a mesma função pode ser
expressa através de formas gramaticais diversas, também a mesma forma
gramatical pode exprimir diversas funções. Em um tratado de geografia pode
ocorrer que eu leia a seguinte frase: “A Itália se divide em regiões,
províncias e municípios”. Ninguém duvida que esta proposição declarativa é, em
relação à função, uma asserção, ou seja, uma proposição cujo fim é dar uma
informação. Na Constituição da República italiana leio o art. 114: “A República
se divide em regiões, províncias e municípios”. A proposição é, em relação à
forma gramatical, idêntica àquela que eu li no tratado de geografia. Mas o
significado é também o mesmo? O constituinte não se propôs absolutamente,
editando este artigo, a dar aos cidadãos italianos uma informação geográfica,
mas a estabelecer uma diretriz para o legislador: a frase, em suma, não é uma
asserção, mas uma norma.
Julgo que seja possível distinguir três
funções fundamentais da linguagem: a função descritiva, a expressiva
e a prescritiva. Estas três funções dão origem a três tipos de
linguagens bem diferenciadas mesmo que nunca as encontremos em estado puro na
realidade, quais sejam a linguagem científica, a poética e a normativa.
Interessa-nos de modo particular a função prescritiva: um conjunto de leis ou
regulamentos, um Código, uma Constituição, constituem os mais interessantes
exemplos de linguagem normativa, assim como um tratado de física ou de biologia
constituem exemplos característicos da linguagem científica, e um poema ou uma
canção, exemplos representativos
P.78
da linguagem poética.
Tais exemplos já elucidam a distinção. Sem a pretensão de dar definições rigorosase exaustivas, aqui nos basta dizer que a função
descritiva, própria da linguagem científica, consiste em dar informações, em
comunicar aos outros certas notícias, na transmissão do saber, em suma, em fazer conhecer; a função expressiva,
própria da linguagem poética, consiste em evidenciar certos sentimentos e em
tentar evocá-los, de modo a fazer
participar os outros de uma certa situação sentimental; a função
prescritiva, própria da linguagem normativa, consiste em dar comandos,
conselhos, recomendações, advertências, influenciar o comportamento alheio e
modificá-lo, em suma, no fazer fazer.
Embora seja difícil encontrar estes
tipos de linguagem no estado puro, deve-se admitir, porém, que a linguagem
científica tende a despir-se de toda função prescritiva e expressiva, onde
nasce o ideal científico que, segundo Espinosa, não chora e não ri. e é indiferente às conseqüências
práticas que possam derivar de suas próprias descobertas. Uma poesia quanto
mais se libera da função informativa mais genuína se torna (para obter dados
sobre Zacinto lerei um tratado de geografia e não um soneto de Foscolo), e da prescritiva (uma poesia que se proponha a
promover uma ação é uma poesia didascálica ou
oratória, e, conforme os cânones bem conhecidos da estética da
intuição-expressão, uma não-poesia). Um corpo de leis
tende a eliminar tudo o que não é preceito, e portanto
a característica de um moderno Código em confronto com as leis de uma
civilização menos desenvolvida está propriamente na eliminação de todos os
elementos descritivos e evocativos que com frequência aparecem misturados aos
prescritivos. Há, apesar disso, tipos de discurso cuja característica consiste
propriamente em combinar dois ou mais tipos de linguagem: um discurso celebrativo, uma comemoração, é uma combinação de
proposições descritivas e expressivas (trata-se de dar notícias sobre a vida do
homenageado e ao mesmo tempo suscitar certos sentimentos de admiração pelas
obras realizadas, indignação pelas injustiças sofridas, dor pela morte precoce,
etc);
P.79
um sermão é uma
combinação de proposições expressivas e prescritivas (trata-se de suscitar
certos sentimentos - piedade pelos mortos, compaixão pelos aflitos, etc. - e de
persuadir a cumprir certas obras); o pronunciamento de um advogado de defesa é
quase sempre uma combinação de informações (por exemplo, a figura moral e
intelectual do imputado), de evocação de sentimentos (a chamada “moção de
afetos”), e de prescrições (o pedido de absolvição).
Que uma prescrição venha acompanhada de
outros tipos de proposições, não é difícil de explicar. Para que a pessoa a
quem se dirige a prescrição resolva agir nem sempre basta que escute o
pronunciamento do comando puro e simples: é necessário, às vezes, que ela
conheça certos fatos e deseje certas conseqüências.
Para que tenha conhecimento destes fatos que a induzem a agir, é necessário
dar-lhe informações; para que deseje certas conseqüências,
é preciso suscitar-lhe um certo estado de espírito; logo, para que venha a
conhecer certos fatos e desejar certas conseqüências,
é necessário informá-la e suscitar-lhe um determinado estado de espírito.
Assim, quando digo: “Pegue o guarda-chuva” e acrescento: “Chove”, uno a
prescrição à informação. Se digo, ao invés, “Dê uma esmola para aquele
pobrezinho” e continuo: “Como é triste a miséria!”,
uno a prescrição à evocação de um sentimento. Dizendo, enfim: “Coma aquilo que
está no prato”, e em seguida: “E leite”, e depois, como se não bastasse: “Se
você soubesse como é bom!”, uno a prescrição à
informação e à evocação de um estado de espírito favorável ao cumprimento da
ação. Até mesmo o legislador pode recorrer a discursos descritivos e evocativos
para reforçar os seus preceitos: pode ser muito útil para fazer-se cumprir uma
lei fornecer as mais amplas informações sobre as vantagens que se pode obter
com isso, ou então suscitar com evocações passionais, por exemplo, o amor à
pátria, estados de espírito favoráveis à obediência. A linguagem prescritiva é
a que tem maiores pretensões, porque tende a modificar o comportamento alheio:
nada estranho que se faça valer das outras duas para exercitar a sua própria
função.
P.80
Um dos problemas em que estiveram
majoritariamente empenhados os lógicos nos últimos tempos é a distinção entre proposições
descritivas e prescritivas. E um assunto sobre o qual foram escritos nestes
anos centenas de livros e artigos. A obra que teve mais sucesso neste campo, e
que está geralmente no centro das discussões, é a de R. M. Hare, The Language of Morais [A Linguagem
da Moral (Oxford, Clarendon Press, 1952)], à qual remeto o leitor de uma vez por todas. Na
Itália, o primeiro estudo sobre o assunto é o de U. Scarpelli,
// problema delia definizione
e il conceito di diritto [O Problema
da Definição e o Conceito de Direito (Miláo, Nuvoletti, 1955)], cujo primeiro
capítulo é dedicado ao tema “Linguagem prescritiva e linguagem descritiva”.
Pode-se resumir as características
diferenciais das proposições prescritivas e descritivas em três pontos: a) em
relação à função; b) em relação
ao comportamento do destinatário; c)
em relação ao critério de valoração.
Pelo que se refere à função, já dissemos o essencial. Com
a descrição queremos informar outrem; com a prescrição, modificar seu
comportamento. Não significa que uma informação também não influa sobre o
comportamento alheio. Quando em uma cidade estrangeira pergunto a indicação de
uma rua, a resposta me induz a andar em uma direção ao invés de em outra. Mas a
influência da informação sobre o meu comportamento é indireta, enquanto a
influência da prescrição é direta. A fim de que a informação: “Via Roma é a
quarta à direita” tenha uma influência sobre o meu comportamento, deve
inserir-se em um contexto mais amplo, de que faça parte a prescrição: “Devo ir
à via Roma”. Toda modificação voluntária do comportamento pressupõe o momento
prescritivo.
Quanto ao destinatário, foi precisamente Hare quem colocou em relevo que,
frente a uma proposição descritiva, pode-se falar em consentimento do
destinatário quando este crê
que a
P.81
proposição é verdadeira. Em uma proposição prescritiva, ao contrário, o
consentimento do destinatário se manifesta pelo fato de que a executa. Em outras palavras, pode-se
dizer que a prova da aceitação de uma informação é a crença (um comportamento mental), a prova da aceitação de uma
prescrição é a execução (um
comportamento prático, ainda que a distinção entre comportamento mental e
prático seja muito duvidosa e aqui se faça apenas uma primeira aproximação).
Diz Hare: “Podemos caracterizar provisoriamente a diferença entre asserções e
comandos, dizendo que, enquanto o consentir sinceramente nas primeiras implica
em crer em alguma coisa, o
consentir sinceramente nos segundos implica em fazer alguma coisa” (op. cit.,
p. 20).
O caráter distintivo que parece
decisivo é o que se refere ao critério
de valoração. Sobre as proposições descritivas, pode-se dizer que são verdadeiras ou falsas-, sobre as prescritivas, não.
As proposições prescritivas não são nem verdadeiras nem falsas, no sentido em
que não estão sujeitas à valoração de verdade e falsidade. Há sentido em
perguntar se a asserção “Ulan Bator é a capital da Mongólia” é verdadeira ou
falsa; não há sentido em perguntar se o preceito “Pede-se para limpar os
sapatos antes de entrar” é verdadeiro ou falso. Verdade e falsidade não são
atributos das proposições prescritivas, mas somente das descritivas. Os
critérios de valoração com base em que aceitamos ou rejeitamos uma prescrição
são outros. A propósito das normas jurídicas, falamos da valoração segundo a justiça e a injustiça (e segundo a validade
e a invalidade). Então diremos
que, enquanto não tem sentido perguntar-se se um preceito é verdadeiro ou
falso, tem sentido perguntar-se se é justo
ou injusto (oportuno ou
inoportuno, conveniente ou inconveniente) ou válido ou inválido.
A diferença entre os predicados
aplicáveis às proposições descritivas e os aplicáveis às prescritivas
deriva da diferença de critérios com base em que valoramos umas e outras
para dar-lhes o nosso consentimento. O critério com que valoramos as primeiras
para aceitá-las ou rejeitá-las é a correspondência com
P.82
os fatos (critério de verificação empírica), ou com os
postulados auto-evidentes (critério de verificação racional), segundo se
trate de proposições sintéticas ou analíticas. Chamamos de empiricamente
verdadeiras as proposições cujo significado é verificado por via empírica, e
racionalmente verdadeiras as que são verificadas por via racional. O critério
com que valoramos as segundas para aceitá-las ou rejeitá-las é a
correspondência com os valores últimos (critério de justificação material) ou a derivação das fontes primárias de
produção normativa (critério de justificação
formal). Chamamos de justas
(ou convenientes) as primeiras, de válidas
as segundas. Observe-se que para ambos os tipos de proposições valem dois
critérios, um material, o outro formal, mas que não se correspondem entre si.
Se tanto, pode-se visualizar uma correspondência entre o segundo critério de
verificação (uma proposição é verdadeira quando deduzida das proposições
primitivas formuladas como verdadeiras) e o primeiro critério de justificação
(uma norma é justa quando é deduzida de uma norma superior formulada como
justa). O primeiro critério de verificação das proposições descritivas não
encontra correspondência com a valoração das prescrições (seria possível
encontrar uma correspondência com o critério da eficácia, precedentemente
ilustrado, mas este não é de forma alguma um critério decisivo para a aceitação
ou a rejeição das normas). O segundo critério de justificação não encontra
correspondência com a valoração das proposições descritivas (seria possível
fazê-lo corresponder ao que se chama de valoração segundo o princípio de
autoridade, mas esta é uma valoração tão acolhida no mundo normativo quanto
desacreditada no domínio descritivo).
Em última análise, a diferença entre a
verificação das proposições descritivas e a justificação das proposições
prescritivas está na maior objetividade da primeira em relação à segunda;
enquanto a primeira tem como último ponto de referência o que é observável e
pertence ao domínio da percepção, a segunda encontra o seu último ponto de
referência no que é desejado, apetitoso, objeto de tendência ou inclinação, e
pertence
P.83
ao domínio da emoção ou
do sentimento. Pode-se dizer, para marcar esta diferença, que a verdade de uma
proposição científica pode ser demonstrada, enquanto sobre a justiça de uma
norma, pode-se somente procurar persuadir os outros (daí a diferença, que vem
se firmando, entre lógica, ou teoria da demonstração, e retórica, ou teoria da
persuasão).
Julgamos que a diferença entre os dois
tipos de proposições, examinadas no tópico precedente, seja irredutível.
Trata-se de dois tipos de proposições que possuem um status diverso. Mas, não
desejamos passar em silêncio sobre a mais séria tentativa de redução até agora
realizada.[nota 4]
A tese reducionista é formulada do
seguinte modo: uma prescrição, por exemplo, “Faça X” pode ser sempre reduzida a
uma proposição alternativa do tipo: “Ou faça X ou lhe sucede Y”, onde Y indica
uma conseqüência desagradável. A proposição
alternativa, sustenta-se, não é mais uma prescrição, mas uma descrição, uma
proposição que descreve o que sucederá, o que tanto é verdade que é possível
dizer se ela é verdadeira ou falsa: verdadeira quando Y se verifica, falsa
quando Y não se verifica. E claro que esta redução
repousa sobre o pressuposto de que ordenar implica sempre a ameaça de uma
sanção; em outras palavras, a força do comando, o que o torna um conjunto de
palavras significantes cuja função é modificar o comportamento alheio, reside
nas conseqüências desagradáveis que o destinatário
deve esperar de sua inexecução. Se eu digo ao estudante da primeira carteira:
“Feche a porta”, esta minha proposição é um comando apenas se o estudante
estiver
P.84
convencido de que, não o executando, eu possa repreendê-lo; ou pior, prejudicá-lo
com um mau juízo de conduta. Se, ao invés, o estudante estivesse convicto de
que, não seguindo o comando, não lhe sucedería
propriamente nada, aquelas três palavras por mim pronunciadas, embora estando
expressas na forma imperativa, não passariam de um flatus voeis [vozes aovento], ou então de
uma mera manifestação do meu estado de espírito. Não há dúvida de que a tese é
sugestiva; não obstante, creio não poder aceitá-la,
especialmente, por três considerações:
1. Que todo comando seja caracterizado pela sanção é
uma afirmação dificilmente confirmável por fatos; poderia talvez ser verdadeiro
para os comandos jurídicos (como veremos em seguida), mas não se consegue
perceber como pode ser sustentado para toda forma de comando. Hare, que não
aceita a tese da redução, para dar um exemplo de comando sem conseqüência, propõe o seguinte: “Diga a seu pai que eu lhe
telefonei”. Certamente trata-se de uma prescrição, porque com esta frase o
locutor pretende fazer com que uma outra pessoa faça alguma coisa. Mas se esta
pessoa não a executa, o que sucede? Tentemos colocar esta proposição sob forma
alternativa e convenhamos que venha a faltar a segunda parte: “Ou diga a seu
pai que eu lhe telefonei, ou então..” Ou então o quê?
Muito em geral, parece que por trás da tese da redução haja a convicção de que
a única razão pela qual se segue um comando é o temor da sanção, e portanto a função de ordenar é realizada somente mediante
a ameaça. Mas, trata-se manifestamente de uma falsa generalização. Não quero empenharme aqui na discussão se há imperativos
incondicionais ou categóricos, isto é, imperativos que são seguidos apenas
porque são imperativos, mesmo se sobre a existência de tais imperativos Kant
funde a autonomia da lei moral, que se distingue de todas as outras leis pelo
fato de ser obedecida por si mesma (o
dever pelo dever), e não devido à vantagem ou desvantagem que delas se
possa tirar (o dever por um fim externo). Mas, prescindindo totalmente da
teoria kantiana da moral, e contentando-se com observações no campo da
experiência co-
P.85
mum, notamos que há comandos que são
seguidos unicamente devido ao prestígio, a ascendência ou autoridade das
pessoas que ordenam, e assim, através de uma postura que não é de temor, mas de
estima ou respeito pela autoridade (é o caso em que a ordem do chefe é
obedecida não porque ele se coloque em posição de infligir uma pena, mas porque
é o chefe). Em todos esses casos não há alternativa, e
portanto, a redução da proposição prescritiva à proposição alternativa é
impossível.
2. De qualquer forma, este primeiro argumento não é
decisivo. Podemos mesmo admitir que haja verdadeira e propriamente um comando
(e não apenas uma proposição que tem a forma gramatical de comando, mas não
cumpre a função), unicamente onde a ausência de execução comporta conseqüências desagradáveis, e que
portanto se possa admitir sempre que uma prescrição se converta em uma
alternativa. Mas, deste modo, foi realmente dada uma resposta satisfatória ao
problema de reduzir a prescrição a uma descrição? Não creio. A segunda parte da
alternativa: “....ou sucede Y” não se refere a um fato
qualquer, mas a um fato desagradável para o destinatário do comando. Ora,
“desagradável” é um termo não descritivo, mas de valor, isto é, não indica uma
qualidade objetiva, observável, do fato, mas a atitude que se assume diante
daquele fato, que neste caso é uma atitude de condenação ou de recusa, ou seja,
é um termo que tem um significado não descritivo e que não é redutível a termos
descritivos, mas em última análise, como todo termo de valor, tem um
significado prescritivo. Quando, de fato, eu julgo uma coisa desagradável, nada
digo sobre a qualidade da coisa; digo simplesmente que esta coisa deve ser
evitada, isto é, formulo um convite ou uma recomendação para evitá-la; em
outras palavras, pretendo influenciar o comportamento dos outros em um certo
sentido. Mas então, se a segunda parte da alternativa é constituída de um termo
de valor, a função prescritiva expulsa pela porta retorna pela janela, no
sentido em que o estímulo para modificar o comportamento não será mais dado
pelo comando considerado em si mesmo, porém pelo juízo de valor sobre a conse-
P.86
qüência que dele decorrería
em caso de violação, e portanto, a função prescritiva é só mascarada, não eliminada,
reenviada do comando para a conseqüência do comando,
mas não suprimida. Imaginemos que a segunda parte da alternativa contenha um
termo não de valor, mas descritivo, por exemplo: “Ou feche a porta ou choverá”
(supondo-se que o fato de chover seja indiferente ao interlocutor), e já fica
claro que esta proposição não pode ser considerada como a resolução em termos
de alternativas de um comando. E não pode ser considerada como a resolução de
um verdadeiro comando, porque falta à segunda parte um juízo de valor que
realize a função prescritiva própria do comando.
3. Há, enfim, um terceiro argumento que me parece decisivo. A conseqüência que é atribuída à inexecução de um comando não
é um efeito naturalmente ligado à ação contrária à lei, mas é uma conseqüência que é atribuída a esta ação pela mesma pessoa
que colocou o comando. Como veremos melhor em seguida, aqui, seguindo a
terminologia usada por Kelsen, digamos que a conseqüência
não está para o ilícito em relação de causalidade, mas de imputação. O imperativo:
“Feche a porta”, não se reduz à alternativa: “Ou feche a porta ou pegará um
resfriado”, mas a esta outra alternativa: “Ou feche a porta ou será punido”.
Ora, no que importa este tipo de conseqüência?
Importa que, no caso de violação, intervém um novo comando e correlativamente
uma nova obrigação, vale dizer: o comando para quem deve executar a punição e a
obrigação, de quem recebe este comando, de segui-lo. Não interessa se a pessoa
que deve executar a punição é a mesma que formulou o comando. O que importa
notar é que a conseqüência da transgressão põe em
ação outro imperativo, o que implica que o imperativo excluído da primeira
parte do comando, se encontra, embora de modo implícito, na segunda. Um comando
como: “Você não deve roubar” transforma-se na alternativa: “Ou você não rouba
ou o juiz o punirá”.
Estas considerações nos convidam a
concluir que a tentativa de redução de um comando a uma proposição descritiva
P.87
mediante o expediente da alternativa é uma solução irreal. A alternativa não tem
por si mesma a forma de uma proposição descritiva: tem uma forma na qual se
pode exprimir tanto uma proposição descritiva quanto uma prescritiva, conforme
a preenchamos com termos descritivos ou com termos de valor (que desempenhem
função prescritiva), ou ainda com outras prescrições.
Outra tentativa de redução das
proposições prescritivas, porém, em nossa opinião, também não convincente, é a
que consiste em afirmar que as proposições prescritivas não passam de uma
formulação de proposições expressivas. Esta tese é formulada deste modo, dizer:
“Você deve fazer X” ou “Faça X”, eqüivale a dizer:
“Eu desejo (ou eu gostaria, eu quero, etc.) que você faça X”. O comando seria
redutível, em última análise, à expressão de um estado de espírito e consistiría na comunicação desse estado de espírito a
outrem.
Tampouco esta redução nos parece
convincente, e para mostrar a nossa perplexidade, aduzimos, também aqui, três
argumentos:
1. Não há dúvida que eu posso formular um comando na forma de uma expressão
de desejo ou de vontade. Quando digo, por exemplo, a meu filho: “Desejo (ou
quero) que você faça a lição”, a minha intenção não é suscitar nele igual
desejo, mas fazê-lo executar aquela determinada ação. No entanto, como dissemos
várias vezes, o que permite distinguir os diversos tipos de proposições não é a
forma em que são expressas, mas a sua funcionalidade. Ora, em relação à
funcionalidade, permanece sempre insuperável a diferença entre fazer alguém
participar de um estado de espírito e fazê-lo cumprir uma determinada ação.
Pode-se dizer, além disso, que a evocação de
P.88
um estado de espírito é
preparatória ao cumprimento de uma ação, ou, mais genericamente, à modificação
de um comportamento. Mas também é preparatória da ação, como já vimos, uma
informação sobre as circunstâncias e conseqüências da
ação que se deseja ser cumprida.
2.
Uma segunda consideração, e mais
decisiva, é a seguinte: um comando é tal, em função
do resultado que consegue, independentemente do sentimento que evoca na pessoa
do destinatário. Não é inteiramente indispensável que o destinatário execute o
comando depois de ter participado do estado de espírito de quem o tenha
enunciado. Um comando permanece como tal, ainda se o destinatário o executar com um estado de espírito diferente daquele de
quem comanda. O estado de espírito do pai que manda o filho estudar é
determinado pelo valor que ele atribui ao estudo para sua formação cultural ou
para a obtenção de um título de estudo útil. O filho que o obedece pode, ao
invés, estar determinado a cumprir o comando unicamente pela sujeição aos
confrontos da autoridade paterna ou pelo temor de um castigo. Neste caso, o
comando desenvolve a sua função independentemente da participação do sujeito
ativo e do sujeito passivo na valoração. Isto se nota habitualmente no mundo do
direito, onde a relação entre o legislador e os cidadãos não é necessariamente
de participação a uma igual valoração da oportunidade ou da justiça da lei: o legislador,
ao estabelecer uma lei, pode ter uma valoração diferente daquela que tem o
cidadão que a obedece. Mas a lei é o que é, pelo fato de realizar função que
lhe é própria, de exercer uma influência sobre o comportamento dos cidadãos. O
que importa à lei para que seja um comando não é a transmissão de certas
valorações e, portanto, de certos sentimentos que são a origem dessas
valorações, mas que seja executada quaisquer que forem as valorações que
determinem a execução. Pode muito bem acontecer que dois cidadãos cumpram a
mesma lei por razões diferentes. É claro, neste caso, que a lei exerceu a sua
função prescritiva sem ter desenvolvido ainda a função de proposição
expressiva.
P.89
3.
Finalmente, pode-se acrescentar a
consideração de que uma lei dura no tempo e, como dizem os juristas, no decurso
da sua existência ela se afasta da vontade do legislador, e continua a ter sua
função de comando, independentemente das valorações que a fizeram surgir. Estas
valorações podem até desaparecer; não obstante, a lei continua a ser uma lei e
a determinar o comportamento dos cidadãos. Neste caso, seria muito difícil
dizer qual a valoração que a lei exprime. Não exprime claramente nenhuma. No
entanto, desde que seja obedecida, é um comando.
Com as considerações precedentes
procuramos mostrar a especificidade da categoria das proposições prescritivas
em confronto com as duas outras categorias de proposições, descritivas e
expressivas. Agora devemos tentar precisar melhor seu caráter, distinguindo
tipos diversos de prescrições. A categoria das prescrições é vastíssima:
compreende tanto as regras morais quanto as regras da gramática, tanto as
normas jurídicas quanto as prescrições de um médico. Aqui ilustramos três
critérios fundamentais de distinção: 1) com respeito à relação entre sujeito
ativo e passivo da prescrição (tópico 22); 2) com respeito à forma (tópico 23);
3) com respeito à força obrigante (tópicos 24 e 25). Não negamos, no entanto,
que existam outros. Estes três critérios de distinção nos interessam porque
eles possuem particular relevância no estudo das normas jurídicas.
Com respeito à relação entre sujeito
ativo e passivo, distinguem-se os imperativos autônomos dos heterônomos. Diz-se
autônomos aqueles imperativos nos quais uma mesma pessoa é quem formula e quem
executa a norma. Diz-se heterônomos aqueles nos quais quem formula a norma e
quem a executa são pessoas diversas. Esta distinção é historicamente importante
porque foi introduzida por Kant (no Fundamento da Me-
P.90
tafísica dos Costumes) para caracterizar os
imperativos morais em confronto com todos os outros imperativos. Para Kant, os
imperativos morais, e só os imperativos morais, são autônomos. São autônomos
porque a moral consiste em comandos que o homem, enquanto ser racional, dá a si
mesmo e não os recebe de nenhuma outra autoridade que não seja a própria razão.
Quando o homem, ao invés de obedecer à legislação da razão, obedece aos
instintos, às paixões, aos iríteresses, segue
imperativos que o desviam do aperfeiçoamento de si próprio: o seu comportamento
consiste, nestes casos, na adesão a princípios que estão fora dele e, enquanto
tal, não é mais um comportamento moral. Com as próprias palavras de Kant: “A
autonomia da vontade é a qualidade que possui a vontade de ser lei de si
mesma”; e a antítese: “Quando a vontade procura a lei que deve determiná-la em
lugar distinto ao da inclinação de suas máximas de instituir como sua uma
legislação universal, quando, por consequência, ultrapassando a si mesma, procura
esta lei na qualidade de qualquer de seus objetos, disso resulta sempre uma heteronomia. A vontade não dá então a lei a si mesma; é o
objeto, ao invés, graças as suas relações com ela, que lhe dá a lei”.[nota 5]
A distinção entre imperativos autônomos
e heterônomos tem importância para o estudo do direito, porque constituiu um
dos tantos critérios com os quais se desejou distinguir a moral do direito.
Segundo Kant, a moral se resolve sempre em imperativos autônomos e o direito em
imperativos heterônomos, visto que o legislador moral é interno e o jurídico é
externo. Em outras palavras, esta distinção pretende sugerir que quando nos
comportamos moralmente, não obedecemos a ninguém além de a nós mesmos; quando,
ao contrário, agimos juridicamente, obedecemos a leis que nos são impostas por
outros.
Aqui, nós não discutimos a distinção.
Limitamo-nos a levantar alguma dúvida de que ela possa ser utilizada para dis-
P.91
tinguir a moral do direito, ou, de qualquer
forma, para identificar o direito com as normas heterônomas. Se prescindimos do
modo que Kant dispôs o problema da moralidade, devemos convir que há sistemas
morais fundados na heteronomia. Uma moral religiosa,
por exemplo, que funda os preceitos morais na vontade de um ser supremo, é uma
moral heterônoma, sem por isso confundir-se com um sistema jurídico. Os dez
mandamentos e as prescrições que deles podem derivar fundam um sistema moral
heterônomo, mas não chegam a ser, por si mesmos, um ordenamento jurídico. E
assim, se considerarmos um sistema moral oposto ao fundado sobre a vontade
divina, por exemplo, um sistema moral inspirado em uma filosofia positivista,
para o qual a moral é o complexo de normas sociais originadas das relações de
convivência entre os homens no curso de sua história, e formando aquilo que se
chama ethos de um povo, ainda neste caso, nos
encontramos frente a uma moral heterônoma, que nem por isso se converte
imediatamente em um sistema jurídico.
Por outro lado, não se afirmou que os
imperativos autônomos não podem ser encontrados também no campo do direito: nem
o direito, somente por este fato, se confunde com a moral. O conceito de
autonomia é utilizado, no sentido próprio de normas ou complexo de normas nas
quais o legislador e o executor se identificam, tanto no direito privado,
quanto no direito público. No direito privado, fala-se em esfera da autonomia
privada para indicar a regulamentação de comportamentos que os cidadãos dão a
si mesmos, independentemente do poder público. Podemos entender um contrato
como uma norma autônoma, no sentido que é uma regra de conduta que deriva da
mesma vontade das pessoas que se submetem a ela. Em um contrato, aqueles que
estabelecem as regras e aqueles que devem segui-las são as mesmas pessoas. O
mesmo póde-se dizer de um tratado internacional, que
dá origem a regras de comportamento que valem apenas para os Estados que
participaram da estipulação do tratado. No campo do direito público, o Estado
moderno tende para o ideal do Estado democrático. E o
P.92
que é o Estado democrático senão o Estado fundado sobre o princípio da
autonomia, isto é, sobre o princípio de que as leis, que devem ser seguidas
pelos cidadãos, devem ser elaboradas por esses mesmos cidadãos? Rousseau, o
teórico do Estado democrático moderno, define de maneira bastante clara o
princípio inspirador da democracia em termos de autonomia, quando diz (com uma
fórmula que inspirou o próprio Kant): “A liberdade consiste na obediência à lei
que cada um se prescreveu” (Do Contrato Social, capítulo VIII). Hoje, podemos
ler em um dos tratados mais difundidos de teoria do Estado, o de Kelsen, a
distinção entre dois tipos de regimes contrapostos, o democrático e o
autocrático, fundada na distinção entre autonomia, que é a característica do
regime democrático, e heteronomia, a característica
do regime aristocrático. Entende-se que um Estado com uma legislação
perfeitamente autônoma é um ideallimite, realizável
somente onde a democracia direta, ou seja, a democracia sem representação (que,
aliás, era o ideal de Rousseau) substituísse a democracia indireta, tal como é
praticada nos Estados modernos. Isto não impede que haja sentido em se falar de
autonomia também em relação às normas jurídicas e que, portanto, a distinção
entre normas autônomas e heterônomas, prescindindo da particular acepção dada
por Kant, não possa ser utilizada para distinguir a moral do direito.
Uma outra distinção que remonta a Kant,
e que também foi utilizada, como veremos em seguida, para distinguir a moral do
direito, é aquela entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos. Esta
distinção repousa na forma em que o comando é expresso, ou seja, se é expresso
por um juízo categórico ou por um juízo hipotético.
Imperativos categóricos são aqueles que
prescrevem uma ação boa em si mesma, isto é, uma ação boa em sentido abso-
P.93
luto, que
deve ser cumprida incondicionalmente, ou com nenhum outro fim a não ser o seu
cumprimento enquanto ação devida. E um imperativo categórico o seguinte: “Não
se deve mentir”. Imperativos hipotéticos são aqueles que prescrevem uma ação
boa para atingir um fim, isto é, uma ação que não é boa em sentido absoluto,
mas boa somente quando se deseja, ou se deve, atingir
um fim determinado e, assim, é cumprida condicionalmente para a obtenção do
fim. É um imperativo hipotético o seguinte: “Se você quiser sarar do resfriado,
deve tomar aspirina”. Os imperativos categóricos seriam próprios, segundo Kant,
da legislação moral, e podem, portanto, ser chamados de normas éticas. Quanto
aos imperativos hipotéticos, distinguem-se, por sua vez, segundo Kant, em duas
subespécies, de acordo com o fim a que a norma se refere, como diz Kant, um fim
possíuel ou um fim real, isto é, um fim que os homens
podem perseguir ou não, ou um fim que os homens não podem deixar de perseguir.
Exemplo do primeiro fim são as regras que Kant chama de habilidade, como por
exemplo: “Se quiser aprender latim, você deve fazer exercícios de tradução do
italiano para o latim”; exemplo do segundo fim são as regras que Kant chama de
prudência, como por exemplo: “Se você quiser ser feliz, deve dominar as
paixões”. Este segundo fim se distingue do primeiro porque, ao menos conforme
Kant, a felicidade é um fim cuja obtenção não é deixada à livre escolha do
indivíduo, como o de aprender latim, mas é um fim intrínseco à própria natureza
do homem. A rigor, um imperativo deste gênero, por ser condicionado (ou seja,
condicionado à obtenção do fim) não se exprime com uma proposição hipotética. A
sua fórmula correta é: “Visto que deve Y, deve X”. Seguindo a terminologia de
Kant, que podemos adotar, os imperativos condicionados do primeiro tipo são
normas técnicas, os do segundo tipo são normas pragmáticas. Concluindo, para
Kant podem-se distinguir, com base na forma, três tipos de normas: as normas
éticas, cuja fórmula é: “Você deve X”; as normas técnicas, cuja fórmula é: “Se
você quiser Y, deve X”; as normas pragmáticas, cuja fórmula é: “Visto que você
deve Y, também deve X”.
P.94
Enquanto nos perguntamos se a distinção
entre normas autônomas e heterônomas é de alguma utilidade para uma melhor
compreensão da normatividade jurídica, com relação à distinção entre
imperativos categóricos e imperativos hipotéticos, o problema que se coloca é
sobre o seu fundamento, isto é, se os imperativos hipotéticos, em particular as
normas técnicas, são verdadeiramente imperativos. Disto se duvida.
Notouse que as normas técnicas derivam, comumente, de
uma proposição descritiva cuja relação entre uma causa e um efeito foi convertida
em uma relação de meio e fim, onde à causa vem atribuído o valor de meio e ao
efeito o valor de fim. A norma técnica: “Se quiser ferver a água, você deve
aquecê-la a 100 graus”, em que a fervura é o fim e o aquecimento é o meio,
deriva da proposição descritiva: “A água ferve a 100 graus”, onde o calor de
100 graus é a causa e a fervura é o efeito. O imperativo hipotético mencionado
anteriormente: “Se você quiser sarar do resfriado, tome aspirina” deriva da
proposição descritiva: “A aspirina cura o resfriado”. Ora, se o imperativo tem
a função de produzir na pessoa a quem se dirige uma obrigação de comportar-se
de um determinado modo, não se vê qual obrigação deriva de um imperativo
hipotético dessa espécie: e de fato, a escolha do fim é livre (e portanto não obrigatória), e uma vez escolhido o fim, o
comportamento que dele deriva não pode ser considerado obrigatório, porque é
necessário, no sentido de uma necessidade natural, e não jurídica nem moral. Se
eu quiser ferver a água, o ato de aquecê-la a 100 graus não é a conseqüência de uma norma, mas uma lei natural, que não me
obriga, mas me constrange a comportarme daquele modo.
Efetivamente, se todos os imperativos
hipotéticos fossem normas técnicas do tipo descrito até agora, seria muito
discutível que pudessem ser considerados imperativos, visto que o comportamento
que contemplam, quando cumprido, não o é por força de um comando, mas por força
de uma necessidade natural. Mas nem todos os imperativos hipotéticos podem ser
reconduzidos ao tipo de normas técnicas até aqui descrito.
P.95
Existem, como veremos, imperativos
hipotéticos no direito: aliás, segundo alguns, todos os imperativos jurídicos
são hipotéticos. A norma que estabelece, por exemplo, que a doação deve ser
feita por ato público, pode ser formulada em forma hipotética deste modo: “Se
você quiser fazer uma doação, deve realizar um ato público”. A característica
de um imperativo hipotético deste tipo é que a conseqüência
ou o fim não é efeito de uma causa no sentido naturalista, mas é uma conseqüência imputada a uma ação, considerada como meio,
pelo ordenamento jurídico, ou seja, por uma norma. Aqui, a relação meio/fim não
é a conversão em forma de regra de uma relação entre causa e efeito, mas de uma
relação entre um fato qualificado pelo ordenamento como condição e um outro
fato que o mesmo ordenamento qualifica como conseqüência.
Logo, neste caso, uma vez escolhido o fim, que é livre - segundo o exemplo, dar
algo a um outro - a ação que realizo para atingir o fim - segundo o exemplo,
celebrar um ato público - não é a adequação a uma lei natural, mas a uma regra
de conduta, isto é, a uma verdadeira prescrição, e pode-se falar propriamente
de ação obrigatória. Assim, enquanto se pode duvidar que muitos dos denominados
imperativos hipotéticos são propriamente imperativos, não se pode negar que há
prescrições que assumem a forma de imperativos hipotéticos, quer dizer, de
imperativos que não impõem uma ação como boa em si mesma, mas ao atribuir a uma
determinada ação uma certa conseqüência (favorável ou
desfavorável), induzem a cumprir aquela ação não por si própria, mas porque ela
se torna meio para alcançar um fim (quando a conseqüência
atribuída é favorável) ou para evitar alcançá-lo (quando a conseqüência
atribuída é desfavorável).
O último critério de distinção que aqui
consideramos no âmbito das proposições descritivas é o que diz respeito à força
vinculante. Até agora, falamos dos imperativos (ou comandos).
P.96
Mas, os imperativos (ou comandos) são
aquelas prescrições que têm maior força vinculante. Esta maior força vinculante
se exprime dizendo que o comportamento previsto pelo imperativo é obrigatório,
ou, em outras palavras, o imperativo gera uma obrigação à pessoa a quem se
dirige. Imperativo e obrigação são dois termos correlativos: onde existe um,
existe o outro. Pode-se exprimir o imperativo em termos de obrigatoriedade da
ação-objeto, assim como se pode exprimir a obrigatoriedade em termos de
comando-sujeito. Mas nem todas as prescrições, ou melhor dizendo, nem todas as
proposições com as quais tentamos determinar o comportamento alheio implicam em
obrigações. Há modos mais brandos ou menos vinculantes de influenciar o
comportamento alheio. Aqui examinamos dois tipos que têm particular relevância
no mundo do direito: os conselhos e as instâncias.
Embora as modernas teorias gerais do
direito costumem passar em silêncio pelo problema da distinção entre comandos e
conselhos (há, porém, uma indicação na Juristische Grundlehre [Doutrina Jurídica Fundamental] de F. Somlo, pp. 179 e ss.), a disputa é antiga: os teólogos
conhecem a diferença entre conselhos evangélicos, que são aquelas máximas de
Cristo cujo conteúdo não é obrigatório, mas é um meio pura e simplesmente
recomendado para atingir uma mais alta perfeição espiritual, e os preceitos ou
mandamentos cujo conteúdo, ao contrário, é obrigatório. Com parâmetros nesta
distinção, não há antigo tratadista de direito natural que não tenha tocado na
questão e não tenha discutido a validade e os critérios que a norteiam. Em uma
longuíssima nota a Grócio, que admitira a distinção,
o tradutor e comentarista Jean Barbeyrac afirma que
ela não é sustentável e assim não se pode falar em conselhos morais, porque
onde se encontram aquelas máximas que se denominam conselhos como, por exemplo,
a máxima de não se casar novamente ou de permanecer solteiro, esta ou indica
uma ação indiferente (e então não é comando nem conselho) ou indica uma ação
obrigatória em certas circunstâncias e para certas pessoas (e então é um
comando). Além disso, Barbeyrac
P.97
sustenta que a distinção é prejudicial porque pode desviar os homens da virtude
(em De iure belli ac pacis
[Do Direito da Guerra e da Paz], trad. Barbeyrac, I,
2, 9, n. 19).
Observa-se, também, que a distinção
entre comandos e conselhos pode servir para distinguir o direito da moral,
assim como servem as distinções entre normas autônomas e heterônomas, e entre
normas categóricas e hipotéticas. Deveriamos dizer
então, que só o direito obriga; a moral se limita a aconselhar, a dar recomendações
que deixam o indivíduo livre (isto é, apenas ele responsável) de segui-las ou
não. Certamente, o autor ao qual, talvez, melhor do que a nenhum outro, se
possa atribuir uma distinção deste gênero seja Thomas Hobbes no seu Leviatã,
onde dedica um capítulo inteiro (o XXV) aos conselhos e à distinção destes em
relação aos comandos (na edição italiana de Laterza,
vol. I, pp. 202-209). Os argumentos que Hobbes aduz para distinguir o comando
do conselho são substancialmente cinco: 1) em relação ao sujeito ativo: aquele
que comanda um se reveste de uma autoridade que lhe dá o direito de comandar;
aquele que aconselha não pode pretender o direito (nós diriamos,
mais exatamente, o poder) de fazê-lo; 2) em relação ao conteúdo: os comandos se
impõem pela vontade que os emite (isto é, derivam sua força vinculante por
serem expressão de uma vontade superior); os conselhos conseguem determinar a
ação de outrem em razão de seu conteúdo (isto é, segundo sua maior ou menor
racionalidade); o que equivale a dizer que o comando é caracterizado pelo
princípio stat pro ratione voluntas
[a vontade está acima da razão], e o conselho pelo princípio oposto (os
comandos, enquanto se valem do prestígio de uma vontade superior, podem
dirigir-se a qualquer um, os conselhos apenas às pessoas racionais); 3) em
relação à pessoa do destinatário: no comando o destinatário é obrigado a
segui-lo, no conselho não é obrigado, isto é, é livre para segui-lo ou não; em
outras palavras, diz-se que o comportamento previsto pelo comando é obrigatório,
o previsto pelo conselho é facultativo; 4) em relação ao fim: o comando é dado
no interesse de quem o comanda, o conselho é dado no
P.98
interesse de quem se aconselha, 5) em
relação às conseqüências: se da execução de um
comando deriva um mal, a responsabilidade é de quem o comanda; se o mesmo mal
deriva de ter seguido um conselho, a responsabilidade não é de quem aconselhou,
mas somente do aconselhado; esta distinção faz um contrapeso, por assim dizer,
à precedente, porque se é verdade que aquele que comanda realiza, através do
comando, o próprio interesse, disso resulta que não pode descarregar sobre o
outro a responsabilidade de sua própria ruína, já que de uma certa gratuidade
própria do conselho -resulta também a impossibilidade por parte do aconselhado áe imputar a responsabilidade de seu insucesso a quem o
aconselhou.
Não julgamos que todas essas
características diferenciais, listadas por Hobbes, sejam relevantes. Em
particular, não cremos que seja relevante a primeira, que diz respeito ao sujeito
ativo: no campo do direito, por exemplo, também para dar conselhos (o chamando
“poder consultivo”) é necessário ter autoridade (isto é, o direito, ou melhor,
o poder) para fazê-lo; trata-se de duas autoridades de tipo diferente, e
provavelmente de peso diverso, mas não se pode negar que mesmo o poder de
aconselhar deva estar investido de uma particular autoridade. Também o quarto
argumento, o relativo ao fim, não me parece aceitável: se é verdade que o
conselho é dado no interesse do aconselhado, não afirmou-se
que o comando seja emitido apenas pelo interesse de quem o comanda. Seria
realmente ingênuo crer que as leis são emanadas somente no interesse público,
assim como seria muito malicioso crer que são emanadas apenas no interesse de
quem detenha o sumo poder. Melhores são os outros três argumentos: em relação
ao conteúdo, é um fato que uma lei geralmente seja obedecida somente porque é
uma lei, independentemente de qualquer consideração pelo seu conteúdo (antes,
com a convicção de que se ordenam coisas irracionais), enquanto no seguir um
conselho, no momento que a execução é livre, conta-se não tanto com a
autoridade de quem aconselha (no caso do conselheiro, aliás, mais do que
autoridade, fala-se em “confian-
P.99
ça”), mas com a convicção de que o que
foi aconselhado é racional, isto é, conforme os objetivos a que nos propomos
atingir. Quanto ao comportamento da pessoa do destinatário, aqui intervém a
diferença indubitavelmente mais importante e que sozinha bastaria para
distinguir o comando do conselho (embora não seja suficiente para distinguir o
conselho também da instância): enquanto sou obrigado a seguir um comando, tenho
a faculdade de seguir ou não um conselho, o que significa que, no caso em que
eu não siga o comando, aquele que o emitiu não se desinteressa pelas conseqüências que disto derivam; no caso em que eu não siga
um conselho, quem aconselhou se desinteressa pelas conseqüências
(“se você não quiser fazer o que eu aconselho, pior para você”: quem fala deste
modo não é uma pessoa investida do poder de comandar, mas um conselheiro).
Enfim, pode ser acolhido, porém com alguma cautela, também o quinto argumento,
com relação às conseqüências: é verdade que o comando
exige mais do indivíduo a quem se dirige, mas o recompensa, o eximindo da responsabilidade
do ato cumprido (existe, em todo ordenamento jurídico, um artigo como o art. 51
do Código Penal italiano que exclui a punibilidade de uma ação realizada em
cumprimento do próprio dever ou por ordem de uma autoridade superior); porém
ninguém poderia eximir-se das conseqüências da
própria ação aduzindo como pretexto ter acatado um conselho. Nenhuma autoridade
que impõe ordens e, logo, comportamentos obrigatórios, poderia dizer o que em
geral pronunciaria um conselheiro a quem se dirige em busca de uma luz: “Esta é
a minha opinião, mas não assumo nenhuma responsabilidade pelo que possa suceder
a você”.
Ainda que a teoria do direito não tenha
se dedicado muito ao problema da distinção entre comandos e conselhos, esta distinção
tem considerável importância em todos os ordena-
P.100
mentos
jurídicos. Nem todas as prescrições que encontramos quando estudamos um
ordenamento jurídico no seu conjunto são comandos. Basta pensar que em todo
ordenamento jurídico, ao lado dos órgãos deliberativos, há os órgãos
consultivos, que têm justamente a tarefa não de emanar ordens, mas de dar
conselhos. Afirma-se que eles “não exercem funções de vontade, mas apenas de
apreciação técnica: são colocados ao lado dos órgãos ativos para iluminá-loçjcom seus pareceres e conselhos” (Zanobini). Basta pensar, ainda, que na teoria dos atos
jurídicos, distinguem-se os atos de vontade dos atos de representação e de
sentimento, e que enquanto uma ordem é classificada entre os atos de vontade,
um conselho ou um parecer é classificado entre os atos de representação, porque
não se trata de uma declaração de vontade, mas “o seu objetivo é sempre e
unicamente o de aconselhar: é a lei que depois impõe provimentos semelhantes ao
modo aconselhado” (Romano). Ora, o que caracteriza os atos dos órgãos
consultivos, ou pareceres, em confronto com os comandos ou ordens, é
propriamente aquilo que ilustramos no tópico precedente, vale dizer, o fato de
que estes têm, assim, a função de guiar ou dirigir o comportamento alheio, mas
a sua orientação não é tão eficaz como a dos comandos, e esta
menor eficácia se revela porque a pessoa ou as pessoas a quem são dirigidos não
são obrigadas a segui-los, o que em linguagem jurídica se exprime dizendo que
os pareceres não são vinculantes (quando se diz que um parecer é obrigatório,
não significa obrigação de segui-lo, mas obrigação de requerê-lo, portanto
liberdade para segui-lo ou não). Isto não quer dizer que todos os atos que em
direito se denominam pareceres são conselhos no sentido por nós ilustrado:
também chamam-se pareceres aquelas relações sobre
determinados provimentos a tomar, cujo fim não é absolutamente o de guiar o
comportamento alheio, mas só o de iluminar quem deve tomar uma deliberação,
isto é, como se diz comumente, de fornecer os elementos de conhecimento
suficientes para que quem deve deliberar o faça com razões conhecidas. Neste
caso, o parecer não tem função diretiva, mas apenas informativa.
P.101
Desenvolve a função de preparar a via
para o comando, de que falamos no tópico 18.
Visto que o conselho é uma prescrição
que tem menor força vinculante que o comando, conclui-se que os órgãos
consultivos são órgãos que, em um ordenamento jurídico, são titulares de uma
autoridade menor ou secundária em relação aos órgãos com função imperativa.
Historicamente tem-se observado que um certo órgão se desenvolve e adquire
maior peso em um ordenamento transformando-se de órgão consultivo em órgão
legislativo (as leis são a forma mais perfeita de comandos do Estado), como aconteceu
com os parlamentos, que no regime de monarquia absoluta tinham funções
meramente consultivas, e se tornaram, no regime de monarquia constitucional,
órgãos que participam da função legislativa. Inversamente, um órgão decai e é
considerado desautorizado quando, perdida a função imperativa, conserva ainda
somente a consultiva, como ocorreu com a segunda Câmara do Parlamento francês
(o antigo Senado) que, segundo a Constituição de 1946, tinha funções meramente
consultivas (e de fato não se denomina mais Senado, mas Conselho da República).
Que a função consultiva seja característica de órgãos que têm menor prestígio
em relação àqueles com função imperativa, está claramente demonstrado pelo que
ocorre no ordenamento internacional, onde os organismos internacionais não têm
nos confrontos entre Estados (que conservam suas soberanias) o poder de decidir
obrigatoriamente, isto é, de emanar seus comandos, mas simplesmente o de
endereçar suas recomendações. O que na terminologia do direito internacional é
recomendação, na terminologia jurídica tradicional e na linguagem comum é
conselho, vale dizer, uma proposição cuja força de influir sobre o
comportamento alheio não atinge a eficácia máxima como a da obrigatoriedade.
Do conselho e da recomendação, que
pertencem à mesma species, distingue-se a exortação.
É curioso que Hobbes, depois de ter indicado as características do conselho do
modo que expusemos, passa a falar da exortação, e a define como um
P.102
conselho distorcido, pelo fato de que é expressa no interesse do exortador
(enquanto o conselho é dirigido ao interesse do aconselhado) e é endereçada a
uma multidão passiva (enquanto o conselho pressupõe que a pessoa do aconselhado
seja um indivíduo que raciocina). Hobbes é liberalíssimo ao chamar de exortação
o mau conselho quando é dado, como ele mesmo diz, por conselheiros corrompidos.
Mas não cremos que esta seja uma definição conveniente. O que habitualmente se
chama de exortação não se distingue do conselho com base em um juízo de valor:
por acaso a exortação do pai ao filho para que estude é um conselho desviado de
sua função principal? Em minha opinião, o critério de distinção é outro: no
conselho tende-se a modificar o comportamento alheio expondo fatos ou razões (poderiamos dizer que o conselho é uma combinação de
elementos prescritivos e descritivos), enquanto na exortação tende-se a
conseguir o mesmo efeito suscitando sentimentos (poderiamos
dizer que a exortação é uma combinação de elementos prescritivos e emotivos).
Com palavras da linguagem comum, pode-se dizer que o conselho fala ao
intelecto, daí a compassada e rígida frieza do conselheiro (reconhecido em um
sábio) e a exortação fala ao coração, daí o calor do tribuno, do retor, da pessoa afeiçoada, etc. (O médico aconselha o
menino a tomar um certo remédio, a mãe o exorta a fazê-lo). Ao contrário dos
conselhos, as exortações não parecem ter relevância direta em um ordenamento
jurídico.
Há um outro tipo de proposições que
embora entrem na categoria das prescrições, se distinguem dos comandos
propriamente ditos por uma menor força vinculante. São as chamadas instâncias,
ou seja, aquelas proposições com as quais nós pretendemos fazer com que alguém
faça alguma coisa em nosso favor, porém sem vinculá-lo. As espécies das
instâncias pertencem as rezas, as súplicas, as invocações, as implorações, os
P.103
pedidos (no sentido técnico administrativo da palavra, por exemplo, um pedido
para obter o passaporte). Se nós quiséssemos fixar a diferença entre comandos e
conselhos de um lado, e comandos e instâncias de outro, não usando além da
forma gramatical habitual e mais correta com a qual os três tipos de
prescrições se exprimem, poderiamos dizer o seguinte:
o comando se exprime como um querer por parte do sujeito ativo e como um dever
referente ao sujeito passivo; o conselho se abstrai do “querer” e referente ao
sujeito passivo se exprime como um deveria; a instância se abstrai do “dever” e
se exprime por parte do sujeito ativo como um querería.
Desta formulação já aparece a diferença
substancial da instância em relação ao comando e ao conselho. Em relação ao
comando, a diferença fundamental é, como no caso do conselho, a ausência de uma
obrigação para a pessoa a quem se dirige a instância. Com relação ao conselho,
a diferença fundamental está no fato de que o conselho é dado no interesse da
pessoa a quem se aconselha; a instância, ao contrário, é expressa no interesse
da pessoa que a requisita. No comando, o interesse pode ser tanto daquele que
comanda, quanto daquele que é comandado, quanto, simultaneamente, de ambos. No
conselho, o interesse é sempre do sujeito passivo; na instância, sempre do
sujeito ativo. Se digo: “Eu aconselho você a não fumar”, é sinal de que a sua
saúde me importa; se digo: “Peço para você não fumar”, é sinal que me importo
com a minha. Lá, onde se lê: “E proibido fumar”(e não se trata mais de um conselho nem de uma instância,
mas de um comando) é difícil dizer qual seja o interesse prevalecente: muito
provavelmente o interesse do dono do local seja o mesmo dos frequentadores.
Um ordenamento jurídico, assim como
reconhece, ao lado dos comandos, os conselhos, reconhece também muitas espécies
de instâncias. Trata-se de atos com os quais se provoca, ou melhor, busca-se
provocar uma deliberação a nosso favor: pode-se distinguir os pedidos, as
solicitações, as instâncias propriamente ditas, as súplicas, etc. Enquanto o
poder de dar con-
P.104
selhos é geralmente atribuído aos órgãos
públicos, o poder de mover instâncias (poder de petição) é geralmente atribuído
aos particulares. E entenda-se: o conselho tem a função de dar um conteúdo à
deliberação, a instância tem apenas a de provocá-la. Se concebermos o comando
como instituidor de uma relação entre um poder e um dever (um direito e uma
obrigação), no conselho falta sobretudo o dever e, na instância, sobretudo o
poder. No conselho, o que sobressai, em relação ao comando, é a ausência da
obrigação de segui-lo; na instância, o que sobressai sempre em comparação ao
comando é a ausência do direito de obter aquilo que se pede.
Uma última observação. Como
distinguimos os conselhos das exortações com base na diferença entre apelos a
dados de fato, raciocínios, informações e apelos a sentimentos, também assim
nas espécies de instâncias se podem distinguir aquelas que se inspiram em um
modelo de tipo informativo e as que se inspiram em um modelo de tipo emotivo:
estas últimas são as invocações ou súplicas. A diferença entre um
pedido para se obter uma permissão de caça e um pedido de graça está nos
diversos argumentos que são usados: lá, claramente de situações de fato, aqui,
argumentos de tipo retórico-persuasivo. A primeira é um composto
prescritivo-descritivo, a segunda um composto prescritivo-emotivo.
Página notas de rodapé.
Nota 1, página 56: “Não
é sem surpresa ou escândalo que notamos o pouco acordo que reina sobre esta
importante matéria entre os diversos autores que dela trataram. Entre os mais
sérios escritores, com dificuldade encontramos dois que tenham a mesma opinião
sobre este ponto.” (Discurso sobre a Origem e os Fundamentos
da Desigualdade, pref.) (tradução livre).
Nota 2, página 75:
Para este tópico e o seguinte, seguimos, dentre os vários tratados de
lógica, particularmente o de J. M. Copi, Introduction to Logic (1953).
Nota 3, página 76:
Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975.
Nota 4, página 83: Ver
A. Visalberghi, Esperienza
e ualutazione (Experiência e Valoração), Turim, 1958,
sobretudo o capítulo II, “La lógica degli imperativi e delle norme" (“A lógica dos imperativos e das normas”), pp.
37-67, onde se retoma e se desenvolve a tese de H. G. Bonhert,
“The semiotic status of command” (“O status semiótico de comando”), em Philosophy of Science (Filosofia
da Ciência), XII, 1945, pp. 302-315.
Nota 5, página 90: As
duas citações são tiradas da tradução italiana do Fundamento da Metafísica dos
Costumes. Paravia, p. 104.