Título: Teoria da norma jurídica

Autor: Norberto Bobbio

Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1988, não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

Adaptado por: Fernanda Rodrigues.

Adaptado em: junho de 2022.

Padrão vigente a partir de março de 2022

 

Referência: BOBBIO, Norberto. Justiça, validade e eficácia; As proposições prescritivas. In: BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Edipro, 2016. cap. 2 e 3. p. 45-104.


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Capítulo II

Justiça, validade e eficácia

 

Sumário:

9. Três critérios de valoração. 2

10. Os três critérios são independentes. 5

11. Possíveis confusões entre os três critérios. 8

12. O direito natural 12

13. O positivismo jurídico. 15

14.  Realismo jurídico. 19

 

 

9. TRÊS CRITÉRIOS DE VALORAÇÃO

O estudo das regras de conduta, em particular das regras jurídicas, apresenta muitos problemas interessantes e atuais, não só da teoria geral do direito (sobretudo depois de Kelsen), mas também da lógica e da filosofia contemporânea. Este curso se propõe a enfrentar alguns destes problemas.

O primeiro ponto que, a meu juízo, é preciso ter bem claro em mente se quisermos estabelecer uma teoria da norma jurídica com fundamentos sólidos, é que toda norma jurídica pode ser submetida a três valorações distintas, e que estas valorações são independentes umas das outras. De fato, frente a qualquer


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norma jurídica podemos colocar uma tríplice ordem de problemas: 1) se é justa ou injusta; 2) se é válida ou inválida; 3) se é eficaz ou ineficaz. Trata-se dos três problemas distintos: da justiça, da validade e da eficácia de uma norma jurídica.

O problema da justiça é o problema da correspondência ou não da norma aos valores últimos ou finais que inspiram um determinado ordenamento jurídico. Não tocamos aqui na questão se existe um ideal de bem comum idêntico para todos os tempos e para todos os lugares. Para nós, basta constatar  que todo ordenamento jurídico persegue certos fins, e convir sobre o fato de que estes fins representam os valores a cuja realização o legislador, mais ou menos conscientemente, mais ou menos adequadamente, dirige sua própria obra. No caso de se considerar que existam valores supremos, objetivamente evidentes, a pergunta se uma norma é justa ou injusta equivale a perguntar se é apta ou não a realizar esses valores. Mas, também no caso de não se acreditar em valores absolutos, o problema da justiça ou não de uma norma tem um sentido: eqüivale a perguntar se essa norma é apta ou não a realizar os valores históricos que inspiram certo ordenamento jurídico concreto e historicamente determinado. O problema se uma norma é justa ou não é um aspecto do contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o que deve ser e o que é: norma justa é aquela que deve ser; norma injusta é aquela que não deveria ser. Pensar sobre o problema da justiça ou não de uma norma equivale a pensar sobre o problema da correspondência entre o que é real e o que é ideal. Por isso, o problema da justiça se denomina comumente de problema deontológico do direito.

O problema da validade é o problema da existência da regra enquanto tal, independentemente do juízo de valor sobre ela ser justo ou não. Enquanto o problema da justiça se resolve com um juízo de valor, o problema da validade se resolve com um juízo de fato, isto é, trata-se de constatar se uma regra jurídica existe ou não, ou melhor, se tal regra assim determinada é uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma equivale à existência desta norma como regra jurídica. Enquanto para


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julgar a justiça de uma norma, é preciso compará-la a um valor ideal, para julgar a sua validade é preciso realizar investigações do tipo empírico-racional, que se realizam quando se trata de estabelecer a entidade e a dimensão de um evento. Em particular, para decidir se uma norma é válida (isto é, como regra jurídica pertencente a um determinado sistema), é necessário com freqüência realizar três operações: 1) averiguar se a autoridade de quem ela emanou tinha o poder legítimo para emanar normas jurídicas, isto é, normas vinculantes naquele determinado ordenamento jurídico

(esta investigação conduz inevitavelmente a remontar até a norma fundamental, que é o fundamento de validade de todas as normas de um determinado sistema); 2) averiguar se não foi ab-rogada, já que uma norma pode ter sido válida, no sentido de que foi emanada de um poder autorizado para isto, mas não quer dizer que ainda o seja, o que acontece quando uma outra norma sucessiva no tempo a tenha expressamente ab-rogado ou tenha regulado a mesma matéria; 3) averiguar se não é incompatível com outras normas do sistema (o que também se chama ab-rogação implícita), particularmente com uma norma hierarquicamente superior (uma lei constitucional é superior a uma lei ordinária em uma Constituição rígida) ou com uma norma posterior, visto que em todo ordenamento jurídico vigora o princípio de que duas normas incompatíveis não podem ser ambas válidas (assim como em um sistema científico duas proposições contraditórias não podem ser ambas verdadeiras). O problema da validade jurídica pressupõe que se tenha respondido à pergunta: o que se entende por direito? Trata-se, querendo adotar uma terminologia familiar entre os jusfilósofos, do problema ontológico do direito.

O problema da eficácia de uma norma é o problema de ser ou não seguida pelas pessoas a quem é dirigida (os chamados destinatários da norma jurídica) e, no caso de violação, ser imposta posta através de meios coercitivos pela autoridade que a evocou. Que uma norma exista como norma jurídica não implica que seja também constantemente seguida. Não é nossa tarefa


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aqui indagar quais possam ser as razões para que uma norma seja mais ou menos seguida. Limitamo-nos a constatar que há normas que são seguidas universalmente de modo espontâneo (e são as mais eficazes), outras que são seguidas na generalidade dos casos somente quando estão providas de coação, outras, ainda, que não são seguidas apesar da coação, e outras, enfim, que são violadas sem que nem sequer seja aplicada a coação (e são as mais ineficazes). A investigação para averiguar a eficácia ou a ineficácia de uma norma é de caráter histórico-sociológico, se volta para o estudo do comportamento dos membros de um determinado grupo social e se diferencia, seja da investigação tipicamente filosófica em torno da justiça, seja da tipicamente jurídica em torno da validade. Aqui também, para usar a terminologia douta, se bem que em sentido diverso do habitual, pode-se dizer que o problema da eficácia das regras jurídicas é o problema fenomenológico do direito.

10. OS TRÊS CRITÉRIOS SÃO INDEPENDENTES

Estes três critérios de valoração de uma norma dão origem a três ordens distintas de problemas, e são independentes um do outro, no sentido em que a justiça não depende nem da validade nem da eficácia, a eficácia não depende nem da justiça nem da validade. Para mostrar estas várias relações de independência pendência, formulemos as seis proposições seguintes:

1.    Uma norma pode ser justa sem ser válida. Para dar um exemplo clássico, os teóricos do direito natural formulavam em seus tratados um sistema de normas advindo de princípios jurídicos universais. Quem formulava estas normas, considerava-as justas, porque as inferia de princípios universais de justiça. Mas estas normas, a não ser que fossem escritas em um tratado de direito natural, não eram válidas. Tornavam-se válidas apenas na medida em que eram acolhidas por um sistema de direito positivo. O direito natural pretende ser o direito justo por excelência, mas somente pelo fato de ser justo não é também válido.


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2.            Uma norma pode ser válida sem ser justa. Aqui não é preciso ir muito longe para buscar exemplos. Nenhum ordenamento jurídico é perfeito: entre o ideal de justiça e a realidade do direito há sempre um vazio, mais ou menos grande, dependendo dos regimes. Certamente o direito, que em todos os regimes de um certo período histórico e em alguns contemporâneos que consideramos civilmente ultrapassados, admite a escravidão, não é justo, mas nem por isso é menos válido. Não faz muitos anos vigoravam leis raciais que nenhuma pessoa racional estaria disposta a considerar justa e, não obstante, eram válidas. Um socialista dificilmente conceberá como justo um ordenamento que reconhece e protege a propriedade individual; assim como um reacionário dificilmente admitirá como justa uma norma que considere a greve lícita. E ainda, nem o socialista nem o reacionário terão dúvidas sobre o fato de que, em um ordenamento positivo como o italiano, tanto as normas que regulam a propriedade individual quanto as que reconhecem o direito de greve são válidas.

3.            Uma norma pode ser válida sem ser eficaz. O caso mais clamoroso é sempre o das leis de proibição de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos da América, que vigoraram durante vinte anos entre as duas guerras. Afirma-se que o consumo de bebidas alcoólicas durante o regime proibicionista não era inferior ao consumo do período imediatamente sucessivo, quando a proibição foi abolida. Certamente se tratava de leis “válidas”, no sentido que emanadas dos órgãos que tinham competência para tanto, mas não eram eficazes. Sem ir tão longe, muitos artigos da Constituição Italiana não foram até hoje aplicados. O que significa a tão freqüente deplorável desaplicação da Constituição? Significa que nos encontramos frente a normas jurídicas que, embora válidas, isto é, existentes enquanto normas, não são eficazes.

4.            Uma norma pode ser eficaz sem ser válida. Há muitas normas sociais que vão sendo seguidas espontaneamente ou pelo menos habitualmente, isto é, são eficazes, como por exemplo, entre um certo círculo de pessoas, as regras da


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boa educação. Estas regras, pelo simples fato de serem seguidas, não se tornam por isso regras pertencentes a um sistema jurídico, ou seja, não adquirem validade jurídica. Poder-se-ia objetar que o direito consuetudinário constitui um exemplo evidente de normas que alcançam validade jurídica, quer dizer, chegam a fazer parte de um sistema normativo, apenas através da eficácia. E o que é o uso constante, regular, generalizado, uniforme que se exige de um costume para que ele se torne jurídico, senão aquilo que chamamos de “eficácia”? Mas a esta objeção se pode responder que nenhum costume se torna jurídico só através do uso, porque o que o faz tornar-se jurídico, o que o insere no sistema, é o fato de ser acolhido e reconhecido pelos órgãos competentes desse sistema para produzir normas jurídicas, como o legislador ou o juiz. Enquanto for apenas eficaz, uma norma consuetudinária não se torna jurídica. Transforma-se em jurídica quando os órgãos de poder lhe atribuem validade, o que confirma que a eficácia não se transforma diretamente em validade, e portanto uma norma pode continuar a ser eficaz sem por isso se tornar jurídica.

5.            Uma norma pode ser justa sem ser eficaz. Vimos que uma norma pode ser justa sem ser válida. Não devemos deixar de acrescentar que pode ser justa sem ser eficaz. Quando a sabedoria popular diz que “não há justiça neste mundo”, refere-se ao fato de que muitos são aqueles que exaltam a justiça com palavras, poucos são os que a transformam em ato. Em geral, uma norma para ser eficaz deve também ser válida. Se é verdade que muitas normas de justiça não são válidas, com maior razão não são nem mesmo eficazes.

6.            Uma norma pode ser eficaz sem ser justa. O fato de uma norma ser universalmente seguida não demonstra sua justiça, assim como também, o fato de não ser absolutamente obedecida não pode ser considerado prova de sua injustiça. A derivação da justiça da eficácia poderia equiparar-se a um dos argumentos mais freqüentemente discutidos entre os jusnaturalista, o chamado consensus humani generis, ou simplesmente consensus omnium. Perguntam-se os jusnaturalistas: pode-se


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considerar como máxima de direito natural a que seja acolhida por todos os povos (alguns diziam “todos os povos civilizados ”)? A resposta dos mais intransigentes era a negativa explícita e com razão, pois o fato de a escravidão, por exemplo, ter sido praticada por todos os povos civilizados em um certo período histórico não a transformava numa instituição conforme a justiça. A justiça é independente da validade, mas também independente da eficácia.

 

11. POSSÍVEIS CONFUSÕES ENTRE OS TRÊS CRITÉRIOS

Cada um dos três critérios até aqui examinados delimita um campo bem determinado de investigação para o filósofo do direito. Pode-se inclusive sustentar que os três problemas fundamentais, de que tradicionalmente se ocupa e sempre se ocupou a filosofia do direito, coincidem com as três qualificações normativas da justiça, da validade e da eficácia. O problema da justiça dá lugar a todas aquelas investigações que visam elucidar os valores supremos a que tende o direito, em outras palavras, os fins sociais, cujo instrumento mais adequado de realização são os ordenamentos jurídicos, com seus conjuntos de leis, de instituições e de órgãos. Nasce daí a filosofia do direito como teoria da justiça. O problema da validade constitui o núcleo das investigações que pretendem determinar em que consiste o direito enquanto regra obrigatória e coativa, quais são as características peculiares do ordenamento jurídico que o distinguem dos outros ordenamentos normativos (como o moral), e portanto, não os fins que devem ser realizados, mas os meios cogitados para realizar esses fins, ou o direito como instrumento de realização da justiça. Daí nasce a Filosofia do Direito como Teoria Geral do Direito. O problema da eficácia nos leva ao terreno da aplicação das normas jurídicas, que é o terreno dos comportamentos efetivos dos homens que vivem em sociedade, dos seus interesses contrastantes, das ações e reações frente à autoridade, dando lugar às investigações em torno da


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vida do direito, na sua origem, no seu desenvolvimento, na sua modificação, investigações estas que normalmente são conexas a indagações de caráter histórico e sociológico. Daí nasce aquele aspecto da filosofia do direito que conflui para a sociologia jurídica.

Esta tripartição de problemas é hoje geralmente reconhecida pelos filósofos do direito e, ademais, corresponde em parte à distinção das três funções da filosofia do direito (funções deontológica, antológica e fenomenológica) que tem se desenvolvido desde o início do século XX na filosofia do direito italiano, principalmente por obra de Giorgio Del Vecchio. Para dar uma prova do consenso geral sobre esta concepção tripartida da experiência jurídica, cito aqui o testemunho de três teóricos do direito contemporâneo, pertencentes a três países diversos e a três tradições culturais diferentes. Eduardo Garcia Maynez, professor da Universidade do México, seguidor do filósofo espanhol Ortega y Gasset e do seu “perspectivismo”, em um ensaio, La Definición dei Derecho - Ensayo de Perspectivismo Jurídico [A Definição do Direito - Ensaio de Perspectivismo Jurídico (México, 1948)], diz que, por “direito”, se compreende geralmente três coisas: o direito formalmente válido, o direito intrinsecamente válido, o direito positivo ou eficaz. Com a primeira expressão entende aquelas regras de conduta que “a autoridade política considera como vinculantes em um determinado território e em uma determinada época”; com a segunda, pretende indicar o direito justo, isto é, as regulamentações das relações de coexistência entre os homens que mais correspondem ao ideal de justiça; com a terceira, indica aquelas regras de conduta que “determinam efetivamente a vida de uma sociedade em um determinado momento histórico”. Não precisamos fazer muito esforço para reconhecer, nestes três modos de compreender o direito, a distinção entre validade, justiça e eficácia. Como segundo testemunho, citamos Julius Stone, professor da Universidade de Sidney (Austrália), aluno do mais influente filósofo do direito de sua época, o americano Roscoe Pound. Stone, na sua obra de maior empenho, The


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Province and Function of Law as Logic, Justice and Social Control [O Campo e a Função do Direito como Lógica, Justiça e Controle Social (Sidney, 1946)]. sustenta que o estudo do direito, para ser completo, resulta destas três partes: 1) jurisprudência analítica, que é aquela que chamaremos de teoria geral do direito, ou seja, o estudo do direito do ponto de vista formal; 2) jurisprudência crítica ou ética, que compreende o estudo dos vários ideais de justiça e, portanto, do direito ideal nas suas relações com o direito real, e coincide com a parte da filosofia do direito que chamamos de teoria da justiça; 3) jurisprudência sociológica, que estuda, segundo a expressão preferida de Pound, não mais o direito nos livros (law in books), porém o direito em ação (law in action), e corresponde à sociologia jurídica enquanto estudo do direito vivente na sociedade. O terceiro testemunho obtemos com Alfred von Verdross, professor da Universidade de Viena, que segue orientação jusnaturalista. Em um artigo intitulado Zur Klárung des Rechtsbegriffes (Para o Esclarecimento do Conceito de Direito) de 1950, depois de ter distinguido acuradamente o problema da justiça do problema da validade, precisa que existem três modos diversos de considerar o direito, segundo seja observado no seu valor ideal (que é a justiça), no seu valor formal (que é a validade), ou na sua realização prática (que é a eficácia), e assim se exprime: “O sociólogo pode com seus meios compreender somente a eficácia do direito, o teórico do direito, só a forma do direito e a conexão intrínseca das normas positivas, enquanto o filósofo moral (o teórico do direito natural) se interessa unicamente pela justiça ética das normas jurídicas e pela sua obrigatoriedade interior” (pp. 98-99).

Nota-se que esta distinção de problemas não deve ser concebida como uma separação em compartimentos estanques. Quem desejar compreender a experiência jurídica nos seus vários aspectos deverá considerar que ela é a parte da experiência humana cujos elementos constitutivos são: ideais de justiça a realizar, instituições normativas para realizá-los, ações e reações dos homens frente àqueles ideais e a estas instituições. Os


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três problemas são três aspectos diversos de um só problema central, que é o da melhor organização da vida dos homens em sociedade. Se insistimos sobre a distinção e a independência dos três valores, é porque julgamos prejudicial sua confusão e, sobretudo, consideramos que não se pode aceitar outras teorias que não fazem esta distinção claramente, e tendem, ao contrário, a reduzir ora um, ora outro dos três aspectos, aos outros dois, elaborando, como se costuma dizer, através de feio neologismo da linguagem filosófica, um “reducionismo”. Creio que se podem distinguir três teorias reducionistas, à crítica das quais dedico os últimos três tópicos deste capítulo.

Há uma teoria que reduz a validade à justiça, afirmando que uma norma só é válida se é justa; em outras palavras, faz depender a validade da justiça. O exemplo histórico mais ilustre desta redução é a doutrina do direito natural.

Uma outra teoria reduz a justiça à validade, quando afirma que uma norma é justa somente pelo fato de ser válida, isto é, faz depender a justiça da validade. O exemplo histórico desta teoria é dado pela concepção do direito que se contrapõe à naturalista, que é a concepção positivista (no sentido mais restrito e limitado do termo).

Finalmente, há uma teoria que reduz a validade à eficácia, quando tende a afirmar que o direito real não é aquele que se encontra, por assim dizer, enunciado em uma Constituição, ou em um Código, ou em um corpo de leis, mas é aquele que os homens efetivamente aplicam nas suas relações cotidianas: esta teoria faz depender, em última análise, a validade da eficácia. O exemplo histórico mais radical é dado pelas correntes consideradas realistas da jurisprudência americana e pelas suas antecipações no continente.

Consideramos que todas as três concepções estão viciadas pelo erro do “reducionismo”, que leva à eliminação ou, pelo menos, ao ofuscamento de um dos três elementos constitutivos da experiência jurídica e, portanto, a mutilam. A primeira e a terceira não conseguem ver a importância do problema da


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validade; a segunda julga poder se livrar do problema da justiça. Em seguida, as examinaremos separadamente.

12. O DIREITO NATURAL

Não é nossa tarefa ilustrar um problema tão rico e complexo como o do direito natural. Aqui, a corrente do direito natural vem à tona apenas devido ao fato de que há uma tendência geral entre os seus teóricos de reduzir a validade à justiça. Poderiamos definir esta corrente de pensamento jurídico como aquela segundo a qual uma lei para ser lei deve estar de acordo com a justiça. Lei em desacordo com a justiça non est lex sed corruptio legis. Uma recente e exemplar formulação desta doutrina pode ser lida na seguinte passagem de Gustav Radbruch: “Quando uma lei nega conscientemente a vontade de justiça, por exemplo concede arbitrariamente ou refuta os direitos do homem, carece de validade... até mesmo os juristas devem encontrar coragem para refutar-lhe o caráter jurídico.”; e em outra parte: “Pode haver leis com tal medida de injustiça e de prejuízo social que seja necessário refutar- lhes o caráter jurídico... tanto há princípios jurídicos fundamentais mais fortes que toda normatividade jurídica, que uma lei que os contrarie carece de validade”; e ainda: “Onde a justiça não é nem mesmo perseguida, onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada em nome do direito positivo, a lei não somente é direito injusto como carece em geral de juridicidade. [Rechtsphilosophie (Filosofia do Direito), 4a ed., 1950, pp. 336-353].

A esta abordagem do problema da relação entre justiça e direito nós responderiamos: que o direito corresponda à justiça é uma exigência, ou se quisermos, um ideal a alcançar que ninguém pode desconhecer, mas não é uma realidade de fato. Ora, quando nos colocamos o problema do que é o direito em uma dada situação histórica, nos questionamos sobre o que é de fato direito e não sobre o que queríamos que ele fosse ou o que deveria ser Mas, se nos perguntarmos o que de fato é o


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direito, não poderemos deixar de responder, ao menos, que na realidade vale como direito também o direito injusto e que não existe nenhum ordenamento perfeitamente justo.

Em uma só hipótese poderiamos aceitar reconhecer como direito unicamente o que é justo: se a justiça fosse uma verdade evidente ou pelo menos demonstrável como uma verdade matemática, de modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas sobre o que é justo ou injusto. E esta, na realidade, foi sempre a pretensão do jusnaturalismo nas suas várias fases históricas. Com uma outra definição, poderia se dizer que a teoria do direito natural é aquela que se considera capaz de estabelecer o que é justo e o que é injusto de modo universalmente válido. Mas esta pretensão tem fundamento? A julgar pelas controvérsias entre os vários seguidores do direito natural sobre o que há de ser considerado justo ou injusto, a julgar pelo fato de que o que era natural para uns não era para outros, deveriamos responder que não. Para Kant (e em geral para todos os jusnaturalistas modernos) a liberdade era natural; mas, para Aristóteles, era natural a escravidão. Para Locke, era natural a propriedade individual, mas para todos os utopistas socialistas, de Campanella a Winstanley e a Morelly, a instituição mais adequada à natureza humana era a comunhão de bens. Esta variedade de juízos entre os próprios naturalistas dependia de duas razões fundamentais: 1) “natureza” é um termo genérico que adquire diversos significados dependendo do modo como é usado. Já Rousseau dizia: “Ce n’est point sans surprise et sans scanda/e qu’on remarque le peu d’accord qui règne sur cette importante matière entre les divers auteurs qui en ont traité. Parmi les plus graves écrivains, à peine on trouve-t-on deux qui soient du même avis sur ce point”[nota 1] (Discours sur 1’origine et les fondements de l’inégalité, pref.); 2) ainda que o significado do termo fosse


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unívoco, e todos os que a ele fazem referência estivessem de acordo em aceitar que algumas tendências são naturais e outras não, da constatação que uma tendência é natural não se pode deduzir se ela é boa ou má, já que não se pode deduzir um juízo de valor de um juízo de fato. Hobbes e Mandeville estavam de acordo em considerar que a tendência natural do homem era o instinto utilitário: porém, se para Hobbes este instinto conduzia à destruição da sociedade e precisava ser contido, para Mandeville (o célebre autor da Fábula das Abelhas) era vantajoso e deveria ser liberado.

Mas então, se a observação da natureza não oferece base suficiente para determinar o que é justo e o que é injusto de modo universalmente reconhecível, a redução da validade à justiça leva a apenas uma só e grave conseqüência: a destruição de um dos valores fundamentais sobre o qual se apóia o direito positivo (entendido como direito válido), o valor da certeza. De fato, se a distinção entre o justo e o injusto não é universal, é preciso colocar o problema: a quem compete estabelecer o que é justo ou injusto? Há duas respostas possíveis: a) compete àquele ou àqueles que detêm o poder. Mas esta resposta é aberrante, porque neste caso se conserva, é verdade, a certeza do direito, mas se converte a doutrina que transforma a validade em justiça na doutrina perfeitamente oposta, que considera a justiça como validade, no momento em que reconhece o justo no que é comandado; b) compete a todos os cidadãos; neste caso, uma vez que os critérios de justiça são diversos e irredutíveis, em relação àqueles que desobedecerem a lei porque a julgam injusta, e sendo injusta é inválida, os governantes nada poderíam objetar, e a segurança da vida civil no âmbito das leis estaria completamente destruída.

Por fim, que nesta mesma corrente do direito natural a redução da validade à justiça seja mais afirmada do que aplicada parece-me que pode ser demonstrado com dois argumentos tirados da mesma doutrina jusnaturalista: a) é doutrina recorrente para os jusnaturalistas que os homens, antes de entrar no estado civil (dirigido pelo direito positivo), tivessem vivido no


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estado de natureza, cuja característica fundamental é de ser regido apenas pelas leis naturais, pois, conforme doutrina aceita, o estado de natureza é impossível e dele é necessário sair (segundo Locke e Hobbes se trata de um cálculo utilitário, segundo Kant, de um dever moral) para fundar o Estado. Isto deve ser interpretado no sentido em que o direito natural não cumpre a função de direito positivo, onde, se chamamos de “direito” o direito positivo, não podemos considerar “direito” da mesma maneira o direito natural. Kant, perfeitamente consciente desta distinção, chamou o direito natural de “provisório” para distingui-lo do direito positivo que chamou de “peremptório", dando com isso a entender que somente o direito positivo era direito no sentido que está impregnado na palavra; b) é doutrina comum para os jusnaturalistas que o direito positivo em desconformidade com o direito natural seja considerado injusto, mas não obstante deve ser obedecido (a chamada teoria da obediência). Porém, o que significa propriamente "obedecer"? Significa aceitar uma certa norma de conduta como vinculante, isto é, como existente em um dado ordenamento jurídico, e portanto válida. E o que é a validade de uma norma senão a pretensão, de preferência garantida pela coação, de ser obedecida até mesmo por aqueles que a ela se opõem por considerá-la, segundo um critério pessoal de valoração, injusta? Pois bem, afirmar que uma norma deve ser obedecida mesmo se injusta, é um modo de, ainda que indiretamente, alcançar a mesma conclusão de que partimos, qual seja, a justiça e a validade de uma norma são duas coisas diversas; é em suma, uma volta mais longa para chegar a reconhecer que uma norma pode ser válida (isto é, deve ser obedecida) mesmo que injusta, e que portanto justiça e validade não coincidem.

 

13. O POSITIVISMO JURÍDICO

A teoria oposta à jusnaturalista é a doutrina que reduz a justiça à validade. Enquanto para um jusnaturalista clássico tem, ou melhor dizendo, deveria ter, valor de comando só o que é


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justo, para a doutrina oposta é justo só o que é comandado e pelo fato de ser comandado. Para um jusnaturalista, uma norma não é válida se não é justa; para a teoria oposta, uma norma é justa somente se for válida. Para uns, a justiça é a confirmação da validade, para outros, a validade é a confirmação da justiça. Chamamos esta doutrina de positivismo jurídico, embora devamos convir que a maior parte daqueles que são positivistas na filosofia e teóricos e estudiosos do direito positivo (o termo “positivismo” se refere tanto a uns quanto a outros), nunca sustentaram uma tese tão extremada. Entre os filósofos positivistas do direito, tomemos, por exemplo, novamentee'Levi: mesmo que, como positivista, seja relativista, e não reconheça valores absolutos de justiça, todavia admite que é preciso distinguir aquilo que vale como direito dos ideais sociais que instigam  continuamente a modificação do direito constituído, e que, portanto, o direito pode ser válido, sem ser justo. Entre os juristas, tomemos, por exemplo, Kelsen: quando Kelsen sustenta que aquilo que constitui o direito como direito é a validade, não quer em absoluto afirmar que o direito válido seja também justo, mesmo porque os ideais de justiça, para ele, são subjetivos e irracionais; o problema da justiça, para Kelsen, é um problema ético e é distinto do problema jurídico da validade.

Se quisermos encontrar uma teoria completa e coerente do positivismo jurídico, devemos remontar à doutrina política de Thomas Hobbes, cuja característica fundamental me parece ser, na verdade, a reviravolta radical do jusnaturalismo clássico.  Segundo Hobbes, efetivamente não existe outro critério do justo e do injusto fora da lei positiva, quer dizer, fora do comando do soberano. Para Hobbes, é verdade que é justo o que é comandado, somente pelo fato de ser comandado; é injusto o que é proibido, somente pelo fato de ser proibido. Como chega a esta conclusão tão radical? Hobbes é um racionalista, e como para todos os racionalistas, também para Hobbes, o que conta é quê a conclusão seja tirada rigorosamente das premissas. No estado de natureza, como todos estão à mercê dos próprios instintos e não há leis que determinem a cada um o que é seu, todos têm


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direito sobre todas as coisas (ius in omnia) e nasce a guerra de todos contra todos. Sobre o estado de natureza, somente se pode dizer que é intolerável e que dele é preciso sair. E de fato, a primeira lei da razão para Hobbes é a que prescreve buscar a paz (pax est quaerenda). Para sair do estado de natureza de modo estável e definitivo, os homens pactuam entre si objetivando renunciar reciprocamente aos direitos que tinham in natura e transmiti-los a um soberano (pactum subiectionis). Ora, o direito fundamental que os homens têm no estado de natureza é o de decidir, cada um segundo os próprios desejos e interesses, aquilo que é justo e injusto, e tanto isso é verdade que enquanto perdura o estado de natureza não existe nenhum critério para distinguir o justo do injusto, exceto o arbítrio e o poder dos indivíduos. Na passagem do estado de natureza ao Estado civil, os indivíduos transmitindo todos os seus direitos naturais ao soberano, lhe transmitem também o direito de decidir o que é justo ou injusto; e assim, desde o momento em que o Estado civil é constituído, não há outro critério do justo e do injusto que não seja a vontade do soberano. Esta doutrina hobbesiana está ligada à concepção da simples convencionalidade dos valores morais e, portanto, também da justiça, segundo a qual não existe um justo por natureza, mas somente um justo por convenção (também por este aspecto a doutrina hobbesiana é a antítese da doutrina jusnaturalista). No estado de natureza, não existe o justo e o injusto porque não existem convenções válidas. No Estado civil, o justo e o injusto repousam sobre o comum acordo entre os indivíduos de atribuir ao soberano o poder de decidir o que é justo e injusto. Para Hobbes, então, a validade de uma norma jurídica e a justiça dessa norma não se distinguem, porque  a justiça e a injustiça nascem juntas com o direito positivo, isto é, juntas com a validade. Enquanto se permanece no estado de natureza não há direito válido, mas tampouco há justiça; quando surge o Estado nasce a justiça, mas esta nasce ao mesmo tempo que o direito positivo, de modo que, onde não há direito não há também justiça, e onde há justiça, significa que há um sistema constituído de direito positivo.


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A doutrina de Hobbes tem um significado ideológico bem preciso, que não cabe discutir aqui: ela é a justificação teórica mais consequente do poder absoluto. Para nós, basta pôr em evidência qual conseqüência seríamos obrigados a deduzir do problema que nos interessa, se aceitássemos o ponto de vista hobbesiano. A conseqüência seria a redução da justiça à força. Se não existe outro critério do justo e do injusto além do comando do soberano, é preciso resignar-se a aceitar como justo o que agrada ao mais forte, uma vez que o soberano, se não é o mais justo entre os homens, certamente é o mais forte (e permanece soberano, não enquanto for justo, mas enquanto for o mais forte). A distinção entre validade e justiça serve justamente para diferenciar a justiça da força. Se esta distinção desaparece, e a justiça é reduzida à validade, também a distinção entre justiça e força não é mais possível. Somos assim reconduzidos à célebre doutrina sofistica sustentada por Trasímaco no livro I de A República de Platão, e refutada por Sócrates. Trasímaco, impaciente com a discussão sobre a justiça que Sócrates desenvolve com seus amigos, intervém como um animal selvagem - escreve Platão - que deseja dilacerar os presentes, e, depois de afirmar que tudo o que Sócrates estava dizendo era mentira, enuncia a sua definição com estas célebres palavras: “E me escutem agora. Eu afirmo que a justiça não é outra coisa senão o útil para o mais forte" (A República, 338 c.). E algo semelhante tinha dito um outro sofista, Cálicles, que em um outro diálogo de Platão (Górgias), dispara esta condenação dos fracos e exaltação dos fortes: “Mas a própria natureza, em minha opinião, demonstra ser justo que o mais forte esteja por cima do mais fraco e o mais capaz do menos capaz. Tal critério do justo aparece também nos outros animais, entre Estado e Estado e entre povo e povo, isto é, o mais forte dominando o mais fraco e obtendo maiores vantagens" (Górgias, 483 d.).

A doutrina segundo a qual a justiça é a vontade do mais forte tem sido refutada várias vezes no curso do pensamento ocidental. Mas talvez as páginas mais expressivas sejam aquelas que escreveu Rousseau no início de Do Contrato Social, em


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um capítulo justamente intitulado “Du droit du plus fort” (Do direito do mais forte), do qual cito alguns dos trechos mais incisivos: “A força é uma potência física: não vejo qual moralidade possa derivar dela. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade: quando muito, um ato de prudência. Em que sentido poderia ser um dever?... Admitindo-se que é a força que cria o direito, o efeito muda com a causa: toda força que supera a primeira tem direito de sucedê-la. Admitindo-se que se pode desobedecer impunemente, então pode-se fazê-lo legitimamente e, uma vez que o mais forte tem sempre razão, trata-se somente de se fazer o mais forte... Se é preciso obedecer por força, não o é por dever, e se não somos mais forçados a obedecer, tampouco somos obrigados”.

 

14.  REALISMO JURÍDICO

No decorrer do pensamento jurídico do século XX, em diversos momentos, houve teóricos do Direito que buscaram captar o momento constitutivo da experiência jurídica não tanto nos ideais de justiça nos quais se inspiram os homens, ou dizem inspirar-se, ou ainda nos ordenamentos jurídicos constitutivos, mas sim na realidade social, onde o direito se forma e se transforma, nas ações dos homens que fazem e desfazem com seu comportamento as regras de conduta que os governam. Seguindo a terminologia adotada, poderíamos dizer que estes movimentos, dentre os vários aspectos pelos quais apresentam o fenômeno jurídico, colocaram em relevo a eficácia, mais do que a justiça ou a validade. Travam uma batalha em duas frentes: contra o jusnaturalismo, que teria uma concepção ideal do direito, e contra o positivismo em sentido estrito, que tem uma concepção formal do direito. Em antítese ao primeiro, estas correntes podem ser chamadas de realistas e ao segundo, conteudísticas, no sentido em que não vêem o direito como deve ser, mas como efetivamente é, e nem o entendem como complexo de normas válidas, mas como normas efetivamente aplicadas em uma determinada sociedade. Segundo o ponto


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de vista por eles defendido, pecam por abstração tanto os jus- jusnaturalistas quanto os positivistas, os primeiros porque substituem o direito real pela aspiração à justiça, os segundos porque o substituem pelas regras impostas e formalmente válidas, que freqüentemente são pura forma vazia de conteúdo. Os positivistas veriam apenas o contraste existente entre direito válido e direito justo. Os sequazes destas correntes vêem também um contraste entre direito imposto e aquele efetivamente aplicado, e consideram apenas este último o direito em sua concretude, único objeto passível de pesquisa por parte dos juristas que não pretendem perder tempo com fantasmas vazios.

Acredito que no século XIX se possa individualizar ao menos três momentos em que uma peculiar maneira de conceber o direito emergiu e, emergindo, contribuiu para alargar o horizonte da ciência jurídica.

O primeiro momento é representado pela Escola histórica do direito, do grande jurista alemão Friedrich Carl von Savigny, e de seu discípulo Friedrich Puchta, que floresceu.na época da Restauração. Esta escola representa, no campo do direito, a mudança de clima do pensamento jurídico derivada da difusão do romantismo: é a expressão mais genuína do romantismo jurídico. Como o romantismo em geral combate a abstração racionalista do iluminismo do século XVIII (ou pelo menos suas degenerações), também a escola histórica do direito ataca aquele modo racionalista e abstrato de conceber o direito, que é o jusnaturalismo, segundo o qual há um direito universalmente válido dedutível de uma natureza humana sempre igual. Para a escola histórica, o direito não se deduz dos princípios racionais, mas é um fenômeno histórico e social que nasce espontaneamente do povo: o seu fundamento é, para usar uma expressão que se tornou famosa, não a natureza universal, mas o espírito do povo (Volksgeist), daí a conseqüência de existirem tantos direitos diversos quanto diversos são os povos com suas inúmeras características e em suas várias fases de desenvolvimento. A mudança de perspectiva no estudo do direito se manifesta sobretudo na consideração do direito con-


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suetudinário como fonte primária do direito, isto porque ele surge imediatamente da sociedade e é a expressão genuína do sentimento jurídico popular em confronto com o direito imposto posto pela vontade do grupo dominante (a lei) e aqueles elaborados pelos técnicos (o chamado direito científico). Poderiamos ver nesta reabilitação do costume como fonte do direito um aspecto de sua valorização social que se contrapõe tanto ao jusnaturalismo abstrato quanto ao rígido positivismo estatalista predominante em geral entre os juristas.

O segundo momento de reação antijusnaturalista e também antiformalista é representado por um vário e vasto movimento histórico, iniciado na Europa continental no final do século XIX e podemos chamá-lo de concepção sociológica do direito. Surge como efeito da defasagem que se vinha criando entre a lei escrita nos códigos (o direito válido) e a realidade social que seguiu a revolução industrial (o direito eficaz). O efeito mais relevante desta nova concepção se traduz na evocação mais insistente, não tanto do direito consuetudinário, mas do direito judiciário, isto é, daquele elaborado pelos juízes no contínuo labor de adaptação, da lei às necessidades concretas emergentes da sociedade, que deveríam constituir, de acordo com os seguidores desta corrente, o remédio mais eficaz para acolher as instâncias do direito que se elabora espontaneamente no variado entrelaçar das relações sociais e no diversificado entre-choque de interesses contrapostos. Não podemos seguir aqui as múltiplas manifestações desta corrente. Limitaremo-nos a recordar o movimento do direito livre, advindo sobretudo da Alemanha, pela obra de Kantorowicz, que escreveu um manifesto em defesa da liberdade de criação normativa por parte do juiz (La lotta per la scienza dei diritto [A Luta pela Ciência do Direito], publicado em 1906 com o pseudônimo de Gnaeus Flavius). Pode-se enumerar, entre as obras mais notáveis deste movimento, os quatro volumes de François Gény, Science et téchnique en droit privé positif (Ciência e Técnica em Direito Privado Positivo) (1914-1924), onde se contrapõe à técnica do direito, voltada para o objetivo secundário e subordinado de


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adaptar a regra jurídica às necessidades práticas da legislação, a ciência jurídica, à qual cabe encontrar, tendo em vista os dados históricos, ideais, racionais e reais, as regras jurídicas novas; a obra de Eugene Ehrlich sobre a lógica dos juristas (Die Juristische Logik de 1925), que é uma das mais documentadas e intransigentes polêmicas contra o positivismo estatalista em nome da livre apreciação do direito por parte do juiz e do juristas, os quais devem procurar as soluções das controvérsias não tanto apegando-se ao dogma da vontade estatal passivamente aceito, mas imergindo-se no estudo do direito vivente que a sociedade em contínuo movimento permanentemente produz. A polêmica contra o rígido estatalismo, acompanhada da polêmica contra uma jurisprudência predominantemente conceituai, a chamada jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz), suscitou como reação uma jurisprudência realista cuja tarefa deveria ser julgar com base na valoração dos interesses em conflito, chamada, pelo seu principal expoente Philip Heck, de jurisprudência dos interesses.

Poderiamos considerar como terceiro momento, o mais violento e radical da revolta antiformalista, a concepção realista do direito que logrou êxito na primeira metade do século passado nos Estados Unidos da América. Não se pode esquecer que os países anglo-saxões são naturalmente mais inclinados às teorias sociológicas do direito devido à posição que o direito consuetudinário (common lauu) ocupa em seus sistemas normativos, que não conhecem as grandes codificações. O pai espiritual destas modernas correntes realistas é um grande jurista, que por longos anos foi juiz da Corte Suprema, Oliver Wendell Holmes (1841 - 1935), o primeiro, no exercício mesmo de suas funções de juiz, a repudiar o tradicionalismo jurídico das cortes, e a introduzir uma interpretação evolutiva do direito, mais sensível às mudanças da consciência social. Além disso, a jurisprudência sociológica teve como teórico na América o mais notável filósofo do direito americano destes últimos cinqüenta anos, Roscoe Pound, o qual, em uma longa série de escritos que alcançaram grande ressonância entre os juristas americanos, se


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fez defensor da figura do jurista-socíólogo, entendendo com esta expressão o jurista que leva em conta, em sua interpretação e aplicação do direito, os fatos sociais dos quais o direito deriva e que deve regular. A escola realista, por outro lado, que teve como mais radical defensor Jerome Frank, vai bem mais adiante dos princípios que se podem extrair de Holmes e Pound. A tese fundamental por ela sustentada é que não existe um direito objetivo, isto é, objetivamente dedutível de dados determinados, sejam estes fornecidos pelos costumes, pela lei ou pelo precedente jurídico: o direito é contínua criação do juiz, é obra exclusivamente do magistrado no ato em que decide uma controvérsia. Cai deste modo o tradicional princípio da certeza jurídica, e de fato, qual pode ser a possibilidade de prever a conseqüência de um comportamento - nisto consiste a certeza -, se o direito é uma contínua nova criação do juiz? Para Frank, realmente, a certeza, uma das pilastras dos ordenamentos jurídicos continentais, é um mito, que deriva de uma espécie de aquiescência infantil do princípio de autoridade [esta tese foi sustentada em um livro dos anos 30, Law and Modern Mind (Direito e Pensamento Moderno)]: um mito a ser derrubado para se elevar sobre as suas ruínas o direito como contínua e imprevisível criação.

A parte o inaceitável extremismo do realismo americano, grande foi o mérito das correntes sociológicas no campo do direito, porque impediram a cristalização da ciência jurídica em uma dogmática sem ímpeto inovador. Outro, porém, é o discurso que aqui nos interessa sobre a relação entre validade e eficácia. Pode-se dizer que mediante a acentuação do momento ativo, evolutivo, social do direito, venha a desaparecer a diferença entre validade e eficácia no sentido de que só o direito válido seja eficaz, isto é, efetivamente seguido e aplicado? Não acredito nisso. Para circunscrever e precisar a discussão, tenhamos em vista o fato de que a crítica das correntes sociológicas se resolve freqüentemente em uma revisão das fontes do direito, vale dizer, em uma crítica ao monopólio legal, e na reabilitação de duas outras fontes diversas da lei, o direito con-


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suetudinário e o direito judiciário (o juiz legislador). Observemos então como se apresentam a relação entre validade e eficácia nestas duas fontes:

a) No que concerne ao direito consuetudinário, foi dito que nele validade e eficácia coincidem, no sentido que embora se possa imaginar uma lei que seja válida mas não seja eficaz, não se pode imaginar um costume que seja válido sem ser eficaz, porque, faltando a eficácia, perde-se também a repetição constante, uniforme e geral, que é um dos requisitos essenciais para caracterizar o costume. Mas esta afirmação não é de todo exata: se é justo dizer que no direito consuetudinário a validade vem sempre acompanhada da eficácia, a proposição inversa, que a eficácia seja sempre acompanhada da validade, não é aceitável. Dizer que um costume se torna válido devido a sua eficácia equivalería a sustentar que um comportamento se faz jurídico pelo simples fato de ser constantemente repetido. Nota-se, ao invés disso, que não basta que um comportamento seja efetivamente seguido pelo grupo social para se tornar um costume jurídico. O que é necessário além disso? E necessário, precisamente, que o que se chama “validade”, ou seja, aquele comportamento constante que constitui o conteúdo do costume, receba uma forma jurídica, ou venha a ser acolhido em um determinado sistema jurídico, como comportamento obrigatório, isto é, cuja violação implica uma sanção. Essa forma jurídica é atribuída ao direito consuetudinário pela lei, quando o invoca, ou pelo juiz quando ele traz como matéria de sua decisão um costume, ou pela vontade concorde das partes. Os juristas dizem que para a formação de um costume jurídico se dá, além da repetição, também o requisito interno ou psicológico da opinio iuris. Mas para que se forme esta opinio iuris, isto é, a convicção que o comportamento é obrigatório, é necessário que ele seja qualificado como obrigatório por qualquer norma válida do sistema e isto implica, em última análise, que a norma


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que o regula não seja apenas eficaz, mas também, naquele sistema, válida.

b) No que concerne ao novo e maior relevo dado pelas escolas sociológicas à figura do juiz criador do direito, aqui nasce somente o problema de se poder considerar propriamente direito aquele direito vivente, ou em formação, aquele direito que nasce espontaneamente da sociedade, a quem os teóricos da corrente sociológica do direito apelam. Socorre-nos, a este propósito, a distinção entre fontes de cognição e fontes de qualificação do direito. O direito vivente é pura e simplesmente um fato ou uma série de fatos de onde o juiz tira conhecimento das aspirações jurídicas que vêm se formando na sociedade. Mas para que estas aspirações se tornem regras jurídicas, é necessário que o juiz as acolha e lhes atribua a autoridade normativa que incorpora a sua função de órgão capaz de produzir normas jurídicas. O direito vivente não é ainda direito, isto é, norma ou complexo de normas do sistema, enquanto seja apenas eficaz. Torna-se tal no momento em que o juiz, reconhecido como criador do direito, lhe atribui também a validade. Na realidade, pode-se falar de um juiz criador do direito, propriamente na medida em que as regras que ele descobre na realidade social não sejam ainda regras jurídicas, e não o serão até que ele as reconheça e lhes atribua força coativa. Mesmo as famosas opiniões expressas pelo juiz Holmes, na sua atividade de juiz, embora surgissem da observação da realidade social, e fossem mais sensíveis ao chamado direito em formação do que as sentenças de seus colegas, não se tornaram direito positivo dos Estados Unidos enquanto ele as sustentou na qualidade de minoria, já que naquele sistema era direito válido somente o reconhecido pela maioria da Corte. Se o direito vivente pode ser considerado como fonte de cognição jurídica, apenas o juiz (e com maior razão o legislador) podem ser considerados como fontes de qualificação.


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Capítulo III

As Proposições Prescritivas

 

Sumário

15. UM PONTO DE VISTA FORMAL. 26

16............................................................... A NORMA COMO PROPOSIÇÃO.. 29

17. FORMAS E FUNÇÕES.. 32

18. AS TRÊS FUNÇÕES.. 34

19. CARACTERÍSTICAS DAS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS.. 37

20. PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES DESCRITIVAS?. 40

21. PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES EXPRESSIVAS?. 44

22. IMPERATIVOS AUTÔNOMOS E HETERÔNOMOS.. 46

23. IMPERATIVOS CATEGÓRICOS E IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS.. 49

24. COMANDOS E CONSELHOS.. 52

25. OS CONSELHOS NO DIREITO.. 56

26. COMANDOS E INSTÂNCIAS.. 59

 

15. UM PONTO DE VISTA FORMAL

O ponto de vista pelo qual nos propomos a estudar a norma jurídica, neste curso, pode-se dizer formal. É formal no sentido em que consideraremos a norma jurídica independentemente do seu conteúdo, ou seja, na sua estrutura. Toda norma, assim como toda proposição, apresenta problemas estruturais que são formulados e resolvidos sem se atentar para o fato de que ela tenha este ou aquele conteúdo. Como qualquer outra pro-


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posição, a norma também tem uma estrutura lógico-lingüística que pode ser preenchida com os mais diversos conteúdos. Assim como a estrutura do juízo “S é P” vale tanto para a proposição: “Sócrates é mortal” quanto para a proposição “A baleia é um mamífero”, também a estrutura da norma “Se é A, deve ser B” vale tanto para a prescrição “Se pisou no canteiro, deverá pagar multa”, como para a prescrição “Se matou com premeditação, deverá sofrer a pena de prisão perpétua”. O que faremos objeto de estudo na seqüência do curso será a norma jurídica na sua estrutura lógico-lingüística. Frente ao complexo de normas jurídicas, o nosso problema será o de nos perguntarmos que tipo de proposições são elas, se são proposições prescritivas, que classes de proposições prescritivas compreendem, e assim por diante.

Entenda-se que o estudo formal das normas jurídicas que aqui se desenvolve não exclui absolutamente outros modos de considerar o direito. Se me proponho a conhecer não qual é a estrutura da norma jurídica, mas qual é a oportunidade ou a conveniência ou a justiça das normas jurídicas que compõem um determinado sistema, ou qual é a eficácia social que certas normas exercem em um determinado ambiente histórico, o objeto da minha investigação não será mais a forma ou estrutura, ou seja, para usar uma metáfora, o invólucro, o recipiente, mas o conteúdo, o que o recipiente contém, isto é, os comportamentos regulados. A norma “É proibido pisar no canteiro” é, do ponto de vista formal, um imperativo negativo, e não difere da norma “É proibido matar”. Mas se quero saber quais são os motivos pelos quais esta norma foi emanada, se estes motivos são aceitáveis, se ela é efetivamente seguida ou continuamente violada, etc., deverei fazer investigações em um campo completamente diverso daquele que se tornaria meu objeto de estudo se quisesse fazer perguntas análogas em torno da proibição de matar.

Advertindo desde o princípio que o ponto de vista formal não é um modo exclusivo de considerar a norma jurídica, quero evitar que se confunda o estudo formal da norma jurídica com


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um dos tantos formalismos que têm adquirido direito de cidadania no campo do saber jurídico, e contra os quais se acendeu, de modo particularmente vivo, a polêmica em décadas atrás.

Por “formalismo jurídico” se entende uma consideração exclusiva do direito enquanto forma. Como a polêmica antiformalista nem sempre distingue um tipo de formalismo do outro, e disto nasça comumente uma grande confusão, creio que, sob o nome genérico de “formalismo jurídico” hoje se compreendem pelo menos três teorias diversas, que têm visões diversas e que requerem, posto que se queira combatê-las, argumentos diversos. Um primeiro tipo de formalismo no direito é o que se poderia chamar de formalismo ético, vale dizer, a doutrina segundo a qual é justo o que é conforme à lei, e como tal repele todo critério de justiça que esteja acima das leis positivas e com base no qual as mesmas leis positivas podem ser avaliadas. Esta doutrina pode ser considerada formal, no sentido em que faz a justiça consistir na lei só pelo fato de que é lei, ou seja, de que é comando posto pelo poder soberano, e por isso prescinde, para produzir um juízo de valor, do seu conteúdo. Um segundo tipo de formalismo é o que se poderia chamar mais precisamente de formalismo jurídico, e compreende a doutrina segundo a qual a característica do direito não é a de prescrever aquilo que cada um deve fazer, mas simplesmente o modo em que cada um deve agir se quiser alcançar os próprios objetivos e, portanto, não cabe ao direito estabelecer o conteúdo da relação intersubjetiva, mas a forma que ela deve assumir para ter certas conseqüências. Este tipo de formalismo remonta à velha definição kantiana do direito, que foi retomada pelas correntes neokantianas, segundo a qual, uma das características da relação jurídica é que nela não entra em consideração a matéria do arbítrio, isto é, o fim a que alguém se propõe com o objeto que deseja, mas somente a forma, enquanto os dois arbítrios trios são considerados como absolutamente livres.

Finalmente, há um terceiro tipo de formalismo, que se poderia chamar de formalismo científico porque concerne não ao modo de definir a justiça (formalismo ético), nem ao modo de


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definir o direito (formalismo jurídico), mas ao modo de conceber

a ciência jurídica e o trabalho do jurista, a quem é atribuída a tarefa de construir o sistema de conceitos jurídicos tal como se deduzem das leis positivas, tarefa puramente declarativa ou recognitiva e não criativa, e de extrair dedutivamente do sistema assim construído a solução de todos os possíveis casos controversos.

E inútil dizer que os três tipos de formalismos não devem ser confundidos porque cuidam de problemas diversos. O primeiro responde à pergunta: “O que é a justiça?”; o segundo: “O que é o direito?”; o terceiro: “Como deve comportar-se a ciência jurídica?”. Um autor pode ser formalista no primeiro sentido e não no segundo e no terceiro, e assim por diante. E deste modo, a polêmica antiformalista avessa, digamos, ao formalismo jurídico, não vale para o formalismo ético e para o formalismo científico. Infelizmente, a maior parte dos autores não faz qualquer distinção e, muitas vezes, sob o nome genérico de “revolta contra o formalismo” englobam-se conceitos diversos. Para nós, basta aqui ter posto em evidência que o ponto de vista formal, do qual partimos, não tem nada a ver com nenhum dos três formalismos, porque não pretende ser uma teoria exclusiva, nem da justiça, nem do direito, nem da ciência jurídica, mas é pura e simplesmente um modo de estudar o fenômeno jurídico na sua complexidade, um modo que não só não exclui, como exige os demais para que se possa obter um conhecimento integral da experiência jurídica.

 

16.      A NORMA COMO PROPOSIÇÃO

Do ponto de vista formal, que aqui elegemos, uma norma é uma proposição. Um Código, uma Constituição, são um conjunto de proposições. Trata-se de saber qual é o status dessas proposições que compõem um Código, uma Constituição. A tese que sustentamos é que as normas jurídicas pertencem à categoria geral das proposições prescritivas. Assim, a nossa investigação se desenvolve por meio de quatro fases: 1) estudo


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das proposições prescritivas e sua distinção dos outros tipos de proposições; 2) exame e crítica das principais teorias sustentadas sobre a estrutura formal da norma jurídica; 3) estudo dos elementos específicos da norma jurídica enquanto prescrição; 4) classificação das prescrições jurídicas.

Por proposição entendemos um conjunto de palavras que possuem um significado em sua unidade. Sua forma mais comum é o que na lógica clássica se chama juízo, uma proposição composta de um sujeito e de um predicado, unidos por uma cópula (S é P). Mas nem toda proposição é um juízo. Por exemplo: “Olhe!”, “Quantos anos você tem?” são proposições, mas não juízos. Além disso, é necessário distinguir uma proposição de seu enunciado. Por enunciado entendemos a forma gramatical e linguística pela qual um determinado significado é expresso, por isso a mesma proposição pode ter enunciados diversos, e o mesmo enunciado pode exprimir proposições diversas. Uma mesma proposição pode ser expressa por enunciados diversos quando se altera a forma gramatical. Por exemplo: “Mário ama Maria” e “Maria é amada por Mário”, o significado é idêntico e o que muda é apenas a expressão; ou ainda na passagem do mesmo significado de uma expressão numa língua para o seu equivalente em outra. Por exemplo: “Chove”; “Piove”; “11 pleut”; “lt’s raining”; “Es regnet” são enunciados diversos da mesma proposição. Ao contrário, com o mesmo enunciado pode-se exprimir, em contextos e circunstâncias variáveis, proposições diversas. Por exemplo, quando eu digo, voltando-me para um amigo com quem estou passeando: “Gostaria de beber uma limonada”, pretendo exprimir um desejo meu e além disso dar ao meu amigo uma informação sobre o meu estado de espírito; se dirijo as mesmas palavras para uma pessoa que está atrás do balcão de um bar, não pretendo expressar um desejo nem dar-lhe uma informação, mas impor-lhe uma determinada conduta. (Enquanto no primeiro uso da expressão é previsível, por parte do amigo, a resposta: “Eu também”; a mesma resposta por parte do segundo interlocutor seria quase uma ofensa).


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Quando defino uma proposição como um conjunto de palavras que possuem um significado em sua unidade, entendo excluir do uso deste termo conjuntos de palavras sem significado. Um conjunto de palavras pode não ter um significado em sua unidade, embora tenham um significado as palavras que o componham, como, por exemplo: “César é um número primo”; “o triângulo é democrático”. Ou ainda podem não possuir um significado como unidade, porque as palavras mesmas que o compõem não têm, tomadas singularmente, um significado, como por exemplo: “Pape Satan, pape Satan aleppe”. Um conjunto de palavras sem significado não pode ser confundido com uma proposição falsa. Uma proposição falsa é sempre uma proposição porque tem um significado. Por exemplo: “César morreu nos idos de abril”; “o triângulo tem quatro lados”. E falsa porque, se submetida ao critério de verdade que dispomos para julgá-la, demonstra-se que não possui os requisitos solicitados para afirmar-se como verdadeira. Se é uma proposição sintética, o critério para julgá-la é a maior ou menor correspondência aos fatos; se é uma proposição analítica, o critério é a coerência ou validade formal. Seja como for, para que uma proposição possa ser verificada ou falsificada é necessário que tenha um significado.

Quando dizemos que uma norma jurídica é uma proposição, queremos dizer que é um conjunto de palavras que têm um significado. Com base no que dissemos acima, a mesma proposição normativa pode ser formulada com enunciados diversos. O que interessa ao jurista, quando interpreta uma lei, é o seu significado. Como uma proposição em geral pode ter um significado, mas ser falsa, também uma proposição normativa pode ter um significado e ser - não digamos falsa - mas, pelas razões que veremos a seguir, inválida ou injusta. Também para as proposições normativas, o critério de significância pelo qual se distinguem as proposições propriamente ditas de um conjunto de palavras sem significados se diferencia do critério de verdade ou validade, pelo qual se distinguem proposições verdadeiras e válidas de proposições falsas ou inválidas.


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17. FORMAS E FUNÇÕES

Há vários tipos de proposições. Pode-se distingui-los com base em dois critérios: a forma gramatical e a função[nota 2] Com base na forma gramatical, as proposições se distinguem principalmente em declarativas, interrogativas, imperativas e exclamativas. Com respeito às funções, se distinguem em asserções, perguntas, comandos, exclamações. Exemplos: “Chove” (proposição formalmente declarativa e com função de asserção); “Chove?” (proposição formalmente interrogativa e com função de pergunta); “Pegue o guarda-chuva” (proposição formalmente imperativa e com função de comando); “Como você está molhado!” (proposição formalmente exclamativa com função de exclamação). Freqüentemente - como resulta dos exemplos dados - forma gramatical e função se correspondem segundo a ordem acima exposta: um comando vem habitualmente expresso na forma imperativa. Mas os dois critérios se distinguem, porque o primeiro diz respeito ao modo com o qual a proposição é expressa, e o segundo ao fim a que se propõe alcançar aquele que a pronuncia. E que os dois critérios sejam distintos, pode-se mostrar pelo fato de que a mesma função pode ser expressa com formas diferentes e, inversamente, com a mesma forma gramatical pode-se exprimir funções diversas.

Entre todos os tipos de proposições, nos interessam de modo particular os comandos, ou seja, aquelas proposições cuja função é, como veremos melhor em seguida, influir sobre o comportamento alheio para modificá-lo, e que por ora chamaremos genericamente de “comandos”, ainda que seja necessário introduzir distinções ulteriores. Pois bem, um comando, ou uma proposição que se distingue por uma função particular, pode ser expresso, segundo as circunstâncias e os contextos em todas as formas gramaticais mencionadas acima.


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Certamente, a forma mais comum é a imperativa: “Estude!” (não se afirma, com isto, que a forma imperativa corresponda sempre ao modo verbal imperativo; há outras formas gramaticais imperativas como aquela constituída pelo verbo auxiliar “dever”: “Você deve estudar”). Mas um comando é às vezes expresso na forma declarativa, como ocorrería maioria dos artigos de lei que, mesmo tendo uma indubitável função imperativa, são quase sempre expressos na forma declarativa. Quando o art. 566 do Código Civil italiano diz: “Ao pai e à mãe sucedem os filhos legítimos em partes iguais”,[nota 3] a intenção de quem pronunciou esta fórmula não é a de dar uma informação, mas a de impor uma série de comportamentos: trata-se manifestamente de uma proposição declarativa com função de comando. Assim, quando um pai dirigindo-se ao filho lhe diz com ar ameaçador: “Você não acha que esta tarefa está cheia de erros?”, a proposição é formalmente interrogativa, mas a função que o pronunciante lhe atribui é de induzir o destinatário a corrigir a tarefa, e por isso, em última análise, não obstante a forma interrogativa, a proposição é um comando, ainda que expresso como uma interrogação. Muitas das “interrogações” que se fazem no Parlamento, segundo um procedimento estabelecido, são proposições, ou séries de proposições, cujo fim principal não é tanto aquele de receber informações (o interrogante comumente sabe com antecedência o que o governo responderá ou não), quanto o de induzir o governo a modificar o próprio comportamento: também aqui, atrás da forma interrogativa, aparece, em sentido amplo, a função preceptiva. Por fim, passando em frente de um portão de uma casa leio um cartaz assim escrito: “Cuidado com o cão!”. É uma exclamação? Se a proposição tivesse a função exclamativa, significaria que os proprietários da casa quiseram com aquela frase exprimir publicamente o seu estado de ânimo sobre a periculosidade do seu cão. Mas não é assim: lendo o cartaz, compreendo que devo passar longe. Mas isto quer dizer que aquela frase,


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na sua aparência de exclamação, tem função de comando, ou pelo menos de recomendação, ou seja, não exprime sentimentos, mas tende a influir no comportamento alheio. Há um sinal nas estradas que todos conhecemos, composto por uma espécie de ponto exclamativo: inútil dizê-lo, este sinal não é expressão de um estado de espírito, mas um convite à prudência.

Assim como a mesma função pode ser expressa através de formas gramaticais diversas, também a mesma forma gramatical pode exprimir diversas funções. Em um tratado de geografia pode ocorrer que eu leia a seguinte frase: “A Itália se divide em regiões, províncias e municípios”. Ninguém duvida que esta proposição declarativa é, em relação à função, uma asserção, ou seja, uma proposição cujo fim é dar uma informação. Na Constituição da República italiana leio o art. 114: “A República se divide em regiões, províncias e municípios”. A proposição é, em relação à forma gramatical, idêntica àquela que eu li no tratado de geografia. Mas o significado é também o mesmo? O constituinte não se propôs absolutamente, editando este artigo, a dar aos cidadãos italianos uma informação geográfica, mas a estabelecer uma diretriz para o legislador: a frase, em suma, não é uma asserção, mas uma norma.

 

18. AS TRÊS FUNÇÕES

Julgo que seja possível distinguir três funções fundamentais da linguagem: a função descritiva, a expressiva e a prescritiva. Estas três funções dão origem a três tipos de linguagens bem diferenciadas mesmo que nunca as encontremos em estado puro na realidade, quais sejam a linguagem científica, a poética e a normativa. Interessa-nos de modo particular a função prescritiva: um conjunto de leis ou regulamentos, um Código, uma Constituição, constituem os mais interessantes exemplos de linguagem normativa, assim como um tratado de física ou de biologia constituem exemplos característicos da linguagem científica, e um poema ou uma canção, exemplos representativos

 

 

 

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da linguagem poética. Tais exemplos já elucidam a distinção. Sem a pretensão de dar definições rigorosase exaustivas, aqui nos basta dizer que a função descritiva, própria da linguagem científica, consiste em dar informações, em comunicar aos outros certas notícias, na transmissão do saber, em suma, em fazer conhecer; a função expressiva, própria da linguagem poética, consiste em evidenciar certos sentimentos e em tentar evocá-los, de modo a fazer participar os outros de uma certa situação sentimental; a função prescritiva, própria da linguagem normativa, consiste em dar comandos, conselhos, recomendações, advertências, influenciar o comportamento alheio e modificá-lo, em suma, no fazer fazer.

Embora seja difícil encontrar estes tipos de linguagem no estado puro, deve-se admitir, porém, que a linguagem científica tende a despir-se de toda função prescritiva e expressiva, onde nasce o ideal científico que, segundo Espinosa, não chora e não ri. e é indiferente às conseqüências práticas que possam derivar de suas próprias descobertas. Uma poesia quanto mais se libera da função informativa mais genuína se torna (para obter dados sobre Zacinto lerei um tratado de geografia e não um soneto de Foscolo), e da prescritiva (uma poesia que se proponha a promover uma ação é uma poesia didascálica ou oratória, e, conforme os cânones bem conhecidos da estética da intuição-expressão, uma não-poesia). Um corpo de leis tende a eliminar tudo o que não é preceito, e portanto a característica de um moderno Código em confronto com as leis de uma civilização menos desenvolvida está propriamente na eliminação de todos os elementos descritivos e evocativos que com frequência aparecem misturados aos prescritivos. Há, apesar disso, tipos de discurso cuja característica consiste propriamente em combinar dois ou mais tipos de linguagem: um discurso celebrativo, uma comemoração, é uma combinação de proposições descritivas e expressivas (trata-se de dar notícias sobre a vida do homenageado e ao mesmo tempo suscitar certos sentimentos de admiração pelas obras realizadas, indignação pelas injustiças sofridas, dor pela morte precoce, etc);


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um sermão é uma combinação de proposições expressivas e prescritivas (trata-se de suscitar certos sentimentos - piedade pelos mortos, compaixão pelos aflitos, etc. - e de persuadir a cumprir certas obras); o pronunciamento de um advogado de defesa é quase sempre uma combinação de informações (por exemplo, a figura moral e intelectual do imputado), de evocação de sentimentos (a chamada “moção de afetos”), e de prescrições (o pedido de absolvição).

Que uma prescrição venha acompanhada de outros tipos de proposições, não é difícil de explicar. Para que a pessoa a quem se dirige a prescrição resolva agir nem sempre basta que escute o pronunciamento do comando puro e simples: é necessário, às vezes, que ela conheça certos fatos e deseje certas conseqüências. Para que tenha conhecimento destes fatos que a induzem a agir, é necessário dar-lhe informações; para que deseje certas conseqüências, é preciso suscitar-lhe um certo estado de espírito; logo, para que venha a conhecer certos fatos e desejar certas conseqüências, é necessário informá-la e suscitar-lhe um determinado estado de espírito. Assim, quando digo: “Pegue o guarda-chuva” e acrescento: “Chove”, uno a prescrição à informação. Se digo, ao invés, “Dê uma esmola para aquele pobrezinho” e continuo: “Como é triste a miséria!”, uno a prescrição à evocação de um sentimento. Dizendo, enfim: “Coma aquilo que está no prato”, e em seguida: “E leite”, e depois, como se não bastasse: “Se você soubesse como é bom!”, uno a prescrição à informação e à evocação de um estado de espírito favorável ao cumprimento da ação. Até mesmo o legislador pode recorrer a discursos descritivos e evocativos para reforçar os seus preceitos: pode ser muito útil para fazer-se cumprir uma lei fornecer as mais amplas informações sobre as vantagens que se pode obter com isso, ou então suscitar com evocações passionais, por exemplo, o amor à pátria, estados de espírito favoráveis à obediência. A linguagem prescritiva é a que tem maiores pretensões, porque tende a modificar o comportamento alheio: nada estranho que se faça valer das outras duas para exercitar a sua própria função.


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19. CARACTERÍSTICAS DAS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS

Um dos problemas em que estiveram majoritariamente empenhados os lógicos nos últimos tempos é a distinção entre proposições descritivas e prescritivas. E um assunto sobre o qual foram escritos nestes anos centenas de livros e artigos. A obra que teve mais sucesso neste campo, e que está geralmente no centro das discussões, é a de R. M. Hare, The Language of Morais [A Linguagem da Moral (Oxford, Clarendon Press, 1952)], à qual remeto o leitor de uma vez por todas. Na Itália, o primeiro estudo sobre o assunto é o de U. Scarpelli, // problema delia definizione e il conceito di diritto [O Problema da Definição e o Conceito de Direito (Miláo, Nuvoletti, 1955)], cujo primeiro capítulo é dedicado ao tema “Linguagem prescritiva e linguagem descritiva”.

Pode-se resumir as características diferenciais das proposições prescritivas e descritivas em três pontos: a) em relação à função; b) em relação ao comportamento do destinatário; c) em relação ao critério de valoração.

Pelo que se refere à função, já dissemos o essencial. Com a descrição queremos informar outrem; com a prescrição, modificar seu comportamento. Não significa que uma informação também não influa sobre o comportamento alheio. Quando em uma cidade estrangeira pergunto a indicação de uma rua, a resposta me induz a andar em uma direção ao invés de em outra. Mas a influência da informação sobre o meu comportamento é indireta, enquanto a influência da prescrição é direta. A fim de que a informação: “Via Roma é a quarta à direita” tenha uma influência sobre o meu comportamento, deve inserir-se em um contexto mais amplo, de que faça parte a prescrição: “Devo ir à via Roma”. Toda modificação voluntária do comportamento pressupõe o momento prescritivo.

Quanto ao destinatário, foi precisamente Hare quem colocou em relevo que, frente a uma proposição descritiva, pode-se falar em consentimento do destinatário quando este crê que a


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proposição é verdadeira. Em uma proposição prescritiva, ao contrário, o consentimento do destinatário se manifesta pelo fato de que a executa. Em outras palavras, pode-se dizer que a prova da aceitação de uma informação é a crença (um comportamento mental), a prova da aceitação de uma prescrição é a execução (um comportamento prático, ainda que a distinção entre comportamento mental e prático seja muito duvidosa e aqui se faça apenas uma primeira aproximação). Diz Hare: “Podemos caracterizar provisoriamente a diferença entre asserções e comandos, dizendo que, enquanto o consentir sinceramente nas primeiras implica em crer em alguma coisa, o consentir sinceramente nos segundos implica em fazer alguma coisa” (op. cit., p. 20).

O caráter distintivo que parece decisivo é o que se refere ao critério de valoração. Sobre as proposições descritivas, pode-se dizer que são verdadeiras ou falsas-, sobre as prescritivas, não. As proposições prescritivas não são nem verdadeiras nem falsas, no sentido em que não estão sujeitas à valoração de verdade e falsidade. Há sentido em perguntar se a asserção “Ulan Bator é a capital da Mongólia” é verdadeira ou falsa; não há sentido em perguntar se o preceito “Pede-se para limpar os sapatos antes de entrar” é verdadeiro ou falso. Verdade e falsidade não são atributos das proposições prescritivas, mas somente das descritivas. Os critérios de valoração com base em que aceitamos ou rejeitamos uma prescrição são outros. A propósito das normas jurídicas, falamos da valoração segundo a justiça e a injustiça (e segundo a validade e a invalidade). Então diremos que, enquanto não tem sentido perguntar-se se um preceito é verdadeiro ou falso, tem sentido perguntar-se se é justo ou injusto (oportuno ou inoportuno, conveniente ou inconveniente) ou válido ou inválido.

A diferença entre os predicados aplicáveis às proposições descritivas e os aplicáveis às prescritivas deriva da diferença de critérios com base em que valoramos umas e outras para dar-lhes o nosso consentimento. O critério com que valoramos as primeiras para aceitá-las ou rejeitá-las é a correspondência com


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os fatos (critério de verificação empírica), ou com os postulados auto-evidentes (critério de verificação racional), segundo se trate de proposições sintéticas ou analíticas. Chamamos de empiricamente verdadeiras as proposições cujo significado é verificado por via empírica, e racionalmente verdadeiras as que são verificadas por via racional. O critério com que valoramos as segundas para aceitá-las ou rejeitá-las é a correspondência com os valores últimos (critério de justificação material) ou a derivação das fontes primárias de produção normativa (critério de justificação formal). Chamamos de justas (ou convenientes) as primeiras, de válidas as segundas. Observe-se que para ambos os tipos de proposições valem dois critérios, um material, o outro formal, mas que não se correspondem entre si. Se tanto, pode-se visualizar uma correspondência entre o segundo critério de verificação (uma proposição é verdadeira quando deduzida das proposições primitivas formuladas como verdadeiras) e o primeiro critério de justificação (uma norma é justa quando é deduzida de uma norma superior formulada como justa). O primeiro critério de verificação das proposições descritivas não encontra correspondência com a valoração das prescrições (seria possível encontrar uma correspondência com o critério da eficácia, precedentemente ilustrado, mas este não é de forma alguma um critério decisivo para a aceitação ou a rejeição das normas). O segundo critério de justificação não encontra correspondência com a valoração das proposições descritivas (seria possível fazê-lo corresponder ao que se chama de valoração segundo o princípio de autoridade, mas esta é uma valoração tão acolhida no mundo normativo quanto desacreditada no domínio descritivo).

Em última análise, a diferença entre a verificação das proposições descritivas e a justificação das proposições prescritivas está na maior objetividade da primeira em relação à segunda; enquanto a primeira tem como último ponto de referência o que é observável e pertence ao domínio da percepção, a segunda encontra o seu último ponto de referência no que é desejado, apetitoso, objeto de tendência ou inclinação, e pertence


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ao domínio da emoção ou do sentimento. Pode-se dizer, para marcar esta diferença, que a verdade de uma proposição científica pode ser demonstrada, enquanto sobre a justiça de uma norma, pode-se somente procurar persuadir os outros (daí a diferença, que vem se firmando, entre lógica, ou teoria da demonstração, e retórica, ou teoria da persuasão).

 

20.      PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES DESCRITIVAS?

Julgamos que a diferença entre os dois tipos de proposições, examinadas no tópico precedente, seja irredutível. Trata-se de dois tipos de proposições que possuem um status diverso. Mas, não desejamos passar em silêncio sobre a mais séria tentativa de redução até agora realizada.[nota 4]

A tese reducionista é formulada do seguinte modo: uma prescrição, por exemplo, “Faça X” pode ser sempre reduzida a uma proposição alternativa do tipo: “Ou faça X ou lhe sucede Y”, onde Y indica uma conseqüência desagradável. A proposição alternativa, sustenta-se, não é mais uma prescrição, mas uma descrição, uma proposição que descreve o que sucederá, o que tanto é verdade que é possível dizer se ela é verdadeira ou falsa: verdadeira quando Y se verifica, falsa quando Y não se verifica. E claro que esta redução repousa sobre o pressuposto de que ordenar implica sempre a ameaça de uma sanção; em outras palavras, a força do comando, o que o torna um conjunto de palavras significantes cuja função é modificar o comportamento alheio, reside nas conseqüências desagradáveis que o destinatário deve esperar de sua inexecução. Se eu digo ao estudante da primeira carteira: “Feche a porta”, esta minha proposição é um comando apenas se o estudante estiver


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convencido de que, não o executando, eu possa repreendê-lo; ou pior, prejudicá-lo com um mau juízo de conduta. Se, ao invés, o estudante estivesse convicto de que, não seguindo o co­mando, não lhe sucedería propriamente nada, aquelas três palavras por mim pronunciadas, embora estando expressas na forma imperativa, não passariam de um flatus voeis [vozes aovento], ou então de uma mera manifestação do meu estado de espírito. Não há dúvida de que a tese é sugestiva; não obstante, creio não poder aceitá-la, especialmente, por três considerações:

1. Que todo comando seja caracterizado pela sanção é uma afirmação dificilmente confirmável por fatos; poderia talvez ser verdadeiro para os comandos jurídicos (como veremos em seguida), mas não se consegue perceber como pode ser sustentado para toda forma de comando. Hare, que não aceita a tese da redução, para dar um exemplo de comando sem conseqüência, propõe o seguinte: “Diga a seu pai que eu lhe telefonei”. Certamente trata-se de uma prescrição, porque com esta frase o locutor pretende fazer com que uma outra pessoa faça alguma coisa. Mas se esta pessoa não a executa, o que sucede? Tentemos colocar esta proposição sob forma alternativa e convenhamos que venha a faltar a segunda parte: “Ou diga a seu pai que eu lhe telefonei, ou então..” Ou então o quê? Muito em geral, parece que por trás da tese da redução haja a convicção de que a única razão pela qual se segue um comando é o temor da sanção, e portanto a função de ordenar é realizada somente mediante a ameaça. Mas, trata-se manifestamente de uma falsa generalização. Não quero empenharme aqui na discussão se há imperativos incondicionais ou categóricos, isto é, imperativos que são seguidos apenas porque são imperativos, mesmo se sobre a existência de tais imperativos Kant funde a autonomia da lei moral, que se distingue de todas as outras leis pelo fato de ser obedecida por si mesma (o dever pelo dever), e não devido à vantagem ou desvantagem que delas se possa tirar (o dever por um fim externo). Mas, prescindindo totalmente da teoria kantiana da moral, e contentando-se com observações no campo da experiência co-

 

 

 

 

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mum, notamos que há comandos que são seguidos unicamente devido ao prestígio, a ascendência ou autoridade das pessoas que ordenam, e assim, através de uma postura que não é de temor, mas de estima ou respeito pela autoridade (é o caso em que a ordem do chefe é obedecida não porque ele se coloque em posição de infligir uma pena, mas porque é o chefe). Em todos esses casos não há alternativa, e portanto, a redução da proposição prescritiva à proposição alternativa é impossível.

2. De qualquer forma, este primeiro argumento não é decisivo. Podemos mesmo admitir que haja verdadeira e propriamente um comando (e não apenas uma proposição que tem a forma gramatical de comando, mas não cumpre a função), unicamente onde a ausência de execução comporta conseqüências desagradáveis, e que portanto se possa admitir sempre que uma prescrição se converta em uma alternativa. Mas, deste modo, foi realmente dada uma resposta satisfatória ao problema de reduzir a prescrição a uma descrição? Não creio. A segunda parte da alternativa: “....ou sucede Y” não se refere a um fato qualquer, mas a um fato desagradável para o destinatário do comando. Ora, “desagradável” é um termo não descritivo, mas de valor, isto é, não indica uma qualidade objetiva, observável, do fato, mas a atitude que se assume diante daquele fato, que neste caso é uma atitude de condenação ou de recusa, ou seja, é um termo que tem um significado não descritivo e que não é redutível a termos descritivos, mas em última análise, como todo termo de valor, tem um significado prescritivo. Quando, de fato, eu julgo uma coisa desagradável, nada digo sobre a qualidade da coisa; digo simplesmente que esta coisa deve ser evitada, isto é, formulo um convite ou uma recomendação para evitá-la; em outras palavras, pretendo influenciar o comportamento dos outros em um certo sentido. Mas então, se a segunda parte da alternativa é constituída de um termo de valor, a função prescritiva expulsa pela porta retorna pela janela, no sentido em que o estímulo para modificar o comportamento não será mais dado pelo comando considerado em si mesmo, porém pelo juízo de valor sobre a conse-

 

 

 

 

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qüência que dele decorrería em caso de violação, e portanto, a função prescritiva é só mascarada, não eliminada, reenviada do comando para a conseqüência do comando, mas não suprimida. Imaginemos que a segunda parte da alternativa contenha um termo não de valor, mas descritivo, por exemplo: “Ou feche a porta ou choverá” (supondo-se que o fato de chover seja indiferente ao interlocutor), e já fica claro que esta proposição não pode ser considerada como a resolução em termos de alternativas de um comando. E não pode ser considerada como a resolução de um verdadeiro comando, porque falta à segunda parte um juízo de valor que realize a função prescritiva própria do comando.

3. Há, enfim, um terceiro argumento que me parece decisivo. A conseqüência que é atribuída à inexecução de um comando não é um efeito naturalmente ligado à ação contrária à lei, mas é uma conseqüência que é atribuída a esta ação pela mesma pessoa que colocou o comando. Como veremos melhor em seguida, aqui, seguindo a terminologia usada por Kelsen, digamos que a conseqüência não está para o ilícito em relação de causalidade, mas de imputação. O imperativo: “Feche a porta”, não se reduz à alternativa: “Ou feche a porta ou pegará um resfriado”, mas a esta outra alternativa: “Ou feche a porta ou será punido”. Ora, no que importa este tipo de conseqüência? Importa que, no caso de violação, intervém um novo comando e correlativamente uma nova obrigação, vale dizer: o comando para quem deve executar a punição e a obrigação, de quem recebe este comando, de segui-lo. Não interessa se a pessoa que deve executar a punição é a mesma que formulou o comando. O que importa notar é que a conseqüência da transgressão põe em ação outro imperativo, o que implica que o imperativo excluído da primeira parte do comando, se encontra, embora de modo implícito, na segunda. Um comando como: “Você não deve roubar” transforma-se na alternativa: “Ou você não rouba ou o juiz o punirá”.

Estas considerações nos convidam a concluir que a tentativa de redução de um comando a uma proposição descritiva

 

 

 

 

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mediante o expediente da alternativa é uma solução irreal. A alternativa não tem por si mesma a forma de uma proposição descritiva: tem uma forma na qual se pode exprimir tanto uma proposição descritiva quanto uma prescritiva, conforme a preenchamos com termos descritivos ou com termos de valor (que desempenhem função prescritiva), ou ainda com outras prescrições.

 

21. PODE-SE REDUZIR AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS A PROPOSIÇÕES EXPRESSIVAS?

Outra tentativa de redução das proposições prescritivas, porém, em nossa opinião, também não convincente, é a que consiste em afirmar que as proposições prescritivas não passam de uma formulação de proposições expressivas. Esta tese é formulada deste modo, dizer: “Você deve fazer X” ou “Faça X”, eqüivale a dizer: “Eu desejo (ou eu gostaria, eu quero, etc.) que você faça X”. O comando seria redutível, em última análise, à expressão de um estado de espírito e consistiría na comunicação desse estado de espírito a outrem.

Tampouco esta redução nos parece convincente, e para mostrar a nossa perplexidade, aduzimos, também aqui, três argumentos:

1.    Não há dúvida que eu posso formular um comando na forma de uma expressão de desejo ou de vontade. Quando digo, por exemplo, a meu filho: “Desejo (ou quero) que você faça a lição”, a minha intenção não é suscitar nele igual desejo, mas fazê-lo executar aquela determinada ação. No entanto, como dissemos várias vezes, o que permite distinguir os diversos tipos de proposições não é a forma em que são expressas, mas a sua funcionalidade. Ora, em relação à funcionalidade, permanece sempre insuperável a diferença entre fazer alguém participar de um estado de espírito e fazê-lo cumprir uma determinada ação. Pode-se dizer, além disso, que a evocação de


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um estado de espírito é preparatória ao cumprimento de uma ação, ou, mais genericamente, à modificação de um comportamento. Mas também é preparatória da ação, como já vimos, uma informação sobre as circunstâncias e conseqüências da ação que se deseja ser cumprida.

2.            Uma segunda consideração, e mais decisiva, é a seguinte: um comando é tal, em função do resultado que consegue, independentemente do sentimento que evoca na pessoa do destinatário. Não é inteiramente indispensável que o destinatário execute o comando depois de ter participado do estado de espírito de quem o tenha enunciado. Um comando permanece como tal, ainda se o destinatário o executar com um estado de espírito diferente daquele de quem comanda. O estado de espírito do pai que manda o filho estudar é determinado pelo valor que ele atribui ao estudo para sua formação cultural ou para a obtenção de um título de estudo útil. O filho que o obedece pode, ao invés, estar determinado a cumprir o comando unicamente pela sujeição aos confrontos da autoridade paterna ou pelo temor de um castigo. Neste caso, o comando desenvolve a sua função independentemente da participação do sujeito ativo e do sujeito passivo na valoração. Isto se nota habitualmente no mundo do direito, onde a relação entre o legislador e os cidadãos não é necessariamente de participação a uma igual valoração da oportunidade ou da justiça da lei: o legislador, ao estabelecer uma lei, pode ter uma valoração diferente daquela que tem o cidadão que a obedece. Mas a lei é o que é, pelo fato de realizar função que lhe é própria, de exercer uma influência sobre o comportamento dos cidadãos. O que importa à lei para que seja um comando não é a transmissão de certas valorações e, portanto, de certos sentimentos que são a origem dessas valorações, mas que seja executada quaisquer que forem as valorações que determinem a execução. Pode muito bem acontecer que dois cidadãos cumpram a mesma lei por razões diferentes. É claro, neste caso, que a lei exerceu a sua função prescritiva sem ter desenvolvido ainda a função de proposição expressiva.


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3.            Finalmente, pode-se acrescentar a consideração de que uma lei dura no tempo e, como dizem os juristas, no decurso da sua existência ela se afasta da vontade do legislador, e continua a ter sua função de comando, independentemente das valorações que a fizeram surgir. Estas valorações podem até desaparecer; não obstante, a lei continua a ser uma lei e a determinar o comportamento dos cidadãos. Neste caso, seria muito difícil dizer qual a valoração que a lei exprime. Não exprime claramente nenhuma. No entanto, desde que seja obedecida, é um comando.

 

22. IMPERATIVOS AUTÔNOMOS E HETERÔNOMOS

Com as considerações precedentes procuramos mostrar a especificidade da categoria das proposições prescritivas em confronto com as duas outras categorias de proposições, descritivas e expressivas. Agora devemos tentar precisar melhor seu caráter, distinguindo tipos diversos de prescrições. A categoria das prescrições é vastíssima: compreende tanto as regras morais quanto as regras da gramática, tanto as normas jurídicas quanto as prescrições de um médico. Aqui ilustramos três critérios fundamentais de distinção: 1) com respeito à relação entre sujeito ativo e passivo da prescrição (tópico 22); 2) com respeito à forma (tópico 23); 3) com respeito à força obrigante (tópicos 24 e 25). Não negamos, no entanto, que existam outros. Estes três critérios de distinção nos interessam porque eles possuem particular relevância no estudo das normas jurídicas.

Com respeito à relação entre sujeito ativo e passivo, distinguem-se os imperativos autônomos dos heterônomos. Diz-se autônomos aqueles imperativos nos quais uma mesma pessoa é quem formula e quem executa a norma. Diz-se heterônomos aqueles nos quais quem formula a norma e quem a executa são pessoas diversas. Esta distinção é historicamente importante porque foi introduzida por Kant (no Fundamento da Me-


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tafísica dos Costumes) para caracterizar os imperativos morais em confronto com todos os outros imperativos. Para Kant, os imperativos morais, e só os imperativos morais, são autônomos. São autônomos porque a moral consiste em comandos que o homem, enquanto ser racional, dá a si mesmo e não os recebe de nenhuma outra autoridade que não seja a própria razão. Quando o homem, ao invés de obedecer à legislação da razão, obedece aos instintos, às paixões, aos iríteresses, segue imperativos que o desviam do aperfeiçoamento de si próprio: o seu comportamento consiste, nestes casos, na adesão a princípios que estão fora dele e, enquanto tal, não é mais um comportamento moral. Com as próprias palavras de Kant: “A autonomia da vontade é a qualidade que possui a vontade de ser lei de si mesma”; e a antítese: “Quando a vontade procura a lei que deve determiná-la em lugar distinto ao da inclinação de suas máximas de instituir como sua uma legislação universal, quando, por consequência, ultrapassando a si mesma, procura esta lei na qualidade de qualquer de seus objetos, disso resulta sempre uma heteronomia. A vontade não dá então a lei a si mesma; é o objeto, ao invés, graças as suas relações com ela, que lhe dá a lei”.[nota 5]

A distinção entre imperativos autônomos e heterônomos tem importância para o estudo do direito, porque constituiu um dos tantos critérios com os quais se desejou distinguir a moral do direito. Segundo Kant, a moral se resolve sempre em imperativos autônomos e o direito em imperativos heterônomos, visto que o legislador moral é interno e o jurídico é externo. Em outras palavras, esta distinção pretende sugerir que quando nos comportamos moralmente, não obedecemos a ninguém além de a nós mesmos; quando, ao contrário, agimos juridicamente, obedecemos a leis que nos são impostas por outros.

Aqui, nós não discutimos a distinção. Limitamo-nos a levantar alguma dúvida de que ela possa ser utilizada para dis-


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tinguir a moral do direito, ou, de qualquer forma, para identificar o direito com as normas heterônomas. Se prescindimos do modo que Kant dispôs o problema da moralidade, devemos convir que há sistemas morais fundados na heteronomia. Uma moral religiosa, por exemplo, que funda os preceitos morais na vontade de um ser supremo, é uma moral heterônoma, sem por isso confundir-se com um sistema jurídico. Os dez mandamentos e as prescrições que deles podem derivar fundam um sistema moral heterônomo, mas não chegam a ser, por si mesmos, um ordenamento jurídico. E assim, se considerarmos um sistema moral oposto ao fundado sobre a vontade divina, por exemplo, um sistema moral inspirado em uma filosofia positivista, para o qual a moral é o complexo de normas sociais originadas das relações de convivência entre os homens no curso de sua história, e formando aquilo que se chama ethos de um povo, ainda neste caso, nos encontramos frente a uma moral heterônoma, que nem por isso se converte imediatamente em um sistema jurídico.

Por outro lado, não se afirmou que os imperativos autônomos não podem ser encontrados também no campo do direito: nem o direito, somente por este fato, se confunde com a moral. O conceito de autonomia é utilizado, no sentido próprio de normas ou complexo de normas nas quais o legislador e o executor se identificam, tanto no direito privado, quanto no direito público. No direito privado, fala-se em esfera da autonomia privada para indicar a regulamentação de comportamentos que os cidadãos dão a si mesmos, independentemente do poder público. Podemos entender um contrato como uma norma autônoma, no sentido que é uma regra de conduta que deriva da mesma vontade das pessoas que se submetem a ela. Em um contrato, aqueles que estabelecem as regras e aqueles que devem segui-las são as mesmas pessoas. O mesmo póde-se dizer de um tratado internacional, que dá origem a regras de comportamento que valem apenas para os Estados que participaram da estipulação do tratado. No campo do direito público, o Estado moderno tende para o ideal do Estado democrático. E o

 

 

 

 

 

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que é o Estado democrático senão o Estado fundado sobre o princípio da autonomia, isto é, sobre o princípio de que as leis, que devem ser seguidas pelos cidadãos, devem ser elaboradas por esses mesmos cidadãos? Rousseau, o teórico do Estado democrático moderno, define de maneira bastante clara o princípio inspirador da democracia em termos de autonomia, quando diz (com uma fórmula que inspirou o próprio Kant): “A liberdade consiste na obediência à lei que cada um se prescreveu” (Do Contrato Social, capítulo VIII). Hoje, podemos ler em um dos tratados mais difundidos de teoria do Estado, o de Kelsen, a distinção entre dois tipos de regimes contrapostos, o democrático e o autocrático, fundada na distinção entre autonomia, que é a característica do regime democrático, e heteronomia, a característica do regime aristocrático. Entende-se que um Estado com uma legislação perfeitamente autônoma é um ideallimite, realizável somente onde a democracia direta, ou seja, a democracia sem representação (que, aliás, era o ideal de Rousseau) substituísse a democracia indireta, tal como é praticada nos Estados modernos. Isto não impede que haja sentido em se falar de autonomia também em relação às normas jurídicas e que, portanto, a distinção entre normas autônomas e heterônomas, prescindindo da particular acepção dada por Kant, não possa ser utilizada para distinguir a moral do direito.

 

23. IMPERATIVOS CATEGÓRICOS E IMPERATIVOS HIPOTÉTICOS

Uma outra distinção que remonta a Kant, e que também foi utilizada, como veremos em seguida, para distinguir a moral do direito, é aquela entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos. Esta distinção repousa na forma em que o comando é expresso, ou seja, se é expresso por um juízo categórico ou por um juízo hipotético.

Imperativos categóricos são aqueles que prescrevem uma ação boa em si mesma, isto é, uma ação boa em sentido abso-


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luto, que deve ser cumprida incondicionalmente, ou com nenhum outro fim a não ser o seu cumprimento enquanto ação devida. E um imperativo categórico o seguinte: “Não se deve mentir”. Imperativos hipotéticos são aqueles que prescrevem uma ação boa para atingir um fim, isto é, uma ação que não é boa em sentido absoluto, mas boa somente quando se deseja, ou se deve, atingir um fim determinado e, assim, é cumprida condicionalmente para a obtenção do fim. É um imperativo hipotético o seguinte: “Se você quiser sarar do resfriado, deve tomar aspirina”. Os imperativos categóricos seriam próprios, segundo Kant, da legislação moral, e podem, portanto, ser chamados de normas éticas. Quanto aos imperativos hipotéticos, distinguem-se, por sua vez, segundo Kant, em duas subespécies, de acordo com o fim a que a norma se refere, como diz Kant, um fim possíuel ou um fim real, isto é, um fim que os homens podem perseguir ou não, ou um fim que os homens não podem deixar de perseguir. Exemplo do primeiro fim são as regras que Kant chama de habilidade, como por exemplo: “Se quiser aprender latim, você deve fazer exercícios de tradução do italiano para o latim”; exemplo do segundo fim são as regras que Kant chama de prudência, como por exemplo: “Se você quiser ser feliz, deve dominar as paixões”. Este segundo fim se distingue do primeiro porque, ao menos conforme Kant, a felicidade é um fim cuja obtenção não é deixada à livre escolha do indivíduo, como o de aprender latim, mas é um fim intrínseco à própria natureza do homem. A rigor, um imperativo deste gênero, por ser condicionado (ou seja, condicionado à obtenção do fim) não se exprime com uma proposição hipotética. A sua fórmula correta é: “Visto que deve Y, deve X”. Seguindo a terminologia de Kant, que podemos adotar, os imperativos condicionados do primeiro tipo são normas técnicas, os do segundo tipo são normas pragmáticas. Concluindo, para Kant podem-se distinguir, com base na forma, três tipos de normas: as normas éticas, cuja fórmula é: “Você deve X”; as normas técnicas, cuja fórmula é: “Se você quiser Y, deve X”; as normas pragmáticas, cuja fórmula é: “Visto que você deve Y, também deve X”.


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Enquanto nos perguntamos se a distinção entre normas autônomas e heterônomas é de alguma utilidade para uma melhor compreensão da normatividade jurídica, com relação à distinção entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos, o problema que se coloca é sobre o seu fundamento, isto é, se os imperativos hipotéticos, em particular as normas técnicas, são verdadeiramente imperativos. Disto se duvida. Notouse que as normas técnicas derivam, comumente, de uma proposição descritiva cuja relação entre uma causa e um efeito foi convertida em uma relação de meio e fim, onde à causa vem atribuído o valor de meio e ao efeito o valor de fim. A norma técnica: “Se quiser ferver a água, você deve aquecê-la a 100 graus”, em que a fervura é o fim e o aquecimento é o meio, deriva da proposição descritiva: “A água ferve a 100 graus”, onde o calor de 100 graus é a causa e a fervura é o efeito. O imperativo hipotético mencionado anteriormente: “Se você quiser sarar do resfriado, tome aspirina” deriva da proposição descritiva: “A aspirina cura o resfriado”. Ora, se o imperativo tem a função de produzir na pessoa a quem se dirige uma obrigação de comportar-se de um determinado modo, não se vê qual obrigação deriva de um imperativo hipotético dessa espécie: e de fato, a escolha do fim é livre (e portanto não obrigatória), e uma vez escolhido o fim, o comportamento que dele deriva não pode ser considerado obrigatório, porque é necessário, no sentido de uma necessidade natural, e não jurídica nem moral. Se eu quiser ferver a água, o ato de aquecê-la a 100 graus não é a conseqüência de uma norma, mas uma lei natural, que não me obriga, mas me constrange a comportarme daquele modo.

Efetivamente, se todos os imperativos hipotéticos fossem normas técnicas do tipo descrito até agora, seria muito discutível que pudessem ser considerados imperativos, visto que o comportamento que contemplam, quando cumprido, não o é por força de um comando, mas por força de uma necessidade natural. Mas nem todos os imperativos hipotéticos podem ser reconduzidos ao tipo de normas técnicas até aqui descrito.


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Existem, como veremos, imperativos hipotéticos no direito: aliás, segundo alguns, todos os imperativos jurídicos são hipotéticos. A norma que estabelece, por exemplo, que a doação deve ser feita por ato público, pode ser formulada em forma hipotética deste modo: “Se você quiser fazer uma doação, deve realizar um ato público”. A característica de um imperativo hipotético deste tipo é que a conseqüência ou o fim não é efeito de uma causa no sentido naturalista, mas é uma conseqüência imputada a uma ação, considerada como meio, pelo ordenamento jurídico, ou seja, por uma norma. Aqui, a relação meio/fim não é a conversão em forma de regra de uma relação entre causa e efeito, mas de uma relação entre um fato qualificado pelo ordenamento como condição e um outro fato que o mesmo ordenamento qualifica como conseqüência. Logo, neste caso, uma vez escolhido o fim, que é livre - segundo o exemplo, dar algo a um outro - a ação que realizo para atingir o fim - segundo o exemplo, celebrar um ato público - não é a adequação a uma lei natural, mas a uma regra de conduta, isto é, a uma verdadeira prescrição, e pode-se falar propriamente de ação obrigatória. Assim, enquanto se pode duvidar que muitos dos denominados imperativos hipotéticos são propriamente imperativos, não se pode negar que há prescrições que assumem a forma de imperativos hipotéticos, quer dizer, de imperativos que não impõem uma ação como boa em si mesma, mas ao atribuir a uma determinada ação uma certa conseqüência (favorável ou desfavorável), induzem a cumprir aquela ação não por si própria, mas porque ela se torna meio para alcançar um fim (quando a conseqüência atribuída é favorável) ou para evitar alcançá-lo (quando a conseqüência atribuída é desfavorável).

 

24.COMANDOS E CONSELHOS

O último critério de distinção que aqui consideramos no âmbito das proposições descritivas é o que diz respeito à força vinculante. Até agora, falamos dos imperativos (ou comandos).


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Mas, os imperativos (ou comandos) são aquelas prescrições que têm maior força vinculante. Esta maior força vinculante se exprime dizendo que o comportamento previsto pelo imperativo é obrigatório, ou, em outras palavras, o imperativo gera uma obrigação à pessoa a quem se dirige. Imperativo e obrigação são dois termos correlativos: onde existe um, existe o outro. Pode-se exprimir o imperativo em termos de obrigatoriedade da ação-objeto, assim como se pode exprimir a obrigatoriedade em termos de comando-sujeito. Mas nem todas as prescrições, ou melhor dizendo, nem todas as proposições com as quais tentamos determinar o comportamento alheio implicam em obrigações. Há modos mais brandos ou menos vinculantes de influenciar o comportamento alheio. Aqui examinamos dois tipos que têm particular relevância no mundo do direito: os conselhos e as instâncias.

Embora as modernas teorias gerais do direito costumem passar em silêncio pelo problema da distinção entre comandos e conselhos (há, porém, uma indicação na Juristische Grundlehre [Doutrina Jurídica Fundamental] de F. Somlo, pp. 179 e ss.), a disputa é antiga: os teólogos conhecem a diferença entre conselhos evangélicos, que são aquelas máximas de Cristo cujo conteúdo não é obrigatório, mas é um meio pura e simplesmente recomendado para atingir uma mais alta perfeição espiritual, e os preceitos ou mandamentos cujo conteúdo, ao contrário, é obrigatório. Com parâmetros nesta distinção, não há antigo tratadista de direito natural que não tenha tocado na questão e não tenha discutido a validade e os critérios que a norteiam. Em uma longuíssima nota a Grócio, que admitira a distinção, o tradutor e comentarista Jean Barbeyrac afirma que ela não é sustentável e assim não se pode falar em conselhos morais, porque onde se encontram aquelas máximas que se denominam conselhos como, por exemplo, a máxima de não se casar novamente ou de permanecer solteiro, esta ou indica uma ação indiferente (e então não é comando nem conselho) ou indica uma ação obrigatória em certas circunstâncias e para certas pessoas (e então é um comando). Além disso, Barbeyrac


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sustenta que a distinção é prejudicial porque pode desviar os homens da virtude (em De iure belli ac pacis [Do Direito da Guerra e da Paz], trad. Barbeyrac, I, 2, 9, n. 19).

Observa-se, também, que a distinção entre comandos e conselhos pode servir para distinguir o direito da moral, assim como servem as distinções entre normas autônomas e heterônomas, e entre normas categóricas e hipotéticas. Deveriamos dizer então, que só o direito obriga; a moral se limita a aconselhar, a dar recomendações que deixam o indivíduo livre (isto é, apenas ele responsável) de segui-las ou não. Certamente, o autor ao qual, talvez, melhor do que a nenhum outro, se possa atribuir uma distinção deste gênero seja Thomas Hobbes no seu Leviatã, onde dedica um capítulo inteiro (o XXV) aos conselhos e à distinção destes em relação aos comandos (na edição italiana de Laterza, vol. I, pp. 202-209). Os argumentos que Hobbes aduz para distinguir o comando do conselho são substancialmente cinco: 1) em relação ao sujeito ativo: aquele que comanda um se reveste de uma autoridade que lhe dá o direito de comandar; aquele que aconselha não pode pretender o direito (nós diriamos, mais exatamente, o poder) de fazê-lo; 2) em relação ao conteúdo: os comandos se impõem pela vontade que os emite (isto é, derivam sua força vinculante por serem expressão de uma vontade superior); os conselhos conseguem determinar a ação de outrem em razão de seu conteúdo (isto é, segundo sua maior ou menor racionalidade); o que equivale a dizer que o comando é caracterizado pelo princípio stat pro ratione voluntas [a vontade está acima da razão], e o conselho pelo princípio oposto (os comandos, enquanto se valem do prestígio de uma vontade superior, podem dirigir-se a qualquer um, os conselhos apenas às pessoas racionais); 3) em relação à pessoa do destinatário: no comando o destinatário é obrigado a segui-lo, no conselho não é obrigado, isto é, é livre para segui-lo ou não; em outras palavras, diz-se que o comportamento previsto pelo comando é obrigatório, o previsto pelo conselho é facultativo; 4) em relação ao fim: o comando é dado no interesse de quem o comanda, o conselho é dado no


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interesse de quem se aconselha, 5) em relação às conseqüências: se da execução de um comando deriva um mal, a responsabilidade é de quem o comanda; se o mesmo mal deriva de ter seguido um conselho, a responsabilidade não é de quem aconselhou, mas somente do aconselhado; esta distinção faz um contrapeso, por assim dizer, à precedente, porque se é verdade que aquele que comanda realiza, através do comando, o próprio interesse, disso resulta que não pode descarregar sobre o outro a responsabilidade de sua própria ruína, já que de uma certa gratuidade própria do conselho -resulta também a impossibilidade por parte do aconselhado áe imputar a responsabilidade de seu insucesso a quem o aconselhou.

Não julgamos que todas essas características diferenciais, listadas por Hobbes, sejam relevantes. Em particular, não cremos que seja relevante a primeira, que diz respeito ao sujeito ativo: no campo do direito, por exemplo, também para dar conselhos (o chamando “poder consultivo”) é necessário ter autoridade (isto é, o direito, ou melhor, o poder) para fazê-lo; trata-se de duas autoridades de tipo diferente, e provavelmente de peso diverso, mas não se pode negar que mesmo o poder de aconselhar deva estar investido de uma particular autoridade. Também o quarto argumento, o relativo ao fim, não me parece aceitável: se é verdade que o conselho é dado no interesse do aconselhado, não afirmou-se que o comando seja emitido apenas pelo interesse de quem o comanda. Seria realmente ingênuo crer que as leis são emanadas somente no interesse público, assim como seria muito malicioso crer que são emanadas apenas no interesse de quem detenha o sumo poder. Melhores são os outros três argumentos: em relação ao conteúdo, é um fato que uma lei geralmente seja obedecida somente porque é uma lei, independentemente de qualquer consideração pelo seu conteúdo (antes, com a convicção de que se ordenam coisas irracionais), enquanto no seguir um conselho, no momento que a execução é livre, conta-se não tanto com a autoridade de quem aconselha (no caso do conselheiro, aliás, mais do que autoridade, fala-se em “confian-


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ça”), mas com a convicção de que o que foi aconselhado é racional, isto é, conforme os objetivos a que nos propomos atingir. Quanto ao comportamento da pessoa do destinatário, aqui intervém a diferença indubitavelmente mais importante e que sozinha bastaria para distinguir o comando do conselho (embora não seja suficiente para distinguir o conselho também da instância): enquanto sou obrigado a seguir um comando, tenho a faculdade de seguir ou não um conselho, o que significa que, no caso em que eu não siga o comando, aquele que o emitiu não se desinteressa pelas conseqüências que disto derivam; no caso em que eu não siga um conselho, quem aconselhou se desinteressa pelas conseqüências (“se você não quiser fazer o que eu aconselho, pior para você”: quem fala deste modo não é uma pessoa investida do poder de comandar, mas um conselheiro). Enfim, pode ser acolhido, porém com alguma cautela, também o quinto argumento, com relação às conseqüências: é verdade que o comando exige mais do indivíduo a quem se dirige, mas o recompensa, o eximindo da responsabilidade do ato cumprido (existe, em todo ordenamento jurídico, um artigo como o art. 51 do Código Penal italiano que exclui a punibilidade de uma ação realizada em cumprimento do próprio dever ou por ordem de uma autoridade superior); porém ninguém poderia eximir-se das conseqüências da própria ação aduzindo como pretexto ter acatado um conselho. Nenhuma autoridade que impõe ordens e, logo, comportamentos obrigatórios, poderia dizer o que em geral pronunciaria um conselheiro a quem se dirige em busca de uma luz: “Esta é a minha opinião, mas não assumo nenhuma responsabilidade pelo que possa suceder a você”.

 

25. OS CONSELHOS NO DIREITO

Ainda que a teoria do direito não tenha se dedicado muito ao problema da distinção entre comandos e conselhos, esta distinção tem considerável importância em todos os ordena-


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mentos jurídicos. Nem todas as prescrições que encontramos quando estudamos um ordenamento jurídico no seu conjunto são comandos. Basta pensar que em todo ordenamento jurídico, ao lado dos órgãos deliberativos, há os órgãos consultivos, que têm justamente a tarefa não de emanar ordens, mas de dar conselhos. Afirma-se que eles “não exercem funções de vontade, mas apenas de apreciação técnica: são colocados ao lado dos órgãos ativos para iluminá-loçjcom seus pareceres e conselhos” (Zanobini). Basta pensar, ainda, que na teoria dos atos jurídicos, distinguem-se os atos de vontade dos atos de representação e de sentimento, e que enquanto uma ordem é classificada entre os atos de vontade, um conselho ou um parecer é classificado entre os atos de representação, porque não se trata de uma declaração de vontade, mas “o seu objetivo é sempre e unicamente o de aconselhar: é a lei que depois impõe provimentos semelhantes ao modo aconselhado” (Romano). Ora, o que caracteriza os atos dos órgãos consultivos, ou pareceres, em confronto com os comandos ou ordens, é propriamente aquilo que ilustramos no tópico precedente, vale dizer, o fato de que estes têm, assim, a função de guiar ou dirigir o comportamento alheio, mas a sua orientação não é tão eficaz como a dos comandos, e esta menor eficácia se revela porque a pessoa ou as pessoas a quem são dirigidos não são obrigadas a segui-los, o que em linguagem jurídica se exprime dizendo que os pareceres não são vinculantes (quando se diz que um parecer é obrigatório, não significa obrigação de segui-lo, mas obrigação de requerê-lo, portanto liberdade para segui-lo ou não). Isto não quer dizer que todos os atos que em direito se denominam pareceres são conselhos no sentido por nós ilustrado: também chamam-se pareceres aquelas relações sobre determinados provimentos a tomar, cujo fim não é absolutamente o de guiar o comportamento alheio, mas só o de iluminar quem deve tomar uma deliberação, isto é, como se diz comumente, de fornecer os elementos de conhecimento suficientes para que quem deve deliberar o faça com razões conhecidas. Neste caso, o parecer não tem função diretiva, mas apenas informativa.


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Desenvolve a função de preparar a via para o comando, de que falamos no tópico 18.

Visto que o conselho é uma prescrição que tem menor força vinculante que o comando, conclui-se que os órgãos consultivos são órgãos que, em um ordenamento jurídico, são titulares de uma autoridade menor ou secundária em relação aos órgãos com função imperativa. Historicamente tem-se observado que um certo órgão se desenvolve e adquire maior peso em um ordenamento transformando-se de órgão consultivo em órgão legislativo (as leis são a forma mais perfeita de comandos do Estado), como aconteceu com os parlamentos, que no regime de monarquia absoluta tinham funções meramente consultivas, e se tornaram, no regime de monarquia constitucional, órgãos que participam da função legislativa. Inversamente, um órgão decai e é considerado desautorizado quando, perdida a função imperativa, conserva ainda somente a consultiva, como ocorreu com a segunda Câmara do Parlamento francês (o antigo Senado) que, segundo a Constituição de 1946, tinha funções meramente consultivas (e de fato não se denomina mais Senado, mas Conselho da República). Que a função consultiva seja característica de órgãos que têm menor prestígio em relação àqueles com função imperativa, está claramente demonstrado pelo que ocorre no ordenamento internacional, onde os organismos internacionais não têm nos confrontos entre Estados (que conservam suas soberanias) o poder de decidir obrigatoriamente, isto é, de emanar seus comandos, mas simplesmente o de endereçar suas recomendações. O que na terminologia do direito internacional é recomendação, na terminologia jurídica tradicional e na linguagem comum é conselho, vale dizer, uma proposição cuja força de influir sobre o comportamento alheio não atinge a eficácia máxima como a da obrigatoriedade.

Do conselho e da recomendação, que pertencem à mesma species, distingue-se a exortação. É curioso que Hobbes, depois de ter indicado as características do conselho do modo que expusemos, passa a falar da exortação, e a define como um


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conselho distorcido, pelo fato de que é expressa no interesse do exortador (enquanto o conselho é dirigido ao interesse do aconselhado) e é endereçada a uma multidão passiva (enquanto o conselho pressupõe que a pessoa do aconselhado seja um indivíduo que raciocina). Hobbes é liberalíssimo ao chamar de exortação o mau conselho quando é dado, como ele mesmo diz, por conselheiros corrompidos. Mas não cremos que esta seja uma definição conveniente. O que habitualmente se chama de exortação não se distingue do conselho com base em um juízo de valor: por acaso a exortação do pai ao filho para que estude é um conselho desviado de sua função principal? Em minha opinião, o critério de distinção é outro: no conselho tende-se a modificar o comportamento alheio expondo fatos ou razões (poderiamos dizer que o conselho é uma combinação de elementos prescritivos e descritivos), enquanto na exortação tende-se a conseguir o mesmo efeito suscitando sentimentos (poderiamos dizer que a exortação é uma combinação de elementos prescritivos e emotivos). Com palavras da linguagem comum, pode-se dizer que o conselho fala ao intelecto, daí a compassada e rígida frieza do conselheiro (reconhecido em um sábio) e a exortação fala ao coração, daí o calor do tribuno, do retor, da pessoa afeiçoada, etc. (O médico aconselha o menino a tomar um certo remédio, a mãe o exorta a fazê-lo). Ao contrário dos conselhos, as exortações não parecem ter relevância direta em um ordenamento jurídico.

 

26. COMANDOS E INSTÂNCIAS

Há um outro tipo de proposições que embora entrem na categoria das prescrições, se distinguem dos comandos propriamente ditos por uma menor força vinculante. São as chamadas instâncias, ou seja, aquelas proposições com as quais nós pretendemos fazer com que alguém faça alguma coisa em nosso favor, porém sem vinculá-lo. As espécies das instâncias pertencem as rezas, as súplicas, as invocações, as implorações, os


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pedidos (no sentido técnico administrativo da palavra, por exemplo, um pedido para obter o passaporte). Se nós quiséssemos fixar a diferença entre comandos e conselhos de um lado, e comandos e instâncias de outro, não usando além da forma gramatical habitual e mais correta com a qual os três tipos de prescrições se exprimem, poderiamos dizer o seguinte: o comando se exprime como um querer por parte do sujeito ativo e como um dever referente ao sujeito passivo; o conselho se abstrai do “querer” e referente ao sujeito passivo se exprime como um deveria; a instância se abstrai do “dever” e se exprime por parte do sujeito ativo como um querería.

Desta formulação já aparece a diferença substancial da instância em relação ao comando e ao conselho. Em relação ao comando, a diferença fundamental é, como no caso do conselho, a ausência de uma obrigação para a pessoa a quem se dirige a instância. Com relação ao conselho, a diferença fundamental está no fato de que o conselho é dado no interesse da pessoa a quem se aconselha; a instância, ao contrário, é expressa no interesse da pessoa que a requisita. No comando, o interesse pode ser tanto daquele que comanda, quanto daquele que é comandado, quanto, simultaneamente, de ambos. No conselho, o interesse é sempre do sujeito passivo; na instância, sempre do sujeito ativo. Se digo: “Eu aconselho você a não fumar”, é sinal de que a sua saúde me importa; se digo: “Peço para você não fumar”, é sinal que me importo com a minha. Lá, onde se lê: “E proibido fumar”(e não se trata mais de um conselho nem de uma instância, mas de um comando) é difícil dizer qual seja o interesse prevalecente: muito provavelmente o interesse do dono do local seja o mesmo dos frequentadores.

Um ordenamento jurídico, assim como reconhece, ao lado dos comandos, os conselhos, reconhece também muitas espécies de instâncias. Trata-se de atos com os quais se provoca, ou melhor, busca-se provocar uma deliberação a nosso favor: pode-se distinguir os pedidos, as solicitações, as instâncias propriamente ditas, as súplicas, etc. Enquanto o poder de dar con-


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selhos é geralmente atribuído aos órgãos públicos, o poder de mover instâncias (poder de petição) é geralmente atribuído aos particulares. E entenda-se: o conselho tem a função de dar um conteúdo à deliberação, a instância tem apenas a de provocá-la. Se concebermos o comando como instituidor de uma relação entre um poder e um dever (um direito e uma obrigação), no conselho falta sobretudo o dever e, na instância, sobretudo o poder. No conselho, o que sobressai, em relação ao comando, é a ausência da obrigação de segui-lo; na instância, o que sobressai sempre em comparação ao comando é a ausência do direito de obter aquilo que se pede.

Uma última observação. Como distinguimos os conselhos das exortações com base na diferença entre apelos a dados de fato, raciocínios, informações e apelos a sentimentos, também assim nas espécies de instâncias se podem distinguir aquelas que se inspiram em um modelo de tipo informativo e as que se inspiram em um modelo de tipo emotivo: estas últimas são as invocações ou súplicas. A diferença entre um pedido para se obter uma permissão de caça e um pedido de graça está nos diversos argumentos que são usados: lá, claramente de situações de fato, aqui, argumentos de tipo retórico-persuasivo. A primeira é um composto prescritivo-descritivo, a segunda um composto prescritivo-emotivo.

 


Página notas de rodapé.

 

Nota 1, página 56: “Não é sem surpresa ou escândalo que notamos o pouco acordo que reina sobre esta importante matéria entre os diversos autores que dela trataram. Entre os mais sérios escritores, com dificuldade encontramos dois que tenham a mesma opinião sobre este ponto.” (Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, pref.) (tradução livre).

RETORNO NOTA 1, PÁGINA 56.

Nota 2, página 75: Para este tópico e o seguinte, seguimos, dentre os vários tratados de lógica, particularmente o de J. M. Copi, Introduction to Logic (1953).

RETORNO NOTA 2, PÁGINA 75.

Nota 3, página 76: Artigo alterado pela reforma do Direito de Família de 1975.

RETORNO NOTA 3, PÁGINA 76.

Nota 4, página 83: Ver A. Visalberghi, Esperienza e ualutazione (Experiência e Valoração), Turim, 1958, sobretudo o capítulo II, “La lógica degli imperativi e delle norme" (“A lógica dos imperativos e das normas”), pp. 37-67, onde se retoma e se desenvolve a tese de H. G. Bonhert, “The semiotic status of command” (“O status semiótico de comando”), em Philosophy of Science (Filosofia da Ciência), XII, 1945, pp. 302-315.

RETORNO NOTA 4, PÁGINA 83.

Nota 5, página 90: As duas citações são tiradas da tradução italiana do Fundamento da Metafísica dos Costumes. Paravia, p. 104.

RETORNO NOTA 5, PÁGINA 90.