Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, Capítulo IV, Artigo 46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

 

Revisado por: Breno Mateus

Natal, Novembro de 2021.

 

CASTRO, Manoel Manrique. Igreja, relações capitalistas e o período de gênese da profissão. In: CASTRO, Manoel Manrique. História do serviço social na América Latina. São Paulo: Cortez, 1982. Parte 2. cap.2, p. 44-67.

 

[Todas as notas de rodapé encontram-se no final do texto]

 

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Capítulo II

Igreja, Relações de Produção Capitalistas e o Período de Gênese da Profissão

 

Nas páginas precedentes, discutimos e apresentamos alguns argumen­tos teóricos que parametram a nossa abordagem metodológica à história do Serviço Social na América Latina. Não consideramos, obviamente, que es­tas aproximações sejam exaustivas, mas queremos, agora, avançar em nos­sa exposição, debatendo dois aspectos que ajuizamos como centrais para delimitara nossa perspectiva analítica. Em primeiro lugar, é preciso estabe­lecer como entendemos a função concreta que o Serviço Social desempe­nha no interior das relações sociais entre as classes; e, secundaria­mente, qual o papel que a religião católica (como tal) e sua Igreja (como instância de organização de um determinado poder político) tiveram duran­te o período da gênese, da formação do Serviço Social — com uma aten­ção particular às implicações de caráter extra-religioso que o catolicismo trouxe à configuração do Serviço Social.

No que concerne ao primeiro ponto, como já observamos, valemo-nos do enfoque segundo o qual a profissão, ela mesma, só pode ser entendida no interior do desenvolvimento das relações de produção capitalistas, embasadas nas condições particulares de cada país latino-americano.

 

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O processo de imposição da lógica da acumulação capitalista é o eixo em torno do qual se articulam e organizam as funções do Estado e a luta das classes sociais para alcançar sua hegemonia e, naturalmente, entre o conjunto delas e a classe operária, que emerge como o contrário da implantação das relações assalariadas de exploração.[nota 1]

O surgimento das primeiras escolas de Serviço Social na América Latina cristaliza uma situação prévia e introduz algumas mudanças significativas no percurso histórico da profissão. E pertinente indagar qual a significação qualitati­va do ingresso do Serviço Social no âmbito da Universidade e do estatuto diferen­ciado que, cm cada contexto, este fato lhe atribuiu — pois que ha exemplos de escolas criadas recentemente (como a da Universidad Madre y Maestro, na República Dominicana, em 1966) e cabe perguntar se esta criação não é supervalorizada, conferindo-se-lhe um peso de que carece. Afinal, que tipo de relação existe entre as exigências e as necessidades sociais e a institucionalização universitária (escolarização) do Serviço Social?

Muito antes de encontrar espaço universitário, o Serviço Social tinha uma prática configurada, que implementava mediante suas componentes principais: um conjunto de objetivos tácitos ou explícitos, setores para os quais os profissionais dirigiam a sua atividade e agentes concretos encarre­gados de exercitá-la.

As formas de organização popular — em particular, da classe operária, progressivamente, foram apresentando novas exigências sociais, a que se tentou responder através de mecanismos distintos. Com eles, as classes dominantes procuraram direcionar as lutas populares, enquadrando-as no âmbito da legislação burguesa, cuja tramitação e controle cabem ao Estado. No auge das organizações operárias, cuja combatividade é um elemen­to de réplica às formas de exploração, especialmente contra o prolonga­mento da jornada de trabalho, aquela legislação se foi definindo sob a apa­rência de concessões burguesas — e, mesmo constituindo conquista popu­lar, permite à burguesia canalizar o protesto do povo e perceber que, se adquirem maior dimensão, aqueles germes de organização e aquela combatividade tornar-se-ão de difícil controle.

 

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Portanto, impõe-se a neces­sidade de o capital articular mecanismos preventivos e de manipulação que, sob a forma de cuidados às necessidades dos trabalhadores, facilitem as condições para a sua reprodução. As exigências históricas da acumulação capitalista, que supõem a reprodução das relações sociais de produção com as suas incidências no campo ideológico, instauram a sua lógica, mul­tiplicando e diversificando mecanismos de intervenção que propiciem a de­fesa e a ampliação do capital. Este é o impulso específico do qual derivam as forças que põem novos critérios para o desenvolvimento da profissão.

Por outra parte, os conteúdos e as doutrinas de forte raiz cristã, no interior deste processo, evidenciam simultaneamente a sua força e as suas limitações para operar funcionalmente com as demandas do Estado burgu­ês e das classes que precisam de agentes colaboradores na reprodução da força de trabalho como mercadoria, tanto no que se refere à orientação e à organização da vida, como no que tange ao consumo das novas camadas sociais submetidas à órbita do capital, e cuja força de trabalho já não pode ser vendida por um salário apenas como transação livre num mercado anár­quico, mas que reclama a intervenção, nele, do Estado, para garantir os interesses gerais do capital.

A subordinação da força de trabalho ao capital traz consigo um comple­xo de fenômenos que, aos olhos dos pensadores do Serviço Social, apareci­am como disfuncionalidades, a serem corrigidas mediante a utilização de recursos técnicos nos quais, supostamente, estava o remédio para os males sociais.

Esta subordinação, porém, não é um fato que se limita estritamente ao nível da produção: o conjunto da vida do proletário vai se organizando cm função da sua condição de vendedor da única mercadoria que possui e que lhe propicia a reprodução da sua força de trabalho e da sua família. Os hábitos, a organização do consumo e de toda a economia doméstica, o papel da mulher no lar, o uso do tempo livre etc., todos estes aspectos passam a organizar-se em consonância com a sua condição básica de proletário. O processo de adaptação da classe operária à sua nova condição social, as­sim, acompanhou-se por profissionais cuja formação procurou-se adequar, técnica e ideologicamente, para que levassem a cabo com êxito esta tarefa. E, apesar de tudo, a análise da tarefa, em si mesma, não permite desvendar a lógica no interior da qual ela ganha sentido.

 

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Por isto, o seu traço pertinente não deve ser buscado na própria tarefa, mas no conjunto do sistema de relações em que se inserem as suas atividades. Como Gramsci explicou,

[Início de citação] “o operário, por exemplo, não se caracteriza especificamente pelo trabalho manual ou instrumental, mas por este trabalho cm determinadas condições e em determinadas relações sociais”.[nota 2] [Final de citação]

 

O mesmo vale para o Serviço Social, que passou a atuar no marco de relações de produção propriamente capitalistas cada vez mais nítidas, com a totalidade da vida social organizando-se segundo as suas exigências.

Não é a tarefa em si o que define o seu conteúdo assistencialista ou não. Uma determinada tarefa, ou atividade, pode ter, num momento histórico, um cunho profundamente assistencialista, de raiz religiosa e caritativa — e pode mudar de sentido e de perspectiva sob outras condições sociais, sob o domínio do capital.

É nesta ótica que se deve visualizar a relação Igreja-Serviço Social, pois os vínculos daquela com o assistêncialismo profissional foram mu­dando de caráter conforme as transformações sociais reclamaram uma redefinição não só do assistencialismo católico, mas também da doutrina social da Igreja, das suas políticas e relações de poder no bojo do novo quadro emergente de forças.

E é nela que se verifica que a emersão do Serviço Social, enquanto protagonista de uma prática diferenciada da assistência pública e da cari­dade tradicional, conecta-se aos objetivos político-sociais da Igreja e das frações de classe vinculadas mais diretamente a ela. Os elementos que mais colaboram para o surgimento do Serviço Social têm origem na Ação Católica — intelectualidade laica, estritamente ligada à hierarquia católi­ca —, que propugna, com visão messiânica, a recristianização da socie­dade através de um projeto de reforma social. Estes núcleos de leigos, orientados por uma retórica política de cunho humanista e antiliberal, lançam-se a uma vigorosa ação dirigida para penetrar em todas as áreas e instituições sociais, criando mecanismos de intervenção em amplos segmentos da sociedade, com a estratégia de, progressivamente, conquistar espaços importantes no aparelho de Estado.

 

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A Ação Católica (e, por extensão o Serviço Social) prende-se a um projeto de recuperação da hegemonia ideológica da Igreja — incentivado oficialmente pela hierarquia e tendo como suporte as encíclicas papais —, lutando contra o materialismo liberal e contra a agitação social de cariz anarco-comunista.

Dois aspectos, ou dimensões, o político e o ideológico, intimamente interligados, permitem destacar melhor a conexão da Igreja com os intelectuais:

[Início de citação] “A Igreja mantém uma unidade ideológica ‘oficial’ através de dois meios: a política e a evolução ideológica progressiva. Como em toda ideologia, a relação entre os diferentes níveis da religião está assegurada pela política; neste caso, exercendo-se uma férrea disci­plina sobre os intelectuais, para que não ultrapassem certos limites na distinção e não a tornem catastrófica e irreparável”.[nota 3] [Final de citação]

 

De fato, por longos séculos a Igreja fundou o seu poder (juntamente com o dinheiro, os exércitos e as prisões) na organização não apenas de um aparelho político, mas ainda na profissionalização das suas hierarquias, pretendendo que estas subordinassem o desenvolvimento e a difusão do conhecimento aos dogmas da fé católica. No entanto, os dogmas não eram apenas — como se postulava — o reflexo fiel de uma verdade revelada: eram a sua interpretação mutável em face das múltiplas mudanças que iam reordenando a sociedade e as ideologias dominantes. Em todo este processo, sempre foi fundamental para a Igreja controlar com “férrea disciplina” o desenvolvimento do conhecimento e, em particular, os intelectuais, mantendo seu próprio contingente de ideólogos entre padres e bispos, mediante profissionais seculares ou regula­res, apoiando-se ora nuns, ora noutros, ora mais numa ordem que noutra, expressando a aguda lula pelo poder no seu interior.

A partir da hierarquia católica desenvolveu-se, ainda, um controle da Igreja sobre os intelectuais e os profissionais laicos, que foram organizados em instituições, movimentos etc., com funções especializadas mais específi­cas e cambiantes, graças à importância do “material ideológico” de que dispunham. Portelli assinala:

[Início de citação] “... Não poderiamos explicar a posição conservada pela Igreja na socie­dade moderna se não levarmos em conta a importância do seu material ideológico, dos seus duradouros e pacientes esforços para operar a sua própria secção da estrutura material da ideologia.[Continuação]

 

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[Continuação] Este material ideológi­co é essencialmente constituído pela literatura e pela imprensa..., bem como pela organização escolar e universitária que a Igreja preservou”.[nota 4] [Final de citação]

 

Esta estrutura organizativa, amalgamada por urna doutrina centralizada (onde também intercorreu o catolicismo popular), participou de diferentes processos históricos. Nestes, a Igreja católica foi progressivamente reorientando a sua estratégia geral e, consequentemente, a própria ação laica, de forma a estabelecer sua influência e sua presença entre as grandes mas­sas, ganhando o seu universo mental, alimentando permanente e organizadamente a sua fé e difundindo reiteradamente a sua apologética, através de uma gama ampla e hierárquica de intelectuais.

Vencido o tempo em que, apesar da expansão do mundo mercantil, os reis se submetiam ao seu império, a Igreja — bem como os reis e os Estados mesmos —, quando o capital passou a organizar a sociedade e a definir as relações de poder, submeteu-se também à sua lógica acumulativa. E como qualquer outra instituição humana, a Igreja — similarmente ao que fizera em face de revoluções precedentes — teve que recriar quer os seus argumentos de poder, procurando adaptar-se às mudanças, quer as fórmulas práticas de ação que oferecia aos leigos; para isto, valeu-se tanto do contato regular que man­tinha com as massas quanto dos organismos laicos de ação que, como seu sistema nervoso central, passaram a parametrar e institucionalizar a interven­ção católica.

Na América Latina, desde os primeiros momentos a Igreja católica desempenhou um papel de extrema importância; e a sua significação social e política foi notavelmente acrescida ao longo do domínio colonial. Ela deter­minou os intelectuais orgânicos e, durante muito tempo, a categoria intelec­tual mais típica, monopolizadora dos serviços relevantes — a ideologia re­ligiosa, a filosofia, a ciência da época, a educação, a moral, o ordenamento dos costumes, a própria noção de justiça —, foi a dos intelectuais clericais.[nota 5]

 

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Gramsci assinala-o bem:

[Início de citação] “A categoria dos eclesiásticos pode ser considerada como a catego­ria intelectual organicamente vinculada à aristocracia fundiária; estava juridicamente equiparada a ela, com ela repartia o exercício da proprieda­de feudal da terra e os privilégios públicos decorrentes da propriedade. Mas o monopólio das superestruturas pelos clérigos nunca se operou sem lutas e restrições, e assim se produziu a emergência de outras cate­gorias favorecidas e ampliadas pelo reforço do poder central do monarca até o absolutismo. Gradual mente, vai-se formando a aristocracia da toga, com seus próprios privilégios, e uma camada de administradores, cientis­tas, teóricos e filósofos leigos. . .” [nota 6] [Final de citação]

 

O progressivo enfraquecimento do poder colonial e das classes que dele se valiam, juntamente com a implantação mais conclusiva das relações de produção capitalistas, obrigaram a Igreja a repensar a sua própria estraté­gia de ação política. Se se vinculasse, até às últimas consequências, ao poder das classes coloniais, a Igreja teria passado por sérias dificuldades. Mas o seu processo mesmo de luta interna foi tornando-a mais sensível às modifi­cações que se operavam na estrutura social.

A Igreja, responsável pelo segmento mais vasto dos intelectuais orgânicos da sociedade oligárquica, respondeu também pela direção cultural adequada às exigências da hegemonia social das classes dominantes. No terreno específico do que se denominava assistência social, organizou formas para tratar os pro­blemas da época anterior à eclosão do fenômeno industrial.

Por outra parte, a Igreja movia-se no interior de um projeto mais geral de reforma social, cujo principal conteúdo era a luta pela recuperação da hegemonia cristã, quando esta começou a perigar em função tanto da influ­ência marxista quanto da proposta liberal. O combate contra a secularização e a racionalidade que acompanham a expansão do capitalismo assumiu o caráter de utopia social, inspirada no passado da hegemonia ideológica da Igreja sobre a sociedade e o Estado, e consistia na tentativa de restaurar este domínio perdido.

Como elemento da estratégia destinada a recuperar a sua hegemonia ideológica, tanto a hierarquia católica quanto os leigos valorizaram em maior grau a ação social e a participação ativa e organizada dos crentes na vida social, criando‑se, para colimar estes objetivos, os suportes de tipo legal e institucional.

 

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Nestes, cabe destacar o ensino confessional, os centros de estudo, a Ação Católica, as universidades, os sindicatos católicos, as novas formas de ação paroquiais etc. Estas respostas sin­cronizavam-se às mudanças operadas no interior das sociedades latino- americanas, nas quais a ação da Igreja (e o trabalho dos seus agentes) perdia significativos espaços.

 

1. A ação social da Igreja e as encíclicas papais

 

A Igreja conta com um discurso doutrinário centralizado (romano ou vaticano) que elabora as diretrizes gerais de compreensão dos problemas, estabelecendo normas genéricas para o exercício da fé católica. Entre seus instrumentos mais importantes destacam-se as encíclicas papais, que, em mais de uma ocasião, representaram modificações substantivas na orienta­ção doutrinária e na ação política da Igreja católica. Todavia, é significativo assinalar que as encíclicas encontram condições diferenciadas conforme o meio em que se implementam.

E condições especiais são aquelas dadas por realidades onde estão em curso dinâmicos processos de industrialização, seguidos pela intensificação da luta de classes — condições, como se pode compreender, muito distintas daquelas existentes em países nos quais a dominação de camadas oligárquicas conserva a sua vigência. De qualquer modo, é imprescindível conhecer o papel concreto exercido pela hierarquia e pelo clero, bem como a natureza da sua fusão orgânica com as classes dominantes.

No período em que o Serviço Social transita para a sua profissionali­zação, quando penetra nos centros de ensino superior e se vincula a cer­tas instâncias do Estado — ou ingressa diretamente na Universidade—, duas encíclicas papais tiveram um papel sumamente importante para enformar o seu desenvolvimento (mesmo que se leve em conta que, junto delas, a ação direta da Igreja e a sua permanente inspiração ideológica responderam pelo perfil e pelo substrato doutrinário da formação dos pri­meiros centros de formação superior). Referimo-nos às encíclicas Rerum Novarum, divulgada por Leão XIII a 15 de maio de 1891, e Quadragésimo Anno, divulgada por Pio XI a 15 de maio de 1931, dois anos depois do grande crack capitalista de 1929.

 

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1.1.       A questão social e a “Rerum Novarum"

 

A encíclica Rerum Novarum divide-se em duas partes: “A solução pro­posta pelo socialismo” e “A solução proposta pela Igreja”.

[Início de citação] Desde as suas primeiras linhas, o documento situa-se diretamente em face da nevrálgica questão operária, observando que os progressos recentes da indústria e os novos caminhos trilhados pelos ofícios, a mudança operada nas relações entre patrões e trabalhadores, o enriquecimento de uns poucos e o empobrecimento da multidão, a maior confiança dos operários em si mesmos e a união com que se juntam entre si e, enfim, a corrupção de costumes fizeram eclodir a guerra”.[nota 7] [Final de citação]

 

Constatados os fatos, a encíclica menciona a necessidade de tocar no cerne da questão social, esclarecendo que esta tarefa compete à Igreja em razão da relação que existe entre a sua causa e a do bem comum. E o texto se posiciona criticamente em face dos capitalistas ao enunciar:

[Início de citação] “Acrescendo o mal, sobreveio a usura voraz que, repetidamente conde­nada pela sentença da Igreja, prossegue disfarçando sua essência sob for­mas várias, exercida por homens avaros e ambiciosos. Some-se a isto o fato de que a produção e o comércio de todas as coisas estão quase inteiramente em poucas mãos, de modo que uns quantos homens riquíssimos e opulentos impuseram sobre a multidão inumerável de proletários um jugo que pouco difere da escravidão.[nota 8] [Final de citação]

 

A encíclica salienta as formas de exploração da força de trabalho assala­riada, que permitiram a acumulação capitalista. E se é certo que critica a insensibilidade dos “homens riquíssimos e opulentos”, ela tem, igualmente, o objetivo de enfrentar as propostas socialistas (que, à época, ganhavam numerosos adeptos nas fileiras do movimento operário), defendendo a propriedade privada, pilar fundamental das relações de produção capitalistas:

 

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[Início de citação] “Para remediar estes males, os ‘socialistas’, depois de estimular entre os pobres o ódio aos ricos, pretendem liquidar com a propriedade priva­da, substituindo-a pela coletiva, em que os bens de cada um sejam co­muns a todos, respondendo por sua conservação e distribuição os que dirigem o município ou têm em mãos o governo geral do Estado. Eles acreditam solucionar o mal presente com esta transferência dos bens dos particulares para a comunidade, repartindo-os e dividindo-os de forma perfeitamente igual entre os cidadãos. Por isto se vê que o princípio socialista — segundo o qual toda propriedade há de ser comum — deve ser absolutamente rechaçado, porque prejudica aqueles que pretende socorrer, conflita com os direitos naturais dos indivíduos e perturba os deveres do Estado e a tranquilidade comum. Fica claro, pois, que, quan­do se procura a maneira de aliviar os povos, o que é principal, fundamen­to de tudo, é isto: deve-se preservar intacta a propriedade privada”,[nota 9] [Final de citação]

 

De acordo com a encíclica, o direito à propriedade é um direito natural que procede da generosidade divina: quando Deus concedeu a terra ao ho­mem — diz-se —, fê-lo para que a use e desfrute sem que isto se oponha, em qualquer grau, à existência humana. Continua o documento:

[Início de citação] “Quando Deus concedeu a terra em comum a todo o gênero humano, não quis dizer que todos os homens, indistintamente, sejam senhores dela; apenas, Deus não assinalou a nenhum em particular a parcela que deveria possuir, deixando ao esforço dos indivíduos e às leis dos povos a determina­ção do que cada um particularmente possuiría”.[nota 10] [Final de citação]

 

O poderoso recurso da religião e da Igreja católica foi esgrimido diretamente para justificar—através da inquestionável vontade divina—a injustiça reinante sobre a terra. Deus concedera a terra a todos, mas, como a encíclica enfatiza, não o fez eqüitativamente: o esforço dos homens e suas leis responderiam, numa su­posta condição de igualdade, pela repartição do mundo.

Se se entende por “terra” os dotes da natureza, com este discurso papal se consagra quer o direito à propriedade privada, quer o direito à renda da terra — e isto, precisamente, no momento em que a forma desta renda já se apresentava dominantemente como capitalista (ou seja: aquela que acompanha subordinadamente o lucro capitalista e deriva da exploração da força de trabalho assalariada).

 

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Assim, a encíclica, que data do último decênio do século passado, elude a desigualdade central que remete à exploração do proletariado e a sua incontornável brutalidade, mesmo que estas fossem tão cruas na Europa de então (como na América Latina de hoje) e mesmo que a subordinação do trabalho ao capital não só acrescesse sofrimentos centenários, mas novos padecimentos que multiplicavam as denúncias à rapacidade capitalista. Apenas trinta anos antes da divulgação da encíclica, a 14 de janeiro de 1860, um magistrado de um condado inglês, na condição de presidente de uma reunião realizada no município de Nottingham declarava:

[Início de citação] entre a população da cidade ocupada na fabricação de rendas reina um grau de miséria e indigêneia desconhecido no resto do mundo civilizado. As duas, três, quatro horas da madrugada, crianças de nove a dez anos são arrancadas de suas camas imundas e obrigadas a trabalhar, simplesmente para pagar seu próprio sustento, até às dez, onze e doze horas da noite. A magreza as reduz a esqueletos, sua estatura diminui, seu rosto se degenera e todo o seu ser é tomado por uma fraqueza que horroriza... O que se pode pensar de uma cidade que organiza uma reu­nião pública para reivindicar que a jornada de trabalho dos adultos se reduza a dezoito horas?... Condenamos os plantadores da Virgínia e da Carolina. Mas os seus mercados de negros e os seus chicotes, o seu comércio de carne humana são por acaso mais espantosos que este lento sacrifício de homens com o único objetivo de fabricar rendas para o lucro dos capitalistas?”[nota 11] [Final de citação]

 

Este exemplo poderia ser facilmente multiplicado — e teríamos ilustrado o contexto da luta de classes cm que aparecia a encíclica em questão.

A Rerum Novarum reconhece a desigualdade quando assinala que, mes­mo depois de dividida a terra (já que a “propriedade privada está claramen­te conforme à natureza”), ela continua servindo à utilidade comum, porque “não há nenhum mortal que não viva do que a terra produz. Os que carecem de capital, têm seu trabalho”.

Assim como a propriedade privada é um direito natural outorgado e reconhecido pela divindade, a organização do Estado e da sociedade está sujeita à vontade de Deus — por isto, quando os socialistas lutam contra o Estado, operam “contra a justiça natural”.

 

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Daí que o papado levante a bandeira do combate aos socialistas, porque estes atentam contra a ordem natural e, em particular, contra o supremo direito da propriedade privada — ao passo que, como propõe a Igreja na Rerum Novarum, o correto seria “humanizar” a ação dos proprietários, dos capitalistas.

Na Rerum Novarum sustenta-se, em primeiro lugar, que não haverá nenhuma solução aceitável sem o recurso à religião e à Igreja e que qual­quer tentativa de resolução dos problemas deverá contar com a coopera­ção e o esforço “dos outros.., dos príncipes e dirigentes dos Estados, dos patrões e dos ricos e até mesmo dos proletários, de cujo destino se trata”.[nota 12] Colocando a sua proposta de solução para os males da época, a encíclica parte do seguinte:

[Início de citação] “Seja, portanto, primeiro princípio c base de tudo: não há outra alterna­tiva senão a de acomodar-se à condição humana; na sociedade civil não pode haver igualdade — há os altos e os baixos. Nem todos são iguais em talento, inteligência, saúde e foiças; e á necessária desigualdade destes dons segue-se espontaneamente a desigualdade na fortuna, que é clara­mente conveniente à utilidade, quer dos particulares, quer da comuni­dade". [nota 13] [Final de citação]

 

A desigualdade não é apenas natural: é conveniente à coletividade, já que é necessária a variedade de talentos e ofícios.

Posto que a sociedade está natural mente dividida, o problema seguinte a equacionar é o do tipo de relações que regem a vida entre estes segmentos que a divindade, nuns casos, premiou com a abundância e, noutros, conde­nou com a miséria. A encíclica o faz com diáfana clareza:

[Início de citação] “Na questão que tratamos há um mal elementar: o de supor-se e pensar-se que umas classes da sociedade são, por seu caráter, inimigas de outras, como se a natureza houvesse feito os ricos e os proletários para se guerrearem numa luta perpétua”.[nota 14] [Final de citação]

 

Se a natureza engendrou as classes sociais e se estas são o produto de poderes superiores, então este poder superior — representado pelo papa — pode opor-se a que exista conflito entre elas e recusar a colocação da realidade da luta de classes.

 

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Mas, como sabemos, as classes não são produtos naturais: resultam de formas determinadas de relação social entre os ho­mens e, no capitalismo, das suas desiguais situações em face dos meios de produção, enquanto critério que legitima a apropriação privada do exce­dente socialmente produzido. A existência do salário cria a ficção de que o proletário recebe um pagamento pelo que produz, o que oculta o fato de ele só auferir a soma de meios necessários para a sua reprodução como prole­tário, ao passo que uma porção do produto do seu trabalho — a mais-valia — cai nas mãos do capitalista sob uma ou outra das formas que o lucro toma. Tudo cria a ilusão da igualdade: paga-se ao operário a sua jornada de trabalho, ou a força de trabalho que nela emprega, mediante o salário —já que a força de trabalho é tudo o que possui, apenas lhe é devido o salário. Consequentemente, os capitalistas — que detêm em seu poder os recursos e os instrumentos necessários para que a força de trabalho interaja com os objetos que se transformam no processo da produção —, legitimamente, podem reclamar todo o lucro.

Aceitas as premissas desta ficção e a socialização da ordem natural — ou seja: se se afirma que a natureza, determinando a divisão desigual da riqueza e dos talentos, estabeleceu que as classes devem viver em harmonia —, então o equacionamento que daí deriva é aquele segundo o qual todos os esforços devem dirigir-se para a unidade, já que,

[Início de citação] “assim como no corpo se unem membros tão diversos entre si, e de sua união resulta esta disposição de todo o ser a que bem chamaríamos simetria, também assim, na sociedade civil, a natureza ordenou que aquelas duas classes se unam, concordem e se adaptem uma á outra, de modo que se equilibrem, pois sem trabalho não pode haver capital e vice‑versa”.[nota 15] [Final de citação]

 

Ademais, concórdia equivale a beleza, enquanto da luta perpétua só pode decorrer a confusão e a ferocidade.

As relações conflituosas entre o capital e o trabalho, portanto, devem terminar acatando a força da religião cristã, porque só ela pode trazer o “acordo e a união entre ricos e proletários”.

 

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Para que venha a harmonia e o acordo possa tornar-se uma realidade palpável, cabe ao operário

[Início de citação] “cumprir íntegra e fielmente o trabalho que livre e eqüitativamente se lhe contratou; jamais prejudicar o capital, nem exercer violência pessoal contra seus patrões; quando defender seus próprios direitos, abster-se do uso da força; nunca preparar sedições, nem participar daquelas dos homens malvados que, enganosamente, prometem muito e despertam esperanças exageradas, e a que quase sempre se seguem um arrependimento inútil e a desgraça”.[nota 16] [Final de citação]

 

Como já indicamos, a mensagem papal parte da idéia de que o operário faz uso da sua liberdade ao aceitar o jugo do capital. Juridicamente isto é certo, mas se trata de uma liberdade sem opção — a única maneira de exercê-la é entregar-se ao dono do capital, que se beneficia daquela “liber­dade”. O capital, aliás, demanda este pré-requisito: necessita que o operá­rio, portador da mercadoria força de trabalho, esteja livre da posse de meios de produção e liberado juridicamente de qualquer servidão, para celebrar com ele um contrato de compra e venda (força de trabalho versus salário) submetido totalmente às leis do mercado, ao sacrossanto jogo da oferta e da procura.

Sob estas condições, a eqüidade e a liberdade são fórmulas religiosas que nada têm a ver com as relações de exploração que se estabelecem entre o capital (defendido pela Rerum Novarum) e o assalariado (a quem a encíclica impõe normas de conduta).

Já que o ponto de partida da encíclica é o de que as relações entre o proletariado e os capitalistas erguem-se sobre um contrato de trabalho esta­belecido livremente e eqüitativamente, segue-se logicamente a prescrição para o operário jamais prejudicar o capital, abrir mão da violência e defen­der-se sem recorrer à força. Quanto aos homens malvados, que enganosamente tanto prometem, trata-se de uma óbvia referência ao vigor das correntes socialistas e movimentos anarquistas da época.

O operário deveria contribuir para a conciliação de classe, aceitando disciplinadamente a sua condição de explorado e, por consequência, não só se negar a participar nos movimentos que pudessem atentar contra a segu­rança do capitai, mas, mais ainda: deveria militar contra eles, especialmente contra as organizações sindicais proletárias, emergentes graças aos influ­xos do pensamento anarco-socialista.

 

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Assim como se definem normas de comportamento para os operários diante do capital, na encíclica também se recomenda aos empresários e patrões um código de deveres para favorecer a concórdia e a conciliação entre as classes. Isto permitiría a identificação dos interesses da classe operária com os da classe capitalista, e a concórdia e a paz poderíam impe­rar entre “os homens de boa vontade”. Para alcançar este fim, a encíclica estabelecia como deveres dos patrões:

[Início de citação] “Não considerar os operários como escravos, respeitar neles a dignida­de da pessoa e a nobreza que esta agrega ao chamado caráter de cristão”.[nota 17] [Final de citação]

 

E mais: fazer com que os operários se dediquem à piedade; não lhes impor mais trabalho que as suas forças possam suportar; dar a cada operá­rio o que é justo, tendo em conta que oprimir os indigentes em benefício próprio e explorar a pobreza alheia para maiores lucros é contrário a todo direito divino e humano, já que

[Início de citação] “defraudar a uma pessoa do salário que lhe corresponde e um enorme crime, que clama vingança ao céu”.[nota 18] [Final de citação]

 

Para a Igreja daquela época, a recomendação feita aos ricos tinha um sentido humanizador: que os pobres não fossem tratados como escravos, nem que lhes superexplorassem, e que o seu salário fosse oportuna e adequada­mente pago. Aos ricos se tinha de inculcar os deveres de justiça e caridade; aos pobres, havia que lhes dar consolo para aceitarem a sua condição de despossuídos. Se cada uma das classes atendesse a estas recomendações, se­ria possível não só a amizade, mas também um “verdadeiro amor fraterno”.

Estes propósitos gerais e conselhos de conduta às duas classes em con­flito deveríam receber da Igreja, e de todo bom cristão, o apoio ofensivo que conduzisse à conquista do objetivo, terreno, mas supremo, de concili­ação entre elas. Para este fim, dizia-se, é indispensável reformar a socieda­de, restaurando as instituições cristãs, moralizar os indivíduos, criar obras de caridade para o bem-estar dos proletários e fomentar toda causa que pudesse aliviar a sua prostração e pobreza, tanto material como cultural.

 

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Contudo, para obter estes fins, “são necessários outros meios humanos” — assinalava a encíclica. Isto é: o Estado deve promover e defender o bem-estar dos operários, assim como o seu bem-estar moral. A iniciativa pessoal de patrões e operários, igualmente, poderá “fazer muito para a solução do conflito”. Recomendava-se a criação de associações e outras entidades semelhantes, que permitissem atender às necessidades tanto do operário e de sua família, como da sua viúva e órfãos. Da mesma forma, socorrer acidentados, enfermos etc. Sugeria‑se também a formação, por parte dos operários católicos, de suas próprias associações, assim como o estímulo a outras obras sociais.

Resumindo: a encíclica é uma clara resposta à situação da classe operária e à agudização da luta de classes. Eis como a Igreja se encontrava na urgen­te necessidade de fixar uma posição que reforçasse a coesão ideológica da sua hierarquia e dos seus membros. Daí que a encíclica assumisse a forma de um documento de caráter eminentemente político, tentando se constituir numa proposta articuladora da conciliação entre as classes, reafirmando a condição de exploração da classe operária e apelando à reflexão dos capita­listas e do Estado sobre os riscos morais e políticos da sua conduta voraz. A encíclica é também uma resposta ao pensamento e às propostas de ação socialistas, mediante a qual se busca colocar o discurso religioso acima das classes sociais, recorrendo à autoridade suprema da religião e fazendo um apelo para que as coisas terrenas dos homens se submetam ao poder divino. A encíclica, finalmente, traça formas de ação para as classes e o Estado e, em particular, para a própria estrutura organizativa geral da Igreja, sustentan­do a colocação da reforma social como instrumento político para enfrentar os problemas da época. A partir dela, por conseqüência, pode-se distinguir não só uma matriz ideológica, mas ainda o perfil de práticas concretas de intervenção social que, como o Serviço Social, a educação etc., iriam encon­trando em suas premissas a forma e o sentido da sua orientação.

As encíclicas e, em particular, esta que comentamos, não são disposi­ções de caráter legal a ser cumpridas sob coação. Elas se põem como programas gerais de ação que contam com o aval da estrutura orgânica da Igreja. A sua interpretação e uso concreto estão, portanto, referidos à situ­ação imperante em cada meio particular, onde a pertinência da sua mensa­gem é confrontada com o movimento da realidade.

 

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Junto às interpretações sobre as classes sociais e a origem das desigualdades entre elas, a encíclica inclui claras diretrizes de ação concreta, demandando aos católicos o reordenamento da ação assistencial sob a pers­pectiva formulada pela Igreja, que se propõe a si mesma o claro papel político de forjar a reforma social.

A Igreja propugna o exercício do assistencialismo sob a ótica da conci­liação de classes. Assim, a sua aplicação não se reduz ao simples amor ao próximo ou ao cumprimento da vontade divina, Agora a mensagem está destinada ao cumprimento de uma função política que a Igreja católica procura desempenhar, acumulando forças segundo as condições de cada conjuntura. O seu grau de organização, disponibilidade de recursos, identi­dade com as classes dominantes, postura diante do Estado e do exercício do poder e influência nas camadas populares vêm a ser as novas premissas que entram em jogo. A encíclica converte-se em elemento doutrinário que reorienta o seu esquema de atuação frente às classes sociais, com a nítida intenção de introduzir urna formulação que lhe permita colocar-se à cabeça dos programas de caráter geral.

A Igreja, ademais, chegava a este ponto respaldada por toda a sua tra­jetória de intervenção prática, amplamente generalizada entre as grandes massas, sustentada e reproduzida pelo papel de suas camadas de intelectu­ais orgânicos. A encíclica papal de 1891 visava renovar a sua concepção de mundo e instaurar-se como novo guia de orientação intelectual, e, nesta medida, introduzia elementos de conflito no seio da sua própria estrutura interna. Mas a hierarquia e a sujeição à autoridade, tanto maior quanto esta provinha diretamente das mais altas esferas do poder eclesiástico, eram uma garantia de que as novas concepções de mundo, organizadas no discurso da encíclica, permeariam progressivamente todo o corpo da instituição e, atra­vés dela, o conjunto das classes sociais, nas quais a Igreja sempre teve presença.

De qualquer modo, é preciso conhecer a situação concreta que prevale­cia na América Latina ao tempo da difusão da encíclica e os efeitos que teve na orientação do trabalho da Igreja — ou, o que dá no mesmo, como o clero e os leigos tomaram posições práticas em face do seu conteúdo, par­ticularmente em sociedades onde a hegemonia e a direção cultural perma­neciam em mãos de setores oligárquicos.

 

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1.2.       A “Quadragésimo Anno” e o novo apelo aos cristãos

 

Em 1931, a encíclica Quadragésimo Anno formulava o seguinte apelo aos católicos da época:

[Início de citação] “Aos nossos muito amados Filhos eleitos para tão grande obra recomen­damos... que se entreguem totalmente à educação dos homens que lhes con­fiamos e que nesta tarefa verdadeiramente sacerdotal e apostólica usem opor­tunamente todos os meios mais eficazes da educação cristã: ensinar aos jo­vens, instituir associações cristãs e fundar círculos de estudo.

O caminho que se deve trilhar está traçado pelas atuais circunstâncias. Como em outras épocas da história da Igreja, temos de enfrentar um inundo que, em grande parte, retrocedeu quase ao paganismo. Os primeiros e mais diretos apóstolos dos operários serão os operários mesmos... Buscar com afã estes apóstolos seculares, tanto operários como patrões, escolhê-los com prudência, concerne a vós c ao vosso clero”.[nota 19] [Final de citação]

 

Nesta encíclica reafirma-se a importância da ação orientada para res­ponder ao grande desafio do paganismo e da secularização.

Os núcleos católicos mais consequentes com as propostas da encíclica — entre os quais a Ação Católica desempenhou um importante papel — dirigiam os seus esforços guiados pelo documento papal.

No que se refere ao Serviço Social, recordemos que, em 1925, fundou-se em Milão (Itália), por ocasião da I Conferência Internacional, a União Ca­tólica Internacional de Serviço Social (UCISS), que compreendia duas se­ções: o Grupo de Escolas de Serviço Social e as Associações de Auxiliares Sociais, sendo o propósito de ambas enfatizar a necessidade e a eficiência do Serviço Social no mundo, assim como dar a conhecer a sua concepção católica e assegurar o seu avanço — o que, na prática, significou o estímulo à criação de escolas de Serviço Social em todo o âmbito de influência do catolicismo. De fato, como veremos mais amplamente nas páginas seguin­tes, quatro anos depois a UCISS apoiou a fundação da primeira escola católica de Serviço Social criada na América Latina, a Elvira Matte de Cruchaga, na capital chilena.

 

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Isto aconteceu, por outro lado, apenas dois anos antes que Pio XI redigisse a nova encíclica (a Quadragésimo Atino é de maio de 1931, na comempração dos quarenta anos da Rerum Novarum).

No documento, Pio XI observava que a Rerum Novarum

[Início de citação] “distingue-se particularmente das outras encíclicas por ter traçado, quan­do era muito oportuno e necessário, normas seguríssimas, para todo o gêne­ro humano, para solucionar os graves problemas da sociedade, compreendi­dos sob a denominação de ‘questão social’". [Final de citação]

 

A Quadragésimo Anno, pouco depois da Revolução Russa e da Primei­ra Guerra Mundial, e em meio à crise de 1929, desenvolve-se em tom mais radical, embora dentro do mesmo espírito da anterior.

Sem reduzir a dinâmica criativa ou de ajustamento do pensamento cató­lico em relação à questão social ao que foi produzido ou processado pela UCISS, é indubitável que esta instituição foi não só um centro de aplicação e difusão da doutrina romana, como também um espaço privilegiado para balanços e conclusões e, pois, fonte de inspiração e não apenas reflexo pas­sivo das ratificações e mudanças que, sobre a problemática, sofreu a doutri­na católica. Vale dizer: o próprio Serviço Social da época, europeu e latino- americano, não é somente, em parte, resultado de uma proposta da Igreja, mas ator e autor da gênese do novo pensamento social cristão, como depois o seriam — em grau e amplitude superiores — os próprios partidos políti­cos de cariz cristão.

Com efeito, a partir de 1925, a UCISS realizou um profícuo trabalho, sempre em estreita relação com a hierarquia católica, recebendo e difundin­do, processando e aplicando a mensagem social da Igreja. Entre suas ativi­dades, destacam-se os eventos nos quais se colocava em debate o trabalho profissional do assistente social católico. Um exemplo disto foi a sua V Conferência Internacional, celebrada em julho de 1935, em Bruxelas (Bél­gica), com a participação de 550 congressistas e representantes de 20 países dos 5 continentes. O tema do encontro foi “O Serviço Social como reali­zador da nova ordem cristã”[nota 20] — e, da perspectiva que o tempo nos fornece hoje, bem poderiamos dizer que o que se debateu foi “a ordem cristã como realizadora do Serviço Social”, pois agora podemos compre­ender que ambos os temas correspondem a lados complementares da mesma moeda.

 

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O próprio Pio XI, na Quadragésimo Armo, reconheceu e salientou a importância do trabalho dos intelectuais e dos profissionais católicos na elaboração da doutrina social da Igreja e, embora sem fazer menção à UCISS ou aos assistentes sociais, é possível deduzir que na genérica re­ferência ambos se incluíam:

[Início de citação] “Não é de surpreender... que, sob a direção e o magistério da Igreja, mui­tos homens doutos, eclesiásticos e seculares, se consagrassem empenhadamente no estudo da ciência social e econômica. Deste modo... surgiu uma verdadeira doutrina social da Igreja, que esses homens eruditos..., cooperantes da Igre­ja.... estimulam e enriquecem dia a dia com inesgotável esforço... como clara­mente o demonstram as tão proveitosas e celebradas escolas instituídas em universidades católicas, em academias e seminários...”[nota 21] [Final de citação]

 

Mas os eruditos e os peritos leigos não só podem colaborar no enri­quecimento teórico da doutrina social da Igreja como, segundo Pio XI, é indispensável que colaborem na sua aplicação à sociedade reproduzindo-se e organizando-se, e que, a partir do seu trabalho, inserido na Ação Católica, influam na formação dos seus outros “filhos”:

[Início de citação] “Ademais, estamos convencidos... de que este fim [o bem comum] se alcançará com tanto maior êxito quanto maior seja o número daqueles dispostos a contribuir com sua perícia técnica, profissional e social, e também... quanto maior seja a importância concedida à aplicação dos princípios católicos não certamente pela Ação Católica [que não se permite a si mesma atividade pro­priamente sindical ou política] mas por parte daqueles nossos filhos que esta mesma Ação Católica formar naqueles princípios ...” [nota 22] [Final de citação]

 

Novamente sem pretender que a referência à “perícia técnica, profis­sional e social” seja dirigida exclusivamente, ou principalmente, aos as­sistentes sociais, é claro que nesta passagem da encíclica se pode reconhecer o apelo de Pio XI à Ação Católica para que forme, sob seus prin­cípios, os assistentes sociais, da mesma maneira como o deve fazer com outros “valiosos cooperantes”, a quem o papa louva:

 

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[Início de citação] “Mereceis, pois, todo o louvor, assim como todos estes valiosos cooperantes, clérigos e seculares, que nos dão alegria com a sua participa­ção convosco nos afazeres cotidianos desta grande obra, São os nossos amados filhos inscritos na Ação Católica que compartem conosco, de maneira especial, o cuidado com a questão social, que compete e corresponde à Igreja enquanto instituição divina. A todos exortamos, uma e outra vez com o Senhor, para que não eludam trabalhos e nem se deixem vencer por dificuldades, mas que a cada dia sejam mais fortes e robustos (cf. Dt 31,7). Certamente que é muito árduo o trabalho que lhes propomos; conhecemos muito bem os numerosos obstáculos e impedimentos que se lhes opõem nas classes, superiores e inferiores da sociedade, obstáculos que há que vencer. Mas não desanimeis: é próprio de cristãos enfrentar duras batalhas, como bons soldados de Cristo (cf. Tim 2-3) que suportam os mais pesados trabalhos..”[nota 23] [Final de citação]

 

Deste modo, assim como antes foram os clérigos os encarregados da “be­neficência diária” — lembrados por Leão XIII na Rerum Novarum —, ou das prefígurações do Serviço Social (como diriamos nós), assim também agora deverão ser os assistentes sociais católicos, entre outros profissionais leigos, os que assumam na prática o “cuidado com a questão social”, acrescentando-lhe ao espírito caridoso a perícia técnica — os que assumam militantemente as “duras batalhas” e os “mais pesados trabalhos”. Eis como a caridade, o messianismo, o espírito de sacrifício, a disciplina e a renúncia total passam a ser parte constitutiva dos aspectos doutrinários e dos hábitos que acompanharam o surgimento da profissão sob a perspectiva católica, e não só por autodefinição interna, mas por um desígnio vaticano.

Ao lado destes elementos doutrinários, mobilizadores e coesionadores, a mensagem da Igreja, através da Quadragésimo Atmo, enfatizou também a recuperação dos aspectos técnicos para a eficiência do trabalho assistencial, chamando ao estudo, o que resultou especialmente renovador na América Latina, onde se fez necessário que a Igreja estimulasse diretamente a cria­ção de centros de formação superior incumbidos de difundir os conhecimen­tos requeridos para superar as limitações técnicas do trabalho artesanal tradicionalmente voluntário.

 

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Mas esta técnica, por outro lado, não supõe apenas o trânsito do pré-científico ao científico (se é que tal trânsito realmente se operou); implica ainda a passagem de uma prática inspirada em premissas senhoriais a outra, mais proximamente ligada às exigências da ordem burguesa, mesmo que ela fosse mediada em cada país pelas distintas leituras feitas dos textos oficiais (religiosos ou não) pelas diversas classes e frações de classes no interior das cambiantes correlações de poder através das quais manipulam seus interes­ses. O assistencialismo, exercido a partir da iniciativa da Igreja e do estímulo decisivo das grandes senhoras da época, adquiriu uma nova dimensão, ao se converter em profissão. Para o seu desempenho agora se fazia preciso um ciclo de treinamento que colocava os estudantes — a maioria deles proce­dente das camadas burguesas ou oligárquicas — em contato com uma for­mação sistemática e com o conhecimento de algumas disciplinas. Destarte, passou a ser uma exigência o manejo de certos instrumentos técnicos para o cabal exercício da atividade, ao mesmo tempo em que — e este é um aspec­to de especial relevância —, mediante o trabalho, os profissionais reforça­vam a sua fé católica.

Eis como — salvo poucas exceções —, dentro de uma estratégia de renovação e do estabelecimento de alianças com setores de classe emer­gentes com a consolidação das relações de produção capitalistas, a Igreja católica teve um papel decisivo no período da criação de escolas de Servi­ço Social em nosso continente. Esta tarefa concreta foi cumprida como parte da estratégia de se erigir em produtora dos intelectuais orgânicos de que a sociedade de então carecia.

Evidentemente, não se deve entender que a Igreja dedicou-se ao objeti­vo da reforma social, desencadeando processos unicamente parametrados por inspirações divinas. As consequências das reorientações na sua estra­tégia de ação, das quais as duas encíclicas referidas são apenas uma amos­tra, tiveram obviamente efeitos bem palpáveis na reprodução das relações de produção ou, nalguns casos, serviram para fortalecer e consolidar a sua legitimação. A ideologia da conciliação de classes, da moralidade e da edu­cação familiar, do repúdio aos conflitos e da busca de harmonia, enquanto inculcada no povo por meio da ação evangelizadora ou como parte de pro­gramas específicos de ação social patrocinados pelo Estado, repercutia diretamente no curso das lutas de classes e na configuração do proletaria­do como classe.

 

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Travar a organização operária para propiciar a harmonia era vantajoso para os capitalistas e prejudicial aos operários, numa época em que a jornada de trabalho era de 12 ou 14 horas, em que o campesinato era proletarizado a ferro e fogo, em que os trabalhadores das minas e das grandes plantações estavam submetidos a condições bárbaras. Realizada com profunda fé religiosa e dedicada caridade ao próximo, a distribuição de alimentos, de roupas, remédios, leite para crianças etc. dava lugar — objetivamente — ao barateamento da força de trabalho operária ou, no mínimo, ao bloqueio da luta reivindicatória por uma melhoria do seu preço, com o consequente proveito essencial para os donos do capital e do poder.

Outras campanhas, rotuladas com embalagem moral, incidiam particularmente na manutenção e reforço da família, significando— sob o véu de um cumprimento dos mandatos divinos— a reprodução de homens que ficariam à mercê do capital. O associativismo, recomendado muito especialmente pela Rerum Novarum, tomando a forma das caixas de socorro e ajuda mútua, serviu cm larga medida para que os próprios operários assumissem os Custos da sua reprodução, deixando assim duplamente obscurecida a responsabili­dade correspondente ao Estado e aos capitalistas.

Quando a Rerum Novarum, que foi um instrumento de trabalho para a Igre­ja da época, declara que “pouco importa ao operário fazer-se rico com a ajuda da associação, se, à falta de alimento próprio, sua alma corre o risco de danar-se”,[nota 24] fica evidente a forma (por trás do véu profundamente religioso) como se desarma objetivamente o proletariado, como se lhe retira a possibilidade de defender-se da opressão capitalista e como se criam as melhores condições para que os capitalistas consolidem o seu poder e o seu domínio de classe — não só contando com a repressão estatal ou com a sujeição que se estabelece na produção, mas com a ajuda eficaz conferida pela assimilação, por parte do proletariado, de modos de pensar e de viver que são estranhos à sua classe, inculcados por variados meios, entre os quais a ação dos assistentes sociais, cujos méto­dos e técnicas de intervenção profissional, à época, ajustavam-se plena­mente a estes propósitos desmobilizadores.

Entretanto, o ajustamento procurado pela Igreja teve de ser dinâmico, como mutável e diferenciada se foi tornando a problemática do seu objeto.

 

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Daí que a necessidade de eficiência acarretasse uma progressiva renovação e ampliação dos procedimentos e técnicas propostos para o tratamento da questão soci­al e que, paralelamente àquela procura, o Serviço Social definisse o seu perfil profissional numa crescente aproximação a campos de aplicação es­pecíficos e a dimensões cada vez mais abrangentes da realidade social, embora permanecesse como dominante o enfoque do social a partir da individualização ou da singularização fragmentária.

A modernização, que significava para o Serviço Social a ocupação de um lugar no esquema da educação superior—como veremos no próximo capítu­lo —, ademais, teve um impacto particular, pois o reconhecimento social que alcançou proporcionou-lhe uma base nova e mais ampla para a sua ação. As tarefas específicas podiam ser as mesmas — distribuição de alimentos, rou­pas — ou similares; no entanto, o que importa e interessa precisar é o contex­to histórico das relações sociais em que se inseriam, tendo em conta que a fundação de escolas de Serviço Social coincide com um período em que, no continente, as relações de produção capitalistas iam, cada vez mais, subsumindo no seu influxo as formas subsistentes da antiga ordem.

Vale dizer: a doutrina oficial da Igreja pôde aplicar-se nestes termos precisamente porque as condições históricas prevalecentes no continente assim o exigiam. Ou seja: porque no desenvolvimento da luta de classes estavam presentes frações classistas dominantes aptas para assimilar a pro­posta católica, entendendo‑a como fórmula apropriada para atenuar os inales sociais. Era notável o enraizamento e a influência da Igreja, apesar das mudanças nas relações de produção derivadas do avanço capitalista. Com o seu novo discurso, a Igreja sincronizava-se aos novos tempos, militando na causa do capitalismo harmonioso. Naturalmente que a sua proposta incidiu no cenário social e sobre as próprias classes populares, que perderam a sua perspectiva específica, envolvidas pela influência ideológica centralizada pela doutrina da conciliação de classes e da reforma social.

 

Início das notas de rodapé:

Nota 1, página 45: Remetemos o leitor ao interessante trabalho de Agustín Cueva (citado no capítulo anterior), que discute, a partir de documentação sólida e sintética, o processo de penetra­ção das relações de produção capitalistas em nosso continente.

Nota 2, página 47: Apud Portelli. H. Gramsci y el Bloque Histórico, p. 95.

Nota 3, página 48: Idem, p. 26.

Nota 4, página 49: Ibidem, p. 27.

Nota 5, página 49: Gramsci, A. Antologia, p. 390.

Nota 6, página 50: Idem, ibidem.

Nota 7, página 52: Rerum Novarum, Encíclica del Papa Leén XIII, p. 3-4.

Nota 8, página 52: Idem, p. 5.

Nota 9, página 53: Idem, p. 6.

Nota 10, página 53: Idem, p. 9.

Nota 11, página 54: London Daily Telegraph, l7-janeiro-1860, apud Marx, C. El Capital, t.I, p. 224.

Nota 12, página 55: Rerum Novarum, ed. cit., p. 15.

Nota 13, página 55: Idem, p. 15-16.

Nota 14, página 55: Idem, p. 17.

Nota 15, página 56: Ibidem.

Nota 16, página 57: Idem. p. 18.

Nota 17, página 58: Ibidem.

Nota 18, página 58: Idem, p. 19.

Nota 19, página 61: Quadragésimo Anno, Encíclica del Papa Pio XI, p. 75-76.

Nota 20, página 62: Pizanle Filha, M. Evolução Histórica do Serviço Social. Informações Bibliográfi­cas, p. 9. A VI Conferência da UCISS foi celebrada em Lucerna (Suíça), em setembro de 1947, sob o tema “O Serviço Social e os grandes problemas da hora atual”. Em 1950, a VII Conferência teve lugar em Roma (Itália). Em 1954, a VIII Conferência reuniu-se em Colônia (Alemanha).

Nota 21, página 63: Quadragésimo Anno, ed. cit., p, 11, parágrafos 19 e 20.

Nota 22, página 63: Idem, p. 50, parágrafo 96.

Nota 23, página 64: Idem, p. 73, parágrafo 140.

Nota 24, página 66: Rerum Novarum, ed. cit., parágrafo 76.

Final das notas de rodapé.