Título:
Teoria da norma jurídica
Autor: Norberto
Bobbio
Este
material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1988,
não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado
por: Fernanda Rodrigues
Adaptado
em: junho de 2022
Padrão
vigente a partir de março de 2022
Observações
gerais: O sumário principal não está com o link direto para a página, pois o
material está dividido. A página 8 está em branco, conforme o material
original;
Referência:
BOBBIO, Norberto. Pré textuais; O direito como regra de conduta. In: BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica.
São Paulo: Edipro, 2016. cap. 1, p. 1-44.
P.2
Outras obras de Noberto
Bobbio em português:
— A Era dos Direitos, Campus, Rio de
Janeiro.
— A Teoria das Formas de Governo, UnB,
Brasília.
— Diário de um Século, Campus, Rio de
Janeiro.
— Dicionário de Política, UnB,
Brasília.
— Direita e Esquerda, UNESP, São Paulo.
— Direito e Estado no Pensamento de
Emanuel Kant, Mandarim, São Paulo.
— Ensaios sobre
Gramei e o Conceito de Sociedade Civil, Paz e Terra, São Paulo.
— Entre Duas Repúblicas, UnB, Brasília.
— Estado, Governo,
Sociedade, Paz e Terra, São Paulo.
— Igualdade e Liberdade, UnB, Brasília.
— Liberalismo e Democracia,
Brasiliense, São Paulo.
— Locke e o Direito Natural, UnB,
Brasília.
— O Futuro da Democracia, Paz e Terra,
São Paulo.
— O Positivismo Jurídico, ícone, São
Paulo.
— O Tempo da Memória, Campus, Rio de
Janeiro.
— Os Intelectuais e o
Poder, UNESP, São Paulo.
— Sociedade e Estado na Filosofia
Política Moderna, Brasiliense, São Paulo.
— Teoria do Ordenamento Jurídico, UnB,
Brasília.
P.3
Norberto Bobbio
Teoria da Norma Jurídica
Tradução
Fernando Pavan Baptista Ariani Bueno Sudatti
Apresentação
Alaôr Caffé Alves
EDIPRO
P.4
Teoria da Norma Jurídica
Norberto Bobbio
1a Edição 2001
Supervisão Editorial: Jair Lot Vieira
Coordenação Editorial: Vinícius Lot Vieira
Editor: Alexandre Rudyard
Beneuides
Tradutores: Fernando Pauan Baptista e Ariani Bueno Sudatti
Capa: Maria do Carmo Fortuna
Revisão Técnica: Edson Bini
Revisão: Priscila Tanaca
Digitação: Disquetes fornecidos pelos
tradutores
N° de Catálogo: 1319
Dados de Catalogação na Fonte (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bobbio, Norberto
Teoria da norma jurídica / Norberto Bobbio / trad. Fernando Pavan
Baptista e Ariani Bueno Sudatti / apresentação Alaôr Caffé Alves - Bauru, SP:
EDIPRO, 2001.
Título original: Teoria delia norma giuridica
(G. Giappichelli Editore, Torino, 1993)
ISBN 85-7283-327-7
1. Direito - Filosofia 2. Direito - Teoria I. Alves, Alaôr
Caffé II. Título.
01-3717 CDU-340.13
índices para catálogo sistemático:
1. Norma jurídica : Teoria : Direito : 340.13
EDIPRO - Edições Profissionais Ltda.
Rua Conde de São Joaquim, 332 - Liberdade
CEP 01320-010 - São Paulo - SP
Fone (011) 3107-4788 - FAX (011) 3107-0061
E-mail: edipro@uol.com.br
Atendemos pelo Reembolso Postal
P.5
APRESENTAÇÃO - Alaôr Caffé Alves
................................................... 9
NOTA DOS TRADUTORES............................................................. 21
Capítulo 1
O DIREITO COMO REGRA DE CONDUTA 23
1.
Um mundo de normas 23
2.
Variedade e multiplicidade das normas 25
3.
O direito é instituição? 28
4.
O pluralismo jurídico 30
5.
Observações críticas 33
6.
O direito é relação intersubjetiva? 37
7.
Exame de uma teoria 40
8.
Observações críticas 42
Capítulo II
JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA 45
9.
Três critérios de valoração 45
10.
Os três critérios são independentes 48
Possíveis confusões entre os três
critérios 51
P.6
11.
O direito natural 55
12.
O positivismo jurídico 58
13.
O realismo jurídico 62
Capítulo III
AS PROPOSIÇÕES PRESCRITIVAS 69
14.
Um ponto de vista formal 69
15.
A norma como proposição 72
16.
Formas e funções 75
17.
As três funções 77
18.
Características das proposições
prescritivas 80
19.
Pode-se reduzir as proposições
prescritivas a proposições descritivas? 83
20.
Pode-se reduzir as proposições
prescritivas a proposições expressivas?
87
21.
Imperativos autônomos e heterônomos 89
22.
Imperativos categóricos e imperativos
23.
hipotéticos 92
24.
Comandos e conselhos 95
25.
Os conselhos no direito 99
26.
Comandos e instâncias 102
Capítulo IV
AS PRESCRIÇÕES E O DIREITO 105
27.
O problema da imperatividade do direito 105
28.
Imperativos positivos e negativos 109
29.
Comandos e imperativos impessoais 112
30.
O direito como norma técnica 115
31.
Os destinatários da norma jurídica 119
32.
Imperativos e permissões 125
P.7
33.
Relação entre imperativos e permissões 128
34.
Imperativos e regras finais 132
35.
Imperativos e juízos hipotéticos 135
36.
Imperativos e juízos de valor 140
Capítulo V
AS PRESCRIÇÕES JURÍDICAS 145
37.
Em busca de um critério 145
38.
De alguns critérios 147
39.
Um novo critério: a resposta à violação 152
40.
A sanção moral 154
41.
A sanção social 157
42.
A sanção jurídica 159
43.
A adesão espontânea 162
44.
Normas sem sanção 166
45.
Ordenamentos sem sanção 170
46.
As normas em cadeia e o processo ao
infinito 173
Capítulo VI
47.
CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS 177
48.
Normas gerais e singulares 177
49.
Generalidade e abstração 180
50.
Normas afirmativas e negativas 184
51.
Normas categóricas e hipotéticas 187
BIBLIOGRAFIA 191
P.8
P.9
Norberto
Bobbio, nascido em Turim, norte da Itália, em 18 de outubro de 1909, é um dos
mais ilustres e destacados jusfilósofos do século XX.
Foi professor de filosofia do direito em Camerino
(1936-1938), em Siena (1938-1940), logo em Pádua (1940-1948) e, de 1948 a 1972,
ensinou na Faculdade de Direito da Universidade de Turim. A partir de 1973, até
a sua jubilação em 1984, lecionou filosofia política na Faculdade de Ciências
Políticas da mesma Universidade.
Bobbio se
intitulava um empirista, sempre preocupado em buscar fatos. No âmbito
metodológico, considerava a necessidade de forjar os instrumentos para buscar
os fatos, pois estes não estão ao alcance das mãos. A crítica e a análise da
linguagem seriam um destes instrumentos. Esta postura filosófica, adotada por
força do “novo iluminismo” (Nicola Abbagnano) e da
crescente influência da escola neopositivista, marcou
a transição, na Itália do pós-guerra, do clima hegemônico do pensamento
idealista (Croce e Gentile) para o neopositivismo,
sob a influência de Ludovico Geymonat. Foi um grande
esforço de superação das posições dominantes na Itália, desde o início do
século XX, representadas pelas doutrinas neohegelianas,
neokantianas, neotomistas, fenomenológicas e outras.
Rechaçando tanto o idealismo como o existencialismo, Bobbio defendia uma
filosofia positiva comprometida
P.10
com o espírito científico e contra as posturas metafísicas.
Propugnaua a substituição da filosofia como concepção
do mundo pela filosofia como metodologia, que pudesse, do ponto de vista
político-cultural, promover as condições de uma sociedade democrática, laica,
universal e pautada nas conquistas da ciência. Por efeito deste clima cultural,
Bobbio, Geymonat e Abbagnano
fundaram, com outros intelectuais, em Turim, em 1946, um “Centro de Estudos
Metodológicos”.
Em duas séries de conferências, entre 1946 e 1950,
aquele centro promoveu, dentre outros assuntos, a primeira agenda programática
do positivismo lógico no âmbito dos estudos jusfilosóficos
na Itália, sob a influência das idéias de Carnap, resultando, posteriormente, na escola analítica da
filosofia jurídica. Bobbio, com a sua conferência “ciência do direito e análise
da linguagem”, naquele período, mostra a sua grande preocupação com os estudos
metodológicos da ciência jurídica, cujos temas vão se universalizar para além
da cultura italiana, especialmente ao considerar o direito como discurso que
deverá ser submetido à análise da linguagem, nos limites da teoria da ciência
segundo os paradigmas do positivismo lógico. Esta postura define claramente, na
fala de Riccardo Guastini, o clima de rompimento
paradigmático com as tendências jusnaturalistas e
metafísicas na filosofia e na ciência do Direito, dominantes na Itália na
primeira metade do século XX.
Estes fatos demarcam a atmosfera cultural dos
estudos jurídicos em que foi produzida sua “Teoria da Ciência Jurídica”,
publicação esta derivada de um curso realizado pelo jusfilósofo
italiano, no biênio 1949/1950. Neste sentido, e repelindo a duplicação do saber
jurídico que caracterizava o campo teórico e prático do direito, desde as
concepções clássicas do jusnaturalismo do século XVII
até as formulações da sociologia jurídica da primeira metade do século XX,
Bobbio propugnou pela unidade desse saber vincado na idéia
convencionalista da ciência e, por consequência, da jurisprudência como ciência
empírica que elabora proposições sobre o discurso normativo, mas cuja validade
deste só tem realidade se for polarizado com os fatos. Certamente, esta posição
vai suscitar inúmeras críticas ao jusfilósofo (Enrico
Opocher, Luigi Caiani,
Virgílio Giorgianni, entre outros), especialmente
sobre a
P.11
concepção empiricista da ciência,
induzindo Bobbio a perfazer, naquele período, o caminho da defesa do rigor
lógico das proposições da jurisprudência ao invés da contrastabilidade
empírica. O que importava, na verdade, era o esforço metodológico de
clarificação e coerência da linguagem do direito, esforço que foi prosseguido
pelos estudos dos discípulos da escola analítica de Turim, Uberto
Scarpelli e Gavazzi, em
defesa da concepção analítica do saber jurídico, objetivando também, como
proposta, segundo a avaliação de Alfonso Ruiz Miguel, a integração da filosofia
analítica com o normativismo de Kelsen. As
preocupações metodológicas se emparelham, na construção da teoria jurídica
positivista-analítica, com as da teoria geral do direito e da jurisprudência
(ciência do direito).
Durante o período entre 1950 e 1960 Bobbio
dedicou-se à construção de uma teoria geral do direito de caráter formal,
afastando dela as questões axiológicas e sociais, tornando-a, em grande medida,
semelhante à concepção normativista de base kelseniana. O combate intelectual se fez, especialmente, na
arena onde outras teorias foram consideradas impuras, como as de Carnelutti, Paul Roubier ou Jean Dabin, ou incompletas, como as teorias realistas ou relacionistas. Entretanto, na mesma linha de Kelsen, Bobbio
não excluía a validez e importância de outros saberes que analisavam o direito
sob outros aspectos e segundo outros princípios metodológicos e científicos.
Neste período, Bobbio acentua sua preocupação metodológica na crítica ao jusnaturalismo, a partir de premissas claramente
normativo-positivistas.
A construção da teoria geral do direito de Bobbio
tem como preliminares os estudos de lógica jurídica (1954), onde diferencia as
distintas categorias deônticas (proibição, obrigação
e permissão) e analisa as relações de oposição lógica entre as proposições
normativas, base dos estudos de teoria geral do direito sobre, respectivamente,
a imperatividade e permissividade das normas jurídicas e sobre as antinomias e
lacunas do ordenamento jurídico. Foram visitados os textos recém-publicados na
época, de Kalinowski, Von Wright e Garcia Maynez. Neste período, o nosso jusfilósofo
tece e desenvolve as premissas básicas da teoria geral do direito,
particularmente no que respeita à coatividade como
elemento do or-
P.12
denamento jurídico
e não da norma isolada; à coerência do ordenamento jurídico como princípio e
não como fato e à permanente possibilidade de integração do ordenamento
jurídico, que não é em si mesmo completo. Tudo isso perfaz o núcleo dos cursos
que Bobbio realizou em dois biênios, 1957/1958 e 1959/1960, sobre a norma
jurídica e sobre o ordenamento jurídico, respectivamente, cursos inovadores no
que respeita ao enfoque analítico-lingüístico da
teoria geral do direito, emparelhados com as posições da mesma vertente teórica
de Alf Ross (Direito e Justiça[nota *] 1958) e de Hart (O Conceito de
Direito, 1961), que apareceram nesse mesmo período, embora com fundamentos
empíricos diferentes. Note-se que também, em 1960, é publicada a segunda edição
revisada e aumentada da Teoria Pura do Direito de Kelsen, indicando um momento
histórico fecundo na órbita da metateoria do direito.
A teoria da norma jurídica, objeto deste livro, é,
pois, uma parte da teoria geral do direito de Bobbio, tal como concebida no
período citado, sofrendo alterações e revisões posteriores. Ela é completada
pela teoria do ordenamento jurídico, do mesmo período, já traduzida para o
nosso vernáculo. Na teoria da norma jurídica, o jusfilósofo
de Turim dedica-se inicialmente, no primeiro capítulo, à crítica das concepções
institucionalistas e realistas (relacionistas); ao
monismo e estatalismo jurídicos; ao significado
ideológico da teoria; às relações intersubjetivas (jurídicas) autônomas,
abrindo por consequência a perspectiva do tratamento normativista
do direito como a mais coerente e completa. E preciso notar, entretanto, que
neste período Bobbio está envolvido com uma concepção estrutural do direito,
ficando para depois, por conta da crise do positivismo na Itália, como vamos
ver, a sua preocupação com a linha funcionalista do direito.
No segundo capítulo, aborda os critérios da
validez, da eficácia e da justiça como critérios distintos de investigação
jurídica, critérios estes que levam a disciplinas distintas, independentes, mas
não excludentes entre si. Estes critérios correspondem, respectivamente, às
funções antológica, fenomenológica e deontológica da filosofia do direito. Esta
forma de entender os três critérios, de
P.13
modo não reciprocamente dialético, ensejou o jusfilósofo brasileiro, Miguel Reale,
a considerar que Bobbio propugnava por uma concepção tridimensional genérica do
fenômeno jurídico - e não tridimensional específica, de base dialética, como a
dele. Assim, Bobbio caracteriza, em tese, o direito como objeto de três
ciências distintas: quanto a sua formação e evolução, isto é, quanto à eficácia
a que correspondem os problemas de observância, aplicação efetiva e sanção da
norma jurídica (sociologia do direito); quanto a sua estrutura formal, a que
corresponde a questão da validez, ou seja, aos problemas de existência da norma
jurídica (jurisprudência ou ciência formal do direito), independentemente do
juízo de valor que sobre ela se possa emitir; e, finalmente, quanto ao seu
valor, ao qual correspondem os problemas ideais de justiça ou injustiça da
norma jurídica (filosofia do direito). Estes três critérios, segundo Bobbio,
são independentes entre si, no sentido de que a justiça de uma norma jurídica
não é condição de sua validez ou eficácia; que a sua validez nada tem a haver
com a eficácia e a justiça; e, final mente, que a eficácia igualmente independe
da validez e da justiça. Isto supõe, na opinião do jusfilósofo
brasileiro Miguel Reale, a simples generalização
empírica das múltiplas facetas do direito e não, conforme o culturalismo
jurídico de índole neokantiana professado por este
último, a expressão da dialética de implicação e polaridade recíproca entre
aqueles aspectos, ao elevá-los à categoria de “dimensões” de um mesmo fenômeno.
Finalizando o capítulo, Bobbio trata das possíveis confusões entre os três
critérios acima aduzidos e traça um panorama crítico do direito natural, do
positivismo jurídico e do realismo jurídico.
Calcado nos estudos lógicos de Copi,
na análise da linguagem e moral de Hare e nas reflexões sobre a definição e o
conceito de direito de Scarpelli, Bobbio, no terceiro
capítulo, desenvolve uma série de considerações sobre a estrutura da norma
jurídica do ponto de vista formal, isto é, da norma jurídica independentemente
de seu conteúdo. Como estrutura lógico-lingüística, a
norma jurídica pode ser preenchida pelos mais diversos conteúdos.
Porém, ela se manifesta como proposição prescritiva, cujo valor é a validade, e
não como proposição descritiva, cujo valor é a veracidade. Como proposição
(prescritiva), a norma jurídica é um
P.14
conjunto de palavras que tem um significado. A mesma
proposição normativa, o mesmo sentido, pode formular-se com diferentes
enunciados linguísticos. Isto quer dizer que Bobbio já atinava com a distinção
entre o texto normativo (literal) e a norma jurídica como estrutura de sentido,
inconfundível mas dependente de seu enunciado. Por
isso, o que interessa ao jurista, quando interpreta a lei, é seu significado e
não apenas o enunciado literal correspondente. O sentido normativo, a norma
jurídica, portanto, é o produto de uma interpretação e não o objeto da
interpretação. O objeto a ser interpretado é o enunciado, o texto linguístico,
do qual sobressai, mediante a interpretação, o significado, a norma jurídica.
No âmbito de sua preocupação analítica, visando o
esclarecimento pragmático-lingüístico do discurso do
direito, Bobbio distingue vários tipos de proposições, segundo os critérios da
forma gramatical e da função da linguagem. Analisa as três funções fundamentais
da linguagem, a descritiva, a expressiva e a prescritiva, e mostra que elas dão
origem a três tipos de linguagem bem distintos, caracterizando, assim, a
linguagem científica (fazer conhecer), a poética (fazer participar) e a
normativa (fazer fazer), a
primeira performativa do discurso teórico e a última, do discurso normativo,
incluindo aqui o discurso jurídico-imperativo. Já nesse período do positivismo
analítico, Bobbio faz notar que entre as características das proposições
prescritivas está precisamente o fato de elas exigirem justificação, de ordem
persuasiva, por meio da retórica, diferentemente das proposições descritivas,
que exigem a condição lógica da demonstração e a condição empírica da
verificação.
Após uma série de outras questões relacionadas com
a conversibilidade das proposições descritivas ou das proposições expressivas
em proposições prescritivas, mostrando as várias tentativas para esse efeito,
Bobbio tece considerações analíticas sobre problemas referentes aos imperativos
autônomos e heterônomos, em ordem à distinção entre moral e direito; sobre
questões entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos, visando a
melhor compreensão da normatividade, especialmente a distinção entre normas
éticas e normas técnicas; e sobre as questões da diferença entre comandos e
conselhos, com o fim de distinguir os sistemas
P.15
normativos dinâmico e estático, o primeiro
relacionado com a autoridade que põe a norma, independentemente de seu
conteúdo, e o segundo, com o conteúdo de valor seguido autonomamente pelo
endereçado, de acordo com suas convicções etc. Estas linhas, em resumo, dão
apenas uma pálida idéia do que o ilustre autor deste
livro pretende abordar em sua teoria da norma jurídica.
Outras questões de suma importância são abordadas
nesta parte da Teoria Geral do Direito. Bobbio analisa, no quarto capítulo, com
grande acuidade e de forma profunda, dentre outros assuntos, o problema da
imperatividade do direito; dos imperativos positivos e negativos; dos comandos
e imperativos impessoais; do direito como norma técnica; dos destinatários da
norma jurídica; das relações entre imperativos e permissões; dos nexos entre
imperativos e juízos de valor etc.
No capítulo quinto desta obra, Bobbio empreende
tenazmente a tarefa de esclarecer as relações entre a sanção e o direito. Esta
questão é de suma importância, pois permite demarcar o limite entre a concepção
estrutural do direito, dominante no período da edição desta obra, e a concepção
funcional do direito, professada por Bobbio posteriormente, em decorrência da
crise do positivismo jurídico. Do ponto de vista estrutural-positivista, nenhum
dos critérios examinados bastou para caracterizar plenamente o direito,
especialmente no que diz respeito à difícil distinção entre normas jurídicas,
normas morais e normas sociais. Ao fazer um confronto entre estas normas,
Bobbio faz notar a característica específica do direito como conjunto de normas
(ordenamento) garantidas por sanções externas e institucionalizadas. Disto
decorre, em primeiro lugar, que o ordenamento jurídico é que fixa o critério de
qualificação da norma jurídica como norma jurídica e não o contrário. Vale
dizer, o ordenamento não é jurídico porque é constituído por normas jurídicas
enquanto tais, mas, ao contrário, as normas são jurídicas porque justamente
pertencem a um ordenamento jurídico. O critério substancial da juridicidade é
dado pelo conjunto de normas, pelo ordenamento, e não pelas normas isoladamente
consideradas. Isso vai ser explorado com maior verticalidade em sua teoria do
ordenamento jurídico que, com a presente obra, circunscreve o núcleo de sua
teoria geral do direito.
P.16
Por outro lado, a sanção, neste momento da teoria
geral do direito, é considerada, segundo o jusfilósofo
italiano, pelo seu lado negativo, como reação institucionalizada de imposição
de conduta destinada a fazer cumprir a norma violada. A relação entre a sanção
e a lei jurídica pressupõe a violação ou transgressão, algo bem diferente do
que ocorre com a lei natural. Se a lei científica não for observada, deixa de
ser lei científica, pois não comporta exceção. Ao contrário, a lei jurídica (a
norma jurídica) não observada constitui sua violação ou transgressão, mas ela
continua válida, o que motiva a aplicação da sanção. A norma jurídica, portanto,
está sob o regime da liberdade e não da necessidade. Ali, por não observação do
fato segundo a lei científica, modifica-se esta para
reajustá-la ao fato. Aqui, pela transgressão da lei jurídica, procura-se
interferir na ação transgressora e salvar a norma jurídica. Esta interferência
para anular, modificar ou neutralizar a ação transgressora, de forma
institucionalizada, denomina-se sanção jurídica. Por meio desta, salvaguarda-se
a norma da erosão das ações transgressoras, cujo sentido contraria seu conteúdo
prescritiva.
Porém, a sanção apenas interior (sanção moral) não
é suficiente para compor um mecanismo destinado a tornar a norma socialmente
eficaz e conduzir com segurança a ação de todos os indivíduos da comunidade em
direção à concórdia e à paz. Já a sanção externa é de caráter heterônomo,
provém de outros, tomados individualmente ou em grupo. Contudo, se esta sanção
é de caráter social, isto não elide a subjetividade, ou a incerteza ou a
indeterminação ou mesmo a desproporção entre a violação e a resposta. Assim, a
sanção para ser objetivamente jurídica, constante e certa deve ser
regulamentada e confiada a órgãos institucionalizados da sociedade. Nesse
sentido, a sanção é elemento essencial do direito, porém ela não se refere a
cada uma das normas individualmente consideradas, mas, diferentemente do
positivismo normativista de Kelsen, ao conjunto das
normas constitutivas do ordenamento jurídico. Assim, para que exista direito
eficaz, deve haver a garantia de execução da sanção, fornecida pelos órgãos
institucionalizados da comunidade jurídica. Esta institucionalização pressupõe
a existência de um sistema de normas, de um tipo de ordenamento que se
qualifica como jurídico. A norma tem, por-
P.17
tanto, a sua juridicidade calcada não no fato de ser ou não
sancionada, mas precisamente por pertencer a um
sistema ou ordenamento jurídico. Com isto, Bobbio julga ter respondido à
questão, propugnada pelos defensores da tese oposta de caráter anti-sancionista, da existência de normas jurídicas não
garantidas por uma sanção. A única dificuldade desta posição é a referente à
ordem jurídica internacional em que se torna difícil falar-se em sanção
organizada, promovida por um organismo unificado. Bobbio tenta superar esta
limitação fazendo a distinção entre autotutela e heterotutela,
postulando que se esta última é mais perfeita em razão da maior eficácia e
garantia de melhor proporção entre transgressão e sanção, aquela não deixa
também de ser operacional, em razão da regulamentação, interdependência dos
Estados e dos costumes internacionais.
Finalizando o curso, no sexto capítulo, Bobbio
aborda o tema da classificação das normas jurídicas, detendo-se sobre a análise
das questões reiatiuas à generalidade e à abstração
das normas jurídicas. Neste passo, o jusfilósofo
afirma, de início, que toda proposição prescritiva está formada por dois
elementos constitutivos: o sujeito, isto é, o destinatário da norma, e o objeto
da prescrição, representado pelo comportamento prescrito pela norma. Tanto o
sujeito-destinatário como o objeto-ação podem tomar, cada um, a forma
universal, referente à classe de pessoas ou à ação-tipo, ou a forma individual,
referente a determinadas pessoas ou à ação particular, consignando, assim,
quatro situações proposicionais normativas diferentes. Posteriormente, Bobbio
critica a doutrina tradicional que defende somente as características da
generalidade e da abstração para as normas jurídicas. Fundado na classificação
anterior, o mestre italiano propõe também a existência de normas individuais e
concretas. As normas jurídicas são gerais se forem universais com respeito aos
destinatários, porque se dirigem a uma classe de pessoas, e são abstratas se
forem universais com respeito a uma classe de ações (ação-tipo). As normas
serão particulares se têm por destinatário um determinado indivíduo, e são
concretas se regulam uma ação particular.
Bobbio finaliza o capítulo e, com isso, o curso
sobre a teoria da norma jurídica, apresentando e explicando o velho quadro das
P.18
oposições lógicas, de origem aristotélica. Ali trata das
relações de inferência imediata, e sua tradução para as proposições prescriti-uas, articulando as equivalências da categoria deôntica da obrigação com as da proibição e das permissões
positiva e negativa, as quais deverão ser utilizadas, no curso seguinte sobre a
teoria do ordenamento jurídico, nas explicações e soluções a respeito das
antinomias jurídicas.
No período seguinte ao dos cursos acima
mencionados, após um intenso debate teórico e desenvolvimentos conceituais mais
precisos sobre o positivismo jurídico e sobre o jusnaturalismo,
com uma crítica mais acentuada sobre o positivismo kelseniano,
especialmente no que respeita à natureza da norma fundamental e de suas
relações com o poder, nosso autor realiza uma revisão extensa e bastante
significativa de sua posição no que respeita à teoria da sanção jurídica. Esta
revisão está fundada nas profundas alterações do panorama político, social e
econômico que marcaram singularmente o mundo europeu, no final dos anos 60 do
século XX, levando à crise do positivismo jurídico, como ideologia e como
teoria, no âmbito da filosofia do direito.
No período anterior, o professor italiano defendeu,
como vimos, uma teoria geral do direito formal isenta de valorações e de
considerações sociais, contra os jusnaturalistas e
sociólogos do direito, em nome da objetividade da ciência que visa antes
conhecer a realidade do que valorá-la, e da ciência normativa que busca o
estudo da esfera do dever ser e não do ser. Porém, já no fim da década de 60,
Bobbio, em um trabalho publicado sob o título “A função promocional do
direito”, aponta para as novas técnicas de controle social como exigência do
Estado social contemporâneo. Estas técnicas não são centradas apenas no
desalento de determinados comportamentos repudiados pela sociedade, mediante a
aplicação de sanções negativas, de caráter punitivo ou repressivo, mas também
nas formas de estímulo às condutas desejadas, mediante a aplicação de sanções
positivas, de caráter promocional. Posteriormente, em 1971, Bobbio considera a
distinção entre as teorias do direito que o enfocam sob o ponto de vista
estrutural, pautadas na perspectiva protetora ou repressiva do direito, própria
dos Estados liberais, e as que o enfocam sob o ângulo funcional,
P.19
objetivando propiciar as condições jurídicas da promoção social e econômica,
próprias dos Estados sociais.
Entretanto, o mestre italiano está
longe de substituir o enfoque da análise estrutural do direito, dominante na
primeira fase de suas investigações acadêmicas, pela análise funcional ou teleológi- ca do direito. A
primeira via de investigação, a da análise estrutural, que responde à pergunta
“de que se compõe o direito?”, é complementada e
aprofundada pela segunda via de pesquisa, a da análise funcional, que responde
à pergunta “para que serve o direito?”, onde se coloca em jogo a relação entre
meio efim, numa perspectiva mais sociológica do que
lógica. Nesse sentido, mais tarde, nos estudos da obra intitulada “Dalla struttura alia funzione”, editada
em 1977, Bobbio reúne os seus mais maduros e significativos trabalhos sobre o
tema. Ali, procura esclarecer o motivo do pouco interesse, até aquele período,
pela análise funcional do direito, bem como o nascente e crescente interesse
por esta análise finaíística, que demanda considerações
de conteúdo que traspassa a mera análise formal da estrutura do ordenamento. De
qualquer forma, o professor italiano não exclui um tipo de análise por outro.
Em seu Prólogo à edição castelhana da Teoria Geral do Direito, editada em 1987,
Bobbio faz clara a sua posição ao afirmar que “Os elementos deste universo (do
direito), que são postos em evidência pela análise estrutural, são diferentes
daqueles que podem ser postos em evidência pela análise funcionai. Os dois
pontos de vista não só são perfeitamente compatíveis senão que se integram
mutuamente e de maneira sempre útil. Se o ponto de vista estrutural é
predominante em meus cursos de teoria do direito, isto se deve exclusivamente
ao fato de que quando os desenvolví esta era a
orientação metodológica dominante em nossos estudos. Se hoje os devesse
retomar, decididamente não pensaria em substituir a teoria estruturalista pela
funcionalista. Agregaria uma segunda parte sem sacrificar nada da primeira. ”
Vê-se, por estas rápidas linhas, que a
obra que o leitor tem em mãos, editada pela Edipro, é
o testemunho de um momento da evolução do pensamento do grande mestre italiano,
a qual não se põe como algo ultrapassado porque editada em seu vernáculo
original há mais de quarenta anos, mas como uma forma de análi-
P.20
se do direito sempre imprescindível para aqueles que
desejam desenvolver e aprofundar seus estudos jurídicos. A investigação desta
forma de ver o direito não só completa a formação e a cultura do jurista, mas
também fornece os fundamentos e os horizontes para a plena compreensão das
teorias mais atuais, o que mostra a necessidade de tê-la sempre à mão.
São Paulo, agosto de 2001
Alaôr Caffé Alves
Professor Associado da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo
P.21
Nestes últimos anos, no exercício de nossa dupla
atividade acadêmica na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ou
seja, como alunos da pós-graduação e professores bolsistas do departamento de
Filosofia e Teoria Geral do Direito, enfrentamos a dificuldade crônica de ter
de consultar obras clássicas da literatura jurídica universal ainda sem
tradução para o vernáculo pátrio. Uma das obras investigativas mais importantes
escritas no século XX, no campo da pesquisa jusfilosófica,
é justamente a Teoria delia Norma Giuridica, escrita
por Norberto Bobbio, que finalmente temos a honra de apresentar, através desta
primeira tradução mundial em língua portuguesa.
A idéia de traduzir este
tratado, fundamental para a compreensão teórica do fenômeno jurídico, surgiu há
algum tempo, mas a iniciativa de realizar efetivamente o trabalho foi inspirada
nas comemorações, em toda a Europa, dos noventa anos de vida de Bobbio, em
outubro de 1999, o que nos encorajou a também oferecer nossa pequena homenagem ao
emérito professor.
Escrevemos, então, uma carta para o professor (e
também senador vitalício) Bobbio, expondo nosso projeto, e em poucos dias
recebemos sua amável resposta, nos incentivando e autorizando a negociar os
direitos autorais com a editora Giappichelli, de
Turim. Em seguida, contatamos a editora paulista Edipro,
cientes de sua criteriosa seleção de publicações filosóficas e jurídicas e de
sua exímia qualidade gráfica, que imediatamente nos deu todo o apoio
necessário.
P.22
A tradução foi realizada com o rigorismo técnico
possível, buscando atingir a fidelidade máxima ao texto original da obra em
italiano. Mesmo assim, os obstáculos foram inúmeros, obviamente pertinentes a
toda tradução de uma obra jurídico-literária maior, como a Teoria da Norma
Jurídica, em que algumas expressões idiomáticas e termos técnicos não têm
correspondência em nossa língua, bem como certas metáforas perdem o sentido em
nossa cultura. Porém, nossa grande preocupação, durante a árdua tarefa, sempre
foi manter o primoroso estilo ímpar do autor, isto é, límpido, mas denso, ao
expor idéias complexas, a um só tempo com clareza e
profundidade.
Esperamos que esta obra traduzida venha suprir uma
grave lacuna na bibliografia de filosofia do direito disponível em português.
Temos a certeza de que será muito útil para alunos e professores de graduação e
de pós-graduação em direito, filosofia e ciências sociais, e também para todos
aqueles que queiram aprofundar seus conhecimentos sobre normas jurídicas,
mormente sobre as características fundamentais que as distinguem de outras
espécies de normas de conduta social.
Por fim, agradecemos a todos os colaboradores que,
de muitas formas, nos auxiliaram para que nosso ambicioso projeto se
concretizasse neste livro, em especial ao próprio professor Norberto Bobbio
que, do patamar de sua inestimável grandeza intelectual, nos acolheu com a
humildade que apenas os sábios remanescentes da pura linhagem socrática podem
alcançar.
A ele, dedicamos esta tradução como homenagem,
ainda que um pouco tardia, por seus noventa anos, já nos desculpando
previamente se, por alguns momentos, e apesar dos esforços em contrário,
corremos o risco, inerente ao desafio a que nos propusemos, de sermos talvez
identificados pela espirituosa e intraduzível alcunha italiana: traduttori traditori.
Obs.: A tradução dos títulos de algumas das obras
citadas e ainda não editadas em português, foi feita de forma livre.
Os Tradutores
Agosto de 2001
P.23
O Direito como Regra de Conduta
Sumário
2. VARIEDADE E MULTIPLICIDADE DAS
NORMAS
6. O DIREITO É RELAÇÃO INTERSUBJETIVA?
O ponto de vista acolhido neste curso para o estudo
do direito é o ponto de vista normativo. Com isto, entendo que o melhor modo
para aproximar-se da experiência jurídica e apreender
seus traços característicos é considerar o direito como um conjunto de normas,
ou regras de conduta. Comecemos então por uma afirmação geral do gênero: a
experiência jurídica é uma experiência normativa.
A nossa vida se desenvolve em um mundo de normas.
Acreditamos ser livres, mas na realidade, estamos envoltos em uma rede muito
espessa de regras de conduta que, desde o
P.24
nascimento até a morte, dirigem nesta ou
naquela direção as nossas ações. A maior parte destas regras já se tornaram tão
habituais que não nos apercebemos mais da sua presença. Porém, se observarmos
um pouco, de fora, o desenvolvimento da vida de um homem através da atividade
educadora exercida pelos seus pais, pelos seus professores e assim por diante, nos daremos conta que ele se desenvolve guiado por regras
de conduta. Com respeito à permanente sujeição a novas regras, já foi
justamente dito que a vida inteira, e não só a adolescência, é um contínuo
processo educativo. Podemos comparar o nosso proceder na vida com o caminho de
um pedestre em uma grande cidade: aqui a direção é proibida, lá a direção é
obrigatória; e mesmo ali onde é livre, o lado da rua sobre o qual ele deve
manter-se é em geral rigorosamente sinalizado. Toda a nossa vida é repleta de
placas indicativas, sendo que umas mandam e outras proíbem ter um certo
comportamento. Muitas destas placas indicativas são constituídas por regras de
direito. Podemos dizer desde já, mesmo em termos ainda genéricos, que o direito
constitui uma parte notável, e talvez também a mais visível, da nossa
experiência normativa. E por isso, um dos primeiros resultados do estudo do
direito é o de nos tornar conscientes da importância do “normativo” na nossa
existência individual e social.
Se nos distanciarmos por um momento do homem
singular e considerarmos a sociedade, ou melhor, as sociedades, dos homens, se deixarmos
de nos referir à vida do indivíduo e contemplarmos aquela vida complexa,
tumultuada e sem interrupção das sociedades humanas, que é a História, o
fenômeno da normatividade nos aparecerá de modo não menos impressionante e
ainda mais merecedor da nossa reflexão. A História pode ser imaginada como uma
imensa torrente fluvial represada: as barragens são as regras de conduta,
religiosas, morais, jurídicas, sociais, que detiveram a corrente das paixões,
dos interesses, dos instintos, dentro de'certos limites,
e que permitiram a formação daquelas sociedades estáveis, com as suas
instituições e com os seus ordenamentos, que chamamos de
P.25
“civilização”.
Há, indubitavelmente, um ponto de vista normativo no estudo e na compreensão da
história humana: o ponto de vista segundo o qual as civilizações são
caracterizadas pelos ordenamentos de regras nas quais as ações dos homens que
as criaram estão contidas. A história se apresenta então como um complexo de
ordenamentos normativos que se sucedem, se sobrepõem, se contrapõem, se
integram. Estudar uma civilização do ponto de vista normativo significa,
afinal, perguntar-se quais ações foram, naquela determinada sociedade,
proibidas, quais ordenadas, quais permitidas; significa, em outras palavras,
descobrir a direção ou as direções fundamentais em que se conduzia a vida de
cada indivíduo. Perguntas do gênero: “Junto a determinado povo, eram permitidos
ou proibidos os sacrifícios humanos? Era proibida ou permitida a poligamia, a
propriedade dos bens imóveis, a escravidão? Como eram reguladas as relações de
família e o que era permitido e o que era proibido ao pai ordenar aos filhos?
Como era regulado o exercício do poder e quais eram os deveres e os direitos
dos súditos diante do chefe, e quais os deveres e os direitos do chefe diante
dos súditos?”, são todas perguntas que pressupõem o conhecimento da função que
tem o sistema normativo de caracterizar uma dada sociedade; e não podem ser
respondidas senão através do estudo das regras de conduta que moldaram a vida daqueles
homens, distinguindo-a da vida de outros homens, pertencentes a outra sociedade
inserida em outro sistema normâtivo.
Nem bem começamos a deslocar o olhar
para o mundo do normativo e uma das razões de maior surpresa é que este mundo é
enormemente vário e múltiplo.
As normas jurídicas, às quais
dedicaremos de modo particular a nossa atenção, não passam de uma parte da
experiência normativa. Além das normas jurídicas, existem preceitos
P.26
religiosos, regras morais, sociais,
costumeiras, regras daquela ética menor que é a etiqueta, regras da boa
educação, etc. Além das normas sociais, que regulam a vida do indivíduo quando
ele convive com outros indivíduos, há normas que regulam as relações do homem
com a divindade, ou ainda do homem consigo mesmo. Todo indivíduo pertence a
diversos grupos sociais: à Igreja, ao Estado, à família, às associações que têm
fins econômicos, culturais, políticos ou simplesmente recreativos. Cada uma
destas associações se constitui e se desenvolve através de um conjunto ordenado
de regras de conduta. Cada indivíduo, ademais, separado da sociedade a que
pertence, formula para a direção da própria vida programas individuais de ação:
também estes programas são conjuntos de regras. Cada grupo humano, cada
indivíduo singular, enquanto estipula objetivos a atingir, estipula também os
meios mais adequados, ou aqueles que julga mais adequados para atingi-los. A
relação meio/fim dá, geralmente, origem a regras de conduta do tipo: "Se
você quer atingir o objetivo A, deve praticar a ação B." São regras de
conduta tanto os dez mandamentos quanto as prescrições do médico, tanto os
artigos de uma Constituição quanto as regras do xadrez ou do bridge, tanto as
normas de direito internacional, que estabelecem como devem comportar-se os
Estados em suas relações recíprocas, quanto o regulamento de um condomínio,
tanto as consideradas normas sociais quanto as regras da gramática, da sintaxe
de uma língua, tanto as normas religiosas para o bom proceder nesta vida quanto
as regras de trânsito para mover-se no tráfego sem acidentes. Todas essas
regras são muito diversas pelas finalidades que perseguem, pelo conteúdo, pelo
tipo de obrigação que fazem surgir, pelo âmbito de suas validades, pelos
sujeitos a quem se dirigem. Mas todas têm em comum um elemento característico
que consiste, como veremos melhor em seguida, em ser proposições que têm a
finalidade de influenciar o comportamento dos indivíduos e dos grupos, de
dirigir as ações dos indivíduos e dos grupos rumo a certos objetivos ao invés
de rumo a outros.
P.27
O número de regras que nós, seres que agem com
finalidade, cotidianamente encontramos em nosso caminho é incalculável, ou
seja, é tal que enumerá-las é um esforço vão, como contar os grãos de areia de
uma praia. O itinerário de todas as nossas ações, ainda que modesto, é
assinalado por um tal número de proposições normativas que é dificilmente
imaginável por aquele que age sem muito pensar nas condições em que o faz. Para
dar um exemplo, tirado da vida cotidiana, vamos tentar perceber o número de
regras jurídicas (e refiro-me apenas às regras jurídicas para não estender
muito a análise) que traçam o percurso do simples ato de enviar uma carta. A
aquisição do selo é um negócio jurídico, particularmente, um contrato de compra
e venda, regulado em detalhes pelo Código Civil, do qual derivam obrigações e portanto limites bem precisos para a conduta (o
adquirente, por exemplo, deve oferecer o justo preço e o vendedor dar uma
mercadoria sem defeitos). Qual selo devo colar na carta? O tipo de selo a ser
colado está prescrito em uma outra minuciosa regulamentação de tarifas postais:
e depende, não só do tipo de remessa, mas do seu formato, do seu peso, da maior
ou menor garantia que eu quero ter pela sua entrega à destinação. Como devo
colar o selo? Posso colá-lo como e onde quiser? No nosso ordenamento, não há
limites para esta ação (e portanto é uma ação
permitida, ou pelo menos sujeita não a um comando, mas a um conselho); porém
não se pode excluir a possibilidade de que amanhã até mesmo isto se torne
regulado juridicamente, decorrendo daí que agir contra a regra traria
consequências desagradáveis, como a de que a carta não chegue a seu destino ou
então a de uma multa. No momento em que eu colo o selo correto, surge uma nova
relação, nada menos que entre mim e a administração pública, e deste vínculo
nascem obrigações (não estamos a precisar se perfeitas ou imperfeitas, em quais
casos perfeitas e em quais casos não) para que a carta alcance seu destino. O
trajeto da carta, do momento em que parte ao momento em que chega, é fonte de
inumeráveis obrigações por parte de todos aqueles que a este trajeto estão
relacionados:
P.28
empregados postais, encarregados do transporte das cartas, carteiros, etc.
Finalmente, como se não bastasse, escrever uma carta envolve também a
Constituição. De fato, o que significa o art. 15 da Constituição italiana que
diz: “a liberdade e o sigilo da correspondência e de toda outra forma de
comunicação são invioláveis”, senão que no ato de enviar uma carta, surge em
mim um direito subjetivo para que esta carta, por exemplo, não seja aberta
pelas autoridades policiais e, portanto, uma limitação obrigatória à ação dos
órgãos estatais?
Embora possa parecer, pelo que se disse
até aqui, que o elemento característico da experiência jurídica seja o fenômeno
da normatização, sendo portanto legítimo o ponto de
vista normativo por onde iniciamos, não podemos deixar de mencionar que existem
teorias diversas da normativa, que consideram como elementos característicos da
experiência jurídica fatos diversos das regras de conduta. Há, segundo penso,
pelo menos duas teorias que são distintas da normativa: a teoria do direito
como instituição e a teoria do direito como relação. Antes de proceder adiante,
devemos examiná-las, com o intuito de julgar sua maior ou menor validade.
A teoria do direito como instituição
foi elaborada, ao menos na Itália (deixo de ocupar-me daquela que habitualmente
se considera como o precedente francês, ou seja, a doutrina de Hauriou), por Santi Romano em um
livro muito importante: L’Ordinamento Giuridico [O Ordenamento Jurídico (1a ed. 1917,
2a ed. revista e anotada, 1945)]. O
polêmico alvo de Romano é precisamente a teoria normativa do direito. Desde as
primeiras páginas ele lamenta a insuficiência e os equívocos da teoria
normativa tal como é aceita pela maior parte dos juristas, e contrapõe à
concepção do direito como norma, a concepção do direito como instituição. O que
ele entende por instituição se extrai do tópico 10, do qual aqui reproduzo os
pontos relevantes.
P.29
O conceito de direito deve conter os seguintes
elementos essenciais:
a) Antes de
tudo, deve-se retornar ao conceito de sociedade, isto em dois sentidos
recíprocos que se completam: o que não sai da esfera puramente individual, que
não supera a vida de cada um enquanto tal, não é direito (ubi
ius ibi societas) e, além
disso, não há sociedade, no sentido correto da palavra, sem que nela se
manifeste o fenômeno jurídico (ubi societas ibi ius)...
b) O
conceito de direito deve, em segundo lugar, conter a idéia
de ordem social: o que serve para excluir cada elemento que conduza ao arbítrio
puro ou à força material, isto é, não ordenada... cada manifestação social,
somente pelo fato de ser social, é ordenada pelo menos em relação aos
cidadãos...
c) A ordem
social posta pelo direito não é aquela que é dada pela existência, originada de
qualquer maneira, de normas que disciplinam as relações sociais: ela não exclui
tais normas, ao contrário, serve-se delas e as compreende em sua órbita;
contudo, ao mesmo tempo, as ultrapassa e supera. Isto quer dizer que, antes de
ser norma, antes de concernir a uma simples relação ou a uma série de relações
sociais, é organização, estrutura, situação da mesma sociedade em que se
desenvolve, e a qual constitui como unidade, como ente por si só.
Disto se vê que, para Romano, os elementos
constitutivos do conceito de direito são três: a sociedade, como base de fato
sobre a qual o direito ganha existência; a ordem, como fim a que tende o
direito; e a organização, como meio para realizar a ordem. Pode-se dizer, em
síntese, que para Romano existe direito quando há uma organização de uma
sociedade ordenada ou, em outras expressões análogas, uma sociedade ordenada
através de uma organização, ou uma ordem social organizada. Esta sociedade
ordenada e organizada é aquilo que Romano chama de instituição. Dos três
elementos constitutivos, o
P.30
mais importante, aquele decisivo, é certamente o
terceiro, a organização: os dois primeiros são necessários, mas não
suficientes. Só o terceiro é a razão suficiente do direito, a razão pela qual o
direito é aquilo que é, e sem a qual não seria o que é. Isto significa que o
direito nasce no momento em que um grupo social passa de uma fase inorgânica
para uma fase orgânica, da fase de grupo inorgânico ou não organizado para a
fase de grupo organizado. Por exemplo, a classe social é certamente uma forma
de grupo humano, mas não tendo uma organização própria, não exprime um direito
próprio, não é uma instituição. Uma associação de delinquentes, ao contrário,
que se exprime em uma organização e cria o seu próprio direito (o direito da
sociedade de delinqüentes), é uma instituição. O
fenômeno da passagem da fase inorgânica para a fase orgânica se chama também
institucionalização. Dizemos que um grupo social se institucionaliza quando
cria a própria organização, e através dela se torna, segundo Romano, um
ordenamento jurídico. Com isto, no entanto, se revela uma incongruência, embora
marginal, na doutrina de Romano: se é verdade que a organização é o elemento
constitutivo primário da sociedade jurídica, e se também é verdade que há
sociedades não organizadas, pode-se aceitar a máxima ubi
ius ibi societas, mas não
se pode aceitar a máxima inversa, também acolhida por Romano, ubi societas ibi ius. Em outras palavras: pode-se muito bem admitir que o
direito pressuponha a sociedade, ou que seja o produto da vida social, mas não
se pode admitir que toda sociedade seja jurídica.
É preciso reconhecer o mérito da teoria
institucionalista de ter alargado os horizontes da experiência jurídica para
além das fronteiras do Estado. Fazendo do direito um fenômeno social e
considerando o fenômeno da organização como critério fundamental para distinguir
uma sociedade jurídica de uma socie-
P.31
dade não jurídica, esta teoria rompeu com o
círculo fechado da teoria estatalista do direito, que
considera direito apenas o direito estatal, e identifica o âmbito do direito
com o do Estado. Embora possa escandalizar um pouco o jurista que, limitando as
suas próprias observações e estudo ao ordenamento jurídico estatal, é induzido
a julgar que não haja outro direito senão aquele do Estado, para a teoria
institucionalista, até uma associação de delinqüentes,
desde que seja organizada com a finalidade de manter a ordem entre os seus
membros, é um ordenamento jurídico. Além disso, não existiram, historicamente,
Estados que pudessem ser comparados com associações de delinqüentes,
devido à violência e à fraude com que se conduziram frente aos seus cidadãos e
àqueles de outros Estados? Não chamava Santo Agostinho os Estados de magna latrocínio? E eram talvez por isso menos Estados, isto
é, menos ordenamentos jurídicos do que aqueles Estados que porventura se fizeram
conduzir segundo a justiça?
A teoria estatalista
do direito é produto histórico da formação dos grandes Estados modernos,
erigidos sobre a dissolução da sociedade medieval. Esta sociedade era
pluralista, isto é, formada por vários ordenamentos jurídicos, que se opunham
ou se integravam: havia ordenamentos jurídicos universais, acima daqueles que
hoje são os Estados nacionais, como a Igreja e o Império, e havia ordenamentos
particulares abaixo da sociedade nacional, como os feudos, as corporações e as
comunas. Também a família, considerada pela tradição do pensamento cristão como
uma societas naturalis, era em si mesma um
ordenamento. O Estado moderno foi formado através da eliminação ou absorção dos
ordenamentos jurídicos superiores e inferiores pela sociedade nacional, por
meio de um processo que se poderia chamar de monopolização da produção
jurídica. Se por poder entendéssemos a capacidade que
têm certos grupos sociais de emanar normas de conduta válidas para a totalidade
dos membros daquela comunidade, e de fazê-las respeitadas recorrendo até mesmo
à força (o considerado poder coatiuo), a formação do
Estado moderno caminha-
P.32
ria lado a lado com a formação de um poder coativo
sempre mais centralizado, e portanto com a gradual supressão dos centros de
poder a ele inferiores e superiores, o que gerou como conseqüência
a eliminação de todo centro de produção jurídica que não fosse o próprio
Estado. Se hoje persiste ainda uma tendência em identificar o direito com o
direito estatal, essa é a conseqüência histórica do
processo de centralização do poder normativo e coativo que caracterizou o
surgimento do Estado nacional moderno. A máxima consagração teórica deste
processo é a filosofia do direito de Hegel, na qual o Estado é considerado o
Deus terreno, ou seja, o sujeito último da história, que não reconhece nem
abaixo nem acima de si, qualquer outro sujeito, e a quem os indivíduos e os
grupos devem obediência incondicional.
A doutrina institucionalista representa uma reação
ao estatalismo. Ela é uma das tantas maneiras pelas
quais os teóricos do direito e da política tentaram resistir à invasão do
Estado. Ela nasce, ora da revaloração das teorias
jurídicas da tradição cristã, como em Georges Renard [ver a Théorie
de l’institution (Teoria da Instituição), 1930], ora
da influência das correntes socialistas libertárias (Proudhon),
ou anárquicas, ou sindicalistas como é o caso de Georges Gurvitch
[ver L'idée du droit social (A Idéia do Direito
Social), 1932, e a Dichiarazione dei diritti sociali (Declaração dos
Direitos Sociais), 1949], e se converte em teoria do direito, na França, com
Maurice Hauriou, e na Itália com Santi
Romano. Foi acolhida e universalizada na Itália por Guido Fassò,
que considerando instituição até mesmo a relação jurídica entre duas pessoas,
faz dela a categoria primária da experiência jurídica [ver a Storia come esperienza giuridica (História como Experiência Jurídica), 1953],
Encontrou fecunda aplicação no estudo dos ordenamentos particulares ou das
situações concretas por parte de um filósofo do direito como Cesarini-Sforza, que estuda o direito dos particulares, isto é, a
esfera da chamada “autonomia privada”, como um ordenamento jurídico distinto do
ordenamento estatal (“II diritto dei privati” (“O direito dos particulares”), in Rivista Italiana
P.33
de Scienza Giuridica, 1929, pp. 43-125); pelos historiadores do
direito como Grosso, que se vale do conceito de instituição e da teoria da
pluralidade de ordenamentos jurídicos, para uma mais adequada compreensão do
direito romano [ver Problemi generali
dei diritto attraverso il diritto romano (Problemas
Gerais do Direito através do Direito Romano), Giappichelli,
1948, pp. 3 e ss.]; e, mais recentemente, por um civilista, Salvatore Romano,
que retomando o estudo de Cesarini-Sforza, reexamina
todo o problema do direito privado à luz da teoria da pluralidade de
ordenamentos jurídicos [“Ordinamenti giuridici privati” (“Ordenamentos
jurídicos privados”), em Rivista Trimestrale
dei Diritto Pubblico, 1995,
pp. 249-331], Uma aplicação ao caso específico da relação entre o ordenamento
cavalheiresco e o ordenamento estatal foi realizada com incomparável apuro por
Piero Calamandrei [ver o ensaio “Regole
ca- valleresche e processo”
(“Regras cavalheirescas e processo”) de 1929, em Studi sul processo civile (Estudos sobre Processo Civil), III, pp. 155-170].
Toda teoria pode ser considerada do
ponto de vista do seu significado ideológico e do ponto de vista do seu valor
científico. Como ideologia, uma teoria tende a afirmar certos valores ideais e
a promover certas ações. Como doutrina científica, sua meta não é outra senão
compreender uma certa realidade e dar-lhe uma explicação. Aqui não estamos
discutindo a teoria da instituição como ideologia, e por isso não nos propomos
a julgar se é bom ou mau, útil ou nocivo, oportuno ou inoportuno afirmar que o
Estado não é o único centro produtor de normas jurídicas, nem quais são as
consequências práticas desta afirmação. A teoria da instituição é por nós
examinada como teoria científica, isto é, como teoria que se propõe a oferecer
meios distintos e melhores do que os oferecidos pela teoria normativa para a
compreensão do fenômeno jurídico. Di-
P.34
gamos somente, com relação ao alargamento dos horizontes do jurista para além
das fronteiras do Estado, que o problema sobre o qual se insiste na polêmica
entre pluralistas e monistas, se o direito é apenas aquele produzido pelo
Estado ou também aquele produzido por grupos sociais diversos do Estado, é uma
questão fundamentalmente de palavras. As definições de termos científicos são
convencionais (os lógicos falam de definições estipulatiuas),
o que significa que ninguém tem o monopólio da palavra “direito”, e que pode
ser usada tanto no sentido mais amplo quanto no mais restrito, conforme a ocasião
em que o único juiz é o próprio cientista. Quem afirma que direito é apenas o
direito estatal, usa a palavra “direito” em sentido restrito. Quem sustenta,
seguindo os institucionalistas, que direito é também aquele de uma associação
de delinqüentes, usa o termo “direito” em sentido
mais amplo. Porém, não há uma definição verdadeira e uma falsa, mas somente, se
tanto, uma definição mais oportuna e uma menos oportuna. Posta a questão nestes
termos, se devesse exprimir a minha opinião, diria que me parece mais oportuna
a definição ampla, isto é, aquela proposta pelos institucionalistas, porque,
limitando o significado da palavra “direito” às normas de conduta emanadas do
poder estatal, se contraria o uso lingüístico geral
que chama de direito também o direito internacional e aquele da Igreja, o que
pode gerar algumas confusões.
No que concerne ao valor científico da
teoria da instituição, isto é, se a consideração do direito como instituição é
válida para substituir a teoria normativa na compreensão e explicação do
fenômeno jurídico, proponho as duas observações críticas seguintes:
a)
Antes de tudo, a teoria da instituição,
acreditando combater a teoria normativa ao demolir a teoria estatalista
do direito, aponta para um alvo falso. A teoria normativa não coincide
absolutamente em linha de princípio com a teoria estatalista,
ainda que, em linha de fato, muitos juristas estatalistas
sejam normativistas e vice-versa. A teo-
P.35
ria normativa se limita a afirmar que o fenômeno originário da experiência
jurídica é a regra de conduta, enquanto que a teoria estatalista,
além de afirmar que o direito é um conjunto de regras, afirma que estas regras
têm características particulares (por exemplo: serem coativas) e, como tais,
distinguem-se de qualquer outro tipo de regra de conduta. A teoria estatalista é uma teoria normativa restrita. E, portanto,
não há nenhuma razão para se considerar a teoria normativa em si, menos ampla
do que a teoria institucional. Em suma, não existe nenhuma razão que induza a
rejeitar que a teoria normativa também possa ser compatível com o pluralismo
jurídico, já que não há nenhum motivo para restringir a palavra “norma”, assim
como é usada pela teoria normativa, somente às normas do Estado.
b) Romano escreveu que “antes de ser norma”, o direito “é organização”.
Ora, esta afirmação é contestável. O que significa organização? Significa
distribuição de tarefas de modo que cada membro do grupo contribua, segundo
suas próprias capacidades e competências, para a realização do fim comum; mas
esta distribuição de tarefas não pode ser cumprida senão mediante regras de
conduta. E então, não é verdadeiro que a organização venha antes das normas,
mas sim o oposto, que as normas venham antes da organização. Uma sociedade
organizada, uma instituição, é constituída por um grupo de indivíduos, os quais
disciplinam suas respectivas atividades com o objetivo de perseguir um fim
comum, isto é, um fim que não poderia ser alcançado por indivíduos sozinhos,
isoladamente considerados. A instituição nasce ali onde surge e toma forma uma
certa disciplina de condutas individuais, destinada a conduzi-las a um fim
comum. Mas uma disciplina é o produto de uma regulamentação, isto é, de um
complexo de regras de conduta. Particularmente, para que se possa desenvolver o
processo de ins-
P.36
titucionalização que transforma um grupo inorgânico em
um grupo organizado, isto é, em um ordenamento jurídico ocorrem três condições:
1) que sejam fixados os fins que a instituição deverá perseguir; 2) que sejam
estabelecidos os “meios”, ou pelo menos, os meios principais que se consideram
apropriados para alcançar aqueles fins; 3) que sejam atribuídas as funções
específicas dos indivíduos componentes do grupo para que cada um colabore,
através dos meios previstos, na obtenção do fim. Ora, está claro que, quer a
determinação dos fins, quer a determinação dos meios e das funções só podem
ocorrer através de regras, sejam elas escritas ou não, proclamadas solenemente
em um estatuto (ou Constituição) ou aprovadas tacitamente pelos membros do grupo,
o que vale dizer que o processo de institucionalização e a produção de regras
de conduta não podem andar separados e que, portanto, onde quer que haja um
grupo organizado, estaremos seguros de também encontrar um complexo de regras
de conduta que deram vida àquela organização ou, em outras palavras, se
instituição equivale a ordenamento jurídico, ordenamento jurídico equivale a
complexo de normas. Porém, assim, a teoria da instituição não exclui, ao
contrário, inclui a teoria normativa do direito, a qual não sai dessa polêmica
vencida, mas, talvez, reforçada.
Temos esta confirmação em um ensaio de
M. S. Giannini, Suila pluralitá
degli ordinamenti giuridici (Sobre a Pluralidade dos Ordenamentos Jurídicos,
1950), que, reafirmando a equivalência das duas expressões “grupo organizado” e
“ordenamento jurídico”, tem o cuidado de distinguir o fenômeno da normatização
(isto é, da produção das normas) do fenômeno da organização. Ele observa que
pode haver normatização sem organização: por exemplo, a classe social, mesmo
não sendo um grupo organizado, produz regras de conduta (normas sociais) para
os seus componentes; mas não pode haver organização sem normatização. Em outras
palavras, se é verdadeiro que uma
P.37
produção de normas, quaisquer que sejam, não basta para criar uma instituição, é
também verdadeiro que uma instituição não pode ser criada sem uma produção de
regras. E portanto, a produção de regras é sempre o
fenômeno originário, ainda que não exclusivo, para a constituição de uma
instituição.
Tudo que dissemos até aqui para
defender a teoria normativa significa que talvez queiramos repelir totalmente a
teoria da instituição? Certamente, não. Para nós, a teoria da instituição teve
o grande mérito, mesmo prescindindo de seu significado ideológico, que não pretendemos
discutir, de pôr em relevo o fato de que somente se pode falar em direito onde
há um complexo de normas formando um ordenamento e, portanto, o direito não é
norma, mas conjunto coordenado de normas; concluindo, uma norma jurídica não se
encontra nunca sozinha, mas é ligada a outras normas com as quais forma um
sistema normativo. Graças também à teoria da instituição, a teoria geral do
direito veio evoluindo cada vez mais da teoria das normas jurídicas à teoria do
ordenamento jurídico, e os problemas que vêm se apresentando aos teóricos do
direito são cada vez mais conexos à formação, à coordenação e à integração de
um sistema normativo.
Que o elemento característico da
experiência jurídica seja a relação intersubjetiva é, ao contrário da teoria
institucional, doutrina velhíssima e periodicamente recorrente. Se observarmos
bem, ela nasce da mesma idéia fundamental de que
nasce a teoria da instituição, qual seja, a de que o direito é um fenômeno
social, que tem sua origem na sociedade. E de se notar que a teoria da
instituição surgiu criticando não apenas a teoria normativa, como mostramos até
aqui, mas também a teoria da relação intersubjetiva. Segundo os defensores do institucionalismo (sobretudo os franceses), uma pura e
simples relação entre dois sujeitos não pode constituir direito; para que surja
o
P.38
direito, é necessário que esta relação esteja inserida em
uma série mais vasta e complexa de relações constituintes, ou seja, a
instituição. Duas pessoas isoladas que se encontram somente para estabelecer
entre si a regulamentação de certos interesses particulares, não constituem
ainda direito. Este nascerá apenas quando esta regulamentação se tornar de um
certo modo estável, e originar uma organização permanente da atividade dos dois
indivíduos.
Os institucionalistas, em geral, refutam a doutrina
da relação porque julgam que seja inspirada em uma concepção individualista do
direito, aquela prevalecente no jusnaturalismo dos
séculos XVII e XVIII, segundo a qual o direito é produto da vontade dos
indivíduos isolados, considerados cada um como uma unidade separada das outras
e que, de fato, tinha elevado à suprema categoria jurídica o acordo entre duas
ou mais vontades individuais, isto é, o contrato, de modo a gerar a sociedade
por excelência, ou seja, o Estado, mediante o ajuste de vontades entre
indivíduos particulares que se chamou contrato social. A doutrina da
instituição, ao contrário, se inspira nas correntes sociológicas mais modernas,
que acusaram o individualismo jusnaturalista de utopismo e racionalismo abstrato, e afirmam a realidade do
grupo social como distinta da dos indivíduos particulares que a compõem. Logo,
partindo deste pressuposto, consideram o direito como um produto não do
indivíduo ou dos indivíduos, mas da sociedade em seu complexo.
Como contraprova da afirmação dos
institucionalistas, segundo a qual a teoria da relação enterra suas raízes no
individualismo abstrato dos iluministas, pode-se lembrar que um dos mais
ilustres e coerentes representantes do iluminismo jurídico, Immanuel Kant,
expõe na sua Doutrina do Direito (1797) uma clara teoria do direito como
relação jurídica. Kant, depois de ter dado sua célebre definição do Direito
como “conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode
acordar-se com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liberdade”
[Metafísica dei costumi (Metafísica dos Costumes),
trad. it., ed. Utet, 1956,
p. 407] se põe a investigar os elementos
P.39
constitutivos do conceito de direito. E assim ele descreve o primeiro destes
requisitos: “O conceito de direito, quando se refere a uma obrigação
correspondente..., considera em primeiro lugar apenas a relação externa, e
precisamente prática, de uma pessoa para com outra, enquanto suas ações possam
(imediatamente ou mediatamente) exercer, como fatos, influência umas sobre as
outras” (op. cit., p. 406). Quanto ao segundo requisito, Kant afirma que esta
relação entre dois sujeitos, para ser uma relação jurídica, deve se dar entre
dois arbítrios, e não entre o arbítrio de um e o simples desejo do outro. O que
importa sobretudo a Kant, ao colocar o direito como relação entre dois
sujeitos, é afastar a tese de que ele possa consistir também em uma relação
entre um sujeito e uma coisa. Para Kant, há quatro tipos possíveis de relações
entre um sujeito e outros: 1) a relação entre um sujeito que tem direitos e
deveres com outro que tem apenas direitos e não deveres (Deus); 2) a relação de
um sujeito que tem direitos e deveres com outro que tem apenas deveres e não
direitos (o escravo); 3) a relação de um sujeito que tem direitos e deveres com
outro que não tem nem direitos nem deveres (os animais, as coisas inanimadas);
4) a relação de um sujeito que tem direitos e deveres com outro que tem direitos
e deveres (o homem). Destas quatro relações, somente a última é relação
jurídica.
Uma segunda contraprova é dada pelo
mais notável e influente representante da corrente neokantiana
na filosofia do direito contemporânea na Itália, Giorgio dei Vecchio. Para Del
Vecchio, o mesmo princípio ético se pode traduzir em uma dupla ordem de
valoração: 1) em relação ao mesmo sujeito que pratica a ação (que pode escolher
a ação devida e afastar a proibida); 2) em relação aos sujeitos a quem a ação é
dirigida (que podem escolher entre deixar cumprir a ação ou impedila).
A primeira ordem de valoração constitui a valoração moral; a segunda, a
valoração jurídica. Daqui derivam a subjetividade da ação moral e a
intersubjetividade da ação jurídica, a unilateralidade da norma moral e a
bilateralidade da norma jurídica; deriva, conseqüentemente,
a definição do direito como coor-
P.40
denação objetiva do agir, o que implica na
visão do direito (à diferença da moral) como um conjunto de relações entre
sujeitos, onde se um tem o poder de executar uma certa ação, o outro tem o
dever de não impedi-la.
A mais recente teoria do direito como
relação jurídica está exposta na Teoria generale dei diritto (Teoria Geral do Direito de Alessandro Levi, Pádua,
Cedam, 2a ed., 1953). Pode-se dizer que
Levi fez do conceito de relação jurídica a pilastra sobre a qual erigiu sua
construção. Desde o início, fala da relação jurídica como o conceito “sobre o
qual se funda a construção sistemática, ou científica, de todo ordenamento
jurídico” (p. 23). A relação jurídica tem sido muitas vezes definida como o
conceito fundamental do ordenamento jurídico: “Este conceito de relação
jurídica... não o conceito de dever, nem o de direito subjetivo, e tampouco o
de norma,... é o conceito fundamental, central do
ordenamento jurídico” (p. 26). Sua importância se revela também no fato de que
Levi o eleva a conceito filosófico, quase uma espécie de categoria fundamental
e originária para a compreensão do direito. Fala do conceito de relação jurídica
como daquele em que se concretiza o “universal jurídico”, ou “o momento
jurídico do espírito humano” (p. 27). Mais precisamente: “Não é um conceito
meramente empírico ou técnico, que represente uma síntese aproximada de dados
tomados indutivamente da realidade considerada a parte obiecti,
porém constitui, em sua mais concreta essência, o limite lógico de todo outro
conceito técnico” (p. 29). Por “relação jurídica”, Levi entende, no sentido
tradicional da palavra, uma relação intersubjetiva, quer dizer, entre dois
sujeitos dos quais um é titular de uma obrigação e o outro de um direito. A
função categorial da intersubjetividade é dada pelo fato de que dela se serve o
filósofo do direito para distinguir o direito da moral (que é subjetiva) e da
economia (que relaciona o homem com as coisas). Assim Levi se exprime: “[a
valoração jurídica] não
P.41
valoriza o ato em relação às coisas
sobre as quais se exerce, ou, mais apropriadamente, em relação aos bens,
materiais ou imateriais, com os quais o sujeito tende a satisfazer suas
necessidades; nem em relação a um ideal de vida, a que o sujeito aspira
aproximar-se, ou, mais particularmente, em relação à divindade, que se crê
observar e julgar todo movimento da alma; mas tão somente em relação a outros
sujeitos, isto é, aos seus comportamentos, positivos ou negativos,
complementares ao comportamento do sujeito de quem se trata, na medida em que
eles tenham o direito de exigir-lhe um determinado comportamento, ou, ao
contrário, um dever complementar a um direito seu, ou pelo menos a obrigação de
abster-se de impedir esse comportamento” (p. 27).
Não obstante o propósito várias vezes
declarado de construir uma teoria geral do direito fundada no conceito de
relação jurídica, receio que Levi não tenha permanecido sempre fiel a seu
intuito. Para realizá-lo, Levi deveria ter resolvido os problemas fundamentais
da teoria geral do direito recorrendo ao conceito de relação jurídica. Mas isto
nem sempre aconteceu. Desde o início, nos gera suspeita o fato de considerar a norma
como a fonte ideal da relação, e afirmar que não pode haver direito fora do
reconhecimento dado pelo direito objetivo. Mas, então, não é verdadeiro que a
juridicidade de uma relação seja intrínseca à relação, porque ela nasce, ao
invés, do fato de que esta relação é regulada por uma norma jurídica; e, em conseqüência, para responder à pergunta “o que é o Direito?”, ele se refere, como qualquer seguidor da teoria
normativa, à regra que define a relação, e não à relação regulada. Esta
suspeita se agrava quando, devendo indicar as características constitutivas da
relação jurídica (isto é, não de qualquer relação intersubjetiva, mas de uma
específica), diz que são elas a tutela, a sanção, a pretensão e a prestação (p.
30). No entanto, estas não são características da relação intersubjetiva
considerada em si mesma (uma relação de amizade, por exemplo, é intersubjetiva,
sem que, por outro lado, tais características se manifestem), mas antes são
deduzidas do fato de que esta relação é regulada
P.42
por uma norma que prevê uma sanção no caso de seu rompimento; em suma, do
fato de que é regulada por uma norma jurídica. Neste ponto nos perguntamos se o
que constitui a relação como relação jurídica não é porventura a norma que a
regula e, neste caso, a teoria da relação jurídica também acabaria por
desembocar, assim como a teoria da instituição, na teoria normativa. E o que
veremos melhor no tópico seguinte.
8.
OBSERVAÇÕES CRÍTICAS
A razão pela qual acreditamos que
conceber o direito como relação intersubjetiva não elimina a consideração
normativa, pode ser formulada do seguinte modo. Uma relação jurídica, como foi
visto, é uma relação entre dois sujeitos, dentre os quais um deles, o sujeito
ativo, é titular de um direito, o outro, o sujeito passivo, é titular de um dever
e obrigação. A relação jurídica é, em outras palavras, uma relação
direito-dever. Ora, o que significa ter um direito? Significa, como veremos
melhor em seguida, ter o poder de realizar uma certa ação. Mas, de onde deriva
este poder? Não pode derivar senão de uma regra, a qual no mesmo momento em que
me atribui este poder, atribui a um outro, a todos os outros, o dever de não
impedir a minha ação. E o que significa ter um dever? Significa estar obrigado
a comportar-se de um certo modo, quer esta conduta consista em um fazer, quer
em um não fazer. Mas de onde deriva esta obrigação? Não pode derivar senão de
uma regra, a qual ordena ou proíbe. Em essência, o direito não passa do reflexo
subjetivo de uma norma permissiva, o dever não é senão o reflexo subjetivo de
uma norma imperativa (positiva ou negativa). A relação jurídica, enquanto
direito-dever, remete sempre a duas regras de conduta, dentre as quais a
primeira atribui um poder, a outra atribui um dever. Que depois, de fato,
destas duas normas seja suficiente que se enuncie uma só, que o momento em que
se atribui um direito a um sujeito implica sempre a atribuição de um dever a
outros sujeitos, e vice-
P.43
versa, não altera em nada a questão substancial, isto é, que direito e dever
são as figuras subjetivas nas quais se refletem a presença de uma regra, e
portanto a relação jurídica é aquela que se distingue de todos os outros tipos
de relação por ser regulada por uma norma jurídica.
A relação jurídica é caracterizada não
pela matéria que constitui seu objeto, mas pelo modo com que os sujeitos se
comportam um em face do outro. E se exprime também desta maneira: o que
caracteriza a relação jurídica não é o conteúdo, mas a forma. E isto significa:
não se pode determinar se uma relação é jurídica com base nos interesses em
jogo; pode-se determiná-la apenas com base no fato de ser ou não regulada por
uma norma jurídica. O problema da caracterização do direito não reside sobre o
plano da relação; se encontra somente sobre o plano das normas que regulam a relação.
Em outras palavras: dado um vínculo de interdependência entre relação jurídica
e norma jurídica, nós não diriamos que uma norma é
jurídica porque regula uma relação jurídica, mas sim que uma relação é jurídica
porque é regulada por uma norma jurídica. Não existe, na natureza, ou melhor,
no campo das relações humanas, uma relação que seja por si mesma, isto é,
ratione materiae, jurídica: há relações econômicas, sociais, morais, culturais,
religiosas, há relações de amizade, indiferença, inimizade, há relações de
coordenação, de subordinação, de integração. Mas nenhuma dessas relações é
naturalmente jurídica. Relação jurídica é aquela que, qualquer que seja o seu
conteúdo, é tomada em consideração por uma norma jurídica, é subsumida por um
ordenamento jurídico, é qualificada por uma ou mais normas pertencentes a um
ordenamento jurídico. Veremos melhor em seguida quais as conseqüências
geradas por uma ação humana estar qualificada como jurídica. Até aqui, basta
ter colocado em evidência que é a norma que qualifica a relação e a transforma
em relação jurídica, e não vice-versa. Como consequência, se é verdade que
nenhuma relação é naturalmente jurídica, é igualmente verdade que qualquer
relação entre homens pode se tornar jurídica, desde que seja re-
P.44
gulada por uma norma pertencente a um sistema
jurídico. Diz- se entre os juristas que uma relação, enquanto não for regulada
pelo direito, é uma relação de fato. A recepção por parte do ordenamento
jurídico - recepção esta que vem a atribuir a um dos dois sujeitos uma
obrigação e ao outro um dever - transforma a relação de fato em jurídica. A
relação entre um vendedor e um comprador é de natureza econômica; o que a torna
jurídica é o fato do ordenamento jurídico atribuir aos seus dois sujeitos
direitos e deveres. A relação de fidelidade entre os cônjuges é antes de tudo
de natureza ética; torna-se jurídica quando o ordenamento transforma esta
relação moral em uma relação geradora de direitos e obrigações juridicamente
relevantes.
A conclusão que queremos tirar dessas
considerações é que a teoria da instituição e a da relação não excluem, mas
incluem a teoria normativa, o que eqüivale a dizer
que a teoria normativa permanece válida não obstante a teoria da instituição e
a da relação, - ou melhor, ela é o pressuposto de validade de ambas.
Pode-se somar ainda a consideração
seguinte: as três teorias não se excluem entre si, e assim é estéril toda
batalha doutrinai para fazer triunfar uma ou outra. Diria até mesmo que estas
três teorias se integram utilmente. Cada uma põe em evidência um aspecto da
multiforme experiência jurídica: a teoria da relação, o aspecto da intersubjetiuidade; a da instituição, o da organização
social; a normativista, o da regularidade. Com
efeito, a experiência jurídica nos coloca frente a um mundo de relações entre
sujeitos humanos organizados estavelmente em sociedade mediante o uso de regras
de conduta. Ocorre que dos três aspectos complementares, o fundamental é sempre
o aspecto normativo. A intersubjetividade e a organização são condições
necessárias para a formação de uma ordem jurídica; o aspecto normativo é a
condição necessária e suficiente.
Página notas de rodapé.
Nota *, página 12: Publicado em
português na Série Clássicos Edipro, trad. e notas de Edson Bini, 2000.