Este material foi adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de
19/02/1998, Capítulo IV, Artigo 46. Permitindo o uso apenas para fins
educacionais de pessoas com deficiência visual. Não podendo ser reproduzido,
modificado e utilizado com fins comerciais.
Revisado por: Alana Valesca, Breno Mateus, Carlos Eduardo, Fernanda
Rodrigues, John Lennon, Juscilene Maria, Sherry Barbosa.
Natal, dezembro de 2021.
BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio
de Janeiro: Garamond, 2009. 256 p.
[Todas as notas de rodapé encontram-se no final
do texto]
Página
1
A Estética do Oprimido
Página 2
Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Cultura Juca Ferreira
Fundação Nacional
de Artes — Funarte
Sérgio Mamberti Presidente
Myriam Lewin Diretora-Executiva
Centro de Programas Integrados — CEPIN Tadeu Di Pietro
Coordenação Geral de Planejamento e Administração Anagilsa
Nóbrega
Gerência de Edições Maristela Rangel
Divisão de Produção Gráfica João Carlos Guimarães
Produção Editorial José
Carlos Martins
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Página 3
AUGUSTO BOAL
∞
Reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético e não
científico
Página 4
Direitos cedidos
para esta edição à Editora Garamond Ltda.
Rua da Estrela, 79
— 3o andar
CEP 20251-021 -
Rio de Janeiro - Brasil
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Preparação de originais e revisão Carmem Cacciacarro
Capa e projeto gráfico Estúdio Garamond / Anderson Leal
Fotos de capa Máquina
automática do metrô de Paris (capa) e Fabian Boal (4a capa)
CIP-BRASIL.
CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL
DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B63ie
Boal, Augusto,
1931-2009
A estética do
oprimido / Augusto Boal. - Rio de Janeiro : Garamond,
2009.
256p. : il.
ISBN
978-85-7617-167-6
1. Estética. 2.
Arte - Filosofia. 3. Realismo na arte. 4. Realismo estético. 5. Teatro e
sociedade. I. Título.
09-4633. CDD: 701.17
CDU: 7.01
04.09.09 14.09.09 OI5063
Todos os direitos
reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio,
seja total ou parcial, constitui violação da Lei n° 9.610/98.
Página 5
[Início de citação] A Natureza não é bela; belos são os olhos que a
miram.
2008, 2009, 2010... A noite cai sobre o
mundo. Que fazer? Silenciar? Sinto
sincero respeito por todos aqueles artistas
que dedicam suas vidas à sua arte — é seu
direito ou condição. Mas prefiro aqueles
que dedicam sua arte à vida.
Em defesa da arte e da estética, em
tempos de crise e de paz.
Arte não é adorno, Palavra não é
absoluta, Som não é ruído, e as Imagens
falam. [Final de citação]
Página 6
Em branco.
Página 7
Agradecimentos
Tentando organizar
um pouco a mesa do Augusto, encontrei um papelzinho, uma folha arrancada de um
bloquinho de hotel escrita com a sua letra: era a dedicatória, para este, o seu
último livro.
Fiquei sem saber o
que fazer.
Não sei se cabe a
mim entregar esse texto para que seja publicado.
Ao mesmo tempo,
sei do reconhecimento que Augusto sentia pelas pessoas mencionadas.
Decidi retomar o
texto com as minhas palavras, de modo que este livro do Augusto seja dedicado à
nossa amiga Maria Rita Kehl, que com tanta paciência e cuidado leu e comentou
os originais.
E aos amigos
Marcelo Land e Flávio Cure Palheiro, pela sensibilidade com que entenderam que
Augusto devia viver a sua vida até o fim como ele sempre tinha vivido e o
ajudaram a conseguir.
Cecília
Boal
Página 8
Em branco.
Página 9
Apresentação
Este livro, texto
inédito e definitivo de Augusto Boal, foi finalizado em janeiro de 2009, poucos
meses antes do falecimento do autor. Deve ser lido como complemento e afirmação
de sua longa obra teórica, crítica e prática. Uma obra que revolucionou o
cenário das artes brasileiras e ganhou repercussão internacional ao propor um
método teatral cujo objetivo era exercitar o pensamento político, social e
estético dos oprimidos e estimular a busca por uma sociedade sem opressores.
Baseada em valores
éticos e solidários, a arte proposta por Boal propõe intervir concretamente na
realidade, fazer emergir consciências e transformar simples consumidores em
cidadãos capazes de produzir cultura - o que acarreta consequências individuais
e sociais. Surgem neste livro algumas das ideias já usadas como base para o
método conhecido como Teatro do Oprimido, que vem sendo aplicado em dezenas de
países.
Nos dois primeiros
capítulos são apresentados e exemplificados os conceitos da Estética do
Oprimido, como pensamento sensível, pensamento simbólico, metáfora, moral e
ética. No terceiro, Boal explica como esses conceitos são empregados nas
atividades propostas pelo Projeto Prometeu, realizado no Centro do Teatro do
Oprimido do Rio de Janeiro.
Ao publicar este
livro em co-edição com a editora Garamond,
a Fundação Nacional de Artes - Funarte presta homenagem ao diretor, dramaturgo
e ensaísta Augusto Boal (1931-2009) e coloca ao alcance de pesquisadores,
artistas e público um material determinante para a construção da arte
democrática, política e social.
Sérgio
Mamberti
presidente
da Funarte
Página 10
Em branco
Página 11
O Centro de Teatro
do Oprimido de Augusto Boal
Augusto Boal foi
um homem de coletivos, um semeador de multiplicadores. Ensinava aprendendo e
aprendia ensinando, num constante processo de criação. Além de sua fundamental
contribuição para a criação de uma dramaturgia genuinamente brasileira no
Teatro de Arena de São Paulo, criou o Teatro do Oprimido que é um dos métodos
teatrais mais praticados no mundo, presente em todos os continentes, através do
trabalho de milhares de praticantes.
Em seu regresso ao
Brasil, em 1986, Boal funda o Centro de Teatro do Oprimido com a missão de
difundir o seu trabalho no Brasil, estimulando e supervisionando a atuação de
praticantes e grupos. O cto torna-se um espaço de
pesquisa e aprofundamento prático e teórico do Teatro do Oprimido, onde nasceu
o Teatro Legislativo e se edificou a Estética do Oprimido.
Boal considerava
essencial o trabalho de pesquisa, por isso o realizava de forma intensa,
sistemática e dialogal. O processo que gerou a Estética do Oprimido surgiu da
análise crítica dos projetos do Centro de Teatro do Oprimido, onde se
identificava a necessidade concreta de desenvolver um senso estético próprio
nos integrantes dos grupos comunitários. Seguindo a orientação de Boal,
buscamos encontrar os meios para auxiliar os integrantes desses grupos a se
libertarem das amarras estéticas a que estavam submetidos e a criarem a sua
própria estética, na qual pudessem se reconhecer e com a qual pudessem se
expressar.
A pesquisa da
Estética do Oprimido foi constituída por meio da experimentação prática em
laboratórios teatrais e da sistematização teórica em seminários. Encontros
quinzenais com a equipe do cto, semestrais com
multiplicadores de diversas regiões do Brasil, e laboratórios ampliados com
participação internacional.
Página 12
Nos laboratórios, experimentavamos entre nós para depois repassarmos aos
multiplicadores em formação, que assumiam a tarefa de praticar junto a grupos
comunitários no Brasil, Guiné-Bissau, Moçambique e Angola. Essas práticas
retornavam para a análise coletiva por meio de relatórios de atividades,
alimentando um diálogo permanente entre Boal, Curingas e Multiplicadores.
Surgiram
exercícios, jogos e técnicas para potencializar o uso da imagem, do som e da
palavra. A criação - de poesias, músicas, desenhos, pinturas, danças,
esculturas e espetáculos - ratificava o novo conceito e impulsionava
radicalmente a habilidade dos integrantes dos grupos em criar metáforas, em
representar a realidade a partir de suas próprias perspectivas.
Descobertas
práticas dialogavam com o texto em construção. Depois de sistematizadas, as
atividades da Estética do Oprimido passavam a ser incluídas nos programas de
capacitação dos projetos nas áreas de educação, saúde mental, sistema prisional
e pontos de cultura. Os resultados, comparados; as dúvidas, discutidas e os
desafios, analisados teatralmente.
Ao longo de quase
oito anos de trabalho, este livro ganhou forma prática e teórica. Boal escrevia
com habilidade e prazer; amava o processo de construção do texto, o lapidar de
cada parágrafo, a escolha de cada palavra. Mesmo sendo o último, um livro não é
a obra toda de uma pessoa. Entretanto, para Boal este livro tinha um caráter de
sistematização: de alguma forma, representava o conjunto do que já havia escrito
sobre o Teatro do Oprimido. Uma produção que contém as reflexões de uma
caminhada de mais de 50 anos de militância artística, marcada essencialmente
por sua coerência política.
Desde sua
fundação, o Centro de Teatro do Oprimido teve direção artística de Augusto
Boal, numa trajetória de 23 anos de desafios e descobertas. Uma história que
nos enche de orgulho e renova o compromisso de continuidade, seguindo os
caminhos que traçamos com nosso mestre, amigo e companheiro de trabalho. Além
dos parceiros de luta, contaremos com este livro que consideramos ferramenta
fundamental para o desenvolvimento do Teatro do Oprimido: Brasil adentro e
mundo afora.
Viva Boal!
Equipe do Centro
de Teatro do Oprimido www.ctorio.org.br
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Sumário
15 Introdução
23 OS DOIS PENSAMENTOS,
SIMBÓLICO E
SENSÍVEL
25 O Pensamento Sensível e o Pensamento
Simbólico na
criação artística
41 Um novo conceito de aura e arte, uma Nova
Estética
49 O corpo humano, social desde antes de
nascer
50 Um corpo vem ao mundo
59 Cérebro e conhecimento
63 Palavra, a maior invenção humana
64 Gênese da palavra
77 Metamorfoses e usos abusivos da palavra
95 DO PENSAMENTO ESTÉTICO À
CONCREÇÃO
ARTÍSTICA
97 A subjetividade da arte
114 A famosa Teoria dos Neurônios Estéticos
131 Monarquias políticas e artísticas
148 A invasão dos cérebros
159 A objetividade da arte
166 Revolução cultural não dogmática
Página 14
171 IMAGENS DO TEATRO DO OPRIMIDO
181 O PROJETO PROMETEU
183 Introdução ao Projeto
197 Projeto Prometeu
212 Conjunturas, estruturas e vida real
222 Experiências iniciais no campo da saúde
mental
245 Observações complementares
Página 15
[Início de citação] Como é possível defender a
multiplicidade cultural e, ao mesmo tempo, a ideia de que existe apenas uma
estética, válida para todos? Seria o mesmo que defender a democracia e, ao
mesmo tempo, a ditadura. [Final de citação]
Sempre lamentamos que nos países pobres, e entre os pobres dos
países ricos, seja tão elevado o número de pré-cidadãos
fragilizados por não saberem ler nem escrever; o analfabetismo é usado pelas
classes, clãs e castas dominantes como severa arma de isolamento, repressão,
opressão e exploração.
Mais lamentável é o fato de que também não saibam falar, ver, nem
ouvir. Esta é igual, ou pior, forma de analfabetismo: a cega e muda surdez
estética. Se aquela proíbe a leitura e a escritura, esta aliena o indivíduo da
produção da sua arte e da sua cultura, e do exercício criativo de todas as
formas de Pensamento Sensível. Reduz indivíduos, potencialmente criadores, à
condição de espectadores.
A castração estética vulnerabiliza a cidadania obrigando-a a
obedecer mensagens imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e
de todos os sargentos, sem pensá-las, refutá-las, sequer entendê-las!
O analfabetismo estético, que assola até alfabetizados em leitura
e escritura, é perigoso instrumento de dominação que permite aos opressores a
subliminal Invasão dos Cérebros!
As ideias dominantes em uma sociedade são as ideias das classes
dominantes, certo, mas, por onde penetram essas ideias? Pelos soberanos canais
estéticos da Palavra, da Imagem e do Som, latifúndios dos opressores! E também
nestes domínios que devemos travar as lutas sociais e políticas em busca de
sociedades sem opressores e sem oprimidos. Um novo mundo é possível: há que
inventá-lo!
Página 16
Este livro não é obediente a nenhuma fórmula consagrada de se
entender a arte e a estética; não é relato de consabidas teorias; não se
inclina, reverenciai, ao que é tido como certo: questiono, e proponho! Não
esqueço o passado, mas não ando de costas para o futuro.
Com ele, avançou duas teses principais:
1 — existem duas formas humanas de pensamento - Sensível e
Simbólico -, e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas
complementares, poderosas, e são, ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles
que impõem suas ideologias às sociedades que dominam;
2— como todas as sociedades estão divididas em classes, castas,
etnias, nações, religiões e outras confrontações, é absurdo afirmar a
existência de uma só estética que a todos contemple com suas regras, leis e
paradigmas: existem muitas estéticas, todas de igual valor, quando têm valor.
Paralelamente, temos que repudiar a ideia de que só com palavras
se pensa, pois que pensamos também com sons e imagens, ainda que de forma
subliminar, inconsciente, profunda! Temos que repudiar a ideia de que existe
uma só estética, soberana, à qual estamos submetidos - tal atitude seria nossa
rendição ao Pensamento Único, à ditadura da palavra - que, como sabemos, é
ambígua.
O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para
a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só
com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e
imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis
de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia. [nota 1].
Página 17
Os humanos, como quaisquer animais, estruturam suas inter-relações
segundo o poder que têm, dispõem ou conquistam. Não podemos continuar nutrindo
ilusões de que todas criancinhas são anjinhos e todos os humanos, gente boa.
Conhecer a verdade é necessário para transformá-la.
Ser vivo é ser expansivo. Não só entre animais silvestres e
selvagens a necessidade de existir se transforma em luta; no reino vegetal
existem plantas assassinas, que matam tendo como armas suas folhas e raízes;
trepadeiras parasitas levam à agonia suas hospedeiras, como as palmeiras;
carnívoras, comem caça. É fácil acreditar que nas águas do oceano misterioso o
peixe gordo come o magro; difícil é pensar que, embaixo da terra firme, fortes
raízes buscam nutrientes, esfomeando as fracas. A vida come a vida.
A natureza permite a vida, mas exige a morte: oferece o prazer -
seu preço é a dor. A biologia não tem ética. Viver é luta de morte. Melhor
sabê-lo, para mudar.
Entre os humanos, a luta pelo espaço é luta por todos os espaços:
físico, intelectual, amoroso, histórico, geográfico, social, esportivo,
político... Há que se inventar seu antídoto: a Ética da Solidariedade, cuja
construção terá que ser obra da incessante luta dos próprios oprimidos, e não
dádiva celeste: do céu, cai chuva, neve e gelo, eventualmente, bombas e
foguetes, mas não mágicas soluções. Estamos entregues a nós mesmos e temos que
aceitar a nossa condição com a cabeça nas alturas, os pés no chão e mãos à
obra.
A Ética é uma invenção humana, não fruto maduro da árvore do bem e
do mal.
A maioria dos sistemas políticos, como o neoliberalismo -
predatório em todas as suas modalidades e não apenas nos seus excessos -, busca
sempre mais poder e riqueza sem limites: esta é sua essência e razão! Para
tanto, ocupam espaço e oprimem - faz parte da sua natureza.
Página 18
No mundo real em que vivemos, através da arte, da cultura e de
todos os meios de comunicação que as classes dominantes, com o claro objetivo
de alfabetizarem o conjunto das populações, os opressores controlam e usam a
palavra (jornais, tribunas, escolas...), a imagem (fotos, cinema,
televisão...), o som (rádios, CDs, shows musicais...), monopolizando esses
canais, produzindo uma estética anestésica - contradição em termos! -,
conquistam o cérebro dos cidadãos para esterilizá-lo e programá-lo na
obediência, no mimetismo e na falta de criatividade. Mente erma, árida, incapaz
de inventar - terra adubada com sal!
Esta comunicação unívoca introduz simbólicas cercas de arame
farpado nas cabeças oprimidas, embalsamando o pensamento e criando zonas
proibidas à inteligência. Abre canais sensíveis por onde se inocula a obediência
não contestatória, impõe códigos, rituais, modas, comportamentos e
fundamentalismos religiosos, esportivos, políticos e sociais que perpetuam a
vassalagem.
O Pensamento Sensível é arma de poder - quem o tem em suas mãos,
domina. Por isso, os opressores lutam pela posse do espetáculo e dos meios de
comunicação de massas, que é por onde circula e se impõe o pensamento único
autoritário.
Quando exercido pelos oprimidos, o Pensamento Sensível é censurado
e proibido - eles não têm direito à sua própria criatividade: a máquina não
cria. Aperta-se um botão…e produz. Podem
também ser usados como macaquinhos de realejo em programas de auditório...
A Invasão dos Cérebros explica a formação dos submissos rebanhos
de passivos fiéis das igrejas eletrônicas dos milagres a granel, com dia e hora
marcados pela TV; das enfurecidas multidões de torcedores dos esportes de
massa, unânime ficados pelo estéril fanatismo; da irritante e venenosa
vacuidade intelectual dos programas de auditório; das tristes decisões eleitorais
das massas corrompidas pelo próprio sistema ao qual estão integradas, que os
explora, reprime e deprime, e atrai...
Como cidadãos, antes de tudo, como artistas por vocação ou
profissão, temos que entender que só através da contra comunicação, da contracultura-de-massas,
do contra dogmatismo; só a favor do diálogo, da criatividade e da liberdade de
produção e transmissão da arte, do pleno e livre exercício das duas formas
humanas de pensar, só assim será possível a liberação consciente e solidária
dos oprimidos e a criação de uma sociedade democrática - no seu sentido
etimológico, pois, historicamente, a democracia jamais existiu. Dela, pedaços
sim.
Página 19
Palavra, imagem e som, que hoje são canais de opressão, devem ser
usados pelos oprimidos como formas de rebeldia e ação, não passiva contemplação
absorta. Não basta consumir cultura: é necessário produzi-la. Não basta gozar
arte: necessário é ser artista! Não basta produzir ideias: necessário é
transformá-las em atos sociais, concretos e continuados.
Em algum momento escrevi que ser humano é ser teatro. Devo ampliar
o conceito: ser humano é ser artista!
Arte e Estética são instrumentos de libertação.
O caos é parte do nosso mundo. É uma forma de organização do
universo, da natureza, da sociedade, da família, da política, de tudo que
existe. O caos governa-se por leis que
ainda não conhecemos e provavelmente não conheceremos jamais.
Até mesmo no chamado movimento browniano, em Física, quando certas
partículas macroscópicas se movem em um determinado fluido de maneira
aparentemente aleatória, até mesmo esse movimento deve ter suas leis, que
desconhecemos. A princípio, pensou-se que se tratava de uma nova forma de vida;
hoje, sabe-se que não, mas ainda não se sabem as
causas das direções imprevisíveis que tomam, em todos os sentidos.
O caos é ininteligível para nós se não o analisarmos de todos os
meios de que dispomos, não apenas com teorias e palavras. O Pensamento Sensível
é necessário e insubstituível tanto para entendermos as guerras mundiais como o
sorriso de uma criança.
Este texto deve ser lido no contexto da minha obra de meio século.
Quando escrevo cérebro estou escrevendo sobre salário mínimo e greves; quando
digo neurônios, digo sectarismos e guerras coloniais, aids e fome; se penso
sinapses, penso política e diálogo; de falo teatro, penso estruturas sociais e
falo vida consciente.
Página 20
Não renuncio a nenhuma das minhas convicções anti-imperialistas,
anticolonialistas, antirracistas, antissexistas, antienvelhecimento do ser
humano. Sou, cada vez mais, inimigo irreconciliável de todas as formas
políticas, morais, econômicas e sociais que hoje escravizam a maior parte da
humanidade.
Não sou nenhum Nostradamus, privilegiado com o dom de ver o
futuro, mas posso garantir, com toda certeza, que se alguém se atirar no vazio
pela janela do 30o andar de um edifício são enormes as possibilidades de que se
esborrache no chão ou na cabeça de alguém. O sangue explodirá por toda parte,
salpicando coisas e pessoas. E não sou vidente, nem leio búzios: apenas penso.
Sem catastrofismos e com a mesma precisão, posso prever que o
destino das sociedades em um regime capitalista neoliberal - onde os
especuladores andam à solta, o dinheiro prevalece sobre o estômago - é o de
criar um precipício cada vez maior entre pobres e ricos, que, inevitavelmente,
dentro de alguns anos ou poucas décadas, haverá uma explosão social desenfreada
e sem limites que promoverá uma desorganização de tal ordem que só um regime
autoritário baseado na força bruta de indivíduos mal pagos, eficientes embora
inconscientes, será capaz de criar um arremedo de hordas primitivas que,
vagando pelos países devastados, imponham uma estrutura pré-histórica baseada
na força bruta. Monarquias da borduna, clava e tacape! Leiam os jornais de
hoje, de ontem e de amanhã, e entenderão o que digo.
Einstein escreveu: “Não sei com que armas se vai lutar a Terceira
Guerra Mundial; mas sei que a Quarta será com paus e pedras!”
Um regime que se baseia na competição sem limites, sem leis nem
regras claras, que são quase livremente interpretadas pela Justiça, aliada do
poder econômico e/ou militar, exacerba essa competição e enlouquece. Digo
loucura e provo - mato a cobra e mostro o pau: vejam as imagens dos corretores
das Bolsas de Valores gritando seus lances e suas ofertas. E nesse hospício
antiquado que estamos vivendo, é o que estamos vendo nesta crise econômica
mundial iniciada em 2008.
O neoliberalismo é feito sob medida para estimular o instinto
predatório animal que subsiste na maioria dos humanos e se propaga ao resto da
Humanidade. Há que dizer Não!
Página 21
Os Senhores de Davos [Nota 2] apresentam como mágicas soluções
para a crise que eles mesmos criaram para despedir milhões de trabalhadores,
economizando seus salários para que esses trabalhadores caiam na pobreza,
garantindo assim que sejam mantidos os lucros dos que já haviam lucrado.
Propõem socializar os bancos podres com o dinheiro do contribuinte e guardar,
privados, os rentáveis. Que isso aumente as camadas famintas, pouco lhes
importa. Davos preocupa-se com a crise econômica dos bancos, banqueiros,
empresas e acionistas - autores da crise -, mas não com a crise humana da aids
e da fome na Ásia, África e entre os miseráveis dos seus próprios países. É
monstruoso pensar que as atividades humanas obrigatórias, como a educação, a
saúde e a previdência social, estejam em mãos privadas que buscam o lucro. Essa
insensibilidade é criminosa. A resignação, um crime: há que dizer Não!
Não é porque eu digo estas coisas que elas assim se tornam: assim
já eram antes que eu o dissesse.
Platão escreveu que nenhuma cidade (país ou nação) poderá se dizer
democrática se não existir um limite para a extrema pobreza e a extrema
riqueza. Dizia a verdade, jamais ouvida.
Rosa Luxemburgo escreveu que o primeiro ato revolucionário é
chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. É verdade! Por que não se quer
ouvir a verdade? Porque vivemos na caverna desse mesmo Platão, onde nascemos e
daí jamais saímos: nossas cabeças, acorrentadas, só nos permitem ver as sombras
da realidade, à qual só teríamos acesso pela palavra, pelo som e pela imagem,
que ainda não dominamos - têm dono.
Na metafórica caverna do filósofo os humanos estão acorrentados,
imóveis, de costas para a abertura por onde entra a luz de uma fogueira e
projeta sombras na parede. Tudo que acontece entre a fogueira e as costas dos
homens na caverna - pessoas que
passam, animais transportando coisas - se transforma em sombras sem vida
própria. O que os humanos podem ver são as sombras do real, não o real. [Nota
3].
Página 22
Quem acende e cultiva esse fogo são os donos das imagens, sons e
palavras. Para nos libertarmos do imobilismo e da resignação, temos que sair da
caverna, olhar o mundo cara a cara, compreender como se move e quem o faz se
mover. Não devemos apagar o fogo, devemos usá-lo para assar batatas e fazer
belos churrascos na caverna de Platão!
O falso e ideologizado conceito dominante de Estética favorece a
ideia competitiva do neoliberalismo, como veremos mais adiante no capítulo um
novo conceito de aura e arte.
Arte é o objeto, material ou imaterial. Estética é a forma de
produzi-lo e percebê-lo. Arte está na coisa; Estética, no sujeito e em seu
olhar.
Existem saberes que só o Pensamento Simbólico pode nos dar;
outros, só o Sensível é capaz de iluminar. Não podemos prescindir de nenhum dos
dois.
No confronto com o pensamento único, temos que ter claro que a
política não é a “arte de fazer o que é possível fazer”, como é costume dizer,
mas sim a arte de tornar possível o que é necessário fazer.
[Início de citação] Cidadão não é aquele que vive em
sociedade — é aquele que a transforma!
Arte não é adorno, palavra não é absoluta, som não é ruído,
e as imagens falam, convencem e dominam. A estes três Poderes - Palavra, Som e
Imagem - não podemos renunciar, sob pena de renunciarmos à nossa condição
humana. [Final de citação]
— Augusto Boal
Página 23
OS DOIS
PENSAMENTOS, SIMBÓLICO E SENSÍVEL
Um novo conceito
de aura e arte, uma Nova Estética
Página 24
Em Branco.
Página 25
O Pensamento
Sensível e o Pensamento Simbólico na criação artística
Quando, entre 1750
e 1758, o filósofo alemão Alexander Baumgarten escreveu seus dois livros sobre
a Estética, [nota 4] ele a definiu assim:
[Inicio da
citação] Os sentidos – e os conhecimentos que deles derivam – permitem imaginar
uma gnosiologia inferior. Não duvido que possa existir uma Ciência do
Conhecimento Sensível... intermediária entre a sensação pura, obscura e
confusa, e o puro intelecto, claro e distinto. Ela não é nem algo existente na
própria Coisa, nem pura criação do ser humano: é o resultado de uma síntese
particular, harmonia entre Coisa e Pensamento. O conceito sensível é
particular, como objeto de sensibilidade; geral como objeto de entendimento.
[Final da citação]
Isto é o que diz
Baumgarten, e nós vamos analisar.
Estética é uma
relação sujeito-objeto, concordo: o objeto de desejo depende do sujeito
desejante para que possa ser desejado – em si, não o é. Da mesma forma que a
beleza da mulher amada não está apenas no seu corpo e na sua fala, mas nos
olhos de quem a ama, [nota 5] também assim a apreciação do Beijo de Judas, de Giotto, depende da percepção de quem o mira – será beijo
amigo ou trágica traição: a capacidade perceptiva é condicionada pela
religiosidade ou não do observador, e pelo seu conhecimento histórico.
Página 26
Discordo de que a
sensação pura seja obscura e confusa: na verdade, é rica e complexa, quando
sentida como tal como é. Sendo provocada pelo objeto (coisa), pode causar
diversidade de percepções em diferentes sujeitos, ou no mesmo sujeito em
diferentes momentos. Pelas múltiplas possibilidades que oferece de ser
traduzida em palavras, pode causar confusão. O que causa confusão, porém, são
as palavras que a traduzem, não ela. Palavras são Pensamento Simbólico, e os
símbolos necessitam interlocutores concordes.
Como diz o próprio
Baumgarten, o “conceito sensível é particular, como objeto de sensibilidade;
geral como objeto de entendimento”. Ambos se complementam ou contradizem:
sensibilidade e entendimento são formas ativas de pensar – nenhuma, da outra, é
sombra.
O objeto do
fenômeno estético pode, ou não, necessitar ser explicado para melhor ser
fruído. Uma flor azul pode não necessitar palavras, mas a imagem do assassinato
do célebre Duc de Guise no dia 23 de dezembro de 1588, no Chateau
de Blois, na região de La Loire, durante a assim chamada Guerra das Religiões,
talvez precise de explicações, sim.
Baumgarten teve o
imenso mérito de reabilitar a palavra Estética, reconhecendo sua existência e
função, por tantos séculos obscurecida. Isso nos obriga a conhecer a etimologia
dessa palavra para entendermos o que são, na verdade, a Cultura e a Arte, que
são, essencialmente, manifestações concretas da aisthétós
– Estética.
Discordo do uso da
palavra inferior para designar o Conhecimento Sensível, pois este não é arquivo
morto, mero registro de informações sensoriais, mas sim o dinâmico orquestrador
das novas informações com as já recebidas e hierarquizadas, com as carências e
desejos do sujeito – isto é Pensamento –, é a sua conversão em atos.
Baumgarten define
a Estética com sendo a Ciência do Conhecimento Sensível, isto é, a organização
sensorial do caos. A meu ver, esta tarefa organizativa só pode ser realizada
pelo Pensamento Sensível, dinâmico e fluido a cada instante, e não pelo estático
acúmulo, depósito. O Pensamento Sensível pode ser interpretado em palavras
(Pensamento Simbólico) que o expandam ou delimitem.
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Temos que
concordar: os sentidos têm sentido! Não são meras sensações que se apagam com o
tempo: têm sentido e direções!
Quero adotar a
ideia de que existe uma forma de pensar não-verbal
– Pensamento
Sensível –, articulada e resolutiva, que orienta o contínuo ato de conhecer e
comanda a estruturação dinâmica do Conhecimento sensível. Quero afirmar que,
para serem compreendidos, mesmo quando são expressos em palavras, os
pensamentos dependem da forma como essas palavras são pronunciadas ou da
sintaxe em que as frases são escritas – isto é, dependem do Pensamento
Sensível.
Eu não digo, como
o filósofo francês Destutt de Tracy (1754-1836),
inventor da palavra ideologia, [nota 6] que pensar é sobretudo sentir, e que só
a sensibilidade nos faz saber que existimos, mas afirmo que o ato de pensar com
palavras tem início nas sensações e, sem elas, não existiria, embora delas se
desprenda e se autonomize até à sua mais total abstração.
Coexistem em cada
indivíduo, na sua percepção do mundo, o Pensamento Sensível e o Pensamento
Simbólico, nutridos pelo Conhecimento, simbólico e sensível.
O Conhecimento
reside no cérebro físico materializado em complexas redes neuronais vivas e
pulsativas que se expandem e retraem a todo instante, acendem-se e apagam-se como cinzas ao vento.
O Pensamento, que nelas flui, é imaterial: é o Conhecimento em sua constante
transformação: é a sua própria transformação.
Como pedra atirada
ao mar: a água material ondula, mas as ondas, em si, são imateriais. São o
ondular, como as ondas sonoras ou sísmicas. Ondas do mar não são águas, mas
nelas planam e, sem elas, não existiriam.
O ar que
respiramos está recheado de ondas hertzianas, ondas de imagens de tv, telefone,
telégrafo, Internet, celulares, wi-fi... talvez pen- samentos, emoções, olhares de amor e ódio... Estamos
inundados por ondas flutuando em um mar de micróbios – bactérias, vírus,
bacilos... A macronatureza está infestada de
invisíveis micros, vivos ou não, dentro e fora do nosso corpo.
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Pensamento é como
pedra atirada ao ar: a pedra tem peso e forma – é matéria, existe concretamente
no seu voo, pesa. A energia que a faz mover-se, vencer seu atrito com a
atmosfera e resistir à gravidade, essa é imaterial. O objeto que voa é matéria,
mas o ato de voar é imaterial. Podemos, com as mãos, agarrar a pedra – jamais o
voo.
Uma nota musical é
som, mas não é música, que é a organização do som no tempo. A música, que nelas
se apoia, transcende as notas musicais que permitem sua existência.
Uma linha está
formada de pontos sucessivos, nem curvos nem retos, mas não é nenhum deles: é a
sua disposição no espaço. Da mesma forma, o pensamento é a articulação dinâmica
dos significantes – inscrições gravadas no cérebro –, mas neles não está
aprisionado: está na sua estruturação em movimento, como o voo e as ondas. Isto
é o pensamento. Como a vida, que flui do DNA mas não é a matéria biológica: sem
ela, no entanto, a Vida não existiria!
Assim são os
pensamentos.
Os dois
pensamentos, amalgamados, despertam e adormecem redes de neurônios em múltiplas
áreas do cérebro, inter-relacionando memórias, ideias, sensações e emoções. Não
estão aprisionados em nenhuma área exclusiva do cérebro, como a visão e a
audição, mas podem acender quaisquer, a qualquer momento. Podem ativá-las ou
ativam-se por si mesmas quando ideias ou sensações acendem a memória, que é
brasa, ou a imaginação – fogo que se alastra mesmo contra a vontade consciente
do sujeito, na vigília e no sono
O cérebro físico
está dividido em partes, mas é um só, só um, orgânico e organizado: Casa Sem
Portas por onde se pode transitar, nada murado. Mesmo quando se cala o
Pensamento Simbólico, o Pensamento Sensível está sempre ativo, pensando até o
impensável, como o infinito e a morte.
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O fluxo contínuo
de nossas ações, que levam em conta e a cabo as informações do Conhecimento,
são obra de um verdadeiro Pensamento Sensível, que orienta a dinâmica voluntária
do Sujeito, traduzida em palavras ou não. A parte não consciente desse
pensamento cumpre a mesma função e tem semelhantes virtudes, é o que Freud
chamava, em seus primeiros escritos, de pré-consciente, e Stanislawski,
em seu método de interpretação do ator, de subtexto. Existem muitos níveis de
pré-conscientes e subtextos simultâneos, entrelaçados; alguns, um dia, chegam à
nossa consciência... outros, jamais. Alguns se traduzem em fala; outros, em
silêncios.
Somos capazes de
falar um único pensamento contínuo enquanto outros, simultâneos, não chegam à
nossa consciência verbal – escondidos, fluem no nosso monólogo interior. Se
tenho diante de mim sete pessoas e falo com as sete, digo palavras escolhidas:
este pensamento verbal flui consciente – com lapsos, é verdade, e falhas de
memória! – enquanto outros seis, submersos e sem censura, dirigem-se a cada um
dos meus interlocutores, que a eles são sensíveis, quase sempre, de forma
inconsciente – deixam, porém, suas marcas.
O Conhecimento
Sensível já é pensamento embrionário desde a sua forma verbal infinitiva –
Conhecer –, que é o ato de receber as informações. Conhecimento conjuga-se no
presente do indicativo, mas o Pensamento Sensível é gerúndio. Como tal,
projeta-se no futuro.
Pensar é organizar
o conhecimento e transformá-lo em ação, que pode ser fala ou ato, sendo que
fala é ato. Pensamento é ação que transforma o pensador, o interlocutor e a
relação entre os dois. Que podem ser a mesma pessoa.
O Conhecimento
oferece opções; o Pensamento inventa e escolhe. Um põe, outro dispõe. O
Conhecimento acumula; Pensamento é aventura. O Conhecimento traz o passado até
o instante presente; o Pensamento, do instante, permite avançar para o futuro
ou revisitar o passado.
Conhecer,
Conhecimento e Pensamentos são níveis e modos de um mesmo processo psíquico. O
Conhecimento não é uma estática estante de livros, depósito: é vivo e
pulsativo, memória e esquecimento, acende-apaga.
Palavras ao vento não deixam registro, mas intensos prazeres e dores repetidas,
sim. Frases reiteradas deixam sua marca. Imagens revisitadas, sua prensa. Sons,
ecoam. Conhecimento é Memória ativa. Pensamento é ação.
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Nos animais, o
conhecimento também leva à ação, mas de forma conclusiva, não mediada pela
consciência. Em humanos, o pensamento pondera e dá aos seus possíveis atos
valores morais ou éticos. Os atos humanos são éticos, segundo a moral vigente a
cada momento, em cada lugar e circunstâncias. [nota 7] Os escravagistas agiam
segundo a moral de sua época; os abolicionistas, segundo sua ética. Moral e
ética colidiam.
Consciência é a
reflexão do sujeito sobre si próprio e sobre o significado dos seus atos, não
apenas sobre suas consequências
Também não me
parece adequada a expressão puro intelecto, pois tal pureza não existe: no seu
texto, Baumgarten, sem mencioná-lo nem distingui-lo, refere-se apenas ao
Pensamento Simbólico, constituído pelas palavras e por gestos convencionados.
As palavras, porém, que, entre outras funções, podem designar coisas, são, elas
próprias, coisas; podem ser percebidas e reveladas pelo Pensamento Sensível –
eis a poesia.
O intelecto é a
contínua organização de sensações, emoções e ideias, memórias e imaginações que
rodopiam na mente e se transformam em fala, que é uma modalidade de ação.
Concordo que, na formação
do intelecto, existe um salto vital impossível de ser conhecido: da mesma forma
que o ácido desoxirribonucleico adquire vida, ou nela se transforma sem que
saibamos como nem por quê, o cérebro orgânico cria a mente multifária e, esta,
o intelecto refinado, expurgado de banalidades.
O intelecto é o
Pensamento Simbólico purificado do não essencial: é uma categoria desse
pensamento. Este é um texto intelectual: pelo menos, quero pensar que o seja...
Além do salto que
vai da matéria à vida, outros saltos, tão infinitos como este e tão
misteriosos, vão da vida orgânica ao pensamento, do pensamento à consciência, e
da consciência ao Ato ético. Este é o mais difícil...
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Belo, Bonito e
Feio
A Estética não é a
ciência do Belo, como se costuma dizer, mas sim a ciência da comunicação
sensorial e da sensibilidade. é a organização sensível do caos em que vivemos,
solitários e gregários, tentando construir uma sociedade menos antropofágica.
[nota 8]
O Belo, que da
Estética faz parte, é a organização da realidade, anárquica e aleatória, em
formas sensoriais que lhe dão sentido e, a nós, prazer. Belo não é só o que nos
alegra e agrada, mas também o que nos assusta e consterna, como a beleza de uma
catástrofe natural, como um tsunami, ou a bomba atômica, que explode em
cogumelo.
O Belo pode ser
traduzido e explicado em palavras, mas não as necessita. A Festa Junina de Djanira ou o Negro Rodando Pandeiro de Nelson Sargento; o
terrível Laocoonte de El Greco, enroscado com seus
filhos em serpentes venenosas; arte abstrata ou grafites – nada disto
necessita, embora suporte, explicações: muito já está dito em cores e traços.
Fosse a Estética
somente a ciência do Belo e do Sublime, teríamos que inventar uma outra palavra
genérica, parceira e antônima da Estética, que englobasse o não-Belo e a
Fealdade.
O feio, antônimo
apenas de bonito, pode ser belo. Guernica, de
Picasso, é bela obra de arte que nos mostra horrendo crime histórico, feio e
trágico, tal como a destruição de Rotterdam, Hiroshima, Nagazaki e outras cidades
sem nenhuma importância militar. O Morto, de Cândido Portinari, mostra os
terrores da guerra em bela e feia imagem, tinta de sangue; seu famoso
Tiradentes esquartejado mostra os horrores do colonialismo. Belos quadros,
feios temas. Fotos de Sebastião Salgado mostram, em rostos e corpos, na pele e
nos olhos, na seca e ao sol, o pavor da fome e da aids: belas fotos – angústia
e medo.
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O Belo está na
coisa e no olhar. Nem todos olhares veem a mesma coisa. O dono do olhar é um
cidadão que vive em sociedade de classes, castas, casas grandes ou senzalas.
Não existe o olhar puro – é impossível nos desfazermos da carga social
(cultural) entranhada em nosso corpo e em nossa mente – esta carga é possante
filtro através do qual vemos o mundo.
Na criação estética,
dois artistas verão o mesmo modelo de duas formas diferentes (ou mais) e, na
apreciação da mesma obra de arte, duas pessoas verão a mesma obra de duas (ou
mais) formas diferentes. Por essa razão, a escolha do tema é importante, mas
ainda mais importante é o tratamento que se lhe dê.
“O feio é belo!” –
não há nisto nenhuma contradição, pois bela é a verdade escondida que a arte
revela! O Belo é o reluzir da verdade através dos meios sensoriais – dizem
alguns filósofos, e eu concordo; porém... qual verdade?
Como não somos
todos iguais, haverá muitas. Como não somos Hegel, não será Deus.
Se, com nossa
Arte, decidimos conscientemente participar das estruturas sociais que se
confrontam em todas as sociedades humanas – e é esse confronto que as faz
avançar ou recuar! –, não devemos nos iludir com nenhuma entidade fictícia como
a ideia absoluta, o espírito e outras divindades, por mais que estas tenham
sido adotadas por eminentes filósofos. “Amicus Plato,
sed magis amica veritas” – disse
Aristóteles. “Sou amigo de Platão, mas mais amigo sou da verdade.” A frase, é
óbvio, foi dita em grego, língua de Atenas, mas é conhecida em latim.
Nós, com a
Estética do Oprimido, buscamos a nossa verdade: uma Arte Pedagógica inserida na
realidade política e social, e dela parte!
Onde estará,
então, o chão para os nossos pés?
As verdades de cada cultura
A Verdade de cada
sociedade humana, ou de cada um dos seus segmentos, é determinada por sua
cultura, que é a soma ativa de todas as coisas produzidas por qualquer grupo
humano em um mesmo tempo e lugar, em sua relação com a natureza e com outros
grupos sociais.
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Não são só as
coisas, em si mesmas, que são cultura, mas também o conjunto das condições
sociais nas quais essas coisas se produzem e são usadas, nos objetivos e formas
de produzi-las. Hábitos, costumes, rituais e tradições; crenças e esperanças;
técnicas, modos e processos; sobretudo valores da ética, como proposta, e da
moral vigente – tudo isto forma a cultura, que, em cada momento histórico,
revela o estado das forças sociais em conflito – ou, dele, boa parte.
As verdades de
cada cultura são as afirmações de cada segmento e momento da sua evolução, com
todas as contradições que possa ter. A luta camponesa e o movimento estudantil
no Brasil têm e tiveram, cada qual, sua cultura e suas verdades, assim como o
sistema econômico e o lazer das classes abastadas têm as suas. A cultura das
Ligas Camponesas de antes de 1964 era centralizada; a cultura do MST de hoje é
mais democrática; o movimento estudantil de ontem era combativo; o de hoje,
cauteloso.
A verdade da
religião é Deus e seus supostos desígnios – cada qual tem seu Deus ou deuses,
[nota 9] alguns exclusivos, outros compartidos. A verdade do cientista é a
descoberta do mundo e a invenção do possível – descoberta e invenção são coisas
diferentes: uma já existia, outra passa a existir. A verdade de certas formas
de ação política é a invenção de uma sociedade sem classes e sem o livre
mercado, que assanha o lado predatório dos indivíduos. A verdade das ditaduras
é a imposição do pensamento único. A verdade de uma possível democracia é a
livre manifestação do pensamento, a compreensão das necessidades individuais e
coletivas e o debate sincero e aberto entre os oprimidos, desde que seja
seguida de ações concretas possíveis e reais. Não basta pensar! A ação é
necessária, ou sobrevém a nefasta e mortal Melancolia!
Isto posto, não se
pode dizer que todas as verdades se equivalham, que tudo é igual, com igual
valor e peso: os esforços pela humanização da humanidade elegem como verdade
suprema o avanço social em direção a uma sociedade sem oprimidos e sem
opressores, em todos os campos da vida humana: política, social, familiar e
todas mais que possam existir. Não podemos lutar contra as opressões e
continuarmos, nós mesmos, sendo opressores.
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Se este é um parti
pris, não importa: pois seja parti pris. Se tentar alcançar essa sociedade é uma utopia, não
importa: avançar em sua direção não é utópico, é opção ética. Se as utopias não
se alcançam nunca porque sempre haverá outra mais distante, não importa:
caminhemos na sua direção – assim é a vida, melhor do que ficar parado,
passivos, vendo a carruagem passar, pois que isso enferruja as pernas e o
pensamento!
Escrevo a palavra
verdade em itálico porque tem, aqui, diversos significados que se complementam:
virtude, meta, caminho... As diferentes verdades e os diferentes conceitos que
definem essa palavra provocaram no passado e hoje provocam, neste século XXI,
as mais estúpidas e cruentas guerras religiosas e étnicas, além das sempiternas
guerras territoriais, econômicas e comerciais.
Não se pode
pertencer a duas culturas, possuir duas éticas, duas morais, mas, como cada
cidadão vive em uma atmosfera pluricultural onde conflitam valores, é
inevitável o surgimento de culturas híbridas fundadas em valores diferentes,
até opostos: padres guerrilheiros são o exemplo clássico, ao lado de médicos
assassinos, juízes ladrões, políticos corruptos.
Em 1976, na
Argentina em plena ditadura, um sacerdote católico foi procurado pela família
de um coronel torturador, morto de um ataque cardíaco, para que presidisse a
cerimônia do enterro. A família pertencia à paróquia daquele sacerdote e
frequentava seus cultos. O bom homem hesitou entre seus deveres de pastor e
suas obrigações de cidadão antifascista. Finalmente decidiu aceitar o encargo –
colocou sua condição sacerdotal acima da sua cidadania – e encomendou a alma do
torturador.
Nesta história, o
que mais me inquieta não é a decisão do padre, que naquele momento agiu de modo
coerente com sua fé, mas sim me interessa saber o que fazia ele antes da morte
do militar: qual o conteúdo político das suas homilias? Que defesa fazia dos
Mandamentos diante da família daquele carrasco? Será que explicava aquele
excelente Mandamento que preconiza “Não matarás”, que supõe “Não torturarás”?
Ou aquele outro – “Não roubarás” –, que inclui “Não usurparás o poder confiado
ao Presidente da República pelo voto popular livre”?
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No seu púlpito, o padre teria
tentado dissuadir os militares que se diziam religiosos a cessar o terror que
haviam instaurado contra a população, cessar a matança, ou preferia divagar
sobre a natureza assexual dos anjos e a vida preclara dos santos?
Não só indivíduos,
mas também segmentos importantes de um setor social podem adotar comportamentos
contrários à sua própria cultura e à sua missão declarada: nos piores momentos
da corrupção no Brasil, as bandas podres da polícia sentiam-se à vontade usando
técnicas de achaque tradicionais da cultura dos traficantes de drogas que essas
mesmas milícias deveriam combater; terroristas econômicos espalhados pelo
mundo, manipulando bancos e bolsas, sentiram-se confortáveis usando técnicas da
cultura típica dos cassinos clandestinos, graças à desregulamentação [nota 10]
permissiva promovida pelo neoliberalismo, o que nos levou à crise financeira
mundial iniciada em 2008 e que, antes, já havia aprofundado o fosso entre ricos
e pobres, fartura e miséria.
São as quimeras
culturais [nota 11] ... metade gente, metade não.
Como são muitas as
culturas e as verdades que delas emanam; como são tantas as divisões no seio
das sociedades, e tantos e tão díspares seus valores, a Estética e o Belo não
possuem valores universais e eternos. Já não se pode falar de uma só Estética,
única, que seria a do pensamento único, arma de exploração dos oprimidos e da
opulência dos opressores.
Há que se tomar
partido, juntar-se a um dos lados em conflito. Se formos éticos, este partido
será sempre o dos oprimidos.
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Culturas
harmonizam ou extremam diferenças, constroem e transgridem
a moral, sonham ética. Culturas estão em contínua mutação – temporais, em que
pese sua possível longevidade; locais, em que pese sua possível transcendência.
Imortais, em que pese sua morte.
O mundo é
pluricultural porque vive permanentemente em guerras, deflagradas ou latentes,
bélicas ou diplomáticas – sempre o confronto, sempre a força. Não só o mundo,
mas todos os países são pluriculturais; não só países, mas nações; não só
nações, mas regiões, bairros, raças, classes sociais e sistemas políticos:
todos os grupos humanos são pluriculturais. Todos têm seu conceito de feio,
bonito e belo.
Há que se tomar
partido: juntar-se aos que lutam contra todas as formas de opressão, em todo o
mundo!
A cultura reflete
e revela os confrontos de patrícios e plebeus, burguesia e monarquia,
proletários e capitalistas, camponeses e latifundiários... Quando a cultura de
uma época ou país é universalmente aceita como sendo a melhor, única e mais
perfeita, é porque a opressão ali é universalmente exercida, sem contestação.
Toda cultura é
impura ou se impurifica ao contato com outras culturas.
O dilema de toda
cultura é esfingético: – “Ou me devoras (decifras) ou
serás devorado”. Culturas imperialistas e colonialistas devoram, digerem e
devolvem elementos culturais dos países colonizados – somos obrigados a
digerir, metamorfoseados, formas culturais que um dia foram nossas: Carmen
Miranda e seus shows musicais em Hollywood durante a Segunda Guerra Mundial,
equilibrando bananas e abacaxis na cabeça, é o exemplo mais transparente. Ela
tinha consciência disso e cantava: – “Disseram que eu voltei americanizada...”.
Tinha razão!
Criar nossa
própria cultura, sem servidão àquelas que nos são impostas, é ato político e
não apenas estético; ato estético, não apenas político!
A antropofagia
cultural, [nota 12] por outro lado, é dever cidadão. No Brasil, foi proposta
por Oswald de Andrade na Semana de Arte Moderna de1922, e batizada por Tarsila
do Amaral.
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Em línguas indígenas, Abaporu,
título do seu mais famoso quadro, significa homem que come homem! Podemos comer
a cultura alheia, devorá-la como certas nações indígenas devoravam seus
inimigos na suposição de que, com seu sangue e carne, pudessem se robustecer!
Neles, esse repasto canibalesco era esperança vã, carnal placebo; metafórico em
nós, é certeza.
O próprio Picasso
canibalizou a arte africana e, a seu modo, Gauguin, a de Tahiti. Se eles podem,
por que não todo mundo?
Vietnamitas,
durante as guerras de libertação do seu país contra a França e, mais tarde,
contra os Estados Unidos, deram uma exemplar demonstração antropofágica usando
todas as partes dos aviões que abatiam: fizeram armas, material cirúrgico,
mesas e cadeiras, coisas de guerra e de paz... Nada se desperdiçou.
Antropofagia cultural.
Não basta ser
cultura para ser respeitável. O povo Asteca, que viveu antes das invasões
colombinas nos territórios que hoje são parte do México, desenvolveu criativa e
útil cultura arquitetônica e científica: até trepanações cerebrais faziam para
a cura de certas doenças. No entanto, os astecas perpetravam anualmente
sacrifícios de vidas humanas: rapazes e moças eram imolados, às dezenas, a uma
força sobrenatural chamada deus, especialmente a um certo deus da guerra, Huitzilopochtli. Abriam-se os peitos dos sacrificados e
retiravam-se seus corações, que eram ofertados ao Sol. As vítimas eram,
preferencialmente, escravos e prisioneiros de guerra – dava menos trabalho
convencê-los e explicar às famílias as exigências rituais da divindade...
Sem esta oferta frequente,
o Sol, segundo a crença estúpida vigente naquela época e naquela cultura, se
recusaria a nascer no dia seguinte... Isso era parte da sua cultura e da sua
ignorância culposa e dolosa!
Não é necessário
voltar séculos atrás: ainda hoje, centenas de milhares de moças, mal chegadas à
puberdade, são violadas com a ablação do clitóris, o que, supostamente,
eliminaria seu desejo sexual.
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O objetivo declarado dessa cirurgia
monstruosa é o de obrigá-las a ser fiéis aos seus maridos, o que é ingênuo e
falso, pois nem se elimina o desejo e o gozo, nem se garante a fidelidade...
Segundo o INED (Instituto Nacional de Estudos Demográficos, da França), mais de
cem milhões de mulheres em todo o mundo já sofreram esse suplício,
especialmente na África subsaariana. Quem perpetra esse crime, em geral, são
mulheres que sofreram a mesma infâmia em nome dessa abominável cultura duas
vezes milenar. Mesmo sendo prática proibida, como no Egito, a força dessa
cultura ainda é maior do que a inteligência.
No Afeganistão, as
mulheres vivem dentro de sarcófagos ambulantes impostos pelos talibãs
embrutecidos – não podem ir à escola, mostrar o rosto nem os olhos, vivem atrás
de véus. Na Arábia Saudita, líder mundial das exportações de petróleo, as
mulheres são proibidas de ter passaportes e dirigir carros... Basta de tantos
exemplos ignóbeis!
Cultura é
palavra-caminhão: para explicar o que pensamos, temos que ser precisos e falar
especificamente de cultura aristocrática grega do século VI AC, cultura
burguesa dos países imperialistas, cultura popular do campesinato brasileiro, e
assim por diante.
O desenvolvimento
da própria cultura não elimina a antropofagia cultural, desde que transformada
em coisa nossa: comamos o necessário e saboroso, os avanços da ciência, as
técnicas de fabricar o pão e o vinho, os primitivos rádios galena e a Internet,
o piano e o violão; dancemos e cantemos o amor em tango, swing ou chachachá, do
jeito que sentirmos; valsa vienense, samba, todos os ritmos e cores, mas, por
favor... techno, isso não, já não seria cantar o amor – seria estupro.
Culturas são
campos de batalha: temos que combater tudo que nos leve à subserviência e à
passiva aceitação da opressão, em todas as culturas, inclusive nossas, naquilo
que têm de ruim e perverso.
O Sublime e a Ética
Belo, bonito,
feio... e Sublime.
Sublime é o belo
inexcedível. Sublime é a ética, organização suprema do caos. Moral se obedece,
ética se inventa.
Moral é o que é –
Ética é o que se deseja que seja.
Assim como a cosmetizada palavra Estética, a Ética tem sido amesquinhada
quando entendida como sinônimo de bom comportamento.
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Ética [nota 13] é
o caminho por onde se pretende chegar ao sonho de huminizar
a Humanidade. A ética repugna a persistência do instinto predatório em
sociedades humanas, cujos resíduos selvagens ainda existem em nós. Contra o
aspecto predatório animal do ser humano, a ética busca criar relações
solidárias. [nota 14]
Dentro de cada
cultura existe cada indivíduo, cada grupo, gênero, raça e nação. A globalização
destrói culturas, que brotam na sociedade como da terra nasce a vida. A
globalização quer impor uma só maneira de ver, ouvir, sentir, degustar, pensar,
fazer e ser. Mas as raízes voltam a crescer, assim é
a natureza: pedra e flor.
Em Nuremberg, a
cultura arquitetônica nazista ergueu enorme estádio com tribuna de um só lugar:
dali, Hitler falava para a Alemanha e para o mundo sobre o Império dos Mil
Anos... que durou pouco. Hitler já era a favor da globalização. Rebelou-se a
natureza, rompeu o concreto armado das arquibancadas, árvores nasceram sob a
solitária tribuna e destruíram o pesadelo: onde havia cimento e ferro, nasceram
plantas e flores...
Toda cultura é
dialética e se move: o escravo desenvolve a cultura escrava, que contém desejo
de liberdade. Isto é o Belo – a revelação da verdade escondida.
Afirmo que não
existe o mais-belo e o menos-belo, conceitos criados em sociedades competitivas
– hoje, neoliberais – nas quais é importante ser o primeiro, o mais rico, mais
forte e melhor.
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Penso, ao contrário, que cada
coisa, material ou imaterial, é ou não bela em função da sua qualidade de,
através dos nossos sentidos, significar uma verdade, real ou imaginária,
consciente ou não, dentro de condições temporais e concretas, quer nos atraia
ou assuste.
O Maria Fumaça e o
Trem-Bala, o carrinho de mão e o carro de corridas, a piroga e o avião a jato,
são belos em suas realidades sociais, como, nas naturais, são belos o pôr do
sol e a tempestade, o jequitibá e a sequoia, o riacho e o mar.
O Pensamento
Sensível não é língua: é linguagem. Com ela, o sujeito expressa ideias e revela
sentimentos, para si e para outros, decide ações e age sem usar palavras nem
gestos simbólicos, apenas sinaléticos (onde significantes e significados são
inseparáveis).
Existem, portanto,
duas formas de pensar: Pensamento Simbólico (noético,
língua) e Pensamento Sensível (estético, linguagem).
Conclusões
A Alexander
Baumgarten damos graças por seus estudos sobre a Estética, que nos permitem
avançar e melhor ver o que sempre havíamos visto.
Nenhum cidadão
deve renunciar a nenhuma das duas formas de pensar, como não se pode alegrar
por ter um olho só, um só braço ou só uma perna. é pela posse da Palavra, da
Imagem e do Som que os opressores oprimem, antes que o façam pelo dinheiro e
pelas armas.
Temos que reagir
contra todas as formas de opressão. Essa luta deve se dar, também, nesses três
importantes campos de batalha do Pensamento Sensível.
Temos que
reconquistar a Palavra, a Imagem e o Som.
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Um novo conceito
de aura e arte, uma Nova Estética
Função ritual, comercial e política da arte
Walter Benjamim
(1892-1940), filósofo alemão, no seu ensaio Sur l´Oeuvre d´Art (“Écrits
Français”, Ed. Gallimard, 1991), afirma que, através dos tempos, houve um
deslocamento nas formas de apreciação da obra de arte e no seu uso. Esse
deslocamento vai do início da própria arte, quando desempenhava uma função
ritual, até os tempos modernos, quando, graças à multiplicação mecânica,
pode-se expor a mesma obra a um público diverso e heterogêneo, em muitos lugares
e ao mesmo tempo. A xilogravura, por exemplo, é arte que pode ser multiplicada
aos milhares a partir de uma matriz; a fotografia, através de um negativo; o
cinema já é múltiplo em si mesmo, pois nenhuma cópia de um filme tem primazia
sobre qualquer outra: cada cópia é um original – o copião ainda não é a obra e,
menos ainda, cada fotograma, pois a essência do cinema é a imagem em movimento.
Perde-se o caráter
ritual da arte, que, por sua unicidade, se ligava à tradição, à sua origem, às
narrativas que sobre ela eram feitas, fatos reais ou imaginários, à sua
autenticidade, sua história... Com a multiplicação, ganham-se cópias, mas
perde-se a aura da obra de arte para sempre única.
Vamos analisar.
Sabemos que aura
não é halo: é a projeção que faz o observador sobre o objeto, enquanto halo é
algo que o objeto exala e a ele pertence, como a luz em certas substâncias
radioativas. Aura e halo podem coexistir, ou não.
Em que momento
surge a aura? Sabemos que qualquer objeto, qualquer que seja sua finalidade,
deve ser construído antes de ser usado. No caso de objetos artísticos – que são
metáforas substantivas, isto é, são matéria –, a sua construção física é
anterior à sua finalidade e aos significados que possam vir a ser, neles,
projetados.
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A aura se desenvolve depois da criação
do objeto, não antes, quando só existia, imaterial, na mente do artista. A
construção do objeto de arte precede sua utilização, religiosa ou secular.
Mesmo que a sua construção tivesse tido
finalidades místicas, os significados a ela atribuídos seriam, na melhor das
hipóteses, simultâneos com a sua realização material, jamais anteriores. A
primeira martelada na pedra ainda não cria a imagem de um profeta ou santo; não
pode a pedra, portanto, ser objeto de adoração. No desejo do crente, sim, já
existia a adoração, que apenas buscava um objeto onde pousar.
Em que sentido Arte é Metáfora?
Metáfora, do grego, meta (além de) + phore (levar),
pode ser translação ou transubstanciação. O objeto artístico é a
transubstanciação de uma realidade, objetiva ou imaginada, em outra substância
diferente da original: traço e cor, na pintura; argila, bronze ou mármore, na
escultura; sons, na música; o corpo humano em movimento, na dança... Pode ser
também o deslocamento (neste caso, translação) de uma figura gramatical para
outro contexto literário, como fazem os escritores com suas palavras. As
modernas instalações, embora isso não lhes garanta qualidade, são outro exemplo
de translações: não mudam a substância, só o lugar e a sua disposição no
espaço. O mesmo podemos dizer dos objets trouvés (objetos encontrados) e das colagens. Tudo isto são
metáforas.
Nem a arte rupestre mencionada por
Benjamim no seu ensaio, nem qualquer outra no ato de ser criada, isto é,
durante sua metaforização substantiva, contém
qualquer religiosidade ou quaisquer significados, que só lhe serão apostos
durante sua fabricação ou após a sua completude. Concluímos que a aura é
produzida pelo olhar subjetivo, não pela coisa concreta. Podemos ver até o que
não existe, mas que está dentro de nós.
Sendo esta afirmação verdadeira - e é!
-, podemos dizer que, em menor medida, até mesmo a cópia de um santinho de
igreja ou qualquer amuleto, religioso ou profano, pode ter sua aura, dependendo
da paixão do fiel e da sua relação passional com esse objeto. Exceções não
invalidam regras; existem auras públicas e auras privadas.
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Oposto a isso, em Santa Catarina
existem pinturas rupestres cravadas na rocha, face ao mar, com claras
advertências aos marinheiros, não aos espíritos. Provavelmente eram indicações
sobre ventos, marés e outros perigos; mesmo inspirados em divindades, indicavam
cuidados marítimos, não espirituais. Essas pinturas são arte que dura séculos,
passados e porvir.
Não só antigas estátuas de deuses e
deusas eram arte: objetos utilitários de uso cotidiano como canecos, colares e
pratos de servir, sem nenhuma conotação religiosa, também eram arte...
despercebida, é verdade, mas arte. Hoje, ao mirá-las, surge a aura. Se um
desses objetos, vulgar moringa, por exemplo, tivesse pertencido a algum
feiticeiro ou pessoa ilustre em sua época, se tivesse o valor agregado de
alguma história fantástica, essa moringa conquistaria a mais resplandecente
aura mesmo no seu tempo, sem esperar posteridades.
Auras se perdem e se ganham ao sabor do
diálogo social, capricho das culturas.
No campo da fé, como escreve Benjamim,
em algumas catedrais góticas, certas figuras de adoração não podem ser vistas
do chão: é preciso que os adoradores subam escadas com esforço e sacrifício.
Temos que acrescentar, porém, que mais necessário ainda é que alguém, o
guardião da chave, lhes abra a porta para a subida. Em certos templos, algumas
imagens ficam escondidas de crentes e curiosos... mas não se escondem dos
sacerdotes, que as guardam em lugar seguro, inacessível ao vulgo. Certos livros
sagrados só são expostos aos fiéis em momentos litúrgicos especiais - fora
deles, só quem os custodia pode vê-los.
Mas... quem guarda e esconde objetos de
culto? O sacerdote e seus prepostos. Só a estes é permitida a contemplação das
imagens e dos livros até o momento de escondê-los.
Ao ser escondido, o objeto religioso
flutua sem outro destinatário para a sua aura além do sacerdote, que se torna
proprietário temporário dos supostos poderes sobrenaturais que a imagem possui
para seus adoradores. O guardador assume o poder da aura, que se transforma em
instrumento de força. O guardião incorpora o poder do objeto guardado, ao deter
o poder de manejá-lo, escondê-lo, exibi-lo, impor condições para a sua mostra.
A religiosidade ganha seu viés
político.
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Nenhum objeto é imanentemente sagrado -
é apenas coisa. O caráter sagrado, ou também fetiche, surge com as projeções
feitas pelos seus adoradores. Está no olhar, não apenas na coisa. Seria uma
forma de animismo acreditar que uma coisa, objeto, possuísse algo de sagrado
que a transcendesse: alma. Seria adotar o corpóreo animismo, que ainda hoje
subsiste em certas crenças, em que todas as coisas têm alma, até o meu sapato.
Ou fetichismo.
A substância da aura é o Saber e o
Mistério. Ela se densifica com o acúmulo de tradições, histórias, conhecimentos
e experiências vividas, que são o Saber; com mitos, esperanças, lendas,
delírios e alucinações, que são o Mistério. O sacerdote, ao guardar (esconder)
o objeto, apropria-se dos poderes mágicos, místicos e rituais de que a coisa,
objeto da adoração, é possuidora.
Também nos rituais da igreja católica
os sacerdotes escondiam o significado de suas missas em latim. A democratização
da fé operada pelo Concílio Vaticano II, ao permitir que as missas fossem celebradas nas
línguas locais dos fiéis, deu volta atrás com o recente papa Bento xvi que, se não
obrigou, ao menos permitiu que outra vez fosse usado o latim diante dos fiéis,
intimidados por essa língua, hoje solene. Este ato obscurantista teve a
intenção de fortalecer a autoridade eclesiástica aumentando a ignorância dos
fiéis - o Mistério funciona como fonte de poder - aquele que o possui,
possui o poder da Revelação!
Latim tem aura; vernáculo é chão. Latim
é aura das palavras incompreensíveis pelo vulgo ao qual, hipnoticamente, são
destinadas. O uso de uma língua estranha aumenta a aura e esconde significados.
Essa foi, exatamente, a intenção papal. Só quem sabe latim, sabe. Não saber é
renunciar ao poder, porque o poder emana da aura, não do objeto. Do Mistério
não revelado, que só o sacerdote conhece.
Aura é arma.
Estas considerações de nenhuma forma
contradizem o pensamento de Walter Benjamim - penso que o complementam.
Toda e qualquer religião ou seita, estruturando
fiéis em forma monárquica piramidal, como é costume, ganha força sinérgica e
se transforma em agrupação política - torna-se Poder. Como tal, possui relativa
força, que intervém na realidade do seu país ou região.
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Exemplo concreto é a triste pressão que
faz a igreja católica (e outras) contra o uso de contraceptivos, mesmo em
tempos de aids; mesmo na África, continente afogado no vírus. O amor, o simples
ato de amar, fica proibido: sexo deixa de ser amor, e passa a ser obrigação litúrgica
- obedece rituais.
Exemplos maiúsculos dos usos que se faz
de deuses, inventados e improváveis, cruéis e vingativos, são as teocracias que
se exerciam no passado e ainda hoje se mostram devastadoras tanto no Oriente
como no Ocidente. Nenhum livro, nenhuma revelação supostamente divina, nem
profetas se podem dizer sagrados se pregam a destruição dos inimigos como o
fazem e fizeram, em recentes e antigos genocídios e holocaustos, contra
ameríndios, armênios, curdos, judeus, ciganos e palestinos, ou lutas intestinas
entre seguidores de Moisés, e também de Jesus.
Todo objeto religioso trás em si a ideologia, as estratégias, táticas e objetivos
da agrupação que o adota e que nem sempre são religiosos, mas econômicos e
territoriais.
Eis o perigo maior da aura: a sua
utilização política antidemocrática baseada no saber de uns e na ignorância do
rebanho: algumas religiões assim chamam, carinhosamente, os fiéis apaziguados,
domesticados. Pastores nomeiam fiéis como ovelhas sem pensar que, se as ovelhas
são mansas, sem livre-arbítrio e sem iniciativa, não por escolha ética: é
porque lhes faltam neurônios. Entre os animais de grande porte, ovelhas e
carneiros são os que menos neurônios possuem... Incapazes de reagir, chorando
diante da faca, pagam o preço da sua escassez neurológica.
A antiga definição de Obra de Arte -
possuidora de aura pelo fato de ser
única - perde-se ao ser a obra mecanicamente reproduzida, diz Benjamim,
e é verdade: cópias não têm o mesmo feitiço, embora tenham maior abrangência.
Justamente por virtude desse vício, servem àqueles que dominam o conjunto da
sociedade que detém o poder multiplicador.
Auras, nestes tempos neoliberais, têm
sido comercialmente construídas pela mídia como forma de acrescentar valor -
dinheiro e fama - a certas obras que nem sempre o têm. É sabido que pessoas e
empresas compram, a preço vil, obras de determinados artistas plásticos
desconhecidos para revendê-las com grandes lucros após serem valorizadas por
reportagens pagas, estrondosas vernissages, críticas laudatórias, encontros
sociais e outras amenidades das revistas de intimidades.
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No neoliberalismo tudo se vende e
compra. Por que não a arte? Se não se respeitam os artistas, por que
respeitariam suas obras? Os leilões de arte têm a mesma estrutura das Bolsas de
Valores e perseguem os mesmos fins, que nada têm a ver com a fruição estética,
mas com o valor de mercado.
A aura de mercado passa a ser valor
agregado - nela, pendurada, vai a etiqueta com seu preço e formas de pagamento:
aceitam-se todos os cartões.
Não só as obras são cobertas com auras
mediáticas, mas os próprios artistas, através dos meios de comunicação de massa
- quanto mais valorizados por esses meios, maior a aura que os envolve. Tudo
tem preço - arte e artistas. Tudo tem seu momento e lugar: auras religiosas,
esportivas, comerciais... [nota 15] e auras dos novos tempos.
A Estética do Oprimido, ao propor uma
nova forma de se fazer e de se entender a Arte, não pretende anular as
anteriores que ainda possam ter valor; não pretende a multiplicação de cópias
nem a reprodução da obra, e muito menos a vulgarização do produto artístico.
Não queremos oferecer ao povo o acesso à cultura - como se costuma dizer, como
se o povo não tivesse sua própria cultura ou não fosse capaz de construí-la. Em
diálogo com todas as culturas, queremos estimular a cultura própria dos
segmentos oprimidos de cada povo.
Queremos promover a multiplicação dos
artistas.
São os artistas, eles próprios, que se
multiplicam, não suas obras copiadas. Não se podem fazer cópias de um ser
humano - cada um é único e essa é sua aura, ou dela é parte. Cada um é parte de
uma classe, gênero, etnia, país ou grupo de oprimidos da mesma opressão. Cada
um é um, e é o todo.
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Aura e halo se amalgamam.
Promove-se o trânsito entre a obra, o
artista e sua comunidade, entre estes e outras populações oprimidas.
Estes novos artistas e suas obras de
arte têm sua aura, que é criada pelo fato de serem quem são, de viverem em tal
ou qual comunidade, que tem sua tradição, suas histórias, necessidades sociais
de transformação do mundo, do seu mundo, porque são usuários de saúde mental em
tal Centro de Atenção Psicossocial, como tantos usuários; nordestinos como
tantos boias-frias; participantes de tal Ponto de Cultura, como em tantas
comunidades violentas; estudantes de tal escola, como em tantos bairros. Gente
em transformação que deseja transformar!
Existe aura da obra, aura do artista e
aura do grupo ao qual se pertence. A multiplicação dos artistas cria uma nova
aura dentro desta nova concepção da Estética e da Arte.
Vivemos outras épocas, outras auras...
O que proponho neste livro não é um novo ramo da Estética, novo estilo: é uma
nova Estética!
Esta moderna aura não é misteriosa. É
saber sem mistério. É aura da verdade descoberta, não do segredo escondido.
Aura do futuro, não só do passado revoluto.
Aura de um outro mundo, que sabemos ser
possível.
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Em branco.
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O corpo humano, social desde antes de nascer
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Um corpo vem ao mundo
Os sentidos são
enlace entre corpo e subjetividade, caminhos da inserção do indivíduo na
sociedade — primeiras fontes de opressão e de libertação
Quando nasce, um
bebê é um corpo humano que vem ao mundo. Passam a existir o corpo e o mundo - o
corpo no mundo.
Esse corpo não
traz consigo nenhum preconceito, partipris, ideias
inabaláveis, certezas ou dúvidas ontológicas. Não torce por nenhum time de
futebol e não professa nenhuma religião - longe disso. Não faz filosofia, nem
compara valores - desconhece valores: é apenas um corpo humano.
Não possui nenhum
conhecimento a priori, no sentido kantiano,[nota 16] que ultrapasse
os limites do que lhe é orgânico e, nele, singular. Não é página branca, pois
traz consigo seus cinco sentidos, que mesmo antes do nascimento já lhe
provocavam prazeres e dores - emoções. Traz seu código genético, físicas
necessidades vitais e, mais tarde, desejos e subjetividades.
Traz vida,
qualidade imponderável da matéria.
Sobretudo, traz um
encéfalo (cérebro, cerebelo e massa encefálica) com cem bilhões de
neurônios,[nota 17] que, estimulados por mais de cinquenta substâncias químicas
já conhecidas - chamadas neurotransmissores - e infinitesimais descargas
elétricas, criam infinitas sinapses (inter-relações) que, formando trilhões de
redes neuronais, constituem sua vida psíquica, ativa organizadora e produtora
de sensações e emoções, desejos e projetos, esperanças e frustrações, ideias
abstratas e ações concretas.
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Seus sentidos já
existiam em desenvolvimento dentro do ventre materno e já guardavam memórias.
Mesmo antes de estar formado, o cérebro é informado e as informações sensoriais
recebidas passam a fazer parte das suas estruturas sensitivas e, mais tarde,
cognitivas. A informação torna-se parte do seu sistema nervoso.
O feto absorve e
reage aos movimentos de sua mãe dançando forró e frevo ou valsa vienense;
lavando os cabelos ou lavando pratos; morando em oca de maloca ou cobertura em
condomínio; devorando jantares ou passando fome. Sem falar em fumo e drogas, ar
puro e poluição.
Sussurrando ou
gritando, transmitindo ideias e emoções, as palavras voam e vão pousar no
cérebro em formação. No meio de tantos outros ruídos e rumores, o feto consegue
distinguir sons articulados; ouve conversas em determinada língua, com suas
particularidades fonéticas, que também vão moldar o seu sistema nervoso.
Língua é linguagem
socialmente estruturada com suporte fisiológico: cerebral, porque localizada
maiormente nas áreas de Wernicke e de Broca;[nota 18]
muscular quando falada, porque envolve lábios, língua, pulmões, diafragma e
cordas vocais; envolve até brônquios, traqueia e nariz, pernas sentadas ou de
pé, braços abraçados ou abraçando, envolve até o coração, sempre aos saltos.
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Língua não é
genética, é cultural. Cada língua tem seu ritmo; cada indivíduo, sua cor e
nervosismo, certezas e dúvidas: transformados em sons, são ouvidos pelo feto
quando ainda no ventre materno e absorvidos pelo sistema nervoso em formação.
Nesta etapa, a língua é apenas um conjunto de sons culturais que produzem
reflexos biológicos e cinéticos no futuro cidadão dentro do corpo de sua mãe.
As palavras
carinhosas dos pais ou suas brigas; funk ou samba de raiz, tiros na rua e
gritos em feiras livres, berimbau ou harpa, violino ou violão de sete cordas,
cantos gregorianos ou bandas do corpo de bombeiros - todos estes sons culturais
são recebidos pelos sentidos em formação e passam a fazer parte do sistema
receptivo do não-nascido, porém vivo.
Fantástico: o
zigoto - união do espermatozoide com o óvulo -, logo no segundo dia depois da
fecundação, começa a produzir células-tronco, assim chamadas porque são
polivalentes, multiplicam-se e são capazes de se especializar, formando os
diferentes órgãos do corpo humano.
Ainda hoje este
processo biológico é objeto de curiosidade científica e pesquisa em centenas de
laboratórios em todo o mundo, pois grande é o mistério: como se faz essa
especialização? Como é programada e quais são os agentes dessa programação?
Como será possível, em laboratório, manipular células-tronco para curar doenças
ou restaurar órgãos danificados ou malformados? Como fabricar, in vitro,
pedaços de pele ou de fígado, pâncreas e coração, refazendo erros e desvios da
natureza?
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Como é possível
que, de uma pequenina semente, nasçam as raízes de robusta árvore, tronco,
galhos, folhas, flores e frutos? Dos frutos, sementes; das sementes, a Floresta
Amazônica e a Mata Atlântica?
Será esta a mais
fantástica descoberta da ciência quando nosso corpo, pela natureza produzido,
for simples rascunho de nós mesmos, que poderá ser corrigido em socorro da
natureza, quando falha. Já assim pensava Aristóteles - para ele, e para isso! -
servia a arte da medicina: corrigir equívocos naturais e assumir o domínio da
vida.
Enigma, claro
enigma: na Natureza, tudo já está previsto e tudo é imprevisível. Como a nossa
vida.
Ao serem
produzidos, os neurônios não são especializados em nada, e só o serão a partir
do momento em que se localizem em algum lugar do sistema nervoso. Ao se
estruturarem com outros neurônios, formando redes neuronais, gânglios e nervos,
aí começam a receber as informações correspondentes a esse lugar onde se
puseram... ou foram levados pelos gliócitos, outro
tipo de células nervosas que funcionam como pilotos e fornecem nutrientes aos
seus neurônios - companheiros inseparáveis.
Mas... quem pilota
os pilotos? Os mistérios do mundo são maiores que as respostas que sabemos dar.
Ainda mais complexas são as perguntas que não sabemos perguntar.
As informações
vindas de fora e do corpo em fase de construção fazem com que os neurônios sejam
formados socialmente (neurônios+informações
sensoriais) desde antes do nascimento do infante. Neurônios que, ao serem
produzidos, eram puros, já não o serão ao se integrarem começando a trabalhar
em equipe, jamais sozinhos!
No mundo neuronal,
a solidão mata!
Dentro de sua mãe,
o feto não está totalmente protegido de influências exteriores. No ventre,
amortecidos, sons, gostos e sensações cutâneas vão entrando sem pedir licença!
Menos afoitos, imagens e cheiros aguardam o nascimento do pequeno indivíduo, já
tão marcado pelos outros sentidos, já em processo de socialização.
Através dos
sentidos, o mundo social se amalgama com a matéria biológica do cérebro e dela
se faz parte.
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A cultura de cada sociedade está
imbricada no sistema nervoso de cada um de nós. Os estímulos senso- riais não
esperam por um habite-se para começar a influenciar, formar e deformar
neurônios: vão se integrando a esse sistema no próprio ato da sua criação.
Entram... sem pedir licença!
Dos três mais
potentes canais da comunicação estética - Som, Imagem e Palavra! -, o som é o
primeiro a se manifestar: por fora, falas e ruídos; por dentro, o ritmo do
coração materno e do seu, a melodia do sangue em suas veias.
A imagem é a
segunda; a palavra simbólica, a custo, bem mais tarde. Neste capítulo, quero
mostrar como os opressores usam os canais estéticos para intensificar a
opressão através da docilidade obediente dos oprimidos; e como a contestação e
a resposta são necessárias.
Como grande parte
das informações sensoriais que o feto recebe do mundo exterior não são
fenômenos naturais, como vento, chuva e cachoeiras, mas sociais, como vozes,
timbres, ritmos e movimentos corporais, é claro que o cérebro já é social desde
os primeiros estágios da sua formação.
No início desse
processo evolutivo, o desenvolvimento do feto é apenas biológico - obra da
natureza. A vida, que já existia no espermatozoide e no óvulo, avança para o
seu destino: o desenvolvimento, a plenitude e a morte.[nota 19] Mas só quando
produz iniciativas motoras próprias, quando desenvolve emoções e estrutura seu
aparelho psíquico, quando surge a ação criativa em lugar da simples resposta,
quando essas ações são individualizadas em cada feto - só então poderemos
falar do limiar de uma vida humana.
Como as redes neuronais
perdem a virgindade no próprio ato de se constituírem, o cérebro é social desde
o começo da sua formação. Em clarões que acendem e formam redes de neurônios,
registra sensações em todas as etapas e em cada momento do seu vir-a-ser, sendo.
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Por esse bastante motivo, é bom
falarmos com as crianças desde antes que nasçam: a voz perdura.
Esses clarões,
extensos segundo sua abrangência, intensos segundo a dor ou o prazer que
provocam, são variações calóricas às quais chamamos emoções. Mesmo que a
ciência venha a provar que as emoções são controladas pela parte do cérebro
chamada amígdala, mesmo assim é por todo o cérebro que as emoções passeiam.
Emoções são
propriedades das redes neuronais, são como fole que sopra a brasa que arde -
são a brasa: incandesce ou se apaga.
Não apenas as
características das informações que recebe, mas sobretudo o seu histórico - a
ordem e a intensidade com que são inscritas no cérebro físico durante e depois
da sua construção inicial no ventre materno -, essa ordem e essa intensidade
explicam as enormes diferenças que podem existir entre dois gêmeos univitelinos
cuidados da mesma forma - que nunca é a mesma, nem será jamais, apenas
parecidas - pelos mesmos pais, em condições materiais semelhantes, comendo o
mesmo pão e sabendo os mesmos saberes... que nunca são os mesmos, nem o saber,
nem o sabor.
Esse histórico
explica a diversidade psicológica e ideológica de indivíduos da mesma cultura
e mesmas condições sociais, vivendo no mesmo continente, mesmo país, mesmo
bairro e mesma rua, na mesma casa, cabana ou barraco, no mesmo quarto ou espaço
compartido... ou mesmo ao léu. Explica as ovelhas negras, azuis e brancas, e a
imensa variedade de normalidades, conceito que, no plural, contradiz a si
mesmo. Norma é conceito exato, referente à moral e à ética. Normalidade,
conceito relativo e ambíguo, é opinativo.
O mesmo histórico
cria aquilo que chamo de idades-refúgio. Quando algo grave e emocionante
acontece em algum estágio das nossas vidas, situações de risco e perigo ou de intenso
prazer, essas estruturas emocionais perduram vivas em nossa memória oculta.
Muitos desses eventos acontecem com violência no início da puberdade. Quando,
décadas mais tarde, uma nova situação a elas se assemelha, regredimos àquela
idade-refugio e tendemos a agir como se ainda
tivéssemos aquela idade. Voltamos a ser crianças.
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Informações
sensoriais não se referem apenas às relações emocionais com pessoas, mas também
às proteínas, vitaminas e sais minerais que abundam ou fazem falta; sal e açucar; pés descalços na poeira do chão ou calçados em
couro macio; dinheiro no bolso ou bolso furado.
Todos os estímulos
sensoriais inscrevem-se em nosso cérebro. Os mais intensos e os que mais se
repetem, nele permanecem como inscrições em pedra; os fugazes se desvanecem
como nuvens ao vento. Nossa vida psíquica é alimentada pelos sentidos, sem os
quais nosso cérebro seria pura biologia. O cérebro guarda memórias - em parte,
é memória.
Beethoven já era
renomado músico aos trinta anos, elogiado pelo próprio Mozart, que, durante
dois meses, foi seu professor e dele dizia ser “...um jovem de brilhante
futuro, que fará seu próprio caminho na música”. Mozart acertou: Beethoven
tornou-se Beethoven. Só ficou surdo depois de muito ouvir e produzir música; se
nunca a tivesse ouvido, jamais seria compositor.
Seu silêncio se
fez música porque os sons já estavam em seu cérebro, ativos, não nos ouvidos
moucos. O que lhe faltou foram ouvidos, não o ouvir. Pessoas surdas e cegas,
quando não nasceram cegas e surdas, veem e ouvem o que ouviram e viram antes da
doença.
Os ouvidos ouvem e
os olhos olham, mas quem escuta e vê é o cérebro. As informações óticas são
inócuas; organizadas em imagens pelo cérebro- artista, ganham sentido, emoção e
valor. Ouvidos ouvem, o cérebro escuta e organiza sons em tons e timbres,
melodias e ritmos, aos quais atribui valores ou as descarta em bulício e
algaravias. O mesmo acontece com os demais sentidos: são estruturantes, não
máquinas registradoras.
Sentidos são seletivos
Jamais poderemos
ver (enxergar) tudo que olham nossos olhos, escutar tudo que ouvem nossos
ouvidos, sentir tudo que toca nossa pele, gustar
todos os gostos, olfatar todos os cheiros. Olhos nos
permitem ver, mas também escondem; nossos ouvidos ensurdecem quando nos convém.
São assim todos os nossos sentidos.
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O artista mostra o
escondido, não o óbvio, e nos faz entender através dos sentidos - torna
consciente o que estava em nós impregnado. No tempo, surpreende o instante; no
espaço, o invisível.
No teatro - a mais
complexa de todas as artes porque a todas inclui com suas complexidades -, os
artistas (cidadãos) devem fazer-nos ver o que temos diante do nariz e não
vemos, entender o que é claro e nos aparece obscuro. Disse um camponês do mst: “O Teatro
do Oprimido é bom porque nos ensina tudo que já sabíamos!”
Podemos ver, na
obra de arte, até o que não foi premeditado. Como tanto o artista como todos
nós pensamos em dois níveis de pensamentos, Simbólico e Sensível, e como em
cada nível coexistem várias camadas simultâneas, o artista transmite o que nem
lhe passou pela consciência verbal.
Na obra de arte
acabada, podemos também não detectar nuances por estarmos a elas acostumados,
inconscientes da sua importância e valor.
No cotidiano, não
vemos o que não podemos ou não queremos ver, mesmo diante dos nossos olhos. Em
uma das casas de Pablo Neruda - Santiago do Chile, em Bella
Vista - existe um quadro que mostra Matilde, seu amor secreto quando ainda não
era sua terceira e última esposa. Esse quadro foi pintado por Diego Rivera,
amigo do poeta. Miramos e vemos uma mulher com dois rostos - espanta. Somente
depois que somos informados, vemos o perfil de Neruda desenhado nos cabelos de
Matilde, seu amor escondido... como o perfil do amante. Em cabeças, somos
treinados a ver cabelos, não Nerudas.
Nunca vemos tudo
que está diante dos nossos olhos, mas podemos ver o que não existe: em sua
outra casa, a de Isla Negra, vemos dois túmulos singelos voltados para os
recifes do seu mar; vemos Matilde e Pablo, vivos, que foram enterrados
contemplando o oceano, mas... onde estarão agora? Nós os vemos onde não
estão... Também o trompe-1'oeil[nota 20] mostra que nossos sentidos não são tão
confiáveis: podemos ver o vazio.
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A percepção de
todas as sensações fornecidas pelos nossos sentidos é estruturada pelo prazer e
pela dor... ainda que seja o prazer da dor, ou a dor do prazer: todas provocam,
ou são, prazer e dor.
Dentro de sua mãe,
a pele do feto em formação já tocava o líquido amniótico, que tinha poucas
variações de temperatura. No ventre materno, a partir de certa idade e
consistência muscular, já chorava, soluçava, dava pontapés. Seus ouvidos ouviam
sons amortecidos; sentia sabor nos lábios apertados; seus olhos nada viam e
seus pulmões não respiravam.
O nascimento
produz um choque sensorial de tremenda violência, e o bebê chora. Chora porque
não sabe o que dizer. Assustado, pensa um pensamento mudo, sensorial, pois não
conhece palavras. Mudo, mas não silencioso. Para aquele corpo que nasce, o
mundo é cinzento, o som é ruído e a palavra é um grito.
Sua pele toca
outras peles, roupas e coisas - sente e compara. Pela primeira vez, com dor,
seus pulmões se repletam de ar e o bebê cheira. Saboreia o leite materno. Seus
olhos, ao longo dos dias que passam, das pessoas e coisas que passam,
distinguem traços e cores, reconhecem fisionomias.[nota 21] O corpo humano que
acaba de nascer é habitado: tem gente dentro!
Seus primeiros
contatos com o mundo exterior são de natureza sensorial. Alguns permanecem
nesse nível, como a dor de estômago, o frio e o quente, a fome. Quando, porém,
são estruturados pelo pensamento, tornam-se Estéticos.
A Estética nasce
com o bebê - não há o que temer.
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Cérebro e conhecimento
O mundo é como é,
não como gostaríamos que fosse: é preciso mudá-lo para que seja!
Para sobreviver, o
bebê precisa conhecer o mundo onde
passou a viver — sobretudo o seu lugar nesse mundo. Precisa percebê-lo,
organizando sensações. Os estímulos que recebe são pletóricos e confusos,
difíceis de entender. Seus sentidos registram sensações torrenciais que ele
deve estruturar - desejar ou repelir. Felizmente, algumas se repetem e são
fixadas no seu cérebro: servirão de parâmetros e paradigmas para estruturar as
próximas que virão.
Cada sensação
provoca em nosso cérebro um clarão
formado por redes neuronais que se acendem e disparam, com dor ou prazer. Esses
clarões se expandem e se propagam em suas regiões sensoriais específicas.
Quando as sensações atingem os neurônios
estéticos, os clarões se alastram por outras regiões do cérebro, como
incêndio estival.
Clarões também acontecem, dentro do próprio espaço
psíquico, sem o estímulo das sensações físicas, por obra da memória e da imaginação,
que são atividades investigativas dos dois pensamentos. Podem provocar emoções,
delírios e alucinações; no sono, gerando sonhos. Com o tempo, esses clarões tendem a se desfazer e a se apagar
como cinzas de fogueira exausta, mas tornam-se duradouros pela emoção repetida.
Se os disparos
forem intensos e frequentes, podem ficar para sempre iluminados na conturbada
noite da nossa vida psíquica, cheia de sombras, brasas e vultos fugidios.
Os psicanalistas
são os Caçadores de Vultos e Sombras.
Sensações não nos
vêm isoladas nem puras: recebem e produzem emoções específicas em momentos
precisos. Se o bebê mama, o estômago saciado e o sabor do leite se associam ao
prazer de tocar o corpo da mãe, sentir seu cheiro, ouvir sua voz. Se ouve um
barulhento caminhão, seu corpo estremece e perde harmonia, física e psíquica.
Cada sensação está envolta em emoções e memórias.
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Se ouve música
suave, o bebê se reconforta e sente o mundo como feito de estruturas coerentes,
não de caos como sentiu ao nascer; ouvindo modernas bandas eletrônicas que
confundem estridentes estuporados estrondos com música, essa agressiva sensação
virá associada ao espanto e à dor. [nota 22] Confrontado à luz de holofotes,
seu corpo se retrai em sofrimento, mas se pacifica se exposto à suave luz
azul.
Progressivamente,
as sensações, emoções e memórias a elas referentes organizam-se em permanentes
estruturas mnemônicas e emotivas que, em sua interação e conversão em atos, são
pensamentos sem palavras - Pensamento Sensível.
Este não é um
interveniente exterior que surge do nada, mas o próprio modo e forma como se
organizam os elementos psíquicos. Não é força externa que estrutura esses
elementos, mas os próprios elementos vitais que se estruturam e, mais tarde,
irão criar o Pensamento Simbólico, com a invenção da palavra e dos conceitos.
Entre emoções,
sensações e pensamentos existe o fenômeno da sinestesia, que propicia o seu entrelaçamento e interdependência.
Sinestesia é o diálogo entre os sentidos: a visão de uma pessoa ou coisa pode
provocar sensações de medo ou atração; o doce na vitrine faz a boca salivar; a
voz amada ao telefone faz-nos vibrar.
A sinestesia está
mais presente em nossas vidas do que dela somos conscientes. Até mesmo os
elogios poéticos com que um sommelier descreve as qualidades da sua bebida
enaltecem o gosto do vinho, que seria menos saboroso sem a poesia do especialista.
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Isto permite a trampa, trapaça: na
boca, sentimos o gosto das palavras, não do líquido. O feijão com arroz e carne
moída do boteco da esquina, servido às pressas no balcão, ao contrário, tem o
gosto que tem, sem guirlandas nem grinaldas...
Sinestesia é
diferente da cenestesia, que se
refere às impressões sensoriais internas do organismo que fazem com que nos
sintamos bem-dispostos ou tensos, saudáveis ou doentes. Ressaca e euforia são
reveladas pela cenestesia. Diferente
da propriocepção, que é a
“sensibilidade própria dos ossos, músculos, tendões e articulações, que nos
fornece informações sobre a estática, o equilíbrio, o deslocamento do corpo no
espaço” (Houaiss).
E bom termos uma
palavra para cada coisa: melhor ainda, criar uma coisa para cada palavra - esta
é uma das funções da arte.
Quando as
faculdades motoras do bebê se desenvolvem, ele aprende que não só é capaz de
perceber o mundo, mas é também capaz de se associar
a ele. Ouve música e dança perseguindo o ritmo, que nem sempre encontra. Reage,
com prazer, ao canto dos pássaros e teme o trovão. Sente o cheiro de leite e
busca o seio. Vê um rosto amigo e abre os braços, pressentindo calor e maciez.
Cara feia, refuga.
Aprende a sorrir -
grande invenção humana! O bebê já nasce sabendo chorar: a sorrir, aprende a
duras penas.
Quanto mais se
desenvolvem seus músculos e se organizam seus sentidos, mais ele compreende que
pode não apenas conhecer e se associar ao mundo, mas também transformá-lo. Se levarmos uma criança à praia, com areia
ela fará esculturas e se descobrirá escultora. Se lhe dermos papel branco e
lápis de cor, ela se descobrirá pintora. Brincando com peças de madeira, a
criança organiza esculturas como, mais tarde, com palavras, organizará ideias e
falas.
Em parte sua criatividade
pode ser cópia: se faz castelos de areia, é porque viu castelos ao vivo ou
desenhados - sua obra é metáfora substantiva, portanto, a criança está em vias de
humanização, pois só os humanos são metafóricos. Tendo visto o modelo, é capaz
de repeti-lo em outra substância.
Em países
capitalistas, as crianças podem gostar de jogos como o execrável Monopólio e os
games de assassinatos porque a isso foram induzidas. Na Idade Média, as
crianças não eram reconhecidas como seres humanos completos: brincavam com
jogos de meios-seres humanos – o que jamais os impediu de serem criadores
dentro das limitações culturais impostas.
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Brincadeiras são
aprendizado, relacionando forma com outra forma, volume com volume, palavra com
pessoa, objeto com distância e espaço, cor com emoção, som com algo que vai
acontecer. Se a palavra, pessoa, som, coisa ou cor evocam alegria, ela ri: se
tristeza ou medo, chora. Esta é a etapa da criação de conjuntos e estruturas,
como o cãozinho que saliva ouvindo a campainha que anuncia a chegada da comida
(sinestesia).
Nesta sequência
cumulativa - perceber o mundo, associar-se
a ele e transformá-lo - estes são os primeiros contatos da criança com o mundo:
contatos estéticos, organizadores de
sensações às quais atribui valores e qualidades, através das quais realiza
desejos, foge do perigo e se integra ao mundo físico e social.
Esta forma de
pensar sem palavras e de se relacionar com o mundo é uma forma estética de
conhecê-lo.[nota 23] As linguagens estéticas - música, pintura, dança etc. -
são cognitivas, isto é, em si mesmas, são conhecimento. As linguagens
simbólicas - línguas: português, espanhol, inglês, francês, esperanto, e as
línguas regionais de surdos-mudos, gestos convencionados etc. - são
informativas: transportam conhecimento. A maneira de fazê-lo, no entanto, é
cognitiva.
Na vida adulta e
cidadã temos que fazer o que fazíamos, crianças, em outro nível, outras
necessidades. Para isso temos que dominar e usar todas as línguas que possamos
escrever e ler; temos que revitalizar nosso Pensamento Sensível através de
todas linguagens sensoriais que formos capazes de dominar.
Noética e Estética guiadas pela
Ética!
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Palavra, a maior
invenção humana
A palavra integra
os arsenais da opressão... e da revolta
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Gênese da palavra
A palavra, a mais
grandiosa invenção humana - o fogo não foi invenção, foi descoberta! - vem
ocupar espaços que antes pertenciam ao Pensamento Sensível. A palavra é axial
entre o sensível e o simbólico. Não é limite entre um e outro: espraia-se pelos
dois. Palavra tem corpo e alma.
Do Pensamento
Sensível nasce o Pensamento Simbólico
O bebê desde cedo
começa a reter na memória sons sequenciais associados às mesmas coisas e
pessoas: percebe as palavras que, nesta primeira etapa, ainda não são
Pensamento Simbólico - puro som.
As primeiras
palavras que aprende são de natureza substantiva (substância). Substantivos
associados a realidades visíveis e palpáveis: mamãe, mama, papai, pão. Os
primeiros gestos que faz são com o dedo indicador: mostra o que quer e o lugar
onde deseja ir - coisas e lugares concretos.
Palavras são
conjuntos de fonemas - o som da fala, de cada sílaba -associados a
imagens: mãe é aquela mulher, e não simples conceito. Mais tarde, os fonemas
podem se transformar em morfemas - “a menor unidade linguística que possui
significado”, segundo Houaiss (sim, não, eu, tu, nós, vós, dá...). Cada fonema,
com variações sonoras, pode se transformar em mais de um morfema - em mandarim,
principal língua chinesa, o mesmo fonema, dependendo da maneira como é
pronunciado, pode ter até sete ou mais significados.
Estes morfemas
adquirem vida e se desprendem do grito animal. Multiplicam-se, formam poeiras de morfemas,
acoplam-se uns aos outros criando novas palavras e significados. Também as
palavras se justapõem criando a poesia; na narrativa, interpretando o mundo.
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Aquela mulher, com
aquele cheiro e gosto de leite, é sua mãe. O som da palavra está colado àquela
mulher, que é única. Ele a percebe através do pensamento dos sentidos, não do
pensamento abstrato. Relação em linha reta: eu e mãe. A palavra tem predicado
carnal: sua mãe existe e pode ser vista, cheirada, apertada, mamada.
Significante
(aquela mulher) e significado (mãe) estão colados; só quando se descolam surge
a linguagem conceitual, simbólica. Só quando se triangula esta relação, aí
começa o parto do conceito. Quando o bebê percebe outra pessoa chamando outra
mulher de mãe, quando vê filhos e mães, passa a agrupar essas unicidades em um
conjunto. Surge a linguagem simbólica, formada por conceitos descolados de
realidades sensíveis.
Mesmo descoladas,
as realidades de origem são lembradas, e a palavra traz, em si, sua vivência:
por essa razão, a língua materna tem história e pré-história. Línguas aprendidas
mais tarde terão apenas histórias a partir do momento do aprendizado.
Quando percebe que
outro pai, não o seu, também é pai, é obrigada a aprender um pronome possessivo
- meu. São muitos pais, mas este é meu; aquele, teu. Relação triangular: eu -
meu pai - pais em geral. O mesmo acontece com números: quando aprende a contar
sem a ajuda do ábaco, só então a criança começa a entender matemática.
Assim se dá a
transição do Pensamento Sensível ao Simbólico - esta é sua gênese: do uno ao
múltiplo; do concreto ao abstrato.
Palavra é meia
verdade: a verdade inteira inclui meus olhos, mão e boca, o tom da minha voz. O
trajeto da palavra para se dissociar da realidade concreta é longo. Grito é
palavra incubada.
“La parole est a moitié a celui qui parle, la moitié
a celui qui écoute”, disse Montaigne: - “A palavra pertence pela metade
àquele que fala, metade ao que a escuta”. Voltaire foi ainda mais radical: “Laparole a été donnée à l'homme pour déguiser sa
pensée”- “A palavra foi dada ao homem para disfarçar
seu pensamento”.
A solidão mata não
só os neurônios, mas também a palavra, quando não encontra interlocutores. Como
toda linguagem, existe em sua relação com o outro: pertence a ambos.
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Em certas regiões
da África, orangotangos conseguem criar uma linguagem que inclui sons de
convite ou negação, chamamentos etc. Um grito previne os filhotes de que não
devem se pendurar naquela árvore de galho quebrado - é perigosa. Mas esses
primatas não compreendem o conceito de perigo. Grito de advertência é relação
concreta com a árvore presente, mas não revela o perigo de todas as árvores de
galhos quebrados - só daquela.
A alienação do ser
humano ao trabalho manual tende a levá-lo de volta a este estágio primário de
percepção do mundo. Essa alienação obriga as pessoas a regredir às etapas já
vencidas da história humana. Brutaliza. O mesmo acontece com o sectarismo e o
fanatismo político, religioso e esportivo.
O nascimento da
palavra é semelhante ao primeiro mês após o nascimento: do cinza que olhamos,
surgem cores e traços que vemos. Semelhante também, mas não igual, às
experiências de Ivan Pavlov (1848-1936) sobre o reflexo condicionado: seu cão
era capaz, como qualquer cão caseiro, de associar a chegada da comida aos
passos do seu dono - salivava antes de ver a comida porque a relação passos-comida já estava integrada no seu
cérebro.
Pavlov associou
determinada música à chegada iminente do alimento: o mesmo efeito se produzia,
e o cão salivava. Ouvindo outra música, qualquer que fosse o ritmo e por mais
genial o compositor, o cão continuava espantando moscas com o rabo. Ouvindo sua
música, salivava.
Chimpanzés são
capazes de reconhecer símbolos visuais quando associados às vozes dos seus
treinadores. Círculos verdes e amarelos, por exemplo. O treinador aponta a cor
e diz seu nome associado a uma ação concreta: verde-levanta, amarelo-senta. Os
animais passam a obedecer indiferentemente ao dedo que aponta a cor ou à voz
que diz seu nome, e realizam ações simples associadas ao nome ou à cor.
Obedecem aos símbolos mudos como se ouvindo vozes de comando: vendo o dedo que
aponta a cor, obedecem à cor como se fosse a voz. Associam cores, vozes e
gestos.
Outros animais,
como o golfinho que parece peixe mas é mamífero cetáceo, embora não tenha ampla
capacidade de modular os sons que emitem para formar embriões de palavras, são,
mesmo assim, inteligentes: a prova da sua inteligência é que fazem sexo mesmo
fora do período fértil da fêmea, que colabora radiante. Neles, sexo é amor, não
liturgia procriativa.
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A psicanalista
Maria Rita Khel conta que seu cachorrinho percebeu um
dia que, ao acabar de comer, o ruído que fazia lambendo o pires de comida vazio
atraía a atenção de sua dona, e ele recebia mais comida. Começou a arranhar o
pires toda vez que sentia fome... e a ter seu desejo satisfeito. O mais curioso
é que o gato percebeu a estratégia canina e começou a arranhar o pires... do
cachorro, não o seu próprio. Era capaz de perceber que o barulho daquele pires
atraía a comida, mas não percebia que a causa desse fenômeno era o ruído de
qualquer pires, e não uma sonoridade exclusiva do pires do cachorro.
Avaliar dados e
tomar decisões, certo, pode ser chamado de primário pensamento, pois é uma
forma de ordenação do caos. A razão, no entanto, forma suprema de pensamento, é
a ordenação do cognoscível, não só do conhecido. Razão é suma.
Para facilitar
nosso entendimento do mundo, temos o hábito de simplificá-lo usando a conjunção
coordenativa ou. Tudo é “isto ou aquilo”. Branco ou preto? Racional ou
irracional? Temos que aprender o advérbio também. Isto e também aquilo.
Dizia Freud que,
no inconsciente, não existe o isto ou aquilo, aqui ou ali, ontem ou amanhã:
ambos coexistem. Em sonhos, o pai pode estar morto e estar vivo; podemos viver
simultaneamente em Botucatu e no Rio de Janeiro, como astronautas e operários.
Sonho é sonho.
Calderón de la Barca: “La vida es sueno y los suenos... suenos
son”.
As necessidades e
os desejos do bebê mais avançado no tempo faz com que ele imite ou invente sons
que se transformarão em palavras. Com o surgimento do simbólico, as duas formas
de pensar passam a coexistir. O Pensamento Sensível busca a amplitude do
Simbólico e quer falar, não apenas sentir. O Pensamento Simbólico busca a
concreção do Sensível, quer sentir e fazer sentir, não apenas enunciar - a voz
da palavra, sensível, dá precisões concretas ao seu significado simbólico.
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Na genealogia das
palavras existe o seu momento fetal em que ainda não são simbólicas, mas já
deixaram de ser apenas sensíveis. Este é um dos objetos de estudo da
etimologia, que investiga a origem das palavras, e da semântica, que trata dos
seus significados e de suas evoluções ao longo do tempo e das transformações
sociais que tudo transformam, até o sentido das palavras.
Depois dos substantivos,
virão os pronomes possessivos - meu, teu; os verbos (ação: comer, brincar) e os
pronomes pessoais (identidades: eu!) - Me dá, eu quero; os advérbios de lugar -
aqui, ali, lá; de tempo - agora e depois. Cedo surge um advérbio formador da
personalidade: Não! Só mais tarde virão as categorias gramaticais que não têm
existência própria, sendo apenas referenciais: adjetivos, advérbios, artigos,
preposições, conjunções.
Pelos estímulos
repetidos, o cérebro do infante começa a formar uma gramática residente em
redes neuronais. Esta é a gramática seminal, constituída predominantemente por
sujeito, verbo e objeto direto: eu quero aquilo. Gramática semelhante em todas
línguas, porque semelhantes são as necessidades humanas básicas: físicas,
fisiológicas e sociais.
Quando essas
necessidades se tornam mais complexas e subjetivas, criam-se gramáticas literárias:
[Inicio da
citação] Comigo me desavim
sou posto
em todo perigo:
não posso
viver comigo
nem posso
fugir de mim. [Final de citação]
— Sá de
Miranda (poeta quinhentista português)
Pronomes, verbos,
adjetivos, preposição, substantivo, advérbio e conjunção coordenativa. Demora
um certo tempo até que a criança possa chegar a este grau de abstrações...
Os verbos são
minhas mãos; pronomes, limites entre cada ser humano e o mundo; adjetivos são
minha maneira de ser e fazer; advérbios, minha personalidade; conjunções, meus
amigos e inimigos. Objeto é o objeto do desejo.
A soberana palavra
nos traz o conhecimento abstrato produzido pelas linguagens informativas:
aquelas que transportam conhecimento, mas não são conhecimento; referem-se à
coisa, mas não são a coisa. Simbólicas e não sinaléticas.
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Nas linguagens
simbólicas, os significantes estão dissociados dos significados; nas
sinaléticas, significantes e significados são inseparáveis. Se uma pessoa diz
“Eu te amo”, essa frase se refere ao amor, mas não é amor. Se apenas olhar a
pessoa amada, seu olhar é amor, mesmo que não o diga.
A palavra amor é
linguagem informativa, enquanto a voz com que é pronunciada e o rosto de quem a
pronuncia, esses, são linguagem cognitiva. A palavra amor é simbólica; o rosto
do amante, sinalético.
A linguagem das
palavras é essencial para a constituição do ser humano, pois nos permite
articular pensamentos sobre o que não está em contato com os sentidos, pensar o
futuro que não existe, refletir sobre o passado revoluto. Permite empenhar a
palavra, escrever cartas de amor e ódio, diários de bordo; adiar e antecipar,
organizar o tempo e criar agendas e calendários; dar significados ao espaço e
valores abstratos à terra; jogar xadrez e jogar no vulnerável cassino da Bolsa;
usar dinheiro e cartão de crédito, emprestar e cobrar juros, hipotecar e
continuar morando na mesma casa, como se nada fosse. Sobretudo, permite
imaginar o não-acontecido e ponderar possibilidades de acontecer.
Permite a
especulação filosófica, a precisão arqueológica, a sistematização sociológica e
as decisões políticas. Criando uma outra forma de vida, a palavra torna mais
complexa e densa a realidade sensível, acrescentando transcendência ao tempo e
ao espaço, vestidos pela memória de fatos acontecidos.
Vocabulários
buscam a precisão e, contraditoriamente, favorecem a ambiguidade porque
necessitam ser interpretados. Quem interpreta é o intérprete, ser vivo, social
e político, que se transforma a cada momento da sua caminhada. Como poderia o
transitório eternizar juízos e valores? Como poderiam dois pontos de vista ter
a mesma vista sobre o mesmo ponto?
Palavras são
símbolos. Para que um símbolo exista, é necessária a concordância dos
interlocutores. Como quase tudo na vida social, também as palavras se tornam
objeto de encarniçadas lutas.
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A etimologia mostra a correlação de
forças da sociedade no momento em que fabricou uma palavra a fim de revelar -
ou esconder - uma verdade. A semântica torna-se um campo de batalha em que
todas as forças em conflito procuram, a cada palavra, atribuir-lhe o sentido
que mais lhes convenha.
A luta semântica é
luta pelo Poder.
Do grito animal à palavra, da palavra à lei, e da lei ao dogma
Nesse processo de
purificação da palavra até à sua nudez, que vai do grito animal à mais sublime
das abstrações - ser ou não-ser - a luta pelo território é incessante porque
assim é viver.
Este é o caminho:
no peito do orangotango nasce o grito, como extensão dos seus braços - grito
prolongado, repleto de significados e emoções. Mais calmo, o orangotango modula
seu grito dando-lhe as nuances desses significados e, a cada um, seu timbre e
intensidade. E a linguagem. [nota 24]
Outro primata, o
ser humano, fragmenta o grito em pedaços, gritos menores - fonemas e morfemas -
que manipula, junta e disjunta, modela e associa: eis a palavra - polissêmica,
pode ser interpretada de diferentes maneiras por diferentes observadores, em
diferentes momentos.
Essa linguagem é
Língua.
Cada fragmento do
grito segue sua vida e pode ser usado na formação de outras palavras. P-e de perigo pode ser usado em pecado e Pernambuco; peão e
pé-atrás; peba e peculato, mas também em pedagogia e pedagogo.
Toda Palavra é
Grito! Grito primata e primário que permanece vivo no bojo de cada palavra que
pronunciamos, cada poema, frase de amor, cada artigo de cada lei.
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No fragor dos
conflitos de classes, castas, etnias, gêneros, pessoas, nações, estados e
impérios, a palavra vai sendo deformada. A semântica revela as transformações
do sentido original de todos os gritos. Sublimada, esterilizada, a palavra
desencarna na lei, que é o grito do mais forte: aquele que o legislador é, ou
representa.
Lei é o grito do
poder, abstração que nasce dos conflitos concretos da vida social e nela
conserva raízes e garras. Montesquieu, filósofo universal nascido na França
(1689-1755), afirmou que as leis são o reflexo das “relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”, [nota 25] outra forma de dizer que as leis são
assim porque a sociedade assim é: manda quem pode! Entre essas coisas, enumera
os costumes, o clima, a religião e o comércio - resíduos de coisas que,
clandestinas, sobrevivem na lei.
A lei, que resulta
de uma estrutura beligerante de forças políticas, morais, sociais e econômicas
em cada sociedade e em cada momento da sua fabricação, é sempre apresentada não
como expressão da vontade dos vencedores, como de fato é, mas como inspiração
do genérico povo, ou proveniente de uma entidade sobrenatural, um Deus
distante, invisível. Desde Hamurabi (século dezoito antes de jc), na famosa Pedra que repousa no Museu do Louvre, o rei
aparece recebendo do seu Deus os itens daquele primeiro Código Penal. Desde
Hamurabi... até a nota de dólar que afirma sua fé, não no dinheiro, que
realmente não vale mais nada com a crise de 2008, mas “In God
We Trust”! Na crise do Deus-Mercado, voltam as
pessoas a acreditar em outro Deus, ainda mais abstrato do que o dólar...
Maquiavel jamais deu
receitas para acabar de vez com os conflitos políticos, mas analisou como se
vai de um a outro conflito, pois assim são as sociedades: conflitantes. Toda
sociedade é fragmentada e cada fragmento tem suas necessidades e interesses. E
pelos conflitos que as sociedades se movem, não pelo diálogo civilizado. Obra
de gênio seria conciliar partes antagônicas, coisa que só acontece nas guerras
de um país contra um inimigo comum, quando se invoca o nome da Pátria e outras
abstrações.
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Maquiavel nos propõe
a perda da inocência. Se quisermos continuar angelicamente pensando que um dia
chegaremos, na terra, à eterna paz do paraíso, sonhemos, mesmo sabendo que os
seres humanos sempre estiveram divididos, sempre os movimentos da sociedade
ocorreram pela confrontação de forças. O que move o mundo é o conflito. Talvez
o que nos proponha o pensador florentino não seja a perda da inocência, mas o
fim do fingimento de inocência.
Louis xiv foi sincero, curto e grosso: “L’Etat
c’est moi!” (“O Estado sou eu”) - e calem a boca!
Para que a lei
permitisse a existência de uma justiça ética e não apenas condenatória dos
adversários e absolutória dos aliados, deveria pesar fatos e significados,
hierarquizados pelo bem maior. Não é o que acontece. Victor Hugo, irônico, comentou:
“A lei é igual para todos: proíbe tanto ao pobre como ao rico roubar um pão
para matar a fome!”
A Lei não se autoaplica: necessita de um juiz. Juiz e réu: aquele,
comparte o poder; este, no máximo, é seu igual.
A Lei tem corpo e
alma. O corpo da lei existe em pedra ou papel -ele se aplica aos oprimidos. A
alma se inventa a partir do caráter e das necessidades dos opressores! O
espírito da lei é a margem de manobra que permite ao juiz decidir como lhe
aprouver. Ao manipular a palavra nua, o juiz a veste e adorna com os
significados que melhor respondam aos seus interesses e desejos, quase sempre
estranhos ao fato julgado. O juiz, como artista que também é, escolhe ou
inventa significados para a palavra escrita - esta é sua arte.
A Lei é como a
espada: não fere ninguém - quem fere é quem a maneja!
Para que os
oprimidos se libertem das injustiças que sofrem é necessário criar sua própria
lei e assumir o poder que dela emana, poder que só se consegue com a
participação ativa na vida social e política, com organização e com o bom uso
da força dela decorrente.
O homem só é presa
fácil, e a solidão é alucinógena.
A reprodução do
poder existente, no entanto, não leva necessariamente à universalização de uma
nova Lei mais democrática; ao contrário, pode levar à criação de clones dos
opressores, como milícias repressivas que ficam fora do controle do Estado e da
população, como no Brasil e em tantas partes do mundo.
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Abaixo do juiz, na
escala jurídica, existem os burocratas, capazes apenas da interpretação literal
da lei. Com seus monóculos e nariz colados ao papel, o burocrata jamais levanta
os olhos e só enxerga, letra por letra, o que está escrito.
Exemplo clássico:
“É proibido pisar na grama!” corresponde à justa necessidade de proteger o
jardim. Mas, para salvar uma criança atacada por um pitbull enquanto brinca na
grama, é necessário violar a letra dessa lei, pisar grama, cravos e rosas para
que se faça justiça à vida da criança e não à fome do cão, nem ao capítulo tal,
parágrafo qual, inciso a, b ou c. O bem maior é a criança: pisemos em todas as
gramas! [nota 26]
Gigantesca tolice
é simbolizar a Justiça por uma mulher de olhos vendados quando ela deveria ter
os olhos bem abertos para tudo ver e pesar. Temos que cumprir com o dever
cidadão de arrancar as vendas da Justiça para que possa enxergar a burocracia,
forma legal de crime! Seria mais verdadeiro simbolizar a Justiça por dois
lutadores de jiu-jitsu em confronto aberto, ou boxe tailandês, onde valem mãos
e pés. A Lei, com suas múltiplas capacidades de ser interpretada, aplica-se aos
ricos e poderosos; burocracia, aos humilhados e ofendidos.
A lei burocrática
se transforma em dogma quando sua origem é atribuída à natureza das coisas - ao
é assim porque assim está escrito neste parágrafo daquele capítulo. O dogma
abandona o campo da inteligência, onde não tem lugar.
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Dogma é o suicídio
da palavra, loucura do pensamento, destruição da lógica, desvario, devaneio.
Enquanto a ciência dúvida e inventa, descobre e cria, o dogma embalsama a
sensibilidade e fecha as portas à Razão.
Seguir à risca,
dogmaticamente, a melhor cartilha ou o mais judicioso conselho pode-se revelar
um desastre. Conselhos e cartilhas podem ser símbolos de correto comportamento,
mas catastróficos se aplicados a situações concretas, diferentes daquelas que
os motivaram. Uma análise estrutural não pode ignorar conjunturas. Grandes
erros de opções políticas já foram cometidos adotando-se como dogmas certas
análises corretas de realidades feitas no passado em situações sociais revolutas.
A morte de Che
Guevara, que, mal aconselhado, tentou na Bolívia, em 68, a mesma estratégia da
guerrilha cubana em 59 - a célebre Teoria dos Focos e a divisão do país em
dois, com a estupenda vitória de Santa Clara -, é trágica evidência do que digo.
A Bolívia não era Cuba; transformada em bela cartilha, já não servia - era
História exemplar... Os exemplos devem ser interpretados e não dogmatizados.
Se os companheiros
do Che em Cuba que, com o mesmo heroísmo, combatividade e ternura, souberam
organizar a revolta do povo, se os mesmos jovens tentassem a mesma estratégia
na Bolívia onde Guevara se viu só, teriam o mesmo destino: as condições
concretas exigiam uma nova estratégia, adequada ao mundo real, e não aceitava a
reprodução de um livro de memórias.
Somos tão apegados
aos passados exemplares que desejamos venerá-los como dogmas, carregá-los
defuntos em nossos braços, sem viver o nosso presente. Com o passado, temos que
nos aconselhar, mas sem correr de costas para o futuro - não seguir em frente olhando
para trás. Tudo que nos acontece, acontece pela primeira vez, todas as vezes.
Cada dia é um novo
dia: estamos condenados à criatividade!
Os fanatismos
religiosos, como os sectarismos políticos, refugam qualquer tentativa de
racionalização ou experiência comprobatória, pois se baseiam em sonhos e
revelações sobrenaturais, sem testemunhas nem vestígios, sequer indícios.
Dogmas religiosos são leis pétreas, inflexíveis, de origem fantasista,
improvável e impossível. Ficções. Racismo teocrático.
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A Fé funciona como
o placebo em farmacologia: o paciente pensa que aquilo que ingere é remédio e
nele crê, mobilizando suas forças mentais para sua cura - assim é a Fé. O
grande perigo é a adição: as pessoas podem se tornar aditas de um placebo, e da
Fé também.
A fé em dogmas
indemonstráveis contraria a vida criativa, limita a percepção do real,
obscurece o olhar. Quem crê contra a razão, nada busca nem descobre, pois tudo
já está descoberto e explicado. O dogma repele provas. Repele o movimento:
estagna. Define-se pela própria incapacidade de ser provado, ao menos
experimentado.
Os dogmas impediam
- em muitos países ainda impedem! - que as mulheres votassem porque... são mulheres. Obrigavam e obrigam negros a sentar
nas últimas filas dos ônibus porque... são negros.
Impõem que a terra improdutiva pertença a quem não a faz produzir, enquanto
camponeses passam fome ao relento porque... porque
sim.
Que grasse o
desemprego, que empresas se associem e despeçam funcionários condenados à
pobreza porque... é necessário aumentar os lucros dos
acionistas e o mercado está nervoso. Que países bem armados invadam e ocupem
outros países para impor seus conceitos de democracia matando centenas de
milhares de nativos porque.... ora, pois, porque é
necessário impor a liberdade, a ferro e fogo! Livres na porrada.
Quem impõe o
dogma, impõe aos outros, não a si mesmo. Dogma é arma de dominação - não se
discute! Arma de opressão: oprime e explora. Arma de exclusão: cria castas.
Quem tem o poder
da palavra, da imagem e do som, tem a seu dispor a invenção de dogmas
religiosos, políticos, econômicos, sociais... e também dogmas da arte e da
cultura. Nestes, os seres humanos são divididos em artistas e não artistas,
como se fossem divididos em nobres e plebeus. Isto é dogma, e dos mais abjetos.
O poder da palavra
é tão grande que pode criar o contradogma, que, mesmo
sendo contra, pode ser dogma - dogmatismo, sectarismo. E dever do cidadão
analisar e desmistificar todos os dogmas. Já que estamos condenados à
criatividade, no presente estudando o passado, devemos inventar o futuro sem
esperar por ele. Futuro sem dogmas.
É dever do
cidadão-artista, usando os mesmos canais de opressão mas com sinal trocado -
palavra, imagem e som -, destruir os dogmas da arte e da cultura mostrando que
todos os seres humanos são artistas de todas as artes, cada um do seu jeito.
São produtores de cultura e não apenas boquiabertos consumidores da cultura
alheia.
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Não temos que ser
melhores que ninguém: temos que ser nós mesmos, melhores que nós mesmos. A arte
de cada um é a arte de cada um. O lírico cantor de ópera não tem por que dançar
forró - não é proibido nem obrigatório. Nem vice-versa!
Até mesmo a
simples arte de assinar o nosso nome já produz uma pequena obra de arte: “Nossa
assinatura é única” - disse dona Teresa, filósofa em prendas domésticas.
O canto do
camponês é rouco. Os dedos do operário ao violão são rudes dedos de operário,
rude som. Pavarotti, um dos maiores tenores que já cantaram neste mundo, seria
inábil para cantar com a voz grossa e sanguínea de Nelson Cavaquinho, abraçado
ao violão, pé apoiado em cadeira de botequim, a canção em que pedia à sua ex-amada:
[Início de
citação] Tira o teu sorriso do caminho
que eu
quero passar com a minha dor... [Final de citação]
Plácido Domingos,
com toda a sua maravilhosa opulência vocal, jamais teria a doçura necessária
para cantar o triste lamento de Orestes Barbosa:
[Início de
citação] A Lua, furando o nosso zinco,
salpicava
de estrelas nosso chão...
e tu
pisavas nos astros, distraída... [Final de citação]
Cada um é cada
qual.
Callas foi Maria; Dolores, Duran.
Jé Carreras no palco do Scala de
Milão e o pedreiro anônimo construindo sua casa, cada um tem sua voz e sua
arte.
“Cantar é
vestir-se com a voz que se tem!” - canta, na Lapa, com a suave voz que tem,
Teresa Cristina.
Ser humano é ser
artista.
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Metamorfoses e usos abusivos da palavra
Semântica: zona de
guerra
As Palavras são
inquietas, avançando novos significados. Escravo
deriva do latim eslavus, transformada em esclavus no século x e, mais tarde, em
escravo, cativo. A mudança semântica se explica porque
germanos e bizantinos escravizaram
grande parte de indivíduos eslavos na Europa Central durante a alta Idade
Média. A palavra eslavus era entendida como aquele
ser humano que podia ser castrado de suas vontades e desejos, ser dominado e
servir. Era necessário inventar uma palavra para que a escravidão adquirisse
cidadania e se tornasse aceitável... O homem deixa de ser homem e torna-se
apenas escravo.
Palavras que, em
alemão, sempre foram inocentes, como Endlosung, Selektion e Anschluss,
tiveram seus vários significados reduzidos aos mais tristes pelo uso que delas
fizeram os nazistas. Na Alemanha, hoje, essas palavras devem ser evitadas, tal
a carga trágica da qual estão carregadas: “solução final da questão judaica”,
“seleção dos prisioneiros a serem executados” e “anexação da Áustria pela
Alemanha, em 1938”.
Outra palavra
curiosa, fascismo, se encarada de um
ponto de vista histórico e social, remete a Mussolini desde 1922 e, mais
extensamente, aos regimes nazistas da Alemanha hitleriana até o fim da Segunda
Guerra Mundial e da Espanha franquista até mais tarde. Etimologicamente, seu
sentido é mais abrangente: deriva do latim fascio e fascis, que
significam feixe, molho, grupo, ajuntamento (Houaiss, Larousse, Britannica).
Podemos, portanto,
apesar das diferenças sociais, falar do fascismo
das ditaduras militares da América Latina dos anos 60 a 80, e do fascismo de
nações ultraindustrializadas, que são, na prática,
governadas por feixes, punhados, grupos
de dirigentes de grandes corporações, e não pelos detentores nominais do poder
político - estes são chefes que obedecem.
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A luta pela posse
do território[nota 27] é uma característica necessária a todos os seres vivos,
que, para viver, necessitam de espaço. E mais espetacular entre os animais
musculosos e predatórios.
Nós, humanos,
somos binários: predatórios e solidários!
Essa luta se
estende também às palavras e não somente à terra e aos bens materiais. Humanos,
desejamos possuir palavras, fazê-las nossas - palavras são formas de Poder.
Liberdade e
democracia, por exemplo, na mídia
neoliberal, passaram a ter o significado que lhes atribuem seus atuais
proprietários - já perderam o sentido etimológico que possuíam ao serem
criadas. O neoliberalismo captura e monopoliza palavras-chave para a
compreensão do mundo, e chama de democracia - o poder do povo - ao que sabemos
ser uma plutocracia - o poder do dinheiro -, oligarquia - o poder de poucos.
O protagonista da
peça Um homem insignificante, de Dostoievski, em certo momento afirma:
“Quando os homens descobriram que eram criminosos, inventaram a palavra Justiça
para justificar seus crimes!”
Democracia é bela
utopia que devemos perseguir, mesmo sabendo que esse sonho jamais existiu, nem
no seu berço ateniense, onde as mulheres,
metade da população, não podiam votar - misógina democracia! - muito menos os
escravos — sociedade escravocrata. Não existe tampouco na fictícia maior democracia do mundo, Estados Unidos,
onde os mecanismos eleitorais são tão tergiversados que o candidato menos
votado pode ser eleito, que a Justiça de um estado (Flórida) pode determinar a
suspensão da recontagem de votos e dar a vitória a quem não a merecia. Onde
apenas os ricos têm acesso aos caros meios de comunicação: nas últimas
pré-eleições de pré-candidatos presidenciais (2008) foram gastos mais de um
bilhão de dólares nas campanhas dos dois candidatos de um dos partidos — vejam
bem: mil milhões! Quem ofereceu a dois simples candidatos todo esse dinheiro?
Liberdade, do
latim liber, libertas, significava que uma pessoa era livre em
contraposição à pessoa escrava; hoje, na linguagem do neoliberalismo
consolidado pela dupla Tatcher-Reagan, significa a
ausência de limites que protejam os fracos contra os fortes.
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Liberdade, a razão
do mais forte. Não podemos negar a
forte semelhança que existe entre o moderno neoliberalismo e as florestas e
savanas... Isto não é opinião nem teoria: é a crise de 2008!
Nesta luta
semântica ninguém pode nos proibir de ser etimológicos, carregando as palavras
com a carga que tiveram ou queremos que venham a ter. Se quisermos inventar
palavras temos uma bela justificativa: todas as palavras que existem foram
inventadas! Nenhuma existiu antes do ser humano. Somos humanos: inventemos!
O Pensamento
Sensível, apesar da progressiva predominância do Simbólico, nele subsiste.
Esmaecido, subsiste na voz da palavra falada, na sintaxe da escrita e nas
imagens que assomam. Quando pronunciamos uma palavra - em especial substantivos
-, ela não nos vem como simples som e sentido. Jamais sozinhas, ainda que
pálidas, surgem em nosso consciente, subconsciente, pré-consciente e
inconsciente, nuvens esvoaçantes de imagens, segundo a cultura a que
pertencemos, nosso passado pessoal e o momento que vivemos.
As palavras vivem
cercadas de imagens flutuantes, como figuras de santos medievais cercados por
enxames de anjinhos esvoaçantes.
Se falo de olhos
abertos, vejo o mundo; se os fecho, vejo o meu mundo, no qual está o mundo tal
como eu o sinto e entendo. Com os olhos arregalados ou bem vendados, tudo que
foi visto um dia, ainda se vê. O mundo está no meu cérebro revolto, com ideias,
sensações e emoções passadas. Está também no futuro imaginado.
A palavra mulher pode nos evocar a nudez de um corpo
humano ou um daqueles horrendos sarcófagos com os quais os talibãs escondem
suas mulheres; soldado pode evocar imagens de garbosas e musicais paradas
militares, veleiros qual cisnes brancos ou sangrentas escaramuças, pescoços e
pernas decepadas.
Se as palavras são
meios de transporte, casalé barco a remo: povo, trem; diplomacia, tanque de guerra; Deus, imenso navio cargueiro.
Desde sempre os
seres humanos se inquietaram com a origem e a substância do Universo, e da
nossa própria substância e origem dentro desse Universo infinito. A essa
perplexidade, a esse não-saber, deram um nome: Deus.
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Deus é palavra que produz todos os gêneros de imagens
de todas formas e formatos. Exatamente porque se refere a uma hipotética força
sobrenatural, inverificável, pluridefinível,
presta-se a todos significados, preenche todas carências e desejos, e satisfaz
nossas necessidades sempre que nos sentimos como “un
nino frente a Dios”, como cantava
Violeta Parra.[nota 28]
Como a palavra não
nos dá nenhuma certeza nem informação certa, temos que vê-la como se fosse
imagem, ouvi-la como música, tocá-la com as mãos: senti‑la.
Um povo
estranho... tão familiar
Desta dupla forma
de pensar, exemplo curioso nos é dado pela etnia pirahã, que conta com poucas centenas de
sobreviventes e ainda hoje vive ao longo do rio Maici,
em Roraima, Norte brasileiro. Sua língua, mura-pirahã, tem
apenas três vogais e oito consoantes. Destas, as mulheres usam apenas sete,
excluída aquela que, aliada a uma vogal, soa como o fonema do nosso “k” = quê.
Não sei por “k” tal interdição, mas suspeito que até no uso do alfabeto as
mulheres sejam oprimidas. Se o são em todo o mundo, por “k” não à beira do
aprazível Maici? Lembremos que em algumas regiões do
mundo as mulheres são proibidas de ler e escrever: não só o “k”, mas todo o
alfabeto lhes é interditado.
Mura-pirahã não possui nenhuma palavra que designe cores, números ou formas
de quantificação (muitos, poucos, alguns, todos etc.).[nota 29] Em sua língua,
a mesma palavra pode ter significados antônimos, dependendo da maneira de ser
pronunciada - formas sensíveis e não apenas simbólicas. A diferença entre amigo e inimigo está na escala musical... O mesmo
acontece no mandarim chinês, no coreano e no árabe popular. Em bom português,
podemos nós também pronunciar cada uma dessas duas palavras - inimigo e amigo -
de mil formas diferentes, com mil diferentes significados. Temos, porém, duas
palavras antônimas e não apenas uma fazendo suas vezes.
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Em compensação, os
pirahãs
comunicam-se com assovios, cantos, zumbidos e trinados que, esteticamente,
suprem a falta de palavras. Nós mesmos nunca falamos com rosto impávido: algo
sensível transparece.
E possível que os pirahãs não
tivessem a mesma variedade vocabular para expressar a dor de cotovelo e a
tristeza do amor que tão bem revelam os tangos argentinos e os boleros
caribenhos, mas esses sentimentos não ficavam clandestinos: olhares, pausas e
nós da garganta mostravam sua melancolia na hora do adeus.
Curiosamente,
embora tenham desenvolvido a Estética do Som, os pirahãs carecem de importantes
manifestações artísticas na pintura e na escultura. Mesmo sem palavras para
nomeá-las, as cores existem; como é certo que pensamos tudo que nossos olhos
veem - ver, ao contrário de apenas olhar, é uma forma de pensar -, podemos
imaginar que os pirahãs
a elas se refiram por meios sensíveis, não-verbais: zumbidos, talvez. Aos
números, talvez associem trinados ou gestos manuais simbólicos. Vocabulário em
gestação.
No entanto, os
meios sensíveis têm seus limites: para pensar o futuro além do anoitecer, as
palavras são necessárias. Para pensar o passado além do há pouco tempo, as palavras são indispensáveis.
Essa pobreza
vocabular talvez explique, ou seja causa, da ausência, nessa cultura, de
qualquer forma de ficção ou mitos de origem. Olhando o passado, os pirahã não vão
além de alguns anteontens; seu futuro é sem amanhãs.
Outra interessante
característica desse estranho povo é que seus indivíduos, de tempo em tempo,
mudam de nome próprio porque acreditam que o avançar da idade os transforma em
outras pessoas. Mentiriam se guardassem os mesmos nomes: já não são quem foram.
Desprezam o passado, não imaginam o futuro. São o contrário do que canta
Paulinho da Viola: “Quando penso no futuro,
não esqueço o meu passado...”
Nós, ao contrário,
construímos nossos nomes ao longo de nossas vidas. Nosso nome tem a nossa cara.
Nenhum nome é inocente, nenhuma palavra é vazia. Somos nosso nome.
Nenhum nome,
anônimo.
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Harmonia e
colisões
Entre os dois
pensamentos, Simbólico e Sensível, existe o perigo de que sua boa relação possa
entrar em colisão, negando-se um ao outro: podemos fazer afirmações verbais,
simbólicas, que contradigam nossas mensagens sensíveis. Podemos calar a boca,
jamais o corpo; esconder a verdade com palavras, jamais com a voz.
Separar os
pensamentos seria pura perda para ambos, pois são a mesma coisa em formas
diferentes - aí reside a sua riqueza. Os dois pensamentos podem se apresentar
de forma clara e consciente, ou podem continuar ativos subliminalmente,
sem que deles nos apercebamos; podem se apresentar completos e bem acabados, ou
em ruínas, fragmentados.
Estética e Noética são formas que têm todos os seres humanos de se
relacionar com o mundo. Não são exclusivas de uma classe ou casta, tempo ou
lugar, mas universais como a respiração, a morte e o bater do coração.
Culturais são as formas de fazê-lo, não o fazer.
Nenhuma das duas
formas de pensar pode proporcionar, sozinha, a mais completa percepção do
mundo, da qual só seremos capazes se formos capazes de conjugá-las. Da mesma
forma que devemos aprender a ler e escrever, devemos aprender a ver e ouvir. O
abandono deste ou daquele pensamento causa graves danos à expansão da
personalidade.
Exemplo das
limitações especialistas é o economista que só pensa em números, alíquotas e
percentagens, que renuncia ao Pensamento Sensível e não vê a fome do povo, não
vê Áfricas nem genocídios. Renuncia à Ética.
Imaginem um
encontro dos homens mais ricos do mundo nas brancas montanhas de Davos, Suíça,
banhada em flores e cores, quando se reúnem com suas secretárias e seus
políticos. Imaginem agora se os seus salões estivessem decorados, não com
papoulas, lírios e camélias, mas com quadros e esculturas de artistas
populares, mostrando as consequências de suas deliberações econômicas: pobreza,
doença e morte. Imaginem a revista Forbes,
que a cada ano anuncia os cem indivíduos mais ricos do mundo, se, ao lado
daquelas sorridentes figuras, mostrassem fotos dos cem mil homens mais
esquálidos desta Terra... Seria difícil falar em lucros e dividendos.
Imaginem Jesus,
vestido com os trapos que usava, andarilho nas ruas de pedra de Jerusalém, se
um dia aparecesse, inesperado, em uma festividade vaticana de fim de ano, onde
o papa reluz ouro e diamantes ao lado dos seus príncipes, ambiente de luxo e
requinte: Jesus seria expulso pelos garbosos guardas suíços. Sem piedade, sem
caridade cristã!
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Não podemos
renunciar a nenhuma forma de pensar! O operário, alienado à sua função manual,
termina por se confundir com sua máquina e dela se torna apêndice; os artistas
que só pensam em sua arte; os soldados que atiram sem saber em quem - todos são
autômatos.
Arte como política
O perigo oposto à
palavra inócua é o monopólio do sensível.
Alguns artistas esquecem que o Pensamento Sensível é pensamento, não mera sensação. A sensibilidade, ao ser
concretizada na obra de arte, tem forma e sentido. E atividade cognitiva, não
mero registro de sensações aleatórias, impressões fugidias, êxtases.
Como tal, o
Pensamento Sensível é vassalo e senhor do Simbólico, que pode conduzi-lo,
embora seja, simultânea e parcialmente, obra e dependente seu.
O Pensamento
Sensível é atividade intelectual que não se detém nos órgãos receptores e
transmissores de sensações - vai além, e busca organizar o mundo de forma
compreensível. Os dois pensamentos, mesmo quando dizem a mesma coisa, não dizem
a mesma coisa: iguais e diferentes, abrem espaço para a imaginação. A forma de
dizer é parte do que é dito.
A arte não
necessita ser figurativa para figurar, como não são necessárias palavras para
pensar. A palavra é apenas uma das duas formas, tardia, de pensamento.
Algumas formas
artísticas se limitam a provocar sensações sem conhecimento organizado, nem
pensamento organizativo, sem história nem futuro, como se a pura sensação
estanque fosse a razão da arte. Não é! Explicações não são necessárias, mas a
razão sensível é razão.
Vi uma vez uma
exposição de pintura em que o pintor declarava que seu único pensamento tinha
sido o de produzir uma obra que não fizesse pensar. Havia procurado sentir
quais as cores e traços que não permitiriam sentir. Andava atrás do vazio
absoluto... e parece que o encontrou: o salão deserto.
Independente da
vontade do artista, a obra de arte quer dizer... e diz. Mas nem tudo que diz a
obra é percebido por todos os observadores da mesma forma. Cada um de nós tem a
sua Capela Sistina!
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A fruição da obra
e a sua compreensão dependem do conhecimento e das prévias experiências de vida
de cada observador. Não preciso saber nada sobre uma obra para senti-la do meu
jeito, mas não a sinto do mesmo jeito que o meu vizinho, nem a sente, como eu,
o seu autor.
Os westerns de
Hollywood, como aqueles sobre Custer, invasor de
terras, arquiassassino, querem mostrar natives como sendo maus porque são natives
e brancos bons... porque, ora por quê: porque são brancos. Os produtores desses
filmes exaltam a figura macabra desse general, mas os indígenas sabem que Custer foi matador de inocentes.
Terrível e
histórico exemplo dos conflitos entre fundo e forma é a filmografia de Lenni Riefenstahl sobre Hitler e o nazismo, especialmente
seu filme sobre as Olimpíadas de Berlim em 1936 - belo e odioso! Esses filmes
mentem não porque dizem mentiras, mas porque escondem verdades.
Belos porque
revelam, em imagens, parte da realidade daquele trágico período; odioso porque
enaltecem genocidas de judeus, ciganos, comunistas e diferentes. Seus filmes
são importantes pela filmagem, não pelo filmado - pela técnica, não pela arte.
São geometricamente belos os militarizados desfiles de atletas das delegações
estrangeiras fazendo a saudação nazista para o Führer - inclusive delegações de
países que logo seriam invadidos pelos exércitos alemães; odiosos porque
conhecemos, ao vê-los, as catástrofes que aquele desumano regime provocou em
todo o mundo. Ali estava o Ovo da Serpente.
Serpentes são
belas... e assassinas. [nota 30]
Não nos admiremos
que tais filmes tenham contribuído para a propagação do nazismo entre os
jovens fanáticos e os desempregados, que sonhavam com empregos estáveis em
qualquer lugar... por exemplo, em fábricas de armamentos. As plateias eram
atraídas e dominadas pela grandeza física e pelo poder bélico daquele regime
multitudinário.
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Não nos admiremos
também da indignação dos mais lúcidos, que previam as tragédias que se
avizinhavam. Não nos admiremos do impacto que produzem, hoje, os filmes do
gênero homens-aranha e mulheres-escorpião: estes pseudo-heróis são todos Führers que fazem justiça pelas próprias mãos. São a
exaltação da ilegalidade, dos fora-da-lei e das organizações paramilitares.
Oscar Wilde dizia
que a arte não imita a vida, como se diz: é a vida que imita a arte. Como Wilde
tem sido associado a frivolidades - por sua obra e vida, ou por puro
preconceito -, esta afirmação é interpretada como brincadeira, boutade. No entanto, é profunda e
verdadeira! O cinema e o teatro são capazes de infiltrar comportamentos em suas
plateias: a empatia é a responsável.
Existem filmes
que, ao contrário do elogio, denunciam a violência que execram, revelam o
horror do crime. Ao mostrá-lo, porém, permitem que parte da plateia se
identifique com aqueles que o filme pretende denunciar e não com as vítimas...
e aplauda a violência.
Quando se
apresenta um personagem odioso, existe a possibilidade de que o espectador com
ele se identifique - incitação ao crime. Isso acontece com frequência com
filmes sobre a ação truculenta de matadores policiais. Para evitar esse
descaminho, Aristóteles recomendava a Anagnorisis da
tragédia grega: o herói trágico reconhecia sua falta, pela qual pagava caro e,
através da empatia, conduzia seus
espectadores a se sentirem faltosos e a corrigir sua própria falha moral.
Shakespeare criou personagens ambiciosos, como Macbeth e sua Lady, Ricardo III, Cássio e Brutus... todos derrotados
no fim da peça, para tranquilidade da moral vigente.
Explicações sobre
a obra influenciam a sua percepção. Nos primeiros meses de 2008, o Leopold Museum, de Viena, Áustria, apresentou quadros do pintor
Albin Legger-Lienz. Fez-se potente escândalo.
Organizações judaicas pediram que a Mostra fosse fechada e os quadros
confiscados, enquanto o Museu alegava a importância histórica do pintor e sua
obra.
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Estava eu
trabalhando naquela cidade e quis ver com meus olhos a razão de tanta bulha. Entrei
no Museu de má vontade, desci ao porão onde estavam os quadros de Legger-Lienz. Estava pronto para detestá-los - não suporto
aqueles que aderiram ao nazismo, seja qual for sua profissão. Mesmo assim,
comecei a achar que os quadros não eram ruins, apesar da ideologia do pintor,
mas continuei achando defeitos em todos eles: sempre encontramos razões de
sobra quando queremos detestar algo.
Na última parede
da última sala, porém, um texto explicava as razões do explosivo escândalo:
alguns daqueles quadros haviam sido roubados de casas de judeus perseguidos
pelo regime, confiscados por oficiais do exército nazista durante a Segunda
Guerra Mundial e vendidos, depois da guerra, a um colecionador privado, que
revendera os quadros suspeitos ao Museu, que, mesmo sem saber do histórico de
cada obra, não hesitou em expô-las. As organizações judaicas queriam que os
quadros fossem guardados em lugar seguro até que se descobrissem seus
verdadeiros proprietários judeus.
Então... Albin Legger-Lienz, nascido em 1868 e falecido em 1926, não era
nazista. Que alívio...
Voltei pelo mesmo
caminho da ida, olhando cada quadro pela segunda vez: como eram belos! Talvez
eu os achasse ainda mais belos do que na verdade eram porque sentia necessidade
de pagar minha culpa estética em julgá-los sem conhecer sua verdade política...
Adam Smith,
considerado pelos economistas como o pai da Economia moderna, em seu livro
seminal, A riqueza das nações, já no século XVIII dividia os indivíduos que produzem
riqueza desta forma: os trabalhadores, remunerados pelo salário; os capitalistas, que fornecem o capital e recebem os lucros produzidos pelos trabalhadores, e os
proprietários da terra, que recebem renda.
A riqueza, ele a definia como poder de
compra. Tanto o trabalho doméstico como a atividade artística eram
classificados como improdutivos.
Seu livro trata da
riqueza das nações, que é dividida entre os que trabalham, os que têm dinheiro
e os que possuem terras; entre os que recebem e vivem dos seus salários, lucros
ou rendas. Em um país assim dividido, a Arte tende a refletir a ideologia dos
que têm dinheiro ou possuem terras. Os que vivem do seu salário devem
fortalecer a sua arte para não serem fagocitados pelo pensamento único. O
direito à rebelião vive desde o âmago mais entranhado de cada Oprimido até a
sua consagração no texto cardinal das Nações Unidas sobre os direitos humanos.
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Vive, mas não
vige.
Mesmo quando as
ideias dominantes em uma sociedade são as ideias da classe ou casta dominante,
os dominados lampejam descontentamento. Até na aparentemente imóvel Idade Média
feudal, ao lado de um ferrenho teatro catequético majoritário, existiam farsas
pícaras que contestavam dogmas, inclusive o da sagrada virgindade - sacrílega
blasfêmia.
Neste campo de
batalha, surge a necessidade da Estética do Oprimido.
Mentiras e
hipocrisia
Com a invenção da
palavra, o ser humano, criando uma outra forma de percepção do mundo, criando
um outro mundo, com esse gigantesco salto inventou a mentira em suas formas
mais comuns: o falso testemunho e a calúnia, amplamente usados como armas de
poder.
Tão logo
pronunciada, a mentira torna-se verdade virtual. Como tal, a mentira é uma das
categorias da verdade. Pode-se mentir dizendo-se a verdade ou, dela, parte.
A própria negação
da mentira afirma sua virtualidade como verdade potencial: “Fulano não é ladrão!”significa que não é, mas poderia ser, ter sido ou
vir a ser. Fulano e ladrão formam uma só entidade, com desprezo do verbo ser e do advérbio não. Sua justaposição cria outra entidade, ausente de cada uma.
Já vimos candidatos em eleições afirmando sua crença de que seus adversários
não são ladrões, claro que não: a palavra ladrão dificilmente será descolada da
sua vítima.
A potência
prenuncia o ato, mesmo que ele não se cumpra. Potência é ato em gestação. A
mentira é autêntica criação humana. Os animais não mentem: simulam, mas não
mentem. A camuflagem do camaleão é reação biológica e não produto da sua
possível imaginação.
Com a mentira
surgiu a hipocrisia, que é a
possibilidade de se dar uma contínua aparência de verdade ao que sabemos ser
falso. E curioso lembrar que a palavra grega hupokrisia ou hupocritês, entre seus vários sentidos, tinha o de
“desempenhar um papel em uma peça”: a arte do ator. Significava também: “A
resposta do oráculo”.
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Oráculo e ator,
ambos misteriosos, tinham e conservam o mágico poder de impor uma empática
submissão a seus interlocutores e, neles, inocular mensagens, sentimentos e
valores hupokrisicamente, sem que o ator e o oráculo se apresentem com sua verdadeira
identidade: o primeiro representa um papel convencionado, e o segundo se
esconde sob o pseudônimo de um Deus.
Ambos mentem porque qualquer afirmação que façam está associada a quem a faz e
muda de sentido se muda o seu autor: se fala o rosto e não a máscara.
Quando alguém
reconhecido por suas virtudes, carisma ou feitos espetaculares, artista ou
atleta, faz elogia uma mercadoria na mídia - produto que não usa ou sequer
conhece -, faz um uso criminoso da empatia. Crime que, no nosso Código Penal, é
conhecido como falsidade ideológica.
A empatia -
instrumento de convencimento e poder - pode ser benéfica quando o personagem
com o qual nos deixamos empatizar,
tanto no teatro como na vida cotidiana, produz ideias e emoções que ajudam o
nosso desenvolvimento intelectual e emotivo. Torna-se daninha quando imobiliza
os espectadores inoculando-lhes ideias e emoções ordinárias e falsas, como a
luz ofusca cangurus.
Essa delegação de
poderes que o espectador oferece ao personagem - que passa a agir, sentir e
pensar em seu lugar, fazendo-o pensar, agir e sentir como ele — é uma perigosa
renúncia à cidadania, porque o espectador, imobilizado, se torna vítima passiva
e não parceiro.
A ficção, variante
da mentira, revela-se outra forma paralela, estruturada e coerente de compreensão
do real, que tanto pode produzir belas obras de arte, como tirânicas estruturas
de raça, casta ou classe, credo ou sexo.
Torna-se outra
realidade, na qual o improvável e o impossível passam a ser categorias do real.
Pode tornar-se mais real que a realidade: mais imaginariamente real que a
realidade sensível. A palavra ficção torna-se a única ficção que realmente
existe, pois que existe descolada de qualquer realidade.
Os malefícios da
palavra
As palavras são
tão poderosas que, quando as ouvimos, obliteramos nossos sentidos através dos
quais, sem elas, perceberiamos mais claramente os
sinais do mundo.
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Sua compreensão é lenta porque
necessitam ser decodificadas; as sensações são de percepção imediata -
principal diferença entre linguagens simbólicas e sinaléticas, símbolos e
sinais, linguagens informativas e linguagens cognitivas.
Escutando uma
palavra, necessito de tempo para compreender as intenções do meu interlocutor.
Se ponho o dedo em um fio desencapado, o choque elétrico que recebo não precisa
de nenhuma tradução especial. Grito! Se beijo a mulher amada, fecho os olhos.
Se como chocolate, sorrio.
Quando seres
humanos, em épocas pré-históricas, começaram a balbuciar as primeiras palavras
da proto-protolíngua universal - se pudermos crer nessa
controversa teoria segundo a qual uma língua primordial teria existido em
várias partes do mundo -, começou a lenta degradação dos seus sentidos.
A suposta
existência dessa língua universal, já mencionada na Bíblia, foi cientificamente
defendida pelos linguistas norte-americanos Joseph Greenberg e Merritt Ruhlen a partir de 1980.
Para eles, todas as línguas faladas no mundo, ontem e hoje, podem ser
sistematizadas e reunidas em diferentes famílias, como aquela que reúne línguas
românicas, eslavas, germânicas...
Estas famílias
são, hipoteticamente, originárias de uma única protolíngua, a indo‑europeia, que talvez tenha
sido falada por uma população nômade três ou seis mil anos antes de nós.
Juntando-se esta e outras protolínguas, forma-se uma imensa árvore genealógica
com um tronco comum: a proto-protolíngua,
primeira língua universal. Tem sua lógica, mesmo para quem não acredita em Adão
e Eva. Falta prová-lo!
Um trágico exemplo
dos sentidos humanos esmaecidos pelo surgimento da fala aconteceu no dia 26 de
dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis devastaram
várias cidades da Ásia e da África, matando mais de trezentas mil pessoas. No
entanto, no Parque Nacional do Sri Lanka, povoado por animais silvestres e
selvagens, nenhum morreu, apesar da tremenda inundação provocada pelas ondas
de doze metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais, pássaros e roedores,
e até desajeitados crocodilos conseguiram escapar - fugiram a tempo para
regiões elevadas quando perceberam as primeiras vibrações sísmicas e os
primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que se abria.
Página 90
Só morreram
animais domésticos, contaminados pelas palavras que ouviam, sem entendê-las, ou
presos em coleiras e correntes... Essa tragédia não tira o valor supremo da
Palavra como refinado meio de comunicação, mas revela um deslocamento da fina
percepção - dos sinais para os símbolos -, que traz consigo algumas tristes
desvantagens.
Asiáticos e
africanos, enquanto subia o mar, esperavam por avisos simbólicos - palavras! -
através de telefones e megafones, celulares, TVS, rádios e mails, sem atentar para os
sinais sísmicos que seus corpos registravam, mas que não chegavam às suas
consciências - sensações que não se transformavam em Conhecimento - e,
portanto, não eram mensagens.
Ao aprender novos
artefatos de linguagens, como telefones e celulares, rádio e televisão,
internet etc., as sociedades desenvolvidas industrialmente nos fazem esquecer,
ou substituir, a transmissão estética - oral e visual - dos conhecimentos que
estavam a cargo dos “mais velhos”. Ganha-se a abstração, perde-se a concreção.
Definha, em nós, o
artista
Com a introdução
da palavra, simbólica, as linguagens estéticas (sinaléticas) esmaecem e se
tornam menos conscientes e consistentes. Limitamos nossa percepção a caminhos
cansados, e o nosso corpo se mecaniza nas ações dos rituais cotidianos.
Prestamos atenção ao significado atribuído às palavras - não ao timbre, volume,
ritmo, características sensoriais da voz.
Definha, em nós, o
artista.[nota 31] O Pensamento Simbólico sufoca o Sensível, que continua vivo,
inconsciente, mas atuante. Em teatro, a subonda é o
pensamento escondido e fluente, um dos determinantes da ação do personagem
—dele o ator deve se conscientizar em busca da forma sensível do seu personagem:
corpo e voz.
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O corpo humano é a
fonte, e as linguagens estéticas são os meios de um pensamento simultâneo ao
Pensamento Simbólico das palavras e dos gestos convencionados. Esta é a razão
da arte.
As formas
estéticas de conhecer produzem um Pensamento Sensível específico, que somente
através delas se obtém e às outras se acrescenta. O que aprendemos ao ver uma
pessoa é insubstituível pelo que dela possam nos dizer. Ouvi-la traz um
conhecimento insubstituível pelo que, da sua voz, se possa predicar.
Magritte dava a alguns dos seus
quadros títulos como Esta não é uma maçã,
Este não é um cachimbo. De fato, não eram maçãs nem cachimbos: eram a
representação de cachimbos e maçãs. Eram metáforas. Lembremo-nos que a palavra
metáfora significa toda translação - como as literárias - ou transubstanciação
- como as artes plásticas -, que são a matéria da arte.
Um cachimbo é um
cachimbo, e a imagem do cachimbo contém uma opinião sobre ele, um sentimento,
uma visão particular. A metáfora nos permite uma visão binária do real: nós, em
face da representação metafórica que é a obra de arte. Quando ultrapassamos
esse limite especulativo e, como cidadãos-artistas, criamos nossa própria obra
de arte invadindo a cena e construindo alternativas à situação mostrada, no
teatro; quando, com nossas mãos, pintamos um quadro, fabricamos uma escultura,
nas artes plásticas ou nas artes da palavra, quando escrevemos poemas ou narrativas
- nestes casos estaremos inventamos o terceiro ângulo do triângulo estético: eu
vivendo minha vida social e pessoal; a realidade que me serve de modelo; e a
minha imagem da realidade possível.
Esta visão
metafórica triangular nos estimula a descobrir aspectos invisíveis da
realidade. Em teatro, o espectador-cidadão se multiplica por dois: é quem é, e
se torna parte da sua própria obra de arte teatral sendo o personagem.
O Pensamento
Sensível pode ser traduzido em palavras, porém, ao ser traduzido, elude sua
essência como quando alguém explica
uma sonata.
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A sonata já falava por si, e a
palavra, embora nos traga um conhecimento complementar, obscurece nossa
percepção estética. Ler receita de prato gastronômico pode nos dar água na
boca, prazer diferente do que sentimos saboreando o mesmo prato: comemos com
boca, nariz e olhos, e não apenas com o intelecto, por privilegiado que seja.
Ver um beijo apaixonado e ardente na tela do cinema pode ser excitante, mas não
deixa marcas na boca.
O Pensamento
Sensível é sustento e raiz do Simbólico, sem o qual este não existiria, mas que
existe sem ele. Estas características, no entanto, não desobrigam o Sensível do
saber, nem o absolvem da desrazão.
O Pensamento
Sensível, primogênito e genitor, inventa palavras, e as palavras constroem o
Pensamento Simbólico. Os dois pensamentos interagem, amalgamam-se impuros e
variam seus fluxos a cada instante. Despertos, podem se assumir como
consciência, que consiste em pensar o
pensamento, criticamente, como quem corrige seu próprio texto - este é
um dos poderes da mente.
O objeto que o
sujeito analisa pode ser o próprio sujeito. “Falei sem pensar...” - dizemos às
vezes. Mas como será possível falar sem
pensar se toda fala se constitui de palavras articuladas e estas são
pensamentos?
“Eu disse, mas não
era bem isso que eu queria dizer...” - esta expressão revela pensamentos
inconscientes ou com significados inconscientes, só compreendidos depois de
pronunciados... quando repensados em palavras. Concordo com o ditado popular:
“Para não se arrepender do que diz, pense duas vezes antes de dizê-lo”. Pense
seu pensamento.
A expressão “Eu
tenho uma ideia, mas não sei como explicar...” revela os estreitos limites de
um pequeno vocabulário. Aumentando o nosso vocabulário, estaremos expandindo os
territórios da nossa compreensão do mundo.
Estética, direito
humano
Palavra, som e
imagem são as mais poderosas formas de comunicação do ser humano. Devem ser
democratizadas como a terra, a água e o ar.
Porque não
necessita ser decodificado para ser entendido, o Pensamento Sensível é veloz; o
Simbólico, lento. O Pensamento Sensível não ocupa espaço no tempo, é
instantâneo!
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O Simbólico exige tempo para ocupar
seu espaço - é discursivo. O discurso promove a reflexão expansiva; a
instantaneidade aprofunda a percepção do tempo que nos escapa.
Arquimedes deu seu
famoso grito - “Eureka, achei” - e só depois verbalizou seu achado: “Um corpo
sólido mergulhado em um líquido recebe um impulso de baixo para cima igual ao
volume de líquido deslocado!” A frase inteira ultrapassou o limite entre o
Pensamento Sensível - ele estava na banheira tomando banho - e o Simbólico:
compreendera tudo vendo sua perna flutuar na água.
Mesmo quando
escrevo estas linhas usando palavras, outras palavras fluem rápido no meu
cérebro e chego a pensar que já escrevi o que apenas pensei.
O Pensamento Sensível
penetra unicidades ao sentir, gustar, cheirar, ver e
ouvir, enquanto o Pensamento Simbólico inventa conjuntos ao fabricar palavras:
mar, mal, amor, sal, açúcar, vinagre, política, esquerda, direita... Unidos,
oferecem a mais completa e profunda compreensão do mundo. Separados, um se
perde nas abstrações esvoaçantes que o outro não alcança. Um não desce à terra;
o outro, dela pouco se eleva. O ser humano inventa a arte como instrumento de
conhecimento. Os opressores, percebendo seu imenso poder, dela se apropriam.
Remédio ou veneno,
nunca placebo, a arte pode paralisar seu consumidor inerte, transformá-lo em
estação repetidora de comportamentos e conceitos - é veneno! -, assim como pode
dinamizar aquele que aprende a produzi-la - é remédio!
A indústria da
imagem e do som tem sujeito e objeto, opressor e oprimido. A indústria da
palavra tem remetente e destinatário. O primeiro diz o que pensa; o segundo
pensa o que lhe dizem. O cidadão que desenvolve em si o artista que é, mesmo
sem sabê-lo, pode enfrentar melhor as indústrias da palavra, do som e da
imagem. O cidadão que se deixa ritualizar na obediência, torna-se ventríloquo
do pensamento alheio e mímico dos seus gestos. O tênis de marca é o testemunho triste e sombrio da submissão de
certa paupérrima juventude, existente em nossas comunidades pobres, aos padrões
da moda imposta.
A arte pensa o
sentimento e sente o pensamento. Procura conhecer a palavra como objeto
sensível, transformando palavras em poesia, pois a poesia está na sintaxe e não
no léxico, como a música está na sequência de notas musicais e não em cada uma;
a vida, em seres mais complexos, está no arranjo das células e não se limita a
esta ou àquela; a consciência está na estrutura de elementos psíquicos, não na
solidão de cada um.
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Duas palavras,
quando se associam, podem criar um terceiro Ser, soma infinita de significados.
Como duas cores, dois sons, dois traços - quaisquer dois seres -, quando postos
em relação, são mais do que a soma dois.
Se observarmos os
adjetivos imortal e infinito, as conjunções enquanto, posto e mas,
o pronome que, o advérbio não, o substantivo chama e os verbos ser e durar
— conjugados em diversos tempos e modos -, estas palavras não são
necessariamente poéticas. Mas, ordenadas dentro de uma sintaxe especial, tornam‑se
um dos mais belos versos sobre o amor da língua portuguesa: “ Que não seja imortal, posto que é chama, mas que
seja infinito enquanto dure" -
Vinicius de Morais.
A arte não deve
continuar encerrada em museus, teatros e salas de concerto para visitações de
fim de semana, pois é necessária em todas as atividades humanas, no trabalho,
no estudo e no lazer. Não deve ser atributo de eleitos: é condição humana. Não
é maquiagem na pele: é sangue que corre em nossas veias.
A vida humana,
social e política não pode enxergar de um olho só, se temos dois; andar como
saci, numa perna só, se temos duas; abraçar com um só braço, ouvir com uma
orelha, a outra surda. Não basta aprender a ler e escrever: é preciso sentir,
ver e ouvir, produzir imagens, palavras e sons.
A terra, a água e
o ar; a palavra, o som e a imagem são bens da humanidade. Arte é direito e
obrigação, forma de conhecimento e gozo.
Arte é dever de
cidadania!
Arma de
libertação!
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O
pensamento estético à concreção artística
Nossas opções teóricas e nossas ações
concretas devem surgir não porque somos artistas, mas porque somos cidadãos.
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Em
branco.
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A
subjetividade da arte
Conjuntos
analógicos, conjuntos complementares
A
natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia, dois fios
da minha barba ou gêmeos univitelinos; nem impressões digitais ou duas gotas de
orvalho; nem árvores da floresta, galhos e folhas, nem as estrias de cada
folha... Nada é idêntico a nada. Todas as coisas inanimadas, todos os seres
vivos são únicos, irreproduzíveis, mesmo clonados.
Para
seres semoventes, humanos e animais, com um mínimo de vida psíquica, seria
impossível viver (mover-se) dentro dessa infinita diversidade se não pudessem
organizar sua percepção do mundo e simplificá-la.
Ficaríamos
paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que olhamos;
escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo
que sentimos, cheiramos e gustamos, tal o acúmulo
catastrófico e torrencial das informações recebidas. A Natureza é vertiginosa,
não somos capazes de viver essa vertigem.
Felizmente,
a Natureza permite a criação de aparências simples das realidades complexas,
através da construção imaginária de conjuntos analógicos e conjuntos
complementares.
Embora
simplificações excluam complexidades, realizamos o processo psíquico da
formação de conjuntos para poder nos guiar, viver neste mundo e na sociedade.
Somos obrigados a nos afastar do real para sermos capazes de percebê-lo, ainda
que de forma aproximada.
Ao
nascer, olhamos o que nossos olhos alcançam e nada vemos: apenas a cor cinza.
Na medida em que nosso nervo ótico começa a ser estimulado por luz e sombra,
organizamos nossa percepção visual distinguindo retas e curvas, profundidades e
cores. Quando deixamos de olhar tudo ao mesmo tempo é quando realmente
começamos a ver - vemos conjuntos: curvas e retas, profundidades e cores.
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Nenhum
peixe é igual a outro peixe, mas todos se assemelham: eis o cardume. Uma rosa é
uma rosa, mas todas se parecem, vermelhas, brancas e amarelas: eis o roseiral.
Nenhuma cor é homogênea em toda a extensão do objeto colorido, mas podemos
abstrair as diferenças que, ao microscópio, existem claras e profundas.
A
floresta não está contida em nenhuma das árvores que a compõem, mas não
existiria sem elas. A cidade não é nenhuma de suas ruas e praças, mas, sem
elas, não haveria cidades. A Via Láctea não é nenhuma de suas estrelas.[nota 1]
Um
astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra, que
vermelho é o sangue em nossas veias e plúmbeo o céu de chuva... Sabemos que não
é verdade: nenhum milímetro de nada é igual a nada de outro milímetro. Por
analogia, contudo, podemos perceber e formar conjuntos analógicos, homogêneos,
que englobam seres semelhantes, mas não iguais - isto é, unicidades[nota 2] -
em um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera, um batalhão de
soldados ou a farinha de um mesmo saco.
Podemos
perceber também conjuntos heterogêneos, feitos de elementos complementares. Não
existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todos corre água, no caudaloso
Amazonas e no riacho do Ipiranga. Suas margens são diferentes, mas todas
oprimem a água que neles corre. Pedras, no seu leito, são desiguais em peso e
forma, mas parecidas mesmo quando feitas de matérias diferentes, orgânicas ou
minerais.
Margens,
águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado de coisas
inanimadas e seres vivos, heterogêneos, que podem ser percebidos como
conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em cada um dos elementos
únicos que o compõem.
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Podemos
nomear rio todos esses conjuntos percebidos como semelhantes. Todos os rios têm
a identidade dos rios e sabemos de qual acidente geográfico estamos falando
quando falamos do Nilo egípcio ou do Arroyo de la Sierra [nota 3] de José Marti,
diferentes no volume de suas águas, na altura de suas margens, na violência ou
suavidade do seu fluir.
Podemos
perceber a floresta como conjunto de árvores semelhantes, mesmo sabendo que não
são iguais; o rebanho, conjunto de animais da mesma espécie, tendo cada um o
seu feitio, seu focinho e sua fome; a multidão, conjunto de seres humanos -
embora nenhum deles seja igual a nenhum de nós.
Até
mesmo cada indivíduo e cada coisa é um conjunto heterogêneo feito de elementos
complementares: temos cabeça, pescoço, tronco e membros, artérias e veias, pelo
e pele; uma pedra tem muitas cores, mesmo cinza: ricas variações tonais e
formais em sua superfície, mesmo roliças.
Simplificando
nossa percepção da Natureza e da sociedade, podemos viver sem sobressaltos:
unicidades podem ser sistematizadas em conjuntos analógicos de seres e coisas
semelhantes, ou conjuntos complementares de coisas e seres dessemelhantes.
Nessa
simplificação perde-se a riqueza das diferenças e das identidades, que, por
infinita, é inacessível. Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não da
multifária Natureza, funciona como couraça que possibilita o acesso apenas às
aparências do real[nota 4] e nos permite, sobre elas, predicar.
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100
Para
que possamos nos comunicar, os conjuntos devem ser nomeados: nomeamos montanha
a todas as protuberâncias da terra que beijam o céu, mesmo sabendo que nenhuma
montanha é igual a outra montanha, nenhuma nuvem igual a outra nuvem, nenhum
sonho igual ao meu. Nomeamos mar - mar de gente bêbeda no Réveillon, mar de
flores ao vento, mar de ondas raivosas - todas as aglomerações onduladas de
água, girassóis ou gente.
Nomear
significa tentativa de imobilizar. O nome é a fixação, no tempo e no espaço, do
que é fluído e não pode parar nem ser parado, nem no espaço, nem no tempo.
Tudo
é trânsito neste mundo - cada um de nós e cada império, Romano ou dos Mil Anos;
cada nação e o mapa-múndi - tudo muda: eu mesmo, quando me nomeiam Augusto
Boal. Qual? Sou quem fui antes de escrever esta última linha ou aquele que
ainda não escreveu a próxima? Sou um rio de Crátilo: [nota
5] em mim, correm águas que não corriam. Outras correram e jamais voltarão rio acima - escondem-se no mar.
“Como cambia el calendario,
cambia todo en este mundo”, canta Violeta Parra.
O
mundo vive em guerras e confrontos entre indivíduos e grupos humanos, como o
nosso corpo, que é também um campo de batalha: nutre-se da natureza e com ela
combate - combate de vida e de morte.
Ninguém
pode me ver duas vezes como sou em cada instante fugaz da minha vida, como
fugazes são todos os instantes... e a vida. Jamais serei o mesmo em cada
segundo que me foge. Aqueles que me veem agora jamais serão iguais a si mesmos
em dois segundos da trajetória de seus caminhos.
Não
sou: estou sendo. Caminhante, sou devir. Não estou: vim e vou.
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Hesito:
para onde? Escolho meu caminho, se puder; sigo calado, se forçado! Não existe
porto seguro porque todos os portos estão em alto-mar, e nosso navio não tem
âncoras. Navegar é preciso, pois navegar é viver[nota 6] - vamos deixar de
bobagens: viver é preciso, sim! E gostoso e útil.
Nomes
nomeiam o que será e o que foi. Não o que é, porque nada apenas é!
Universo
é gerúndio.
Palavras
são meios de transporte
Palavras
são perigosas - cuidado! Designam conjuntos, mas ignoram uni-cidades.
Negros e brancos, homens e mulheres, proletariado e campesinato são conjuntos
criados pelo pensamento e pela imaginação, inspirados em realidades sensíveis,
mas que não existem como concreção física. São, mas não existem. O que existe corporeamente é este negro e aquela branca, esta mulher e
aquele homem, esta camponesa e aquele operário.
Conjuntos
estão em trânsito, como seus componentes: pedras e flores,[nota 7] eu e você.
Não se pode atribuir aos indivíduos características que pertencem
exclusivamente ao seu conjunto, nem vice-versa. O mais valente soldado não é um
exército, nem a mais preciosa bailarina, um corpo de baile.
As
transformações que se operam nos indivíduos modificam os conjuntos aos quais
eles pertencem e estes alteram aqueles. Existe interatividade permanente, o que
significa permanente transformação: nada resta igual a si mesmo.
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A
belíssima arenga de Henrique V, na peça de Shakespeare,[nota 8] exortando os
soldados das suas maltrapilhas tropas a se portarem como heróis antes da
Batalha de Agincourt contra os franceses, durante a
Guerra dos Cem Anos, é um lúcido exemplo dessa interatividade. Falta dizer que
os happy few ingleses venceram...
Não existem, nem o indivíduo nem o conjunto, em si mesmos".
Uma
sociedade, em cada momento histórico, contém sua História e seu anelo, dividido
em classes e castas. Nada é eterno, nem a eternidade: um dia, talvez expluda, e não haverá mais dia. Só no espaço que alcança a
vista e no tempo que dura o corpo, somos eternos: este é o nosso eterno campo
de batalha.
Conjuntos,
dada a força que os unifica, podem reagir como se unicidades fossem: um comando
militar ou time de futebol; família unida, sindicato operário combativo ou o
sistema solar.
Conjunto
é sempre algo mais que a soma de suas unidades - é sinergia! Assemelha-se à
segunda estrutura de cordas da cítara, cordas musicais que vibram embora não
sejam tocadas pelo músico - apenas pelas ondas sonoras que as primeiras cordas
produzem.
Esse
algo mais, força criada pela sinergia dos conjuntos, pertence ao conjunto, mas
retorna a cada indivíduo tornando-o mais complexo e potente, como ocorre com
operários em greve ou jogadores em campo.
Podemos
falar em proletariado, família, pátria etc. para designarmos propriedades
específicas desses conjuntos - cientes, porém, da sua transitoriedade. Não
podemos eternizar o conceito de palavras que eternizam conjuntos que não são
eternos. O proletariado do qual falava Marx no século xix
não é o mesmo proletariado estadunidense do século XXI. Semelhanças existem...
e imensas diferenças.
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As
palavras são indispensáveis para que seja possível o diálogo. São, porém,
significantes polissêmicos que, ao serem percebidos pelo receptor, perdem parte
dos significados que motivaram o emissor. Pronunciadas pelo emissor, as
palavras são significantes com significados ricos das suas experiências,
desejos e imaginações; no trânsito, esses significantes mudam de significados,
como o caminhão que, de uma cidade a outra, troca sua carga: ao chegar, as
palavras estarão carregadas com as experiências do destinatário, não do
remetente.
Para
entendermos uma palavra, seja qual for, temos que conhecer o histórico do
emissor. Mil pessoas usando a mesma palavra - liberdade, por exemplo - dão-lhe
mil significados diferentes. Ouvindo qualquer afirmação, nossa resposta deve
ser sempre a mesma pergunta: “O que foi que você quis dizer”?
Mesmo
que chegue ao destino com carga intocada, o receptor possui seus sistemas de
recepção-tradução, que traduzem, e traem, a mensagem recebida. Traduttore, tradittore - dizem os
italianos: tradutor, traidor.
Traduzimos,
traímos tudo que lemos e ouvimos, principalmente quando dito e escrito em nossa
própria língua, porque esta tem história e pré-história que remontam ao tempo
em que as palavras foram aprendidas em nossos primeiros meses de vida. Além do
que denotam para todos, despertam conotações inconscientes em cada um de nós. A
língua estrangeira, aprendida mais tarde, tem apenas a história que remonta ao
seu aprendizado tardio.
Temos
que entender que o emissor faz parte da mensagem. O psicanalista Hélio
Pellegrino costumava dizer: “Se Judas Iscariotes
estivesse passando um abaixo-assinado em solidariedade a Jesus Cristo, eu não
assinaria”! Mensagem e emissor são unha e carne.
Palavras
são meios de transporte como ônibus e caminhões. Da mesma maneira como ônibus
transportam pessoas e caminhões carga, as palavras transportam ideias, desejos
e emoções. Com a mesma palavra pode-se dizer, na frase escrita com a sintaxe e,
na falada, com a voz, exatamente o contrário daquilo que jura o dicionário.
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[Início de citação] Nunca eu tivera querido
dizer palavra tão louca.
Bateu-me o vento na boca
e depois no teu ouvido.
Levou somente a palavra
deixou ficar o sentido.
O sentido está guardado
no rosto com que te miro,
neste perdido suspiro
que te segue alucinado,
no meu sorriso suspenso,
como um beijo malogrado. [Final de citação]
Canção, Cecília Meireles
A
primeira coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo: podemos
apreciar a beleza de uma nave espacial ou de uma palavra inusitada, mas, para
compreendê-los, é preciso examinar o que levam dentro - esse exame é sensível e
não apenas simbólico.
A
palavra é um todo que não é nada. Um traço que riscamos na areia; um som que,
como delirantes escultores, esculpimos no ar. Traço que as ondas levam; som que
se dissolve na brisa.
Areia,
nós a sentimos na mão; vento, no nosso rosto. Palavras, onde estão? Em lugar
nenhum, pois não existem: apenas são.
As
palavras não estão em nenhum lugar e estão em toda parte. São o vazio que
preenche o vazio que existe entre um ser humano e outro. Meu corpo é matéria; o
que penso, energia. Palavra é ponte. Pontes não existem em alto-mar, entre duas
águas revoltas: elas se apoiam nas margens que somos nós que atravessamos a
Ponte das Palavras buscando alguém. Somos margem e somos ponte: somos palavras.
Rasgando
a areia ou cortando o ar, nesse vazio depositamos nossas vidas: eis a palavra.
Preenchemos o nada com tudo que somos: as palavras que dizemos - nós mesmos, transformados em sons
e traços.
Este
livro não é um testemunho de vida: é minha vida![nota 9]
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105
Para
que palavras adquiram um sentido menos permissivo é necessário vesti-las: na
tragédia grega, com máscara, coturno e manto; nos templos, com pompa e
liturgia; no exército, rituais de disciplina; no cinema, iluminação, ângulos e
lentes. Na vida cotidiana, roupas, gestos, timbres, ritmos da fala, fisionomias...
A palavra escrita se veste com a sintaxe e o estilo do escritor.
Para
que sejamos capazes de apreender o uno e não apenas os conjuntos aos quais
pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as
imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse
gado é feito de unicidades bovinas e não de massa açougueira.
Cada vaca tem sua personalidade: Mimosa, Estrela, Esmeralda... - são vacas.
Boiada é sinergia.
Palavras
são obra e instrumento da razão simbólica, não da
razão sensível: temos que transcendê-las, buscar outras formas de comunicação
que não sejam apenas simbólicas, mas também sensoriais - comunicações
estéticas. Atenção: esta transcendência estética da Razão é a razão do teatro e
de todas as artes.
Não
podemos divorciar razão e sentimento, ideia e forma, palavra e voz. Razão
simbólica e razão sensível são sólidos casais, mesmo quando às turras, bicadas.
A palavra escrita é voz pressentida ou imaginada.
O
artista e sua arte, artista-indivíduo e cidadãos-artistas
O
artista, como nós, é capaz de ver conjuntos onde analogias ou
complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver em sociedade, comum
mortal. Sabe distinguir a rua por onde rolam carros, diferente da calçada
pedestre - salva-se de ser atropelado. Confere a conta do supermercado e não
permite equívocos. É ser social.
Página
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Ao
não se deter, porém, na comum percepção que constrói conjuntos analógicos ou
complementares - nem diante das imagens pré-fabricadas, dos sons estereotipados
e palavras vazias que expressam o Pensamento Único dominante -, o artista
avança, sente, toca, vê e ouve a potência, não só o ato; ultrapassa as
aparências do real e revela percepções e aspectos únicos da realidade
encouraçada, ou formas únicas de percebê-la: revela aquilo que as palavras
confundem, as imagens escondem e os sons ensurdecem.
Revela
o que existia... e nos fugia.
Van
Gogh pinta o vento;[nota 10] Monet, o tempo;[nota 11] Munch, o som do grito
lancinante; Portinari, a dor do retirante. Onde estavam o grito e o vento, a
dor e o tempo? No modelo, fora do artista, é certo; mas também nele. O modelo
estava diante dos seus olhos - a arte, no seu olhar. Arte e amor estão no
olhar, não só no modelo. Não na reprodução do aparente, mas na recriação reveladora.
Pelo
que com ela aprendemos, arte é pedagogia do entendimento.
Na
arte dos oprimidos - quer se trate de poeta solitário ou criação coletiva, em
que vários cidadãos-artistas pintam um mural, compõem uma canção ou constroem
um espetáculo com palavras, sons e imagens -, o processo criativo é o mesmo: os
artistas têm que se desviar do óbvio e penetrar na verdade escondida.
Escondida
por quem e para quê? Não vamos nos esquecer de que em todas as sociedades
existem oprimidos e opressores em todos os níveis da vida social. Os que
oprimem impõem aos oprimidos sua visão do mundo e de cada coisa desse mundo,
para que sejam obedecidos e reine a sua paz.[nota 12] Para se libertarem, os
oprimidos devem descobrir sua própria visão da sociedade, suas necessidades, e contrapô-las
à verdade dominante, opressiva.
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Na
arte coletiva, assim como no esporte, ou existe orquestração maior que a soma
das partes ou não acontece a obra e se perde o jogo. Não serão os melhores
jogadores que farão a melhor seleção, nem os melhores músicos a melhor
orquestra, se lhes faltar a unidade, a estrutura que a todos unifique. Nem
serão os gostos díspares - sempre existem em qualquer grupo social - que irão
impedir a formação da equipe, desde que exista e seja aceito um bem maior: consciência
da opressão e o desejo de recriar a sociedade. É esta sinergia que se deve
alcançar na arte coletiva, sejam os artistas profissionais ou lavradores.
Uma
orquestra de cem professores deve ser uma orquestra... e não cem professores.
O
teatro, como algumas outras artes, é movimento. Movimento tem sentido e
direção. O sentido é a estrada por onde se pode andar em duas direções; a
direção é o caminho escolhido. Seja qual for o caminho e a estrada, o teatro -
tal como vem sendo praticado pelas classes dominantes, como forma de
convencimento compulsivo -, mais que outras artes, imobiliza os espectadores na
contemplação. Imobilizados, tornam-se vulneráveis. Vulneráveis, estão prontos a
aceitar como seus as emoções e os pensamentos dos personagens e suas escolhas.
Estes
espectadores desempenham o papel de testemunhas não intervenientes: saem do
espetáculo inoculados pela ideologia dos personagens, sejam eles trágicos
heróis gregos ou bandidos de westerns. Doce forma de lavagem cerebral,
reposição ideológica, implantação de ideias e comportamentos contrários à
identidade de cada um. Para que nossas sociedades se humanizem, esta não é a
melhor forma de arte que servirá aos oprimidos transformados em recipientes
onde se vertem conteúdos.
A
existência de uma Estética do Oprimido - Estética da Cidadania - não proíbe
ninguém de fazer arte sobre a perplexidade, a angústia, a solidão e sonhos
desvairados. Todas as formas de criação artística, toda especulação filosófica
e estética, podem ajudar a enriquecer nossa sensibilidade e nossa inteligência - depende do tempo e
lugar.
Não
devemos temer nenhum lirismo, nenhuma subjetividade.
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108
O
artista solitário que, em virtude da sua solidão, não pode fugir da própria
subjetividade, penetra na unicidade do Ser[nota 13] como quem busca a si mesmo
no outro. Escreveu Fernando Pessoa:
[Início de citação] Ninguém a outro ama,
se não que ama o que, de si, há nele,
ou é suposto! [Final de citação]
Ao
encontrar-se, o artista, o espectador e o amante defrontam-se com o infinito -
transe ou orgasmo:
[Início de citação] Amor é fogo que arde sem se ver
é ferida que dói e não se sente é um
contentamento descontente é dor que
desatina sem doer é um não querer mais
que bem querer é um andar solitário por
entre a gente. [Final de citação]
— Camões, Soneto #4.
Arte
é Coisa. Coisa (Houaiss): tudo quanto existe ou possa existir, de natureza
corpórea ou incorpórea. Na sua forma metafórica, pode ser o mármore do
escultor, sons do compositor, palavras do poeta, cores do pintor, o salto da
bailarina ou a voz do cantor. Entre o mundo e nós, medeia o artista e sua
sensibilidade, que desperta o nosso sentir e nossa inteligência - capturamos
seu mundo, que se torna nosso. Seja ele pessoa só, seja um grupo usando arte,
por si ou como instrumento.
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109
A
arte do artista cria conjuntos de espectadores que nela se veem refletidos,
seja seu tema a solidão ou a luta de classes. Essa obra tanto pode levar seus
espectadores à contemplação admirativa, como pode estimulá-los, pelo exemplo e
inspiração, à ação transformadora da realidade.
A
arte criada pelo conjunto de cidadãos-artistas é plural desde o início da sua
fabricação: o grupo de oprimidos, com visão semelhante, cria a obra. O próprio
ato de prepará-la é ação propedêutica que leva à ação social. Obra aberta que
exige continuidade no real. São formas diferentes de arte, não antagônicas.
Os
artistas, populares ou eruditos, revelam unicidades escondidas pela
simplificação da linguagem que as nomeia e pelos sentidos que as agrupam. A
obra de arte não retrata a sociedade como é, não a copia:
recria mostrando suas entranhas, não como fazem os jornalistas narrando um
acidente com seus sangrentos detalhes.
Essa
dinâmica percepção nunca se imobiliza: tanto a percepção do artista ao fabricar
a obra, do espectador ao fruí-la e do amante ao amar. Amores se conquistam e se
perdem ao sabor da vida e do domínio que sobre ela possamos alcançar. Tal como
a arte, que não é nunca igual a si mesma. Tal nosso gozo, mutável mutante. Tal
nossa vida, errante.
Divagações
sobre as curiosas semelhanças entre amor e arte
Arte
é amor. Sei, sabemos, que a palavra amor está desgastada pelo uso abusivo que
dela se faz, pelas banalidades que dela se diz. O fenômeno a que essa palavra
se refere, no entanto, continua existindo. Nunca em estado puro - pureza não
existe! -, mas amalgamado com o ódio, a inveja, necessidade, posse, violência,
e todos os complexos catalogados pela psicologia. Esse fenômeno, essa intensa
atração multifacetada, existe sim! Eis a prova: eu amo!
A
pessoa amada é o ser único. Amando, nós a sentimos
insubstituível sem percebermos que, como todo ser, está em movimento. Disse
Swan, personagem de Proust, ao re-encontrar seu
antigo amor, já esquecido: “Eu me apaixonei por uma mulher que nem sequer era o
meu tipo (que eu não amava)...”
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Swan
acreditava amar a mulher quando estava apenas apaixonado pela perseguição, não
pelo encontro. Pela miragem que não existia: era miragem. Seu amor não era
Odete, nem nela estava: era projeção de si mesmo. Podemos também pensar que
Swan não reconhecia, na paixão extinta, o amor que já não tinha, mas havia tido
quando se perseguiam no percurso que faziam juntos!
Amor
é experiência estética: fundado na realidade, é obra do imaginário. Amamos não
apenas a pessoa que existe, mas as projeções que sobre ela fazemos - projeções:
produto e parte de nós, não dela. Nosso imaginário projeta sobre a pessoa amada
passados e futuros que não lhe pertencem - existem em nosso desejo ou nosso
medo.
Por
essa razão bastante, pessoas há que temem ser amadas, imobilizadas em uma
projeção que sobre elas faz o amante. Recusam também a função de espelho do
amante - não querem, deste, refletir as mudanças.
Amar
é uma forma de arte, e o amante sempre algo de artista tem; arte é amor no
sentido em que, sem essa atração que sente o sujeito pelo objeto que também é
sujeito, ela, a arte, não existiria. Este livro é minha arte: sem o amor que
por ele sinto, ele não existiria ou, pelo menos, não na forma que aqui o tenho
fabricado.
Estes
dois processos - amar e perceber esteticamente a unicidade de outro ser, vivo
ou coisa - são idênticos. Da mesma forma que o amor não é “imortal, posto que é
chama...” (Vinícius de Moraes), também a fruição da obra de arte não é estável
- jamais veremos a mesma obra com a mesma emoção e pensamento: a milésima será
sempre uma primeira vez.
Amor
é fluxo de corrente alternada - como pode ser a eletricidade e são as marés,
porém sem a garantia dos ritmos previsíveis. É verdade que existem amores
eternos... e efêmeros, especialmente aqueles que terminam em tragédias
sangrentas. Assim também existem obras de arte perenes. Mas nem a pessoa amada
nem a obra admirada são admiradas e amadas com a mesma intensidade, nem pelas
mesmas razões, a cada momento.
No
amor e na arte, a única constante é a inconstância. Ao contrário do que se diz,
o amor não é um encontro: é uma perseguição! Aquele ou aquela que está sempre
mudando persegue aquela ou aquele que nunca é igual a si mesmo.
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111
O
amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e temos
provado. Perdoem-me o lugar-comum, mas, da mesma forma que devemos cultivar a
arte com amor, o cultivo do amor é uma arte.
Arte
como forma de conhecimento
Na
arte como processo estético e na obra como produto artístico, o artista entra
em contato com um certo real - como no orgasmo ou no delírio. Mesmo nas
chamadas criações coletivas, a equipe criativa deve encontrar uma visão comum,
descobrir e revelar o insólito escondido pelo dia-a-dia.
Arte
é forma de conhecer, e é conhecimento, subjetivo, sensorial, não científico. O
artista viaja além das aparências e penetra nas unicidades escondidas pelos
conjuntos.[nota 14] Sintetiza sua viagem e cria um novo conjunto - a Obra -,
que revela o Uno descoberto nesse mergulho; este, por analogia, nos remete a
nós mesmos.
Quando
escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven, a trêmula
ária Voi que sapete do
Querubim morzateano, a triste Donna traviata verdiana, Carinhoso de Pixinguinha, Ó Abre Alas de
Chiquinha Gonzaga, em cada caso são acordes únicos que escuto na infinitude de
sons e ruídos que explodem à minha volta. Alguma coisa única, escondida em
algum único lugar de mim, vibra e me faz vibrar. Vibramos ouvindo acordes
únicos, estruturados de maneira única.
Esta
unicidade cria, por analogia, um novo conjunto imaginário - a plateia -,
formado por indivíduos que alguma identidade/relação/estranheza/sedução sentem
com tais acordes, como podem senti-la com as tragédias de Antígona e Rei Lear,
com o sorriso da Gioconda, os Profetas do Aleijadinho, um poema de Manoel
Bandeira e a Vênus de Milo, que, necessariamente, não pode ter os braços que um
dia teve. Se ainda os tivesse seria outra Vênus, não a nossa - a ausência dos
braços corporifica a presença do tempo: ó corpo do tempo. Tempo faz parte da
distância estética que nos permite sentir a escultura. O vazio nela esculpido
faz parte do mármore, como o silêncio da música.
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Metaforicamente,
sou Wagner e Velasquez, mesmo se jamais cantei como
Valquíria, jamais pintei meninas. Sou Vitalino, mas jamais sujei minhas mãos
com o barro nordestino. Eles o fizeram por mim; através deles, posso fazê-lo,
pensando sons, sentindo cores, moldando imagens.
Eu
se transforma em nós - extraordinário salto. Nós e os artistas, eu e nós -
plateia. Juntos, descobrimos a descoberta que fez o artista. Arte é, a um só
tempo, individual e social: ao dizermos nós, descobrimos nosso abrangente eu.
Digo eu, e somos nós. Podemos estar todos juntos diante de atores, bailarinos ou
telas de cinema, ou podemos, solitários, observar um quadro ou escultura - a
pluralização se opera, ainda que invisível.
A
arte reinventa a realidade a partir da perspectiva singular do artista, mesmo
quando se trata de um artista-plural, uma equipe; sua obra recria, em nós, seu
caminho e caminhar. Na arte e no amor, penetramos no Infinito.[nota 15]
O
cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence a todos e
não depende da individualidade do solitário cientista. O teorema de Pitágoras revela
que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual à soma
dos quadrados dos catetos - isso acontece em qualquer país, a qualquer hora do
dia ou da noite, no verão e no inverno, seja lá quem for o desenhista do
triângulo ou a cor dos seus olhos.
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Newton,
ao sentir o peso da maçã que lhe caiu na cabeça, jurou que “a matéria atrai
matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado da distância” - isso é
verdade, assim na terra como no céu, chova ou faça sol, não só com maçãs e
peras, mas pedras, laranjas e tangerinas.
Não
importa que Einstein tenha introduzido a ideia de que o espaço se curva quando
próximo da massa de qualquer matéria: para nós que vivemos com os pés na Terra,
o melhor é nos afastarmos das árvores frutíferas, que não se curvam à nossa
passagem como a luz ao cruzar com a massa...
Ciência
é arte, no sentido de que o Pensamento Sensível intervém - como é o caso até
mesmo na ciência exata da matemática, no caso do cálculo infinitesimal, que se
aproxima da poesia -, mas arte não é ciência.
Reafirmo
que, quando falo da identificação do sujeito com a obra de arte, a palavra
identificação tem dois sentidos bem definidos: eu me identifico “com” e eu
identifico “a”.
A
arte não dá conta de toda a realidade verdadeira, mas é uma verdadeira
realidade.
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A famosa Teoria
dos Neurônios Estéticos
[Início de
citação] Quando, sobre determinado assunto, a ciência não tem resposta precisa
ou saber inquestionável, abre-se o caminho para interpretações poéticas. Temos
o dever da poesia e os direitos da imaginação. Sabemos sem saber, e provamos
sem provas - apenas razão, simbólica e sensível.
Sobre esta
Teoria dos Neurônios Estéticos, ouso pensar que não é uma hipótese: é batismo.
Existe: é necessário nomeá-la! Ela justifica uma nova concepção da Estética que
surge e circula pelos sentidos, que são organizados e inteligentes, não pura
epiderme. Sentidos são sociais e políticos, e compartem tudo que envolva o
pensamento e a ética.
Sentidos
têm sentido! [Final de citação]
O processo
estético é expansivo porque cada estímulo em uma área cerebral estimula áreas
adjacentes, nelas se expande e com elas se estrutura: o cérebro é um
ecossistema, não disco duro de computador. Elástico e plástico.
Quando começam a
ser produzidos no útero materno a partir da terceira semana de gravidez, os
neurônios não têm nenhuma especialidade, não sabem fazer nada, não sabem para
onde ir nem para que irão servir. Suas funções dependerão do lugar onde os gliócitos os forem colocar: no nervo ótico, aprenderão a
ver; no auditivo, ouvir.[nota 16]
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Vale repetir que,
nem ainda formado nosso cérebro em construção, o mundo exterior já o invade e
abre caminhos, toma posições e estrutura o nosso universo psíquico. Sem essa
invasão do mundo exterior - natural e social -, não haveria vida psíquica. Sem
sons, o cérebro seria silêncio; sem imagens, trevas. No vazio vácuo insensível,
sem toque, sem gosto e sem cheiro, neurônios seriam breu.
As sensações abrem
caminhos pelos nervos competentes até o cérebro - lá se espraiam. Deixam suas
marcas e são marcadas pelo que lá encontram: memórias de outras sensações,
ideias e emoções, em livres e complexas associações. Os caminhos abertos pelos
sentidos são abertos nas duas direções, ida e volta - rios cujas águas descem
rio abaixo, como em todos os rios, e sobem rio acima, como em nenhum outro.
Águas impuras - as sensações (águas) impurificam nossos sentidos (rios): nenhum
sentido é puro!
Essa faculdade nos
permite receber e projetar sensações - as alucinações são os mais belos
exemplos de memórias impuras e deformadas.
Por essa razão,
quando falamos em psicologia estamos falando da sociedade onde ela habita. Toda
psicologia em algum lugar reside: no mundo vive, dentro e fora de cada um de
nós.
Cada neurônio se
especializa em consequência de estímulos exteriores repetidos que recebe, e se
relaciona com outros neurônios formando caminhos nevrálgicos (homogêneos) e
redes neurais (heterogêneas, compatíveis).
Neurônio
extraviado que se isole, morre! No cérebro não há lugar para solidões eremitas
- o cérebro é social.
Sinapses são zonas
de encontro entre neurônios, através das células nervosas chamadas neuritos:[nota 17] axônios, que transmitem, dentritos, que recebem mensagens. Braços suaves que se
abraçam sem se tocar, criando espaços por onde circula a informação, seja
imagem, som, palavra, prazer e dor, lembranças, diálogos... Isso se faz através
de processos químicos e estímulos elétricos que ligam um neurito
a outro.
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As sinapses se
multiplicam e se diversificam na medida em que são estimuladas.[nota 18] Quanto
mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho
a pintar, mais invento como usar pincéis e tinta, como se fosse pintor. Quanto
mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz como cantor.
Quanto mais fizer bailar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como se fosse
poeta.
Fazendo, serei
pintor, poeta e cantor. Sou.
Saber, conhecer e
experimentar expandem minha capacidade de conhecer, saber e aprender. Expandem
além da busca e me fazem encontrar o que nem sequer procuro. “Não busco:
encontro!” - disse Picasso.
Nós também
encontraremos o que não buscamos se nos dedicarmos a ver o que olhamos, ouvir o
que escutamos, sentir o que tocamos, escrever o que pensamos, pensar o que
sentimos, pintar o que queremos, cantar descobrindo a nossa voz. Somos Picassos, cada um na sua medida e ao seu tempo -
modestamente.
Para nossa
alegria, nos seres humanos existem neurônios que, dentro dos circuitos que
integram, acumulam múltiplas funções, capazes de receber, produzir e transmitir
sensações físicas, emoções concretas e ideias abstratas.
A Estética do
Oprimido baseia-se no fato científico de que, em um indivíduo, quando são
ativados esses neurônios plurifuncionais, eles não ficam lotados de barriga
cheia como bytes de um computador à espera de um agente exterior. Neurônios são
vivos, dinâmicos; sua capacidade de armazenar informações e processá-las não se
esgota nem se repleta - o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular!
Neurônios
estimulados formam circuitos cada vez mais capazes de receber, transformar e
transmitir mais mensagens simultâneas - sensoriais e motoras, abstratas e
emocionais -, enriquecendo suas funções e ativando neurônios de perto ou de longe,
que entram em ação criando redes cada vez maiores de circuitos entrelaçados que
nos fazem lembrar outros circuitos, estabelecendo relações entre circuitos,
quer tenham óbvias ou insuspeitadas afinidades, o que nos permite criar,
descobrir, inventar, imaginar. A imaginação vai além do lembrado.
Página 117
A imaginação é a
memória transformada pelo desejo.
Esse tipo de
neurônios e circuitos neuronais se localizam especialmente no córtex e no
tálamo, que são as partes mais humanas do cérebro humano, por suas infinitas
possibilidades de entrelaçamentos criativos. São capazes de todas as expansões
e, pena, de todos encolhimentos.
Pedindo
antecipadas desculpas aos neurocientistas, quero batizá-los de neurônios
estéticos porque é essa a função da Estética: através dos sentidos emocionados,
luzir razões, promover transformações.
As mensagens
recebidas pelo córtex, transformadas em circuitos neuronais, relacionam-se com
outros circuitos já existentes em camadas mais profundas do cérebro,
trazendo-as de volta ao córtex, onde vão dialogar com as novas mensagens,
diálogo do qual nascerão as ações e decisões do sujeito.
Todos esses
circuitos modificados retornarão às camadas subcorticais, de onde, por sua vez,
irão influenciar a recepção de novas mensagens com as quais guardem alguma
relação: os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos sons; as
primeiras imagens, a de novas imagens; as velhas palavras serão confrontadas
com novas palavras; velhos conceitos com conceitos novos; primeiros valores com
valores recém-chegados.
Todos esses
primeiros arcaicos não são imutáveis e podem ser modificados, substituídos ou
erradicados, porque não são definitivos - nada no ser humano é definitivo, a
começar pela vida! Quanto mais arcaicos, porém, mais resistentes serão a qualquer
transformação.
Se uma pessoa
começa a pintar - não importa idade, sexo, cor da pele ou rugas dos olhos,
condição social ou conta bancária -, se começa a dançar, fazer teatro ou
qualquer arte, ativa esses superdotados neurônios pluripotenciais
e o resultado será um aumento não só da sua sensibilidade, mas da
inteligência, não só da sua capacidade de compreender, mas de sentir.
Este nosso novo
conceito de arte nada tem a ver com as hierarquias monárquicas piramidais: não
se distribuem títulos honoríficos de aprendiz, artista, talento, gênio... Todos
são o que fazem: quem pinta é pintor.
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A atividade estética é um atributo
do ser humano, um dos mais sufocados, estrangulados, que devemos libertar.
Alguns produtos estéticos (obras) nos balançam, assustam, comovem, iluminam;
outros não. Não devemos esquecer, no entanto, que aprender e apreender são obra
do sujeito mais do que dos objetos
- diante do mesmo objeto ou evento, há quem muito aprenda, enquanto outros
restam mudos.
Os neurônios
estéticos são os mais importantes do sistema nervoso porque neles os sentidos
coexistem com a razão, o concreto e o abstrato. A percepção estética incorpora
razão e emoção, juízos e valores, não apenas sensações![nota 19] Dada essa
qualidade pluridimensional, a expansão dessas redes não se faz apenas por
vizinhança ou semelhança, mas pode se ampliar a todo o espaço cerebral e
psíquico, desde a mais remota memória até a mais complexa imaginação.
Neurônios
estéticos estimulam o Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico, reforçam
esta relação permitindo que o sujeito produza e compreenda metáforas.
Sem metáforas não
existe pleno entendimento. As metáforas são essenciais aos seres humanos, pois
permitem que, ao delas nos afastarmos e nelas nos reconhecermos, ganhemos
perspectivas delas e do real, e assim possamos melhor compreendê-los. São
evoluídas e sofisticadas formas de conhecimento. O processo estético é criador
de metáforas e, além de útil em si, mais útil se torna se puder criar um
produto artístico que possa ser compartido, socializado.
O produto
artístico - obra de arte - deve ser capaz de despertar ideias, emoções e
pensamentos semelhantes aos que levaram o artista à sua criação. O processo
estético desenvolve nossas capacidades perceptivas e criativas atrofiadas,
aumenta o nosso poder de metaforizar a realidade.
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Somos todos
artistas, mas poucos exercem suas capacidades. Há que fazê-lo! Não podemos ser apenas
consumidores de obras alheias porque elas nos trazem seus pensamentos, não os
nossos; suas formas de compreender o mundo, não a nossa. Seus desejos, não os
nossos. Elas podem nos enriquecer; mais ricos seremos produzindo, nós também, a
nossa arte, estabelecendo, assim, o diálogo.
Dostoievski
escreveu que “Só a beleza salvará o mundo”. Podemos traduzir: “Só com a
Estética, que é a razão do Pensamento Sensível, torna- se possível a mais
profunda compreensão do mundo e da sociedade, e de nós mesmos”.
Metáfora —
translação e transubstanciação
A metáfora, no
sentido etimológico de translação e transubstanciação, transpõe algo que existe
no contexto cotidiano para um contexto diferente - como palavra deslocada do
seu texto para outro. Ou constrói, em outra substância, imagens da realidade
original, como um quadro ou uma estátua.
Metáfora é visão
organizada do mundo - não é a coisa, é outra coisa: uma visão da coisa.
Metáfora é meta: é além de.
Além da literatura
oral e escrita, abrange as linguagens simbólicas, entre as quais todas as
formas de ficção ou narrativa, em qualquer estilo - mas com estilo -,
inclusive, mas não limitada a, a parábola, a fábula e a alegoria. Abrange todas
as artes visuais, vivas em palco ou arena, documentadas em tela, fita ou foto,
todas as artes sonoras, acústicas ou eletrônicas, todas as que já existem ou que
venham a ser inventadas.
Metáforas existem
em três formas gramaticais, sendo duas literárias: a metáfora adjetiva - “O
capitalismo é um tigre de papel” -, a metáfora adverbial - “O carro voava na
pista”, onde o verbo voar é usado adverbialmente como um modo particular de
correr - advérbio eclipsado.
Todas as obras de
artes plásticas e teatrais, por sua vez, são metáforas substantivas. Sólidas
substâncias, como a pedra e o corpo do ator, ou fluidas, como o som e palavras
ao vento.
Existem ainda
metáforas por metonímia - “Um copo de vinho” -, metáforas por analogia - “Murro
em ponta de faca!”. Metáforas não faltam!
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A palavra nomeia
conjuntos, e a metáfora literária organiza esses conjuntos para que possam ser
nomeados. Essa organização é feita por um sujeito a partir de um ponto de vista
localizado no tempo e no espaço - é social e política onde quer que se encontre
o sujeito, jamais cósmica.
As artes plásticas
organizam traço, volume e cor. O desenho, a pintura e a escultura, pelos
próprios elementos que utiliza - lápis, tintas, pincéis, tela, ferro, barro,
mármore... -, já se distanciam por eles mesmos da realidade original, criando
outra, igual e diferente - não se trata apenas de uma translação literária, mas
de uma transubstanciação.
A música organiza
o som e o silêncio. Escreveu a filósofa estadunidense Suzanne Langer (1895-1985): “A música nos faz ouvir o
silêncio”.[nota 20] E bonito.
A dança nos revela
a musicalidade do corpo, casando corpo, espaço, melodia e ritmo, que estruturam
o tempo. A fotografia, na imagem, encarcera o tempo no instante que nos foge.
Cinema, metafórico pelo ato eletrônico de filmar, mostra a imagem em movimento
ou o movimento da imagem. A literatura tem como seus instrumentos o léxico e a
sintaxe, rima e ritmo, todas as figuras literárias e o que mais se invente.
O teatro organiza
as artes que organizam a vida social, fora e dentro de cada um de nós, para que
possa ser metaforicamente compreendida à distância, não com o nariz colado à
realidade onde vivemos. A distância estética permite ver o que, diante de
nossos olhos, se esconde.
Quando ativamos,
pelo exercício das artes, os circuitos neuronais estéticos, eles disparam e
formam redes em todas as direções cerebrais, ao contrário dos neurônios
especializados, que cantam uma nota só.
Os circuitos
neuronais estéticos, transmitindo mensagens sensoriais entrelaçadas com as
simbólicas, devido à sua imprevisibilidade, não seguem sendas batidas, caminhos
cansados. São vagabundos de todos os espaços, tempos e rumos. Vagueiam velozes
no cérebro, surpreendendo o jamais visto. Nos caminhos conhecidos, onde também
se embrenham, descobrem novas maneiras de ver e, pela memória, revisitam redes
neuronais ainda em brasas, que não se apagaram após labaredas de amor antigo,
ódio intenso, angústias no emprego, medo do custo de vida.
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Como estão em
redes sinápticas, é como se abrissem os olhos e pudessem ver, sensibilizassem
os ouvidos, e ouvir; despertassem os sentidos, e sentir. Com ideias, pensar
palavras.
Guiados pela razão,
esses neurônios permitem ao indivíduo organizar o mundo de forma estética e não
apenas noética, para conhecê-lo pleno de posse da
paleta do entendimento sensível, que aprofunda a paleta simbólica.
A matéria adquire
consciência de si mesma e o cérebro torna-se mente. Salto misterioso como o das
moléculas químicas que saltam para a vida, o que contraria Leibnitz,
filósofo alemão do século dezoito, para quem “natura non facitsaltus”.
Faz sim - ele é que não sabia.
Na arte, o barro
continua barro; transformado pelas mãos de Mestre Vitalino, surgem os
personagens nordestinos que o bruto barro escondia: só Vitalino os via. Nossa
melancolia está em Hamlet; nossa ambição é Ricardo; nossa hipocrisia é Tartufo.
Cientistas têm
estudado alguns animais para determinar em que são semelhantes a nós. Parece
ser que elefantes e golfinhos são capazes de se reconhecer no espelho, como
nós; orangotangos e chimpanzés são capazes de uma linguagem rudimentar que
ultrapassa os limites dos conselhos aos filhotes ou a ameaça aos inimigos; em
cativeiro, fazem gestos simbólicos que indicam fome e sede. Parece ser que
algumas raças de cães são capazes de entender o significado de algumas frases,
mesmo em línguas diferentes. Parece ser... Mas nenhum outro animal é capaz de
construir metáforas.
A evolução dos
hominídeos até o atual ser humano não foi retilínea nem contínua. Na Ilha das
Flores, Indonésia[nota 21] foi descoberto o esqueleto de um hominídeo que data
da mesma época em que homens e mulheres de Neandertal desapareceram misteriosamente,
vinte ou trinta mil anos atrás, quando coincidiam na terra com os Cro-Magnon e
talvez com outras espécies pré-humanas ainda não descobertas. Nós talvez
sejamos, de um destes, a linhagem, ou o resultado de cruzamentos entre
Neandertais, Cro-Magnons, Homo Floresiensis e outros
ainda soterrados.
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Os hominídeos se
humanizaram quando inventaram a palavra, a pintura, a música, a dança e o
teatro. Para entender o real, é necessária a istância
estética. Não importa se o produto dessa atividade metafórica era depois
utilizado para fins religiosos, ou não; como metáfora, ela precede seu uso.
Nós não devemos
vê-los com olhos modernos: pintando suas cavernas, os hominídeos não estavam
decorando seus apartamentos, mas criando metáforas de animais que permitiam
estudá-los - necessitavam abatê-los: tinham fome.
Por que falo tanto
de metáfora? Porque é preciso!
Pintavam cenas de
sua vida cotidiana e faziam abstrações geométricas da realidade que os cercava.
No Nordeste brasileiro, no Piauí e Rio Grande do Norte, em Mato Grosso e Minas
Gerais, temos exemplos do estilo realista e do geometrizante,
como em outras partes do mundo. Não se sabe se o geométrico significava regras
e normas, e os comportamentos realistas - mas é provável que sim.
Os humanos criaram
algo parecido ao que Platão chamava de mundo das ideiasperfeitas,
em contraposição às realidades sensíveis. Sócrates já havia estabelecido o
conceito de logos: não o fenômeno, mas o conceito, que abrange todos os
fenômenos da mesma natureza. Fazendo uso de ampla licença poética, podemos
dizer que a dança é o logos do movimento; a música, o logos do som; o teatro, o
logos da vida.
Contrariando
Platão, Aristóteles dizia que o sonho de perfeição residia no coração do mundo
imperfeito, era o motor do seu movimento para a perfeição. Nesse sentido, a
moral é a imperfeição daquilo que é como é - mores: costumes. No seio da moral,
nasce a ética, aquilo que deve ser: a busca, o sonho de perfeição.
Faz parte da nossa
estética criar condições para que os oprimidos possam desenvolver sua
capacidade de simbolizar, fazer parábolas e alegorias que lhes permitam ver, a
distância, a realidade que devem modificar.
Exemplo grego — só
exemplo
Sensivelmente, a
natureza é descontínua e aleatória. Segue suas leis, é verdade - coqueiro não
dá banana, nem tangerina! -, mas permite todas as unicidades: nenhuma banana é
igual a outra banana, nenhum coco a outro coco.
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Para nela viver, o
homo mais ou menos sapiens procura criar parâmetros. A invenção das palavras e
dos conceitos, o sistema métrico e outras formas de medição do tempo e do
espaço, a lavoura sedentária e a arquitetura pesada, a moral e as leis,
ciências e filosofias, sinais de trânsito e regras em cada esporte - como, em
outro registro, artesanato e obras de arte - são tentativas bem-sucedidas de se
criar parâmetros e paradigmas que nos orientem.
Todas essas
inovações ocorrem no tempo e no espaço, transitórios: não são eternas. Nas
artes, sucedem-se estilos e modismos; nas palavras, intervém a semântica, que
transforma o sentido que um dia tiveram; nas ciências, descobertas e invenções;
nas leis, revoluções, e a medição do tempo e do espaço tornam-se, com
Einstein, relativas. O mundo transforma-se a cada dia, nada permanece igual ao
que era.
A Grécia sempre me
fascinou pela simplicidade da sua complexidade. Sobre sua História pode-se ter
uma vista de voo de pássaro e compreendê-la em linhas gerais; pode-se mergulhar
nos seus mares densos de sol e aprender mais.
No século vi antes na nossa
era, as cidades gregas eram estruturadas sob o poder aristocrático: governavam
os melhores - melhores segundo eles próprios, os aristois,
donos da terra, como os coronéis nordestinos. Parece certo que camponeses sem
terra eram obrigados a dar 3/5 do produto de suas colheitas em pagamento do uso
daqueles latifúndios. Os aristois faziam a lei.
Os ideais sociais
e políticos dessa aristocracia autocrática eram simbolizados no homérico Belo
Guerreiro, saudável e destemido, cultor do corpo e do espírito, repleto de
todas as virtudes da guerra e da paz, capaz de dar a vida pela pátria sem
hesitar - a esse conjunto de normas de perfeição dava-se o nome de Areté.
Tais perfeições, é
claro, só eram possíveis graças à exploração que os aristocratas exerciam sobre
camponeses e pastores. Nenhum herói grego era obrigado a lavar os pratos depois
do banquete, nem a varrer a casa depois da chuva. Se tivessem que pastorear
cabras e lavrar a terra, pouco tempo lhes sobraria para tantas perfeições. Os
heróis aristocráticos não serviam de paradigma - eram ideais admirados e
temidos para serem vistos de longe; imitá-los, impossível.
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Fenômeno semelhante, mas não igual,
à admiração que sente hoje a gente pobre vendo telenovelas com personagens
abastados, lendo revistas sobre milionários.
A sociedade no seu
conjunto tinha, impostos pelos aristois, valores
inquestionáveis sobre costumes, economia, posse da terra, decisões políticas...
Para que esses valores fossem aceitos pela pobre plebe, era necessário
simbolizar esse mundo através de heroicas figuras perfeitas. Se são belas, são
verdadeiras... como na tv.
Alguns não-aristois tinham sua parcela de poder - crescia o comércio
e, com ele, a barganha, a instabilidade dos preços, dos valores e das trocas:
quanto vale isto, quanto aquilo? A troca, o comércio, são necessários porque
ninguém pode produzir tudo que precisa consumir. Todos queriam comprar e
vender: ter mais poder.
Nesse crescente
jogo econômico começou a desfazer-se o monolitismo do poder global
aristocrático, retalhado pelas guerras entre cidades, caça aos butins e aos
prisioneiros transformados em escravos, provocando mudanças nos costumes e no
pensamento.
Se o modelo do
Belo Guerreiro já não era indiscutível, outro haveria de ser criado. Como
fazê-lo se não se sabia para onde iam as cidades sem os velhos parâmetros e sem
novos?
Para tentar
compreender os novos tempos econômicos e sociais, na esfera do pensamento
surgiram os sofistas: sophistês, de sophizesthai, tornar-se sábio; sophos,
“sábio”.
Esses novos sábios
queriam conhecer a verdade; melhor ainda, todas as verdades, não apenas a
verdade de um lado só, como até então, naquele mundo globalizado pelos
aristocratas. “Abaixo o pensamento único!”, pensavam, com outras palavras, os
sofistas!
Como fazer?
Examinando cada fato - evento, comportamentos, pessoas e decisões - por todos
os lados e não por um lado só. Defendendo com unhas e dentes um dos termos em
conflito e, logo depois, com dentes e unhas, o lado oposto.
Protágoras foi um
desses criativos sofistas. Contava-se dele uma história que fazia seus
interlocutores pensarem de verdade, a fundo, sem repetir frases feitas e
conceitos estabelecidos pelos aristocratas, que não permitiam o pensamento
livre, isto é, não permitiam pensar.
Página 125
[Início de
citação] O jovem Euathlus queria ser seu aluno e foi
procurá-lo. Protágoras, era grande orador, portanto, advogado. Como não tinha
dinheiro, o aluno propôs pagar suas aulas no fim do curso, com o salário que
receberia pela sua primeira vitória em seu primeiro julgamento. Protágoras aceitou.
No meio do ano, o aluno desistiu e foi-se embora. Protágoras reclamou em juízo
o pagamento dos serviços que já lhe havia prestado como professor, e o aluno
foi trazido aos tribunais para se defender.
O aluno
recusou-se a pagar alegando que não havia terminado o curso nem ganho qualquer
causa e que, portanto, a obrigação de pagamento não existia. O juiz lhe deu
ganho de causa.
Protágoras
retornou ao combate e afirmou que, tendo ele, Protágoras, perdido a causa, quem
a ganhara havia sido seu ex- aluno, que, em tão pouco
tempo, tanto aprendera. Portando, como ganhador de sua primeira causa, o aluno
deveria pagar.
O juiz
pensou, pesou... olhou os dois lados da questão... paga ou não paga? Examinou
bem... e... o que pensaria você, leitor?
Diga lá —
eu não vou ajudar em nada: pense com sua cabeça, como aconselhava Protágoras!
[Final de citação]
É verdade que cada
coisa tem dois lados; cada lado, outros lados tem. Postos frente a frente,
estabelece-se um jogo de espelhos, e todos os lados se multiplicam ao infinito
porque cada lado pode, no espelho, aparecer do outro lado e refletir-se,
depois, no próprio lado - pingue-pongue. Substitua agora os lados por opiniões
e faça o mesmo raciocínio. Assim é o pensamento abstrato - tudo pode ser
pensado de mil maneiras.
Cada infinito tem
dois lados... mas como nós não temos tempo a perder e o mundo é veloz, temos
que examinar todos os lados, mas escolher logo o nosso, tomar partido, saber
de que lado estamos. Analisar é bom - mas temos que chegar a uma decisão.
Tão longe os
sofistas não queriam ir: queriam pensar, debater, dialogar, desestruturar
certezas e, diga-se de passagem, queriam confundir um pouco - era divertido.
Página 126
Até hoje as
palavras sofista e sofisma significam vulgarmente algo como embusteiro e
embuste. Mas Protágoras, Gorgias e outros sofistas
eram homens sérios: pensavam. Hoje, pode-se dizer que queriam destruir os
valores aristocráticos. Nenhuma sociedade pode avançar mantendo os valores do
passado: há que inventar o futuro. Para isso servem as revoluções e, em menor
escala, as reformas, como em II Gattopardo, do
escritor Giuseppe Tomasi di Lampedusa:
“Algo deve mudar para que tudo possa permanecer igual”!
Os sofistas
inventaram uma forma de dialética só com tese e antítese, sem síntese. Com palavras,
os sofistas queriam destruir as próprias palavras; semear a incerteza como
caminho para o entendimento, chegar à realidade de cada caso concreto: ato e
ator são indissociáveis, como crime e criminoso, a virtude e o virtuoso.
Protágoras escreveu que “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que
são, enquanto são, e das coisas que não são, enquanto não são”. Nisto se opunha
a Sócrates, que buscava os conceitos válidos para todos, em todas as
circunstâncias.
Esta frase pode
refletir uma visão antropocêntrica contrária àquela imposta pelos preceitos
aristocráticos, eternos, imutáveis. Este entendimento se inspira na descoberta
da Pedra de Salamina, na qual todo um sistema métrico é proposto em forma de
desenhos de partes do corpo humano médio: altura, tamanho dos braços e
pés-dórico, jônico e o pé genérico, que hoje ainda é o nome de uma medida usada
nos países anglo-saxões, como a braça, que vai de um punho ao outro, com os
braços esticados. Um pé (30,48 cm) equivale a 12 polegadas, outra parte do
corpo. Exemplificando: quando estamos em um avião de longa distância, nossos
pés estarão voando a trinta mil pés...
Protágoras e os
outros eram homens sérios e cobravam por seus ensinamentos, com toda
seriedade... Da mesma forma que os pastores negociavam o preço do seu rebanho,
os camponeses o das colheitas, naquele mundo em transformação os sofistas
negociavam o preço dos seus pensamentos - mercadorias valiosas. Foram eles os
primeiros a afirmar que pensar custa caro! Cobravam cem minae
por cada conversa - não sei quanto valia cada mina, nem como se fazia o câmbio
naquela época, não sei se era caro ou barato, mas... sei que tinha preço!
- “Os deuses
existem?” - perguntavam. “Não tenho a menor ideia...” - respondia Protágoras. -
“A pergunta é obscura e a vida muito curta para descobrirmos tamanho
mistério...”
Página 127
Esta perigosa
resposta - ao preço de cem minae! - punha em dúvida
a existência das divindades, que, existindo ou não, tinham para os aristois e para o conjunto da sociedade uma função precisa:
asseguravam o respeito à ordem estabelecida, a ordem, mantendo o mundo o mais
imóvel possível... além das invasões de cidades inimigas, onde iam buscar
riqueza e escravos.
Com os sofistas,
faziam mudanças estruturais - era uma revolução. Por pensarem assim - e pelos
seus escritos, mais duradouros que o vento das palavras -, os atenienses,
habituados às certezas aristocráticas, não suportaram dúvidas. Atônitos,
despidos dos valores aristocráticos tradicionais - destruídos pelos sofistas -
e sem outros valores em seu lugar, os atenienses não acharam coisa melhor do
que queimar seus livros e exilar o autor, Protágoras, que era estrangeiro,
nascido em Abdera, em 480 ac, e que foi morrer na Sicília em 410 ac. Pensavam que,
com sua expulsão, ficaria sobrando um lado só, o velho e bem conhecido lado
aristocrático. Mas Diógenes Laertius, historiador de
filósofos, contou toda sua história, que agora pode ser lida e vista por muitos
lados.[nota 22]
O grande feito dos
sofistas foi desmontar um sistema de valores existente - foram destruidores de
valores aristocráticos. Destruir era preciso, mas construir também. Os sofistas
enfureciam Sócrates, que não queria saber de que lado estavam as palavras, mas
sim o que elas significavam: queria que ninguém usasse nenhuma palavra quando
não soubesse o que essa palavra queria dizer. Para ele, sofismar era fácil se
ninguém conhecesse o significado exato de cada palavra que pronunciava.
Em um dos diálogos
narrados por Platão - Gorgias -, Sócrates diz: “se um
doutor, sábio, inteligente, profundo conhecedor do seu ofício, explica seu tema
ao Orador (Retórico), que antes nada sabia, e se vão os dois depois pedir o
mesmo emprego relativo a esse setor do conhecimento, é certo que o
Retórico-Orador ganhará daquele Doutor, pois usará, não a palavra justa, mas a
de maior efeito. Seu discurso será mais convincente, mesmo que pouco entenda do
que diz”.
Em palavras menos
complicadas, o célebre Velho Palhaço da TV, Chacrinha, costumava dizer: “Quem não se
comunica, se trumbica!” Mais uma vez, perdão pelas comparações milenares.
Página 128
Protágoras havia
acionado os tribunais em busca de Justiça: Sócrates não se perguntava quem
tinha razão, mas o que é a Razão? Justiça?! O que é Justiça? Aluno e mestre
haviam-se tornado inimigos? Mas... o que é a Amizade? O juiz, examinando o
caso, mostrou-se um homem virtuoso? Porém... a virtude, o que será?
Sejamos sofistas
para destruir o pensamento único; socráticos para determinar novos e
necessários valores.
Sócrates tanto se
apaixonava pelas palavras e pelos conceitos de cada palavra que recusava os
conhecimentos dos sentidos como se fossem falsos e enganadores.
Conceito: para
ele, só ali estava a verdade. Cada um poderia dizer o que quisesse, mas o
conceito de cada palavra seria sempre o mesmo, um só. Nós sabemos, porém, que
isso é impossível: os conceitos tampouco são unívocos porque são feitos, eles
próprios, de palavras, e cada palavra pode ter diversos conceitos segundo quem
conceitua...
Sócrates confessa,
horas antes da sua morte, a julgar pela transcrição platônica de suas falas a
Cebes, em Fedon, que, no princípio de seus estudos,
queria entender a Natureza mas acabou desistindo.
“Quando abandonei
a investigação da realidade”, diz ele, “decidi ter cuidado para que não me
acontecesse o que acontece aos que olham para o sol durante um eclipse: perdem
seus olhos, a não ser que olhem a imagem do sol refletida na água. Pensei nesse
perigo e temi que a minha alma ficasse cega se eu olhasse as coisas com meus
olhos e tentasse entendê-las com meus sentidos.”
Sócrates obliterou
seus sentidos em favor dos conceitos, dos logos. Era, porém, impossível
traduzir em palavras tudo que os meios estéticos, sensoriais, sabem fazer
melhor: a linguagem dos sentidos é sinalética; a das palavras, simbólica. São complementares
e não adversários, mesmo quando se enfrentam.
Sabemos que não é
apenas o sol que não pode ser visto cara a cara, olho a sol, mas também o ferro
em brasa não pode ser tocado com a mão descoberta porque esturrica a pele, a
carne e até o osso. Há pimentas que queimam a boca.
Página 129
Mas nem por terem estreitos limites
físicos nossos sentidos deixam de ser úteis nas faixas sensíveis, que são
capazes de registrar sem danos. Dos nossos sentidos, nem a palavra escapa, pois
que ela será sempre por eles percebida quando a ouvimos, ou mesmo quando a
lemos. A verdade dos sentidos é outra verdade, tão verdadeira como a das
palavras - não é a mesma.
Sócrates abandonou
a realidade dos sentidos e se concentrou nas ideias abstratas. Disse ter
ouvido, de um sonho[nota 23] um conselho: o sonho dissera-lhe para compor uma
música. Como se sentia incapaz de inventar uma música do nada, buscou
inspiração em versos de Esopo. Lendo os versos, pensou música — o que prova
que, apesar de tudo, o filósofo já conhecia a sinestesia...
Pena que o sonho
não lhe tenha dito também que pintasse suas emoções e pensamentos, que
dançasse seus desejos, cantasse seus lamentos... Talvez, assim, ele tivesse
unido os dois pensamentos em vez de tentar reduzi-los a um só.
Tudo flui, é
verdade, meu bom Sócrates; águas fluem, pedras rolam... mas o rio existe e
canta! Temos que ver o rio, pedras e águas; ouvir seus lamentos e sua fúria.
Temos que beber a água, atirar pedras e nadar no rio; temos que pensar rios,
pedras e águas.
Sócrates, que
tanto amava palavras, mesmo sem ter cometido crime, morreu pelas palavras que
pronunciava e por outras que nunca haviam saído de sua boca: durante seu
julgamento, o filósofo fez questão de afirmar quais ideias professava, bem
diferentes da figura que, dele, o aristocrata Aristófanes havia pintado em sua
comédia As Nuvens. Nela, o comediógrafo caluniador mostra um personagem vil, a
quem chama de Sócrates, como porta-voz dos sofistas que, na realidade, Sócrates
tanto combatia. [nota 24]
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Esse testemunho
ficcional esteve presente no julgamento: “O linho, uma vez manchado, jamais
volta a ser tão branco como era antes” - escreveu Bertolt Brecht. Os que o
julgaram, colavam a imagem do bobo Sócrates aristofanesco
à imagem real que tinham diante de si do verdadeiro Sócrates sendo julgado.
Dos juízes,
Sócrates só ouviu uma palavra: “Morte!”. Seu conceito era a cicuta. Consequente
com suas ideias, bebeu, de sua mão, o veneno.
Com Platão
restabeleceu-se a dignidade da imperfeição: existem dois mundos, sim, um
Sensível, outro Simbólico. Foi exatamente isso que, com outras palavras, disse
Platão. Só que esses dois mundos são o mesmo mundo: nele vivemos.
Na verdade, o que
existe são duas formas de perceber o nosso mundo, pela simples razão de que
temos duas formas de pensar.
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Monarquias políticas e artísticas
Todas as coisas
precisam ser nomeadas para que seja reconhecida a sua existência, mesmo
invisível. Quem não tem nome, não existe; quem deixa de ser o que era, precisa
de rebatismo.
As cidades gregas
haviam mudado. Atenas já não era a mesma aristocracia. O que era então? Os
gregos tinham que solucionar esse problema nomenclatural:
vinte e cinco séculos atrás inventaram uma palavra nova, bonita, elegante: democracia! Assim foi batizada aquela que
seria a estrutura política ideal para o não‑opressivo relacionamento
entre habitantes de uma cidade, onde a todos seria dado o direito à palavra -
palavra é ato. Não basta falar, é preciso dar sequência, produzir
consequências.
Na prática, porém,
a generosa ideia de democracia revelou-se difícil de ser realizada, não por
causa dos seus defeitos, mas por sua principal virtude: a organização política
na qual deveria predominar o respeito e a valorização do indivíduo, todos os
indivíduos, com suas opiniões, necessidades e idiossincrasias.[nota 25]
Nessa franca
liberdade reside a riqueza da democracia... e seus perigos. Os ditadores, ao
contrário, com suas pequenas variações cromáticas, são todos iguais. Bem cedo,
nos debates da Ágora, na praça, nas grandes decisões, começaram a surgir
oradores mais capazes, projetando-se os mais hábeis, ardilosos, destros,
sagazes, assumindo o poder da palavra, origem de quase todos os poderes
humanos.
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Por essa razão,
desde as hordas primitivas até hoje, no mundo só existiu e existe um único
sistema político, a monarquia,
imposta pela clava, pelo tacape, por punhais, medo, Bolsa de Valores ou
dinheiro, vestida de variadas formas e cores; monarquias hereditárias ou
nomeadas, sanguinárias ou esclarecidas: imperiais, despóticas, oligárquicas,
plutocráticas, ditatoriais, parlamentares etc.
Assim se organizam
os seres humanos na guerra e na paz, no trabalho e no lazer, nas ciências e
nas artes, nas famílias de qualquer espécie, tribos, nações e estados.
Sua essência consiste
em dividir pessoas em estamentos, castas ou classes, escadas de poder e
direitos, dentro de uma estrutura piramidal, aproximativamente como nos
exércitos ou como na Idade Média - reis, príncipes, condes e viscondes, barões
e baronetes, unidos pelo sistema de obediente vassalagem da dicotomia
senhor-vassalo, senhor de outro vassalo, senhor de menor vassalo, e assim
rolando escada abaixo até o mais mísero camponês, sua mulher, filhos,
cachorro... e o gato.
Este meu
entendimento abrangente da palavra monarquia
tem suporte na sua etimologia: monarca
- do grego Monarkhês: monos, sozinho; arkhein, comandante. Vivemos uma guerra semântica e eu sou combatente.
Temos que plantar bandeiras nas palavras conquistadas - é o que pretendo fazer.
A dicotomia suserano-vassalo,
apoiada na fidelidade servil e vertical em toda a escada piramidal, é o
elemento estrutural da pirâmide monárquica,
que será tão mais absolutista na medida em que o vértice e a base estiverem
mais distantes; menos absolutista (ou mais democrática) na medida em que
vértice e base se aproximarem, esta podendo
influenciar aquele, ainda que vagamente.
A solidez da
estrutura piramidal se dá pelas armas, pela religião, por tradição, medo,
ignorância, apatia ou convencimento. Os
golpes de estado acontecem no vértice; as revoluções, na base; os reformistas
estão no meio.
A Estética do
Oprimido é um método artístico que pretende ajudar a restaurar a ideia original
e humanística de democracia diminuindo as distâncias entre base e vértice.
A Estética do Oprimido é a Estética dos Direitos Humanos!
Figuras como
mordomo, capataz e chefe de polícia são exemplos modernos do sistema de
vassalagem. Apesar do enorme poder que exercem sobre seus subordinados, podem
ser despedidos a qualquer momento por seus patrões, que estão, por sua vez,
submetidos aos seus superiores até o mais alto e poderoso.
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A pirâmide
monárquica pode ser dona do poder quase total, como a de Luiz xiv; pode deter o
poder político, mas não o econômico - Elizabeth i, na época de Shakespeare, era a maior
devedora dos bancos (ou agiotas) ingleses, poderosos nos séculos xvi-xvii.[nota
26] Pode professar ideologias
apelidadas de populares, como no caso
dos regimes da Europa do Leste antes da queda do Muro de Berlim. Stalin, seus
similares e aliados, eram perfeitos monarcas, segundo a etimologia do termo. Os
jovens da revolução cultural chinesa, seguidores do monarca Mao Tse Tung, obedeciam como vassalos ao livro vermelho, mesmo que
nem sempre o compreendessem.
A pirâmide
monárquica pode ser um ornamento para embelezar festas cívicas e religiosas -
Elizabeth ii; pode ser vassala do imperialismo,
como as ditaduras cívico-militares latino-americanas dos anos sessenta a
oitenta - em bom português, paus-mandados.
Monarquias ventríloquas, bonecos que parecem falar - na América Latina foi o
que mais tivemos.
Pode a monarquia
deter o poder setorial compacto, como o poder da informação (tv, jornais,
editoras etc.), e fragmentado, como as bandas
podres de corporações policiais, milícias e seitas eletrônicas,
indústrias dos milagres por atacado (uma delas faz milagres até pelo telefone,
depois de recebido por fax o recibo do depósito bancário correspondente à
gravidade da doença a ser curada...).
O verdadeiro poder
pode ser dissimulado, como acontece com as corporações multinacionais -
monarquias econômicas invisíveis - que governam o país, mas não se exibem,
enquanto o governo constituído, a monarquia visível, lhe serve de escudo e
camuflagem.
Para isso,
necessita de insígnias e rituais, cerimônias, desfiles, missas, condecorações,
para que pareça ser o que não é, e esconder seus senhores.
Quem nomeia o
monarca, rei, imperador, coronel nordestino, chefe de família ou gangue,
maestro, catedrático, cacique, caudilho ou generalíssimo? Quase sempre uma tradição
que se perde no passado esquecido, apoiada na força física ou na lavagem de
cérebros, na força das armas ou no poder que cada obediente vassalo tem em
relação aos seus inferiores.
Página 134
Pode-se apoiar no intenso carisma
de um líder ou na crença em uma entidade sobrenatural, como o Espírito Santo,
por exemplo, que está supostamente presente nos conclaves, onde inspira e
nomeia o monarca católico, infalível monarca-papa, através dos seus cardeais,
chamados príncipes da igreja. Jesus
tinha, modestamente, doze apóstolos; o monarca vaticano, mais de cem príncipes‑cardeais
- isso é que é progresso!
Hirohito - bom exemplo -, até o fim da
última Grande Guerra Mundial, era o descendente direto de um casal de deuses
xintoístas, Izanagi e sua irmã-esposa Izanami, que,
no começo do mundo, depois de criarem deuses da máxima importância, como
Amaterasu-o-mi-kami (o sol), Tsuki-yomi-no-mikoto (a lua) e Susa-no-o-no-mikoto (o tufão),
estavam confortavelmente sentados em um mítico e gigantesco arco-íris,
remexendo águas do mar, fazendo ondas com uma vara de pérolas, quando, ao
levantarem a vara, algumas gotas de água - suponho que também algumas pérolas -
caíram no oceano, criando as ilhas do Japão. Em outra versão do mesmo mito, a
vara era espada e o arco-íris era a ponte, unindo a terra dos deuses à dos
humanos. Ponte: une ou separa?
Perdida a Grande
Guerra Mundial, Hirohito foi obrigado pelas forças
armadas da ocupação a renunciar à sua linhagem celeste. Voltou a ser quase tão
humano como qualquer japonês. Muitos, no entanto, ainda hoje acreditam na
descendência divina daquele imperador, já falecido - convicções profundas não
se desfazem com um piscar de olhos, nem com solenes declarações à imprensa.
Segundo o livro
sagrado do xintoísmo, o Kojiki, a deusa Izanami
continuou dando à luz alguns outros deuses menores, entre eles o Deus do Fogo;
imprudente, ela morreu carbonizada no incêndio do parto.
São belas
histórias, poéticas e sedutoras, mas apenas histórias... belas, sedutoras e
poéticas. Alguns deuses ou filhos de deuses nasceram das axilas de suas mães ou
de mães virgens - ambas impossibilidades científicas. Não podemos confundir a
metáfora da realidade com a realidade da metáfora.[nota 27] Se o fizermos, o
real se desvanece e evapora, nossa mente passa a viver na coerência do delírio
e nosso corpo em terra descontínua.
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Essas visões
poéticas são belas quando vistas a distância, mas quando invadem o ar que os
crentes respiram cumprem funções alienantes semelhantes às telenovelas e ao
fanatismo esportivo: separam corpo e mente,
que passam a viver em dois mundos distantes e contraditórios: diante da TV, os
telespectadores mergulham nas águas tépidas das piscinas dos ricos personagens,
mas não têm água corrente em seus barracos; nas arquibancadas, os torcedores
fazem gols espetaculares com os pés dos milionários jogadores, mas não têm
dinheiro no bolso para pagar as prestações.
Qualquer
explicação, mesmo fantástica e fantasiosa, sobre a origem e a legitimidade do
poder mostra-se útil aos que estão no topo da pirâmide, sempre que com isso
consigam obediência irrestrita, a alguns oferecendo direitos, a outros,
obrigações.
Muitos sistemas de
intenções democráticas, nesta pré-história da humanidade que estamos vivendo,
cedo se transformam em monarquias autoritárias, até mesmo em seus opostos, como
aconteceu com o Cristo, que não escapou dessa triste alomorfia: sua doutrina de
igualdade, fraternidade e carinhosa solidariedade logo foi queimada nas
fumegantes fogueiras da Inquisição, junto com Brunos e Joanas, bruxos e
feiticeiras... Sua democrática multiplicação de pães e peixes transformou‑se
em dízimos a serem pagos pontualmente - comércio cuja mercadoria é a ilusão, a
esperança e a fé.
O sistema
monárquico de senhorio e vassalagem é reproduzido quase literalmente em todas
as áreas da atividade social humana: nas forças armadas, em sua rígida
hierarquia, na maioria das religiões, em fascinantes mitologias, nas gangues do
narcotráfico, de armas em punho, na imprensa, na família, nas formas de
exploração e valorização da arte... em toda parte.
Página 136
Nos meios de
comunicação - fantástica arma de poder e convencimento! -, imperam absolutas
as monarquias da palavra, do som e da imagem, transformadas em latifúndios da
informação.
Imagem, palavra e
som não circulam livres na sociedade - são canalizados pelas estações de rádio
e tv, pelos
livros, revistas e jornais, escolas e universidades, e pela propaganda na beira
da estrada. Tudo isso tem dono! Vivemos no mundo virtual desses três impérios.
Palavra, som e imagem
são livres enquanto possível criação acessível a todos os seres humanos, mas os
meios de comunicação que os fazem circular são privativos do poder econômico
que os fabrica, padroniza, difunde, controla e usa.
Que fazer? Quando
possível, penetrar nesses meios; quando não - isto é, quase nunca -, criar
nossas próprias redes de comunicação. O cto já está criando
essas redes no Brasil inteiro; todas as suas atividades buscam esse
entrelaçamento.
Devemos pensar
dois pensamentos e fazer com que nossas imagens, palavras e sons circulem por
todos os meios possíveis, abrindo caminhos não controlados pelas monarquias
econômicas. Inventar e produzir fora e longe dos latifúndios da arte, e mesmo
invadi-los quando possível.
Não se trata de
construir um grande teatro paralelo ao teatro comercial e oficial, Catedral do
Futuro, como preconizava o diretor teatral suíço Adolfo Appia no início do
século passado, espécie de grande Agora
teatral: “espaço livre, vasto e transformável, que receba as manifestações mais
diversas da nossa vida social e artística, que será o local por excelência onde
florescerá a arte dramática, com ou sem espectadores”. [nota 28]
Trata-se de
transformar em teatro todos os locais, grandes ou pequenos, no campo e na
cidade, onde vivem e trabalham homens e mulheres: teatro é o mundo, e seus
atores são a sociedade.
Ser profissional
não confere a ninguém o dom da arte, pois todos já o tinham ao nascer - uns
mais, outros menos; todos podem desenvolvê-los - uns mais, outros menos.
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Significa apenas que o cidadão é
pago para exercer essa função, que é sua profissão habitual. Significa
treinamento específico, que aumente suas possibilidades expressivas.
Artistas
profissionais existem que são maravilhosos - outros não. Exatamente como
acontece com qualquer artista vocacional, que não necessita ser pago, nem
possuir diplomas e prêmios, estes apenas indicam um determinado lugar na
pirâmide monárquica, com deveres e funções específicas que visam difundir
ideias e mercadorias, não imaginação e criatividade. Nisso se transformou a
Estética nas sociedades competitivas, capitalistas neoliberais e ditatoriais
coercitivas: uma corrida de cavalos.
A Estética do
Oprimido não quer criar um estilo a mais, gênero a mais, modismo a mais, forma
diferente de fazer o mesmo: trata-se de sermos radicais, de irmos radicalmente
(radical = raiz!) ao âmago do ser humano e revelá-lo. Essa revelação plena
surge em forma estética, através da arte. Como trabalhamos com os oprimidos, aí
surge a Estética do Oprimido!
Appia continuava
preso à ideia de que o teatro deve ter um lugar próprio para sua celebração,
grandiosa imitação dos já existentes, assim como a religião costuma ser
celebrada, apenas dentro de igrejas e templos. Reza-se lá dentro; cá fora, Deus
nos acuda!
Arte e vida - uma
não pode existir sem a outra, e a vida existe em toda parte; teatro e estética
também.
“LEtat, cest moi!”- dizia Luiz xiv (“O
Estado sou eu!”). Em nenhum outro lugar, mais do que nas indústrias da
palavra, da imagem e do som, essa afirmação é tão verdadeira: o proprietário
dos meios de comunicação decide e ordena, e só existe no mundo aquilo que ele
afirma existir e da maneira como nos informa. Só a sua versão é verdadeira, só
existe quem ele faz existir virtualmente em sua tela, microfones e jornais. O
resto da humanidade é sombra e silêncio; a verdade escamoteada, silêncio e
sombra...
Para esse estado
empresarial, a África não está morrendo de fome nem de aids, nem genocídios
estão ocorrendo no Médio Oriente e na Ásia; nas periferias dos grandes centros
urbanos, o narcotráfico, a falta de saneamento básico e de pão na mesa são
males inevitáveis da próspera conjuntura econômica; o salário mínimo é
suficiente para promover o bem-estar social...
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A espantosa crise financeira
norte-americana é apenas um acidente no caminho do capitalismo, porque o
Deus-Mercado acabará resolvendo seus problemas... São os pensamentos mágicos do
“l'Etat c'est moi!” da informação.
Uma indústria de
aparelhos de som, com inaudita propriedade, escolheu seu símbolo comercial: um
cão atento ouve música de um gramofone. Nada mais perfeito: nós somos aquele
cãozinho domesticado e bonitinho... Para completar, a empresa acrescentou uma
frase à imagem: A voz do dono!
Mais explícito,
impossível.
Convém não
esquecer que ser humano é ser artista
e ser artista é ser humano. Arte é
vocação humana, é o que de mais humano existe no ser. Para alguns de nós,
tornou-se profissão, mas continua sendo uma democrática vocação. Nenhum de nós
tem que ser melhor que ninguém; cada um de nós pode sempre ser melhor que si
mesmo.
Arte, que pertence
a todos, não pode se tornar propriedade de poucos artistas, e estes,
propriedade do monarca. A monarquia da comunicação expropria a Estética como os
latifundiários expropriam a terra. Cria, exalta e protege estrelas e
estrelatos, imagens de senhorio. Aos que não são as estrelas da vez, ela os
encerra em auditórios, com a função de bater palmas. Arte latifundiária é
inaceitável em uma democracia que se queira tal. A arte tem que ser democrática
como devem ser a terra, a água e o ar.
Sempre existiram,
existem e hão de existir artistas excepcionais, protegidos ou não pela mídia,
em todos os campos da arte. Muitos, com gênio e criatividade. A democratização
da arte não significa enfrenta- mento com os artistas profissionais: pelo
contrário, é sua liberação. Ao serem avassalados pelos monarcas econômicos, os
profissionais não devem se iludir pensando que conservam sua liberdade de
criação: como assalariados, devem obedecer regras estabelecidas pelas empresas
que os contratam e controlam.
Da mesma forma que
o operário tem sua força de trabalho, o proprietário possui a terra, o
capitalista o capital, o artista profissional tem o valor econômico da sua
popularidade.
Para os artistas
profissionais será salutar a experiência de uma arte cidadã, nela
rejuvenescendo sua vocação, livres de injunções contratuais.
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Se vivemos em uma
Monarquia da Arte, é necessário que a base seja criadora para que se aproxime
do vértice: democracia. E necessário que todos
os homens e mulheres reconheçam que são artistas, produzam arte como artistas,
e que todos os artistas reconheçam que são cidadãos e, na sociedade, atuem como
tais.
A linguagem estética do poder
A pedra inanimada
ocupa espaço idêntico ao seu volume compacto. Plantas crescem e necessitam de
maior território que seu volume; imóveis, nutrindo-se de terra e chuva, as
árvores espalham sombras no chão, onde não mais floresce a grama - chão que se
torna parte do seu território, maior que o volume do seu corpo. Em suas copas
frondosas, galhos e folhas aprisionam o espaço aéreo; as raízes se aprofundam e
ocupam maiores quantidades de terra que seus volumes.
Os animais que,
quase todos, se movem, lutam por um espaço ainda maior. Uma das principais
funções do cérebro é organizar o movimento, e o movimento necessita espaço.
Alguns animais marcam seus territórios pelo cheiro, como cães e lobos que
urinam para que se saiba a quem pertence aquele espaço. Poderiam urinar a
bexiga inteira em um só poste, um só tronco de árvore, mas preferem usar postes
e árvores para demarcar seu mais extenso território.
Outros animais
anunciam seus domínios pelo ouvido: os leões urram, pois não ficaria bem um
leão urinando nos muros com a perna levantada. Tigres bramam, gatos bufam, o
galo clarina seu galicanto,
o falcão crocita, a onça esturra, geme a juriti, enquanto ri a hiena, silva a
serpente e suspira a ema.
Os animais privatizam o espaço e o espaço privatizado
é excludente: esta é a minha casa, o meu quintal, o meu latifúndio; não é a tua
casa, o vosso quintal ou a nossa terra. Não nosso ou vosso: é meu!
Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço, que se tornou extensão do
corpo do dono, seja leão, tigre ou, no campo, grileiros.
O que acontece nas
florestas e savanas com animais selvagens, acontece na terra com
latifundiários, na Bolsa de Valores com o cassino da especulação financeira.
Página 140
O dinheiro tudo compra, a começar
pelo espaço onde vivemos, pela comida e água que nos permitem viver. Só não
compra o ar que respiramos... mas polui!
A recente crise
econômica nos Estados Unidos, no setembro
selvagem de 2008, mostrou o caráter de jogo de azar dos investimentos
bancários e da Bolsa: vivemos em um cassino. O governo teve que usar centenas
de bilhões de dólares do contribuinte para salvar alguns bancos da bancarrota,
à qual haviam sido levados por seus gerentes e donos, cúpidos e cobiçosos.
Centenas de bilhões: dois ou três trilhões.
Em janeiro de
2009, o presidente Barack Obama teve que baixar um decreto indignado proibindo
que os executivos dos bancos socorridos pelo dinheiro público tivessem, como
teto salarial, nunca mais de cem mil dólares anuais. Em dezembro desse mesmo
ano, esses mesmos executivos haviam destinado a si mesmos quantias
astronômicas, a título de recompensa pelos
excelentes trabalhos realizados, quantias que haviam sido recebidas do
governo, com o dinheiro dos contribuintes, dinheiro destinado a restabelecer a
“confiança” da população. Segundo o Presidente, o rombo foi da ordem dois ou
três bilhões...
Esses executivos
que se apropriaram desse dinheiro público agiram perfeitamente dentro das leis
do capitalismo neoliberal, e ninguém foi preso, ninguém levou nem ao menos um
puxão de orelhas, nem teve que devolver um centavo: se não existem regras que
proíbam abusos, por que não cometê-los? Greed is good — a
cobiça é boa - dizem os neoliberais.
Em outros países
ricos, governos que antes diziam não ter dinheiro em caixa para salvar a
Educação, a Saúde e a Previdência Social, de repente, não mais que de repente,
descobriram alguns trilhões. Será real esse dinheiro, ou virtual? Onde estava?
A que e a quem servia?
O capitalismo teve
o seu momento socialista: após privatizarem os lucros da esperteza,
socializaram as perdas da nossa ingenuidade.
No mesmo mês de janeiro,
a onu
revelou que existem 950 milhões de famintos na terra... mas as nações ricas não
moveram meia palha, nem gastaram um só centavo para salvá-los da tortura da
fome. Dez por cento do que gastaram com bancos e banqueiros teriam bastado para
alimentar esses milhões de famintos durante dez anos. A crise que os preocupa é
sempre a crise dos ricos, não a dos pobres; crise do sistema financeiro, não da
barriga vazia. Será que a mesma Estética será válida para os dois lados?
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Este fato não revela
os excessos do capitalismo selvagem: revela a selvageria do capitalismo.
Sociedades espetaculares e sociedades do espetáculo
[Início de citação] O ser humano, como qualquer animal, usa seus
sentidos para estender os limites do seu território. Dos três sentidos de longo
alcance, mais que o ouvido e o nariz, o ser humano usa os olhos, a Imagem, que,
conjugada com os demais sentidos, promove espetáculos.
Todas as
sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e produzem espetáculos
em momentos especiais. [Final de citação]
São espetaculares como forma de organização
social. Mesmo quando não conscientes, todas
as relações sociais na vida cotidiana são estruturadas como espetáculos nos
quais se exibem as relações de poder existentes entre os integrantes daquele
segmento social: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das
palavras e a modulação das vozes, gestos e movimentos corporais, tudo que pode
ser revelado pelos sentidos denuncia relações de poder. Cada participante
desses espetáculos conhece o seu lugar, sabe o seu papel, com ele se conforma,
ou tenta modificá-lo segundo as armas de que dispõe.
Uma das principais
funções e poderes da Arte é revelar, tornar sensíveis e conscientes esses
rituais teatrais cotidianos, espetáculos que nos passam desapercebidos, embora
sejam potentes formas de dominação.
As sociedades são espetaculares no sentido estético da
palavra, isto é, como organização sensorial de um ato, uma relação humana, um
evento. O comer solitário em um botequim da esquina já contém elementos
culturais do espetáculo que é um
jantar em família; um só indivíduo ao telefone prenuncia, em gestos e voz, uma
teatral reunião de negócios. As sociedades jamais deixam de ser espetaculares porque todo espetáculo é uma confrontação de poderes, e
todas as relações humanas são confrontações de poder.
Página 142
As sociedades são espetaculares porque o poder de cada um dos
seus membros necessita ser exibido de forma explícita para que se faça valer.
Esses espetáculos - conscientes ou não, com
ou sem espectadores — são visuais, secundados pelos demais
sentidos.[nota 29]
Ao contrário das sociedades espetaculares, as sociedades do espetáculo, como entende Guy
Debord, são conscientemente dirigidas por aqueles que têm poder e querem
preservá-lo - têm remetente e destinatário! Promovem apresentações de teatro,
cinema, tv e Internet, que são
formas óbvias de espetáculos
destinados a cativar ou intimidar cidadãos e a integrá-los a uma sociedade
dominada pelos opressores, que controlam seu conteúdo, suas formas e seus
efeitos. São totalmente conscientes na sua emissão, embora nem sempre na
recepção; o emissor sabe o que faz; o receptor nem sempre sabe o que sofre.
Além destes
espetáculos explícitos com claro sentido ideológico e de propaganda, também os
rituais sociais, como as solenidades cívicas, religiosas ou esportivas, são
produtos conscientes, intencionais e voluntários das sociedades do espetáculo.
Claramente
coexistem a sociedade do espetáculo,
e a sociedade como espetáculo.
Os espetáculos da sociedade do espetáculo são revelados e
reconhecidos como tais dado o seu caráter de exibição e a clara divisão entre
espectadores e espetáculos, uns lá, outros cá, enquanto os espetáculos do
cotidiano das Sociedades Espetaculares
são, ou se tornam, inconscientes. Podem e devem ser revelados pela arte - todas
as artes!
Mesmo quando
preparam um espetáculo, os agentes dessa preparação são, eles mesmos,
espetáculos, como atores antes de entrar em cena - a preparação do espetáculo
já é espetacular.
O que varia com o
avanço da tecnologia, tanto nas sociedades
espetaculares como nas sociedades do
espetáculo, não é o seu caráter teatral,
pois esta é a maneira cultural como as sociedades se estruturam e se mostram a
si mesmas - o que varia são os meios de produzir espetáculos.
Sociedades
tecnológicas sofisticadas com luz elétrica e computação eletrônica dão a
impressão de que só elas são espetáculo, ou que o espetáculo só com elas
nasceu. No entanto, para realizar seu
teatro, cada sociedade usa os meios de que dispõe: usamos a eletrônica como o
cão usa a urina e o elefante o berro.
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O que confunde
alguns teóricos da sociedade do espetáculo
- na qual a presença de espectadores é indispensável - é o fato de que, nas
formas espetaculares do cotidiano,
que são, via de regra, subliminais, a presença da plateia não é necessária
porque os espectadores são os atores.
O espetáculo é feito pelos próprios espectadores.
Existe trânsito
entre as sociedades espetaculares e
as sociedades do espetáculo: estas
podem se tornar inconscientes e aquelas podem ser reveladas à consciência. Esta
é uma das tarefas da Estética do Oprimido.
Também a palavra espetacular não deve ser entendida no
sentido usual de grande, enorme, imenso etc. Espetáculos modestos, pequenos,
invisíveis, também existem: a todos eles, grandes e pequenos, eu me refiro.
Estruturas sociais
são estruturas de poder, e o poder exige insígnias e rituais para ser
respeitado. Como é abstrato antes de ser exercido, pura potência antes do ato,
o poder exige concreções para ser reconhecido à primeira vista e ao primeiro
som, ser temido e respeitado: necessita visibilidade, mesmo inconsciente.
Necessita insígnias fabricadas com sinais, signos e símbolos.[nota 30] Por essa
razão, as sociedades espetaculares tendem
a produzir sociedades do espetáculo dada a
força intimidatória que estes possuem.
Luiz XIV acordava todas
as manhãs diante de espectadores escolhidos entre os nobres favoritos da sua
pomposa Corte, que esperavam ansiosos para aplaudir o seu primeiro bocejo
matinal e seus estremunhados gestos, ao som de suave alaúde e cravo, em belas
composições de Lully, que sugeriam docilidades e
ajudavam a estruturar pensamentos e percepções do monarca, desorganizados pelo
sono e pelo sonho.
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Os nobres
disputavam a preferência do Sol vestindo-se de forma adequada para tal
cerimônia. Palmas aveludadas aplaudiam quando se abria a cortina do dourado
leito real. Entre parênteses: alguns cobriam o rosto para rir do monarca em
protetor segredo, com razão.
O espetáculo expõe
aos nossos sentidos não apenas o seu titular principal, mas toda a hierarquia,
desde o mais poderoso senhor até o último coadjuvante. Todos desempenham
papéis, ora distantes do epicentro, ora como papagaios‑de‑pirata,
no ombro de alguém importante, espinha reta ou curvada. Quanto mais próximo do
protagonista, maior seu poder. Tocá-lo: sonho supremo.
Mesmo nu, o rei
está sempre vestido de seda e ouropéis; pelo uso continuado, já se impregnaram,
no seu corpo e nas memórias vassalas, todas as vestimentas que um dia o
vestiram. O menino que disse que o rei estava nu não tinha entendido nada... Os
seus maiores sabiam o que deviam ver, e viam.
A carruagem foi
inventada como meio de transporte, mas aquelas que hoje transportam reis e
rainhas - fosse essa sua única utilidade - seriam mais eficazes se fossem
substituídas por um calhambeque de dois ou três cavalos de potência motora ao
invés dos quatro ou seis garbosos e brancos animais de carne e osso. Carruagem
é símbolo de poder, vetusta hierarquia e antiga tradição. Transporta
poderosos... e nos condena a andar a pé para melhor apreciá-los.
Os rituais do
poder são embalados por hinos patrióticos ou cânticos fúnebres, valsas
vienenses ou marchas militares. Todas as cerimônias são espetáculos de luz, som
e sombra - são estéticas. Feitas à
mão ou eletrônicas, são espetáculos.
Hoje já não se
usam espetáculos ingênuos como os que agradavam aos Luízes;
mesmo assim, os reis continuam exibindo coroas, o papa sua mitra, o general
suas estrelas, o maestro sua batuta, as damas das cortes burguesas suas joias e
cirurgias plásticas - símbolos de riqueza e poder. Hoje, os garbosos desfiles
militares - mesmo usando armas sem munição - exuberam força e fortalezas!
Fantásticas festas mundanas carimbam artistas com estatuetas que os marcam como
sendo os melhores. Procissões
pedestres e missas solenes fazem-nos promessas e ameaças.
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Bocassa, ditador da África Central,
apesar de ter um poder discricionário exercido através de um exército
sanguinário, gostava de se apresentar paramentado de Grande Leopardo - vejam
só! -, ornado de pedras preciosas, fartas em seu país. Exigiu ser coroado
Imperador na presença de dignitários estrangeiros revestidos de medalhas e
comendas. Cobiçosos de tanta riqueza, primeiros, segundos e terços ministros e
presidentes vieram participar da festança. No fim das cerimônias, partiram
brilhantes... Comeram à mesa do Imperador, apesar da sua fama de canibal
inveterado. Serviu-se rosbife malpassado... Dizem que o molho estava delicioso
- francês, legítimo.
Diamantes falam
mais alto: têm voz e voto!
Terminada a festa
- sociedade do espetáculo -, mesmo assim os rituais do cotidiano - sociedade
espetacular - continuam: o imperador caminha para sua cama como se fosse
Imperador; os serviçais, como obedientes serviçais, caminham para os seus
porões; o tom de voz de um e outros mantém características de opressor‑oprimidos,
mantém as estruturas do poder. A festa é um espetáculo da sociedade... O
pós-festa é espetacular, embora inconsciente.
- “E agora, José?”
- pergunta o poeta Drummond de Andrade.
Só então, quando
não se sabe mais para onde ir, o espetáculo se fragmenta, dissolve e evapora -
não há mais nada preconcebido, nada se sabe, o mundo parou. Só os náufragos não
são espetáculo, se ninguém os vê - eles próprios não se podem ver, devem
salvar-se: despem-se de todas as maneiras, hábitos, rituais, e tentam nadar.
Paulo Freire narra
a cena em que os camponeses mais sacrificados, no Nordeste brasileiro, mesmo
falando com pessoas que queriam ajudá-los, tinham o hábito (obrigatório
espetáculo) de dialogar olhando o chão. O mesmo que eu próprio senti falando
com jovens negros, quando lhes pedia informações sobre onde ficava tal rua, em
Washington, em 1954.
Presidentes
caminham em tapetes vermelhos, adornados de microfones e seguranças. Estrelas
de música pop e de futebol, ao
desembarcarem de seus jatos particulares, caminham no centro de um buquê de
guarda- costas, jornalistas e jovens enlouquecidas em busca de marido rico.
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Não só as festas
de 15o aniversário da moça que baila com seu pai sua primeira valsa,
ou da plebeia Angélica que rodopia com o príncipe no Leopardo de Visconti - espetáculo que lhe abre as portas da
nobreza e da respeitabilidade; não só as festas de formatura de fim do ano; não
só a missa do galo ou de corpo presente, batizados, crismas, confirmações,
cremações e casamentos, quando a noiva de branco vestida é entregue pelo pai à
guarda e posse do noivo, cravo branco cravado no peito - não só estes rituais
extraordinários são espetáculos, mas também os rituais cotidianos que, por sua
familiaridade, sequer nos chegam à consciência.
Não só o estadista
depositando flores no túmulo do soldado desconhecido e o magnata cortando fita
colorida com as cores pátrias ao inaugurar mais uma filial da sua empresa - não
só pompas são espetáculo, não só
desfiles, mas também o café da manhã e os bons-dias, o almoço ajantarado aos
domingos, quando se come e fala segundo regras invisíveis, mas respeitadas.
O espetáculo tem a
função de revelar identidades e determinar comportamentos - quando e onde cada
qual deve se sentar, quando se levantar ou sorrir, o que dizer. O espetáculo
põe legendas classificatórias na testa daqueles que o integram!
A aparição de
qualquer cidadão em capa de revista ou programa de tv pode dar a qualquer um, por mais insignificante que seja,
o poder correspondente ao status que
lhe confere a mídia e que deve durar até a próxima edição do mesmo programa,
pois o poder que recebe é poder delegado, não seu. A mídia é fonte de
informação, verdadeira ou falsa, e de valoração dos que nela desfilam: fonte de
poder como coroa, medalha ou mitra.
Os meios de se
realizar o espetáculo mudam com a cultura de cada povo, mas sua função é sempre
a mesma. Menos tecnológicos, os indígenas brasileiros usam plumagem colorida
em suas cerimônias festivas ou guerreiras. Alguns usam objetos redondos com os
quais furam os lábios e lhes dão feições assustadoras: são os chefes. À sua
volta, dança a tribo. Em contexto diferente, é a mesma encenação dos nobres de
Luiz velando o seu despertar.
As insígnias, ao mesmo tempo em que
individualizam seu possuidor como alguém superior e potente, são também imagens da ausência.
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A coroa real nos faz perceber nossa
pequenez: somos cabeças não coroadas! Medalhas em peito alheio nos dizem de
quem estamos aquém, e a que distância. Insígnias mostram onde reside o poder e
nos denunciam como não possuidores desse poder: súditos, vassalos, soldados,
escravos.
A maior humilhação
que um militar pode sofrer é que lhes retirem as medalhas diante de sua tropa
de militares sem medalha: retorno ao marco zero, à igualdade.
Nenhuma sociedade
sobreviveria sem ser espetacular, e sem espetáculos - ambos têm função
civilizatória. Sua vetustez, porém, engessa a criatividade e proíbe a invenção.
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148
A invasão dos cérebros
Se o cérebro de um
telespectador transborda de filmes de inspiração holiudiana,
vazios de ideias e repletos de força animal - sua única forma de diálogo -,
tiros, explosões e rajadas de metralhadora vão influenciar a posterior
percepção do mundo desse infeliz espectador.
Todo estímulo
sensorial violento obscurece qualquer forma de pensamento. Se uma bomba
explode ao nosso lado, é difícil completar a soma de dois mais dois. Se um
clarão de luz agride nossos olhos, ou se uma trilha sonora violenta nossos
ouvidos, é difícil construir uma frase além das imprecações.
[Início de citação] A usual violência dos filmes e da TV busca levar os
espectadores ao medo e ao desequilíbrio emocional que se assemelhem aos
primeiros meses de vida do bebê diante do espanto lhe causa o mundo. Visa
reproduzir a mesma impotência infantil para que suas vítimas adultas estejam à
sua mercê, assim como os infantes estão à mercê dos seus maiores.
Esta infantilização do espectador é perigosa porque inculca no seu
cérebro passivo um mundo virtual fabricado pelos donos dos meios de
comunicação, com seus valores e interesses. Esta é a forma mais insidiosa de
invasão, que, por si só, justifica a urgente criação e desenvolvimento, em
todas as classes e grupos oprimidos, de uma poderosa Estética.
O desejo legítimo de
qualquer cidadão de gozar os bens da vida — gozo que a justifica — é
transformado em inveja domesticada ao observar a vida farta e cômoda de
personagens de classes economicamente superiores à sua. [continua]
Página 149
[continuação] O universo
televisivo está sempre bem penteado e com a roupa engomada. Mesmo nas lutas sangrentas, a mecha de cabelos estará elegantemente
posta de lado. As roupas de astros e estrelas, mesmo em cenas de violência,
estarão sempre bem passadas... principalmente quando são de griffe
conhecida... marketing, com o perdão da palavra. [Final de citação]
Invasão dos Cérebros: a mesma tática que se usa para invadir um
país - primeiro bombardeios, antes que entre em ação a infantaria de ocupação:
primeiro tv e
cine... depois o mercado vem atrás.
As emissoras de tv fazem o possível para manter os espectadores em seus cárceres privados. Um das maiores emissoras
brasileiras produz telenovelas e espetáculos de variedades nos quais as
perguntas aos participantes são sempre sobre os personagens das suas
telenovelas. Seus atores dão entrevistas em programas dominicais falando de
suas próprias participações. A tv olha o seu umbigo.
Segundo a lei, cárcere privado é crime!
A maioria dos personagens dos comics
são magníficos exemplos de gente fora-da-lei que, por conta própria, prende,
castiga e mata sem julgamento: organizações paramilitares como Batman e Robin
fazem justiça pelas próprias mãos. Mandrake, o príncipe latifundiário, tem um
escravo voluntário, seu fiel Lotar,
rei de uma nação africana que ele abandona para servir ao grão-mágico - odioso
símbolo do colonialismo. Outro traidor exaltado pelo cinema, Gunga-Din,
indiano, sonhava ser corneteiro de sua majestade britânica e tocou sua corneta
despertando o exército inglês para que derrotasse os patriotas indianos
anticolonialistas.
No caso de Rambos
e outros anti-heróis dessa subespécie humana infradotada, a empatia torna-se relação de pura
animalidade irracional.
A empatia, em
Aristóteles, estava ligada à anagnorisis - a descoberta e a aceitação da verdade. Édipo descobre que é, com seu orgulho, o assassino do pai; Creonte
descobre que seu ato ditatorial foi a causa da morte de seu filho e nora. Os
protagonistas, porém, explicam as razões de seus atos e admitem seus erros -
emoção vinculada à razão. Nenhum sacrifício em vão. Na tragédia grega, a
violência física se realizava fora de cena: Jocasta se enforcava dentro do
palácio, Medeia jamais mataria seus filhos diante do aplauso frenético dos
comedores de pipoca. Suas razões, essas
sim, bailavam em cena diante das plateias, respeitadas como pessoas
inteligentes, não como fanáticos espectadores de uma sangrenta luta de boxe
tailandês.
Página 150
Mesmo sendo um sistema coercitivo que tinha por meta política
acomodar suas plateias ao conformismo social, não estimular seu inconformismo,
seu desejo de transformar o mundo - ao contrário do Teatro do Oprimido! -, a
tragédia estimulava o pensamento e podia, como em Eurípides, questionar a
sociedade e seus valores. Era o balé das ideias, não o das balas perdidas!
Em Shakespeare, é verdade, a violência chega a braços cortados e
olhos furados, mas nunca desacompanhada de razões e pensamentos que permitam o
contraditório. Não é a violência em si que causa irreparáveis danos
neurológicos à hipnotizada plateia: é a carência de pensamentos e motivações
para essas atividades físicas. A violência, em si mesma, não é boa nem má. Será
má quando reduzida a socos e pontapés sem subjetividades; didática, quando
reveladas suas causas e sua ética.
O convívio com a brutalidade forma brutamontes. Pessoa vivendo na
selva em companhia de feras predadoras, sem a presença humana, como se
humanizaria? Crianças abandonadas em florestas, aos cuidados de caridosos animais,
sequer aprendem a sorrir.
A mediocridade desse tipo de cinematografia e de literatura infantil não se deve à falta de
criatividade dos seus autores, mas sim à malsã intenção de, pela repetição,
bloquear o desenvolvimento intelectual das plateias. Trata-se de crime
artístico explícito, organizado e voluntário!
O belo filme de Stanley Kubrik, FullMetalJacket, mostra com perfeição estética o processo ultramilitar de socavar no cérebro dos recrutas peremptórias
ordens de obedecer e matar. O filme demonstra, em exemplo militar, o mesmo
processo que acontece na tv civil. Admiravelmente repugnante!
O extraordinário poder hipnótico da tv é levado ao paroxismo pelo frenético
movimento da imagem. Sabemos que qualquer movimento é atraente por causa da sua
imprevisibilidade - todo movimento cria suspense.
Ainda no berço, o olhar do bebê é atraído por qualquer coisa que se
mova, principalmente se tiver cores: o movimento harmônico de coisas e cores é
forma sadia de desenvolver sua capacidade de perceber. A tv, aleivosa,
utiliza esse fato biológico para confundir, fazendo com que suas imagens não
demorem na tela, via de regra, mais que alguns segundos fugidios.
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Não permitir que os telespectadores vejam as imagens que olham -
esse é um princípio básico da hipnose televisiva: forçar o olhar sem ver. O olhar, sem passar pela
consciência, transporta ao cérebro a ordem: compre!
Outra imprevisibilidade é o som: surpreende e assusta. Locutores
comerciais são neuróticos, a maioria psicóticos, apregoam aos berros suas
nefastas mercadorias na contramão do entendimento: ouvir sem escutar.
A iluminação dos shows
musicais, outro exemplo, é tornada vertiginosa qualquer que seja o significado
da música que não nos deixa ouvir - não permite que se entenda a letra que se
ouve. Luzes se acendem e apagam em ritmos alucinantes, provocando excitação
sexual, entre outras. Dependendo de para que serve a música, já é alguma
coisa... pelo menos isso...
Explicar para que não se entenda; informar para que não se saiba -
essa é a missão da tv privada:
fazer obedecer sem saber a quem. O mandante se esconde - seja o dono ou o
patrocinador. Esse não se vê, mas nada se faz sem ele. O vendedor não aparece
na tela: artistas e outras celebridades do momento emprestam a credibilidade
dos seus nomes ao produto que vendem: “Faça como eu: use tal produto...”
A empatia criada com o
artista, transformada em mimetismo, suspende nosso senso crítico.
Imobilizados, corpo e mente, ficamos à mercê de ralos pensamentos e reles
linguagem. Roupas e moda, maneira de andar e gestos, temas da trivial
conversação, fast-foods e
refrigerantes que promovem diabetes e obesidade, tudo isso são ordens que os
espectadores, por mimetismo inconsciente, cumprem.
Até nas comédias o nosso riso é programado e obrigatório: bobas
risadas, gravadas em background,
informam que tal cena é engraçada e nos dizem quando devemos rir, mesmo sem
achar graça.
Filmes made in Hollywood ocupam, no Brasil, dois
terços dos cinemas com suas armas anestésicas da sensibilidade e letais à inteligência.
Mas, sejamos justos: na tv a cabo, pelo menos, aprende-se a falar inglês. Mísero
vocabulário... mas inglês - outra forma de imperialismo.
Além dos irreparáveis males psicológicos e políticos que causam,
as fábricas de filmes arrecadam milhares de sacas de dinheiro todos os anos.
Nos primeiros meses de 2007, oitenta por cento de todos os cinemas brasileiros
foram invadidos e ocupados por dois ou três filmes dessa laia, 1, 2 e 3
homens-aranha e carrapato.
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Com este lixo
ético despejado em seus perplexos neurônios, os vulneráveis espectadores vão,
mais tarde, receber as novas informações. Não podemos nos espantar diante de
crimes de Columbine [nota 31] e Virgínia Tech, que foram prenunciados e promovidos por esse tipo
de cinema, nem podemos esquecer que as torres gêmeas de Nova York foram
destruídas em um filme de ficção antes de serem filmadas em chamas na tragédia
verdadeira. [nota 32]
Nem sempre a estrutura de seus programas já os condena. A ideia
dos reality shows não é péssima: se,
ao invés de gente vazia e medíocre, convidassem Noah
Chomsky, Amy Goodman e Michael Moore - para citarmos só intelectuais norte-americanos vivos, críticos do
sistema em que vivem - para ficar vinte e quatro horas em uma sala trocando
ideias, seria um encontro de inteligências e não de aberrações.
Paradoxo: a tv torna-se a verdade absoluta, e a realidade, ficção, até que
seja referendada pelo noticiário da noite.
No Rio de Janeiro, um assalto a ônibus que durou cinco horas foi
filmado pela televisão. Uma jovem confessou que, ao ver o que estava acontecendo,
voltou correndo para casa e ligou a televisão para ter certeza de que era
verdade o que havia visto com seus olhos: necessitava do soberano aval dos
olhos das câmeras.
Tememos a invasão da floresta amazônica por cobiçosas potências
estrangeiras e latifundiários autóctones que promovem queimadas e destruição. É
certo: devemos temê-la e combatê-la! Muito mais perigosa, porém, é a invasão dos cérebros promovida pela tv e pelo cinema
colonialistas, que dominam nossos espectadores com seus exércitos de
homens-morcegos e verdes maravilhas.
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Mesmo o Brasil, que sempre produziu fascinantes ritmos e melodias,
mesmo nós somos invadidos pela música massificada das companhias
transnacionais, cada vez menos acústicas e mais eletrônicas: mais máquinas e
menos gente, mais baratas de fazer e fáceis de vender. Da mesma forma que se
quis, um dia, decretar o fim da História, a indústria fonográfica quer agora
decretar o fim da Música.
Esse fim trágico foi inventado dez anos atrás, em Hamburgo,
Alemanha: o techno, ritmo semelhante
ao de uma versão mais violenta dos bate-estacas ou britadeiras de pedra. Estas
obstinadas máquinas da construção civil são muito mais musicais, delicadas e
sensíveis do que o estridente techno,
que, entre outros malefícios sanitários, descompassa marcapassos de doentes do
coração, já tendo causado mortes em shows
musicais nas ruas hamburguesas.
Além do fim da História, da Música, das Artes Plásticas, do
Teatro, do Cinema, dos conceitos de esquerda e direita e dos movimentos
sociais, querem decretar o fim do pensamento. Temos que libertar nossos pensamentos,
Simbólico e Sensível - armas de luta.
Uma nova Estética é necessária!
As palavras não mudam de sentido ao sabor de suave brisa, mas sim
na luta encarniçada pelo poder: Palavra é Poder. A semântica é um campo de
batalha onde palavras são troféus e armas. Nessa terra arrasada, em democracia e liberdade já não se reconhecem as fisionomias que um dia tiveram.
Não pode existir democracia onde não existem limites para a infinita riqueza,
vizinha da absoluta pobreza.
Essa apropriação indébita de significados e significantes,
proposital esvaziamento da palavra - que, podendo significar qualquer coisa,
não significa nada - tem por objetivo desorganizar a linguagem e impedir a
formulação de pensamentos coerentes.
Já não se sabe o que se diz quando se fala! Já não se sabe o que
se escuta quando se ouve. A língua, falada e escrita, torna-se obstáculo à
comunicação, o oposto daquilo para o que foi criada.
Sem exageros catastrofistas, estamos mergulhados na Grande Guerra
Mundial da Desinformação, insidiosa e sub-reptícia. O objetivo claro dessa nova
modalidade de guerra é o domínio, não de territórios geográficos, mas de
cérebros.
E nesse campo de batalha que se deve colocar a arte popular. Temos
que ser aliados nessa guerra contra o
eixo do discurso unívoco.
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A maioria dos filmes comerciais de inspiração holiudense,
sejam de que origem forem, têm uma só temática: o direito pertence aos mais fortes,
que estão sempre com a razão. São o Bem em sua cruzada contra o Mal - aqueles
que pensam diferente, pensam em verdadeira democracia econômica, política, de
classe, pedagógica, sexual, de gênero, todas.
Na Organização Mundial do Comércio, alguns países defendem a
chamada exceção cultural não porque
defendam a cultura, mas porque, através dela, o comércio - cinema, música,
vídeos, cds, dvds e outras indústrias - impõe seus
produtos.
Não falo contra aquele sadio comércio que satisfaz as necessidades
do comprador - feiras livres, das quais sou adepto! - mas sim do comércio
malsão, que cria necessidades
desnecessárias, invadindo nossas casas até pelas janelas pop-ups da Internet.
Nunca o comércio foi tão invasivo, deixando para trás o tempo em
que me alegrava ouvindo a voz do peixeiro, com cestas na cabeça, cantando as
vantagens do camarão fresco e românticas louvações ao bagre e à pescadinha...
Não é saudosismo: é saudade! Não quero voltar o relógio atrás, mas quero
avançar sem transgênicos.
A Estética do Oprimido faz parte da nossa luta contra essa invasão
cotidiana, sub-reptícia e subliminal - venenosa!
Uma nova estética é imprescindível!
Coroas refratárias e agressivas, mas não
indestrutíveis
As coroas que aqui
apresentamos são uma hipo-tese, isto é, hipo = menos que tese. Não posso
apresentar provas da sua existência, mas nenhum neurocientista pode apresentar
provas da sua inexistência. Não sou cientista, mas ser artista me confere a
liberdade poética de buscar a verdade por outros meios.
Si non é vero, é ben
trovato!
Nomeio coroa a este
sistema inspirado nas coroas reais, que, já na Idade Média, unificavam feudos
estruturando estados. O rei submetia barões, príncipes, condes e outros nobres
ao seu domínio dentro de uma estrutura maior que condados,
principados e baronatos: o reino.
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Lope de Vega mostrou a necessidade histórica desse forte poder
central em O melhor juiz, o rei, e
Shakespeare os malefícios da fragmentação de poderes em Rei Lear.
Essas coroas
assemelham-se às formas esponjosas animais e aos caules de certas plantas,
subterrâneos e rizomáticos: estes, como aquelas,
expandem- se, emaranhados, em todas as direções.
A penetração de novas informações sensoriais no córtex, através do tálamo, e a circulação cerebral de mensagens abstratas e emoções
concretas podem se dar de forma fluida e harmoniosa, permitindo que novos
circuitos se formem e se entrelacem, criando redes
ricas e complexas contendo mais circuitos e outras redes neuronais.
Pode acontecer que, dada a natureza das informações dogmáticas
repetitivas, essas redes se cristalizem, tomando-se opacas e compactas,
impedindo a chegada de informações conflitantes com as já existentes.
Exemplos dessas coroas
são encontrados em todas as formas de extremismo religioso, fundadas em um
sistema coerente de revelações e dogmas que, mesmo inverossímeis, jamais serão
questionados. Tornam-se agressivas em relação a outras coroas, outros fundamentalismos ou quaisquer informações, mesmo
científicas, que com elas discrepem, o que caracteriza o racismo teocrático. Recusam subjuntividades, dúvidas, raciocínios contraditórios.
Essas seitas eletrônicas chegam ao absurdo de fazer com que seus
fiéis acreditem naquilo que com certeza sabem ser impossível: vi com meus
próprios olhos um pastor eletrônico, diante das câmeras, ressuscitar um menino de poucos meses que,
mesmo morto, chorava baixinho e movia
as mãos... Beliscado, ele passava a gritar bem alto e a turba aplaudia a
milagreira ressurreição com ruidosas
aleluias. Tive vontade de convidar esse pastor para visitar o Cemitério do Caju
e lá exercer seus poderes reconstituintes e fortificantes...
Na minha infância vi mágicos orientais, trabalhando em circos, que
adotavam pitorescos nomes como Fu Man-Chu (personagem
do escritor inglês Sax Rohmer) ou Charlie Chan (norte-americano, de Den Bigger), bisonhos, fazerem truques mais emocionantes que os
falsos religiosos, aprendizes de feiticeiros eletrônicos. É claro que essa
gente não acredita em nada do que prega - acredita apenas em sua conta
bancária.
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É necessário separar esses comerciantes da fé de um lado e, do
outro, aqueles que, sinceramente perplexos diante do universo - como estamos
todos nós, quando nisso pensamos -, buscam refúgio e segurança, buscam
explicações para os mistérios do mundo em dogmas religiosos. Querem acreditar
em alguma coisa sobrenatural e acreditam em explicações fabulosas. São
honestos.
Essas multidões que abastecem os cofres das seitas televisivas têm
muitas razões para fugir de suas realidades de pobreza, doença e desemprego.
Hoje, no Brasil, depois de décadas de ditadura, explícita ou subterrânea, quase
não existem áreas conviviais além dos botequins, bingos clandestinos, estádios
de futebol, bailes funks, programas
de auditórios... Locais onde a inteligência e a sensibilidade não são
bem-vindas. Os atuais e recentes centenas de Pontos de Cultura funcionando no
Brasil inteiro são um belo e promissor começo de conscientização.
É verdade que alguns desses cultos televisivos fazem certo bem aos
seus dizimistas: muitos deixam de
beber, fumar, de bater em suas companheiras. O preço que pagam é o
obscurantismo das pregações inquestionáveis e da obediência irrestrita. Não se
tornam virtuosos pelo conhecimento, mas pela sujeição; pior, pela renúncia ao
saber, à busca. Tudo já está explicado. Talvez 1% dos fiéis receba recompensa
material: com os dízimos recebidos, essas igrejas contemplam alguns dos seus
seguidores com geladeira ou choupana, dando a todos a ansiosa esperança para a
próxima vez, como na loteria.
O fanatismo esportivo e religioso, a adoração idolátrica de pessoa
ou instituição, o sectarismo político ou quaisquer outros sectarismos - mesmo
quando existam razões sociais e econômicas para essa
rendição à miopia - são exemplos concretos dessas coroas formadas pela repetição insistente das mesmas informações
com o mesmo conteúdo, e pela aceitação de valores não questionados.
É certo que, tanto nesse tipo de templo como nas torcidas
esportivas e nos programas de auditório, seus integrantes têm semelhante
sensação de pertencimento. Pertencem, embora
nada lhes pertença. Tornam-se grupo, plural; nós, não com a soma, mas com o abandono de cada eu.
Nesse aspecto, os
blocos sujos de Carnaval oferecem a mesma sensação de companheirismo solidário,
mas sem efeitos devastadores, apenas catárticos, e duram pouco. “Pra tudo se acabar na quarta-feira...”
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Onde se expande o
medo e a insegurança causados pelo sistema socioeconômico em que vive a maioria
das nossas populações aí se expandem as igrejas inventadas por qualquer
autodenominado bispo ou pastor. Começam do nada - basta uma sala ou barraco em área pobre -, e
podem crescer numerosas e fortes, pelo número de seus integrantes, oferecendo
maior segurança espiritual onde nenhuma segurança material existe.
João Salles, no seu filme documentário Igreja evangélica, dá um belo exemplo de um caso típico: um
metalúrgico aposentado começou a pregar sozinho - não tinha nem pássaros para
ouvi-lo, como São Francisco, apenas rãs e sapos nas valas sujas do bairro
triste. Pouco tempo depois, viu sua igreja lotada e passou a oferecer batizados
com certificados para as paredes das casas dos fiéis etc.
Esse movimento vai na contra maré das outras formas de comércio
que tendem a uma maior centralização: constroem-se centros comerciais, hiper e
mega, e já não se veem quitandas, peixeiros ambulantes de cesta na cabeça,
armarinhos... Proliferam as seitas eletrônicas, quitandas da fé, enquanto
continua a construção dos mega-super-hipermercados dos milagres.
Algumas dessas igrejas atingem milhões de fiéis em todo o mundo:
as igrejas são globalizantes e competitivas entre si, embora usem o mesmo
livro.
Se as orações de uma seita extremista - ou dos extremistas de uma
seita - fossem feitas apenas uma vez a cada três ou quatro semanas, essas coroas não se formariam. Sendo realizadas
várias vezes ao dia, sim. Se as partidas de futebol fossem travadas a cada meio
ano, não existiriam hooligans, mas,
como se realizam duas vezes por semana, não deixam tempo ao torcedor de pensar
outros pensamentos que não sejam a bola e o gol. As repetições produzem as
refratárias e agressivas coroas. Essa
não é condição bastante, mas necessária!
Coroas integram várias regiões do cérebro. Na teoria de Hughlings-Jackson (1835-1911), algumas atividades cerebrais
são bastante simples, como a recepção da luz pelo nervo ótico, enquanto outras,
como o pensamento, estruturam uma imensa quantidade de elementos simples.
Não esqueçamos que o cérebro é um sistema ecológico, com seus
elementos interligados. Não temos que pensá-lo como uma cebola, formada por
diversas camadas, mas como uma esponja, interligada nas verticais, horizontais e diagonais, por todos os lados, de trás
para a frente, de frente para trás. verticais, horizontais e diagonais, por
todos os lados, de trás para a frente, de frente para trás.
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Pensamentos, memórias e emoções nunca permanecem isolados, nem
iguais a si mesmos - são latejantes, pulsativos. Redes neuronais são clarões
que, como brasas depois do fogo, se intensificam ou quase desaparecem, mas podem
se transformar em labaredas quando sopradas. Nossa vida psíquica deve ser
pensada como incêndio, não neve fria.
A Estética do Oprimido, democrática e subjuntiva, visa, através da
arte, permitir ao cidadão questionar dogmas e certezas, hábitos e costumes que
suportamos em nossas vidas. Visa analisar cada ação e cada fato que acontece
dentro de circunstâncias concretas. Visa destruir coroas de circuitos neuronais
refratárias e agressivas... mas não indestrutíveis.
Através delas se impõem ideias e ideologias imobilistas em que o
único movimento permitido é a concentração de poder. Destruir essas coroas é a
propedêutica necessária para a abertura de caminhos.
Todo poder autoritário é violência. Aquela mulher indiana que
disse “Meu marido não me bate mais do que o necessário, portanto não sou
oprimida!” revela a existência de um poder marital que não é maior nem menor do
que aquele que sofre aquela mulher nórdica que justificou seu esposo: “É
verdade que, no meu país, pelo mesmo trabalho e mesmas condições, os homens
ganham mais do que nós, mulheres. Mas isso não é opressão, porque nossos homens
são bons para nós!”
Elas não percebiam que a violência do poder não está apenas no seu
exercício - está na sua existência!
Como a violência pode se manifestar sem que seja exercitada? Pelo
espetáculo, pela estética. Como se revela e pode ser combatida? Pela estética
e pelo espetáculo, que se extrapola para a realidade onde se torna real e nela
se completa.
Uma Nova Estética é urgente.
A Estética do Oprimido é um ensaio de revolução.
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A
objetividade da arte
Os
três níveis da percepção
Para
ocupar nossos territórios necessitamos perceber o mundo onde vivemos.
Essa
percepção se dá em três níveis:
Informação — A luz se reflete sobre os
objetos, atravessa o cristalino dos meus olhos, estimula minha retina, que
informa ao nervo ótico, que faz circular essa informação até aquela região do
cérebro que me fará ver o que está diante de mim. Recebo a mensagem, que se
relaciona com outros circuitos neurais formando redes - eis o conhecimento.
Conhecimento e tomada de decisões — O
indivíduo relaciona as novas informações com as que já havia recebido e toma
decisões. Até aqui, humanos e animais se assemelham: decidem, reagem.
Ratos
criados em laboratório, que jamais viram a cor de um gato, fogem assustados
quando sentem o odor felino; mesmo sem conhecer o inimigo, reagem
biologicamente e repelem o cheiro. Nos animais, o conhecimento não se traduz em
ponderações, mas em decisões conclusivas. No ser humano, informação e conhecimento
nos levam a uma avaliação subjetiva, que é o terceiro nível da percepção: a
decisão ética ou moral.
Vejam
este exemplo: abro a porta da minha casa e vejo um tigre, escapado do circo;
meu nervo ótico registra sua presença - recebo a informação! Excelente! Meus
sentidos funcionam. Fico feliz. O tigre se aproxima e as informações continuam
chegando com precisão: vinte metros, dez, cinco. O tigre brama; escuto seu
bramido. Ativa-se meu nervo auditivo, bravo! Continuo alegre com o
funcionamento perfeito dos meus sentidos. O tigre abre sua enorme boca,
ativa-se o meu olfato e sinto seu bafo quente! Fico contente: as informações
são corretas, estou bem informado. O tigre abre a goela e arreganha os dentes!
Maravilha: percebo tudo, tão perto está minha cabeça dos seus dentes afiados.
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Se
parasse aí o meu processo psíquico, eu seria engolido com apetite e sem
delongas. No nível do conhecimento eu já sabia que tigre é animal perigoso;
sabia que posso trancar a porta e usar a chave; que tenho a chave da porta e
tenho pernas - posso me refugiar no andar de cima, posso me salvar exatamente
como o rato fugindo do gato. Mas, como humano, não me limito a fugir; posso
tomar decisões criativas e buscar soluções: inventar, escolher o que fazer. Na
gaveta, tenho um revólver e posso matar o tigre. Subo ao segundo andar, abro a
gaveta, ponho a mão na arma e...
... Consciência ética — Nível exclusivo do ser
humano, consiste em dar sentido e valor às decisões que tomamos. Este é o nível
da dúvida, das ponderações éticas. Devo matar o tigre? Afinal, o bicho está
faminto - a crise econômica diminuiu sua ração no circo onde trabalha! O tigre
quer apenas me comer, nada mais, saciando a fome sem aleivosia: comer gente ou
ração em lata lhe é tão natural como à piranha devorar um boi.
Eu
posso me salvar trancado em minha casa, esperando que ele vá embora; mas, se o
deixar livre, o tigre pode comer o filho do vizinho que está brincando com o
triciclo que ganhou de Natal - a carne do menino é mais tenra do que a minha...
Tigre sabe escolher. Chamo os bombeiros? Jogo minha escrivaninha na cabeça do
animal para que fique desacordado? Grito? Faço caretas? Será que o tigre
entenderá meu humor?
Este
terceiro nível é ético: dá valores a cada ato que praticamos e projeta nossas
ações no futuro, nas consequências das nossas escolhas. É criativo: exige a
invenção de alternativas. Não basta ver o que é, mas principalmente o que pode
vir a ser; ver o que não existe.
É
neste nível ético que se devem mover o Teatro e a Estética do Oprimido: não
bastam boas ideias, é necessário que sejam justificadas; não basta trabalhar
com ideias que já existem, é necessário inventar, porque todas as situações,
mesmo repetidas, são sempre novas.
No
nosso trabalho teatral, devemos amplificar todos os níveis da percepção,
especialmente o ético, para que nossas escolhas sejam conscientes- com ciência
- das possibilidades que existem ou podem ser criadas em cada situação!
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Os
animais agem levando em conta o que existe diante de si. Humanos imaginam, inventam
o que não existe.
Nossa
Estética deve ser conhecimento e invenção.
Do
processo estético ao produto artístico
Humanos,
em boa parte predatórios,[nota 33] buscamos ocupar o maior território, mesmo
além do necessário, excluindo os demais dos nossos domínios. Se, nos animais,
esse território é apenas terra, água e florestas, onde se comem uns aos outros,
nós, humanos, predamos também símbolos, títulos de nobreza e poder, nomes e
dinheiro - dinheiro como símbolo de todos os territórios.
Quem
nomeia é sempre o mais forte, e as nomeações começam no berço com o batismo; na
escola, com as notas que determinam quem é o melhor aluno; na formatura,
títulos acadêmicos; no esporte, campeonatos; no exército, a benção da espada;
na igreja, jogando-se ao chão. O nome de “esposa” se recebe com o vestido de
noiva; de “doutor”, na solenidade de formatura, e o Presidente da República é
nomeado em cerimônia no Palácio, cercado de ministros. Napoleão coroou-se a si
mesmo na Catedral de Notre Dame
porque acima dele não havia ninguém, nem o Papa, talvez Deus... talvez
apenas...
No
Renascimento, os nobres exibiam riquezas carregando dinheiro em um só bolso,
volumoso, na frente do sexo - prova de monetária virilidade! - e não ao lado
das pernas, como hoje. Usavam várias camadas de roupas cortadas verticalmente
para que todas fossem vistas ao mesmo tempo. Nomeavam-se a si mesmos: “sou
nobre”.
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O
artista é nomeado pelos meios de comunicação, que desejam transformá-lo em
mercadoria. No entanto, embora só algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo
de artistas, todo ser humano é, substantivamente, artista.
As
sociedades deveriam repousar em fraternas estruturas de solidariedade, mas as
monarquias, em toda parte, repousam em estruturas de vassalagem. Também nas
artes existem reis e rainhas; princesas e viscondes, estrelas e coadjuvantes...
Não
nego o talento: nego sua posse exclusiva.
Quando,
porém, àqueles que não pertencem à monarquia artística, quando às pessoas
comuns se oferece a possibilidade de realizar um processo estético do qual
foram alienadas, este processo expande suas possibilidades expressivas
atrofiadas, aprofunda sua percepção do mundo, dinamiza seu desejo de
transformá-lo.
Faço
distinção entre o fazer, isto é, o processo estético, e o que é feito, o produto
artístico. Para que este exista, aquele é necessário; mas não é necessário que
o processo estético dê origem ao produto artístico, à obra de arte. O processo
pode ficar inconcluso, e nisso não há mal.
Em
uma democracia ideal, teremos que democratizar não apenas a política, através
da mobilização popular, não apenas a economia solidária, não apenas a
informação, não apenas a educação e a saúde, mas todas as artes, pois que fazem
parte essencial de cada indivíduo, de cada grupo social, cada cultura e cada nação,
e do harmônico desenvolvimento humano. Temos que nos desatrofiar!
Temos
que não apenas consumir, gozar, fruir, mas produzir arte.
Ao
fabricar sua obra, o novo artista, mesmo que não chegue a produzir obras para
museus, sente o prazer de ser reconhecido como insubstituível naquilo que faz e
que só ele ou ela sabem fazer do jeito que fazem.
O
trânsito social do singular ao plural
O
artista é mergulhador de águas profundas. Como conciliar essa perigosa aventura
singular com a necessidade plural do grupo ao qual pertence?
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Cada
arte é um caso à parte. Ao escrever um poema lírico, a criação do poeta é
solitária. Ao pintar um quadro, o pintor expressa seus sentimentos em traço e
cor: tarefa do indivíduo. Mas nada impede que o grupo pinte um mural, monte uma
peça coletivamente, mesmo quando orientados nas diferentes técnicas e
possibilidades, e escreva um livro coletivo de poemas individuais.
O
trânsito entre o singular e o plural não deve limitar subjetividades nem perder
de vista a criação coletiva, que é um somatório de sensibilidades e não passiva
aceitação do denominador comum inferior.
No
caso particular do Teatro-Fórum, uma das principais formas do to, é necessário construir um Modelo - cena ou peça -
intencionado a ensaiar ações concretas na vida social, produzir mudanças,
transformações. Esse Modelo deve ser escrito (ou aprovado) coletivamente, pois
deve representar o pensamento, a necessidade e o desejo do grupo ou de sua
classe.
A
fabricação do Modelo move-se em dois níveis: seus autores devem recuar até o
mais íntimo dos seus sentimentos e experiências de vida, e avançar ao encontro
dos demais participantes. Mergulhar dentro de si e lançar pontes aos coartistas.
Na
equipe criadora, todos devem pertencer à mesma categoria social, à mesma função
ou profissão, vítimas da mesma opressão, vivendo semelhantes condições e tendo
os mesmos desejos de intervir na realidade à sua volta. Negros discriminados
por serem negros, mulheres por serem mulheres, camponeses sem terra, operários
em greve, professores mal pagos... Este é o nível superior do processo criativo
e estético do to.
Como
em jogo de xadrez, todas peças devem estar presentes no tabuleiro - todos os
personagens com algum poder de decisão devem lá estar, todos os oprimidos e
todos os opressores - ou seus representantes: trata-se de um combate do qual
todos participam.
O
TO é um ensaio para a transformação do real e não apenas um fenômeno
contemplativo, por mais transformadora que a contemplação já possa, em si
mesma, ser.
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O
processo estético da criação deve conduzir a um produto artístico bem acabado -
o Modelo - que deve refletir a percepção do grupo e seu desejo de mudança. No
espetáculo, o Modelo será submetido a um original processo de criação coletiva
através do combate teatral e não da pura palavra, criação esta provocada pela
intervenção dos espect-atores em busca de
alternativas de ação.
As
intervenções de cada espect-ator valem não só pelo
que dizem, mas pela voz com que o dizem; não só pelo fazer, mas pela forma de
fazê-lo. Não só pelo feito, mas pelo que se deixou de lado.
Esta
forma teatral é revolucionária na medida em que o Teatro - do grego, Theatron, thea-tron — deixa de
ser o “lugar onde se assiste a um espetáculo, ou é o próprio espetáculo”
(Houaiss) e se transforma em arena onde espectadores e atores, assumidos como
artistas e cidadãos, fabricam um espetáculo que pulsa em permanente moimento,
como a vida: práxis-tron.
Fazemos
praxis-tron, não thea-tron.
Como
o Teatro é o encontro de todas as artes, a Estética do Oprimido existe no som,
na palavra e na imagem. É a seiva da sua árvore - árvore viva. Não existe to sem Estética do Oprimido - esta é a sua linguagem.
O
espaço físico, o espaço estético e o espaço cênico já são Estética mesmo antes
que entre em cena o primeiro ator. Quando entra, seu corpo é pintura, escultura
e dança. Quando pronuncia sua primeira frase, suas palavras são poesia, ideia e
emoção. Sua voz é música. Seus atos são os atos estetizados de um cidadão.
Não
se trata apenas de tornar agradável o espetáculo, torná-lo estético, mas de
descobrir a verdade escondida atrás dos nossos hábitos mecanizados de
pensamento e comportamento repetitivo do dia-a-dia.
Ao
contrário do que se diz, o hábito faz o monge, sim, e o obriga a rezar mesmo
quando não queira. O que não impede que, dentro do hábito e dentro do monge, um
ser humano exista e viva. O monge pode se despir do hábito e do monge.
Não
falo de monges: falo de nós.
Esta
tarefa necessita dos meios estéticos e noéticos -
sensações e símbolos - para que se revele inteira. Não se busca o bonito,
busca-se o Belo. Não se quer constatar, mas transformar! Abaixo a resignação!
A
cópia do real reproduz aparências visíveis: duplica o óbvio. Artistas, nós
mergulhamos no fundo do mar para depois pisar em terra firme.
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165
O
método subjuntivo
O
teatro conjuga a realidade no tempo presente do modo indicativo -“Eu faço!” -
ou no gerúndio - “Estou fazendo”. A tv e a publicidade, no modo imperativo -
“Faça!” No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no modo subjuntivo, em
dois tempos: no pretérito imperfeito - “...e se eu fizesse?” - ou no futuro -
“...e se eu fizer?”
No
trabalho com camponeses que lutam pela terra para cultivá-la ou com jovens
cumprindo pena em estabelecimentos correcionais; em comunidades pobres ou com
portadores de deficiências físicas ou mentais; com operários de uma fábrica ou
empregadas domésticas; com alunos, professores e parentes, ou conosco mesmos,
temos que ser, sempre, subjuntivos.
Tudo
será se, porque quase tudo pode vir a ser.
O
Método Subjuntivo é a instauração da dúvida como semente da certeza. Antidogmatimo. E a experimentação de modelos de ação
futura, possíveis em uma situação dada, que precede a ação concreta.
Pedagogicamente,
devemos ajudar cada participante a descobrir o que já sabe: trazer à sua
consciência o seu próprio conhecimento. Não devemos dizer “Façam isto ou
aquilo, porque é assim que se faz!”, mas “Se fizéssemos isto ou aquilo, como
seria?”
Mesmo
que os participantes dos nossos projetos em escolas, saúde mental, camponeses,
pontos de cultura façam qualquer coisa admirável, ainda assim devemos pedir
alternativas: e se fosse diferente, como seria? No final de cada sessão, sim,
devemos decidir o que fazer, como fazê-lo e quando.
Devemos fazer!
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Revolução
cultural não dogmática
Em alguns países europeus, o ensino da
arte é obrigatório... de forma teórica. É óbvia a necessidade do estudo teórico
dos grandes artistas e suas obras, mas isso não basta. É como se estudássemos a
vida dos grandes campeões olímpicos de natação... sem cairmos na água. Ou
estudar futebol... sem bola.
A Estética do Oprimido é uma forma
essencial de combater a Invasão dos Cérebros porque coloca o oprimido como
protagonista do processo estético, não simples fruidor de arte.
Não leva a cultura ao povo, mas oferece
meios estéticos necessários para o desenvolvimento da sua própria cultura, com
seus próprios meios e metas. Não apenas educa nos elementos essenciais do como
se pode fazer, mas, pedagogicamente, estimula os participantes a buscarem seus
caminhos.
No caso particular do teatro, a peça
deve conter a ação dramática e sua clara crítica. Não realismo, mas realidade
que busque alternativas. Não a vida como ela é, mas como não queremos que
continue sendo. Todo espetáculo, em cena ou na vida real, é uma estrutura de
poderes que devem ser revelados.
A ascese, durante o fórum, é necessária
à compreensão de cada fenômeno que se mostra em cena, pois devemos sempre
chegar às leis sociais que regem esses fenômenos.
David Farout
dá este exemplo: se os marcianos visitassem a terra e tentassem compreender o
nosso sistema social e político observando os sinais de trânsito, entenderiam
quase tudo: o verde autoriza a passagem, amarelo é atenção, vermelho, e os
carros param. Atribuiriam um enorme poder a esses instrumentos deificados, mas
não saberiam por que as cores dos sinais mudam, nem quem as faz mudar.
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Qual o valor da multa? Saberiam tudo,
sem nada saber. Por isso, a ascese deve revelar as forças escondidas no ventre
de cada fenômeno, que são sempre sociais e políticas, revelar a correlação de
forças em conflito, e só assim entenderão as regras do trânsito... e da vida.
Na Guatemala, mais de mil mulheres
foram assassinadas, em menos de dez anos, por seus companheiros ou membros de
suas famílias: mas o que é o patriarcalismo? Nos Estados Unidos, trabalhadores
mexicanos ilegais são explorados e humilhados: mas quanto lucram as empresas
que os escravizam e por que as deixam escravizar? No Brasil, trabalhadores sem terra são deixados à margem de extensas terras
incultas: quem detém esse poder e como se dá a valorização bancária dessa terra
deixada improdutiva? O professor falta com frequência às aulas: qual é o seu
salário?
Isto é ascese! Buscar a causa primeira,
ou causa superior, anterior, verdadeira.
A Estética do Oprimido é trânsito;
esperança, não conformismo! Nada tem a ver com as revoluções monárquicas,
coercitivas, dirigidas de alto para baixo. Verdadeira revolução na cultura,
quando a base da pirâmide se subleva, esteticamente, para depois pôr em prática
seus achados. Na árvore do Teatro do Oprimido, a copa soberana são as ações
concretas.
Uma Estética democrática, ao tornar
seus participantes capazes de produzir suas obras, vai ajudá-los a expelir os
produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar
no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos opressores. Democracia
estética contra a monarquia da arte.
Se, nas senzalas, só se ouvissem as
falas da Casa grande e os cantos da corte, as senzalas jamais seriam capazes de
inventar Palmares. Na cultura da casa grande, a senzala serve e a casa é
servida. Só na valorização da sua própria cultura a senzala encontra sua forma
de ser. A cultura da casa não serve à senzala porque tem valores senhoris e
formas senhoriais.
Mesmo a chamada grande cultura milenar
deve ser reinterpretada do ponto de vista de onde estamos, e não de onde nos
disseram que a cultura estava.
Devemos pensar a arte do ponto de vista
de quem a produz e pratica, não a partir de uma perspectiva contrária à nossa.
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A esta nova visão da Estética batizei
um dia de Revolução Copernicana ao Contrário: [nota 34] somos, sim, o centro do
universo da arte porque somos o nosso centro, e não devemos temer invadir e
pisar o meio do palco, mesmo vivendo na periferia das cidades, nos guetos dos
excluídos e longe da arte oficial, à qual não devemos obediência. Somos quem
somos, e a vida é curta.
A Estética do Oprimido não inventou
nenhuma panaceia para os males da cidadania, mas com ela é possível reverter o
curso da acelerada desumanização dos oprimidos nesta época sombria.
Como a humanidade sempre esteve
dividida, os opressores determinam formas e conteúdos
da arte, impõem visão do mundo a todo mundo. E normal que os oprimidos contra
isso se rebelem. A Estética do Oprimido busca criar seus próprios valores, sua
verdade.
Como disse um camponês do MST: “O Teatro do Oprimido é bom porque
permite que a gente aprenda tudo que já sabia”. Aprende esteticamente - amplia
o conhecer e lança o conhecedor em busca de novos conheceres.
Aprendemos a aprender!
O estímulo que se faz em uma área
cerebral propaga-se às áreas circunvizinhas: acordes de violão desenvolvem
potencialidades visuais e não apenas auditivas. Campeões de xadrez estudam
música clássica para melhor imaginarem criativas estratégias. Einstein tocava
violino quando não sabia prosseguir com seu trabalho matemático e voltava à
matemática quando conseguia organizar seus pensamentos: a música é o som da
matemática, sublimada, sonora.
Da mesma forma que o esporte expande as
potencialidades do corpo, a arte expande as da mente.
Isto não significa que eu creia que não
haverá mecânicos de automóveis mais capazes do que outros; corredores mais
velozes; cientistas possuidores de capacidade inventiva acima do comum;
enxadristas capazes de estratégias insuspeitadas; escritores de estilo
magnífico; significa apenas que a todos devem ser dadas condições e meios para
desenvolver suas potencialidades em todas as direções.
Página 169
As sementes deste projeto já estão no
próprio Arsenal do Teatro do Oprimido -
técnicas de imagem já são Artes Plásticas; falta extrapolá-las para a obra de
arte concreta. Técnicas de ritmos já são música - falta transformá-las em
canções. Improvisações já produzem literatura - falta concretizá-las em poemas
e narrativas.
Até mesmo os Jogos Sinestésicos já
estão no nosso Arsenal e são os que mais estimulam a criatividade artística
porque, ao traduzirem uma sensação em outra, uma ideia em sensação ou uma
sensação em ideia, ao traduzirem a memória em emoção e esta
naquela, estimulam a totalidade dos neurônios estéticos envolvidos no tema.
[nota 35]
Buscamos o belo como qualquer artista.
O belo que, como escreveu Hegel, é o luzir da verdade através dos meios
sensoriais. A verdade que se esconde atrás das aparências. Mas não buscamos a
verdade hegeliana, onde se revela Deus, e sim aquela que pode ser inventada
pelos humanos: a luta contra a opressão.
Buscamos o belo que se esconde em cada
cidadão: mesmo que alguns não sejam capazes de criar um produto artístico,
todos são capazes de desenvolver um processo estético.
O belo não é algo que existe como coisa
ou na coisa, mas sim na relação entre coisa e observador - não é absoluto, é
relativo. Pode durar milênios, mas não é eterno; pode ser imenso, mas não
universal.
Página 170
O conhecimento da cultura de outros
povos e outras épocas é importante. Moças e moços de uma comunidade que
aprendam a dançar valsa com rigor austríaco ou minueto com elegância francesa,
algo aprendem mesmo que a “nobreza e o equilíbrio dos movimentos” [nota 36]
destas danças nada tenham a ver com suas vidas: comparam e gozam.
Se encenam uma peça de Molière ou
executam ao piano um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá ampliar os
horizontes da sua percepção -
aprendizado maravilhoso.
Nenhuma estrutura de dança, música ou
teatro, no entanto, é inocente ou vazia: todas contêm a visão do mundo de quem
a produz. Contêm sua ideologia, que, através da forma artística, é incorporada
por quem as pratica... a menos que disso esteja consciente.
É ótimo que saibamos dançar minuetos e
valsas, sabendo de onde vieram; melhor ainda é descobrir a dança que o nosso
corpo é capaz de criar. [nota 37] Somos seres rítmicos desde nossos corações e
nossos pulmões, até a sede e a fome, o dia e a noite, o trabalho e o lazer...
Somos seres musicais.
A Estética do Oprimido é uma proposta
que trata de ajudar os oprimidos a descobrir a Arte descobrindo a sua arte;
nela, descobrindo-se a si mesmos; a descobrir o mundo, descobrindo o seu mundo;
nele, se descobrindo.
Se não sei quem sou, serei cópia.
Para realizá-la na prática, o Centro do
Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro vem desenvolvendo o Projeto Prometeu.
Página 181
O PROJETO PROMETEU
Página 182
Em branco.
Página 183
Introdução ao Projeto
[Início de citação] O desenvolvimento do Teatro do Oprimido no mundo
suscita dois problemas essenciais: identidade e legitimidade. [Final de
citação]
Quem somos?
O Centro do Teatro
do Oprimido (www.ctorio.org.br) é uma
organização não‑governamental sem fins lucrativos dedicada ao estudo, à
prática e à difusão do Teatro e da Estética do Oprimido no Brasil e nos países
onde quer que seja necessária e possível a sua utilização.
Temos como
referência maior a Declaração universal dos
direitos humanos, que nos oferece o melhor que podemos desejar como
cidadãos: trabalho e lazer, moradia e dignidade, igualdade de gêneros e raças,
direito à vida e à segurança pessoal, educação e saúde, cultura e arte etc.
Proíbe a escravidão, a tortura, o tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante... Enfim, ela nos propõe um mundo aceitável no qual se poderia viver
razoavelmente bem - e é viável. Foi assinada por todos os países membros na onu em 10 de
dezembro de 1948; hoje, é ignorada por quase todos os seis bilhões de
habitantes deste planeta e pisoteada pela maioria absoluta dos governos que a
firmaram.
Temos que honrá-la
e não permitir que se transforme em soberba hipocrisia, como tem sido até
agora.
Respeitamos todas
as formas do fazer teatral por mais diferentes que sejam. Não desejamos
competição: acreditamos no intercâmbio criativo de informações e descobertas em
todas as áreas artísticas, sociais e políticas, especialmente com as
organizações fraternas que praticam o Teatro do Oprimido com as mesmas
preocupações éticas e estéticas que justificam o nosso trabalho.
Página 184
Essas organizações
atuam em dezenas de países dos cinco continentes, em variadas culturas,
dinamizadas por centenas de centros, grupos e indivíduos, envolvendo milhares
de mulheres e homens dispostos a trabalhar em favor da invenção de sociedades
humanas solidárias (www. theatreoftheoppressed.org).
O conceito de legitimidade está associado ao de legalidade, mas dele diverge. Esta é um
conjunto de leis, hábitos, tradições e culturas, que formam sua moral, não necessariamente sua ética - só esta
pode legitimar a ação política e social.
Moral - mores, em latim - refere-se aos costumes
que existem e são geralmente aceitos pela da população - até a escravidão já
foi moral e legal. Ética - Ethos, em
grego - é o que se deseja para si e para o conjunto da sociedade.[nota 1] Esta
definição se baseia em Aristóteles, que em sua Poética afirmava que cada sociedade tendia à sua perfeição. Ethos é o ideal desejado, não o real existente.
O comportamento ético consiste no conjunto de ações em busca desse ideal, não
na passiva obediência. Nós trabalhamos com estas definições semânticas dessas
palavras.
Nós, que
praticamos o Teatro e a Estética do Oprimido, nós, que trabalhamos por uma
sociedade sem oprimidos e sem opressores, queremos ajudar a tornar realidade
as promessas utópicas da Declaração
universal dos direitos humanos.
Esta é nossa
principal identidade.
O que fazemos?
Ser humano é ser artista. Nenhuma percepção
da sociedade e da natureza estará completa sem as duas formas humanas de
pensar: o Pensamento Sensível, criador de arte e cultura, e o Pensamento
Simbólico das palavras. O to
procura desenvolver esses dois pensamentos que, entre os oprimidos, foram
atrofiados pela prevalência do pensamento único. Nossa filosofia e nossa
política são claras: a luta contra todas as formas de opressão, em todos os
segmentos sociais.
Página 185
Nossa identidade legitima nossas atividades. Como
artistas, não dispomos de outras armas além da nossa arte e das ações
concretas decorrentes do seu exercício social. Como cidadãos, cada um de nós
tem, ou pode ter, suas alianças políticas, pode integrar outras organizações
com objetivos similares, jamais opostos: não se pode ser servidor de dois patrões: o to é o Teatro
do Oprimido, para o Oprimido e sobre
o Oprimido.
Teatro do Oprimido
TO é um método teatral que se manifesta através da
Estética do Oprimido, sistema com a mesma base filosófica, social e política,
que engloba todas as artes que integram o teatro. A originalidade deste método
e deste sistema consiste, principalmente, em três grandes transgressões:
1 — Cai o muro
entre o palco e a plateia: todos podem usar o poder da cena;
2 — Cai o muro
entre o espetáculo teatral e a vida real: aquele é uma etapa propedêutica
desta;
3 — Cai o muro
entre artistas e não-artistas: somos todos gente, somos humanos, artistas de
todas as artes, todos podemos pensar por meios sensíveis - arte e cultura.
O TO é uma Árvore Estética:[nota 2] tem
raízes, tronco, galhos e copas. Suas raízes estão cravadas na fértil terra da
Ética e da Solidariedade, que são sua seiva e fator primeiro para a invenção de
sociedades não opressivas. Nessa terra coexistem o remanescente instinto
predatório animal e o avanço humanístico. Na terra, vemos a miséria do mundo;
nas copas, o sol da manhã.
Página 186
TO é ensaio para a realidade - intervenção
concreta no real. Não se trata apenas de conhecer a realidade, mas de
transformá-la em outra melhor - obra dos próprios oprimidos conscientes, ou
conscientizáveis, com os quais somos solidários. Nossa política é apoiar os
grupos de oprimidos cujas políticas nós apoiamos.
Nenhuma oficina,
encontro, ensaio ou qualquer atividade do TO
deve terminar quando acaba: pelo contrário, deve projetar-se no futuro e
produzir consequências individuais e sociais, por menores que sejam, reais.
Todo e qualquer evento do TO deve
objetivar as ações sociais concretas
continuadas.
TO é ensaio para a realidade - intervenção
concreta no real.
[Início de
citação] Minha sabiá, minha zabelê,
Toda madrugada eu sonho com você.
Se você duvida,
Eu vou sonhar pra você ver.
(Cancioneiro
popular de Minas Gerais. Zabelê é uma ave da família dos inhambus, perdizes e
macucos. Aves em extinção... mas que ainda podem ser salvas e cantar, cada qual
com a voz que tem.) [Final de citação]
Ética e Solidariedade
Sinto necessidade
de algumas resumidas explicações.
Participação — deve incluir todos os segmentos
oprimidos da sociedade. A pessoa só, é vulnerável: devemos ajudar nossos
parceiros a se organizarem em grupos e com grupos que sofrem opressões
semelhantes, evitando-se o corporativismo e o individualismo - a farinha pouca, meu pirão primeiro; cama
estreita, eu deitado no meio, do cancioneiro popular. Participação política
é o braço atuante da Filosofia. Dizia
um filósofo latino: “Primum vivere, deinde philosophare” (“Primeiro viver, depois filosofar”).
Ou, nas palavras de Mário Moreno, Cantinflas, ator
cômico mexicano: “Temos que pensar pensamentos profundos, sim, mas... de
barriga cheia”.
Página 187
É difícil pensar
quando se tem fome.
Filosofia — não se trata de ensinar apenas
biografias de filósofos, nem suas ideias separadas da sociedade em que viveram,
mas as relações entre os pensamentos e suas consequências na realidade concreta
- ou em que as filosofias refletem o que vai nas sociedades. A forma de
explicar é tão importante como aquilo que se explica. Ser complexo não
significa ser complicado. Se uma ideia é complicada, é porque é ruim; se é
complexa, pode ser explicada em partes simples, passo a passo.
História — hoje, no Norte do Brasil,
indígenas são expulsos de suas terras por fazendeiros grileiros. A História nos
ajuda a entender as violências atuais, comparadas com os genocídios de
indígenas após as invasões brancas europeias. Para compreender nossos vizinhos
sul-americanos é recomendável estudar o genocídio da população paraguaia
perpetrado pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) entre 1864 e
1870, quando foram mortos quase dois terços da população daquele país - homens
principalmente. A rivalidade Argentina-Brasil talvez tenha algo a ver com a
história do Uruguai, ex-Província Cisplatina, objeto
da cobiça e posse alternada de ambos os países, antes das suas independências
no início do século XIX.
Trabalhadores sem terra, de norte a sul do Brasil, acampam em frágeis
barracas ao lado de fazendas não produtivas - é bom saber que a tragédia dos
sem‑terra começou com as capitanias hereditárias, entre 1534 e 1536,
quando o branco rei invasor, Dom João iii de Portugal, resolveu dividir as terras dos indígenas entre
os favoritos de sua Corte para se defender contra as invasões francesas e
holandesas.
Os recentes
conflitos políticos na Bolívia (2008) serão mais bem entendidos se pensarmos
que as invasões hispânicas desde o século xvi empurraram os indígenas para os territórios montanhosos e os
espanhóis ocuparam as terras baixas onde estão o petróleo e o gás, fontes de
riqueza. Justamente nessas regiões, agora hispânicas, estão as cinco províncias
separatistas que pretendem isolar os ameríndios em terras áridas e guardar
para si os dividendos do subsolo.
A História revela
as lutas de classes que movem as sociedades e explicam a degradação climática
da Terra, objeto da Ecologia; inclui o estudo dos sistemas financeiros e
econômicos, que aprofundam as divisões entre ricos e pobres - para isso existem
-, e todos os temas que possam iluminar os conflitos contemporâneos. A História
refere-se a hoje, não só ao passado.
Página 188
Ética e
Solidariedade, em forma estética, são a seiva
que alimenta a Grande Árvore do TO
e viajam pelas artérias axiais da Palavra,
da Imagem e do Som, transitam pelos Jogos, metáfora da realidade, e iniciam o
processo de nos despirmos do lixo cultural que nos envolve, estimulando a criatividade
dos participantes.
O processo prático
estético se inicia no tronco da Árvore com os jogos
lúdicos que, ao contrário dos jogos de azar, têm regras fixas mas exigem
criatividade, tal como a sociedade tem leis, mas necessita de liberdade. Sem
leis não existe vida social - sem liberdade não existe vida.
No Teatro Imagem as formas de percepção
não-verbal são estimuladas, sem detrimento da palavra.
Na nossa Árvore
existem quatro grandes Copas, e mais
uma.
A primeira, Teatro Jornal. Seria ingenuidade pensar em
liberdade jornalística: jornalismo é ficção a mando dos proprietários, que nele
refletem suas ideologias. Mesmo quando dizem a verdade, os jornais dominantes
mentem usando técnicas ficcionais, como a diagramação e o tamanho das
letras.[nota 3] As doze técnicas do Teatro Jornal (1970, Núcleo 2 do Teatro do
Arena de São Paulo) permitem desmistificar essa falsa neutralidade
transformando notícias e reportagens, ou qualquer material impresso, inclusive
a Bíblia e atas sindicais, em cenas teatrais.
A segunda Copa é o
Arco-Íris do Desejo, iniciado em um
ateliê em Paris (1980‑1983), no Centre du
Théâtre de ÉOpprimé-Augusto Boal, que codirigi com
Cecília Thumim Boal: Le flic dans la tête (Opolicial
na cabeça). Nesta fronde da Árvore estudam-se as técnicas introspectivas, que mostram opressões que trazemos
integradas como se tivessem nascido em nossa mente; estudam-se as relações
sociedade-indivíduo. Podem ser terapêuticas, mas não terapia.
A terceira Copa é
o Teatro Invisível, que iniciei
quando exilado em Buenos Aires (1971-1973), com o Grupo Machete.
Tenta sensibilizar a cidadania para opressões desapercebidas: é preciso desfamiliarizar a
opressão para que se possa vê-la e combatê-la.
Página 189
Sua trama, embora não seja verdade sincrônica, é diacrônica: não é verdade que a cena esteja
acontecendo espontaneamente aqui e agora,
mas é verdade que acontece perto ou longe daqui, e pode estar acontecendo em
outro lugar nesse mesmo momento.
A quarta Copa, Teatro Legislativo, foi desenvolvida com Curingas do Centro de Teatro do Oprimido do Rio de
Janeiro (Mandato de Vereador de 1993-i996).
Consiste na simulação, após o Fórum, de uma sessão normal de uma assembleia
legislativa. É sempre melhor que a lei, mesmo tão desrespeitada, esteja do
nosso lado e não contra nós. Nele, a cidadania legisla, compreende os
mecanismos da fabricação das leis. Mais de 15 leis já foram assim promulgadas
na cidade do Rio de Janeiro.
No Teatro Fórum, no coração da Árvore, os
oprimidos conscientes e os oprimidos conscientizáveis expõem opiniões,
necessidades e desejos; ensaiam ações
sociais concretas e continuadas, que é a Copa Soberana, meta maior do
Teatro do Oprimido - a intervenção na realidade.
Uma mulher foi
assassinada: por que homens matam suas mulheres em sociedades patriarcais? Que
regime social, moral, que regime econômico permite espancamentos e mortes? Por
que, sobre elas, cai o silêncio?
Nenhuma cena de
Fórum deve ser exposta em escala microscópica sem que se vejam os elementos
essenciais do Mapa da Situação; em cinema,
isso se chama zoom out - não o close-up, mas a vista panorâmica. Como a
câmera do cineasta que, ao se afastar do ponto cêntrico
do objeto sendo filmado, inclui elementos que o circundam, assim também, em um
conflito particular, não devemos descer às suas singularidades, conjunturais, mas subir ao estrutural: do fenômeno à lei que o rege,
às suas causas - Ascese! [nota 4]
Página 190
Em uma escola, um
professor exausto, criticado pelos alunos, que lhe pediam mais dedicação ao
ensino, disse que não podia continuar trabalhando pela manhã, dando aulas de
Geografia em uma escola, à tarde, lecionando Matemática em outra escola,
passando em casa na hora do jantar para um beijo nos filhos e na mulher e, à
noite, servindo de segurança em uma terceira escola. Os estudantes tinham razão
e o professor também.
Mapa da Situação: colegas, professores, diretores,
familiares dos alunos e dos mestres, Secretaria da Educação, governo... quem
mais? Temos que levar em conta a totalidade daquele universo, não apenas a
disputa professores-alunos; temos que subir ao macrocosmos — é quase sempre no alto da pirâmide que se encontram
as origens dos males, as pressões necessárias que se devem fazer e as soluções
possíveis.
Alternativas devem
ser propostas pelos oprimidos porque do céu cai chuva,
não soluções mágicas: no Recife, algumas mulheres trazem consigo apitos e
apitam quando alguma ameaça vai se concretizar. Outras respondem, denunciando o
agressor. Solidariedade ativa, não puramente formal! Na índia, mulheres
vestidas com saris
cor-de-rosa vão à casa do agressor tirar satisfações - vão muitas e vão armadas
com paus para qualquer eventualidade... Assustam! Estas são ações concretas sociais continuadas,
solidárias.
Shakespeare dizia
que o teatro é um espelho que nos mostra nossos vícios e virtudes. O Teatro do
Oprimido quer ser um espelho mágico
onde possamos, de forma organizada, politizada, transformar a nossa e todas as
imagens de opressão que o espelho reflita.
A imagem é ficção,
mas quem a transforma não é. Penetrando nesse espelho, o ato de transformar
transforma aquele ou aquela que o pratica. Um poeta se faz poetando, um
escritor escrevendo, um compositor compondo, um professor ensinando e
aprendendo, um Curinga curingando - um cidadão se faz
agindo, social, política e responsavelmente.
O ato de transformar é transformador!
Página 191
Declaração Universal dos Direitos Humanos
Adotada e
proclamada pela resolução 217 A (iii) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de
dezembro de 1948.
Preâmbulo
Considerando que o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e
da paz no mundo,
Considerando que o
desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que
ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os
homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a
salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do
homem comum,
Considerando
essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para
que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania
e a opressão,
Considerando
essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,
Considerando que
os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos
fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de
direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social
e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que
os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações
Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a
observância desses direitos e liberdades,
Página 192
Considerando que
uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância
para o pleno cumprimento desse compromisso,
A Assembleia Geral
proclama:
A presente
Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por
todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada
órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através
do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades,
e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por
assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto
entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios
sob sua jurisdição.
Artigo I — Todas
as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão
e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade.
Artigo II — Toda
pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Artigo iii — Toda pessoa tem direito à vida, à
liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV —
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de
escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V — Ninguém
será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.
Artigo VI — Toda pessoa tem o direito de ser,
em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei.
Artigo vii — Todos são iguais perante a lei e têm
direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a
igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e
contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Página 193
Artigo VIII — Toda pessoa tem direito a
receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que
violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou
pela lei.
Artigo IX —
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X — Toda
pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por
parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e
deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Artigo XI — 1.
Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente
até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em
julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias
necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou
omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou
internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no
momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII — Ninguém será sujeito a
interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua
correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito
à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo XIII — 1. Toda pessoa tem direito à
liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2.
Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a
este regressar.
Artigo XIV — 1. Toda pessoa, vítima de
perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. Este
direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por
crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das
Nações Unidas.
Artigo XV — 1.
Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será arbitrariamente
privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
Página 194
Artigo XVI — 1. Os homens e mulheres de maior
idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito
de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em
relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2. O casamento não será
válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
Artigo XVII — 1. Toda pessoa tem direito à
propriedade, só ou em sociedade com outros. 2. Ninguém será arbitrariamente
privado de sua propriedade.
Artigo XVIII — Toda pessoa tem direito à
liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a
liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa
religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância,
isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo XIX — Toda pessoa tem direito à
liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem
interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e
ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX — 1.
Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas. 2.
Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo XXI — 1. Toda pessoa tem o direito de
tomar parte no governo de sue país, diretamente ou
por intermédio de representantes livremente escolhidos. 2. Toda pessoa tem
igual direito de acesso ao serviço público do seu país. 3. A vontade do povo
será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições
periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo
equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII — Toda pessoa, como membro da
sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço
nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e
recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Página 195
Artigo XXIII — 1. Toda pessoa tem direito ao
trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Toda pessoa, sem qualquer
distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho. 3. Toda pessoa
que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe
assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade
humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção
social. 4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressar
para proteção de seus interesses.
Artigo XXIV — Toda pessoa tem direito a
repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias
periódicas remuneradas.
Artigo XXV — 1. Toda pessoa tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença,
invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência
fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e
assistência especiais. Todas as crianças nascidas, dentro ou fora do
matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
Artigo XXVI — 1. Toda pessoa tem direito à
instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e
fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução
técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 2. A instrução será orientada no
sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do
respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução
promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e
grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em
prol da manutenção da paz. 3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do
gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.
Artigo XXVII — 1. Toda pessoa tem o direito de
participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de
participar do processo científico e de seus benefícios. 2. Toda pessoa tem
direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer
produção científica, literária ou artística da qual seja autor.
Página 196
Artigo XVIII — Toda pessoa tem direito a uma
ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na
presente Declaração possam ser plenamente realizados.
Artigo XXIV — 1. Toda pessoa tem deveres para
com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é
possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará
sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de
assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de
outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não
podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e
princípios das Nações Unidas.
Artigo XXX — Nenhuma disposição da presente
Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo
ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato
destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui
estabelecidos.
Página 197
Projeto Prometeu [nota 5]
Mídia e
patrocinadores fazem supor que ser artista é um inalcançável dom divino; a vida
real prova o contrário: somos todos artistas.
Só um nadador vai
ser o primeiro a tocar a outra margem da piscina, mas todos podem nadar! Um
goleador fez mil gols, mas fazer gols não é privilégio do rei do futebol.
Para pintar, basta
pincel, tela e tintas: cada qual tem o seu jeito. Não sei cantar bemóis e
sustenidos, mas não me calo: canto com minha garganta e a voz que tenho.
Esporte, arte,
ciência e vida não são privilégios das classes confortáveis: cada qual tem sua
medida. A monarquia artística faz parte da economia do mercado: nós, ao
contrário, somos os citoyens da Revolução Francesa,
que aboliu os títulos de nobreza - Cidadãos da Arte.
Com esse
pensamento e desejo, o Centro do Teatro do Oprimido está desenvolvendo o
Projeto Prometeu.
A palavra
Não buscamos
transformar nenhum cidadão em escritor de best-sellers de aeroporto, mas
permitir que todos tenham o domínio sobre a maior invenção humana: a palavra.
Página 198
Conquistar palavras e saber usá-las
faz parte da luta de liberação. Nossa meta não é ajudá-los a superar Bandeira
ou Carlos Drummond, mas a si mesmos.
Palavras evocam
ideias, emoções, desejos. Quando uma empregada doméstica ouve a palavra Maria,
essa palavra vem associada a uma ordem: “Maria, faz o jantar”; “Maria, lava a
roupa”; “Maria, varre a casa e a varanda”; “Maria, faz isso, aquilo, vai lá,
vem cá”. Maria passa a ser prenúncio de ordem, que exige bater continência em
posição de sentido! Quando Maria, ela mesma, escreve seu nome em uma folha
branca, ela se redescobre, se reinventa e associa seu nome ao amor, ao prazer,
à política.
Maria assume seu
nome e se assume como Sujeito.
Escrever significa
dominar a palavra ao invés de ser por ela dominado. Quanto mais palavras
dominarmos, mais rico será o nosso pensamento e ampla a nossa visão do mundo.
Não é fácil pedir
a um operário, usuário da Saúde Mental ou a um presidiário que escreva um texto
que revele seus desejos, emoções, ideias. Temos que mostrar concretamente que
quem é capaz de falar pode também escrever o que fala.
Quando eu
trabalhava em um programa de Alfabetização Integral no Peru, em 1973, um
estagiário tinha acabado de comprar um dos primeiros gravadores de voz
portáteis (Geloso) - parecia um paralelepípedo.
Quando um dos participantes se recusou a escrever dizendo que não tinha talento
para isso, nós lhe fizemos uma entrevista com perguntas sobre temas que ele
conhecia. Suas respostas foram gravadas e depois copiadas em papel. No dia
seguinte, lemos o que ele havia escrito (ao falar). Para sua surpresa, era um
escritor nato... Escrever é falar de forma lenta, pensada, e falar é escritura
oral! Conhecendo um maior número de palavras, melhor pensamos.
Três jogos de palavras
Declarações de
identidade
Cada um declara
quem é, três vezes e para três destinatários diferentes - a pessoa amada, a
vizinha, o chefe do qual depende seu emprego, o presidente do país, o povo, o
gato ou cachorro de estimação: tudo serve.
Página 199
A cada vez que
declara sua identidade, como nossa identidade também nos é dada pela relação
com os outros, o escritor descobre suas identidades em desuso, multiplicidade.
Nenhum de nós é sempre o mesmo, nem para os outros, nem para si.
O que mais me
impressionou nos últimos anos
Os participantes
são convidados a escrever uma curta narrativa sobre um fato real impossível de
esquecer. As declarações de identidade são voltadas para o interior de cada um;
esta é uma reflexão sobre o mundo. Não basta narrar o fato - deve-se revelar de
que maneira esse fato nos impressionou e relacioná-lo com a nossa vida.
Pode-se colocar os
papéis na parede ou fazer circular os textos escritos entre os presentes, sem
que conste a autoria da cada um. Pergunta-se qual o texto que mais impressionou
cada participante e por quê. Só então se pergunta quem escreveu cada texto e
pede-se que o autor comente os comentários feitos sobre a sua narrativa. Outros
participantes devem intervir narrando fatos da mesma natureza, descobrindo
semelhanças.
Somos todos poetas
Não é necessário
ser poeta para escrever um poema, mas quem escreve um poema torna-se poeta. E o
fazer que nos faz.
O tema pode ser os
olhos da pessoa amada ou um buraco no sapato; o sorriso do recém-nascido ou os
preços do supermercado; um discurso político ou a esmola a um mendigo. Cada um
escreve uma página com
O que lhe desperta
emoções, reflexões.
Sequência:
1 — Sugere-se ao
poeta que as frases devem ser menores do que a largura do papel... a menos
que... ela/ele queira fazer o que bem entender.
2 — Sugere-se que
eliminem palavras inúteis, como costumam ser artigos, advérbios terminados em
“mente” e superlativos.
Página 200
A poesia procura concentrar o
máximo de significados com o mínimo de significantes: a arte de bem escrever é
a arte de saber cortar, disse bem um poeta. Confiem.
3 — Sugere-se que
os poetas organizem a frase de maneira a criar ritmo... a menos que...
Quando o poema
estiver quase pronto, o poeta lerá seu texto em voz alta para si mesmo,
procurando sentir suas palavras embaladas por um ritmo interno que lhe dê
prazer. A musicalidade ajudará a eliminar o excedente. Poesia é música!
4 — Sendo
desejável e possível, o poeta substituirá a última palavra de cada verso a fim
de criar ritmo e rima, mesmo sabendo que rimas não são necessárias à poesia. Em
arte, regras são sugestões, nunca leis imperativas.
5 — Um grupo à
parte deve compor uma música, de preferência com instrumentos inventados,
inspirada no poema; outro grupo, fazer pinturas ou esculturas; um terceiro, uma
dança com a mesma inspiração. Quando prontos, faz‑se um espetáculo com os
quatro elementos conjugados: poesia, artes plásticas, música e dança.
Para deixar claro
que somos todos artistas, cada um à sua maneira, façamos este exercício
demonstrativo simples:
1 — em círculo, os
participantes escrevem em um papel a sua assinatura normal - aquela do
dia-a-dia;
2 — passam os
papéis para a pessoa do lado direito, que deve imitar a assinatura do
companheiro;
3 — terminada a
imitação, voltam os papéis para os seus donos, que comparam a pequena obra de
arte que fizeram com a imitação: assinaturas revelam a personalidade do autor,
são obras de arte inimitáveis, como as impressões digitais.
A imagem
Artes Plásticas são formas de reinventar o mundo - é natural que
pintores e escultores, compositores e poetas, sintam-se deificados: corrigem o
trabalho da natureza..
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Artes visuais
artesanais
Escultura e
pintura, colagens, instalações, desenhos etc.
SER HUMANO NO LIXO — Cada grupo produz uma escultura coletiva sob o título Ser humano
no lixo, utilizando o lixo limpo de suas comunidades ou locais de trabalho,
podendo usar cola, barbantes, arames, madeira e o que for necessário para fixar
a Imagem. O tema é a figura humana no lazer, no amor, em diálogo ou solidão.
Outros temas podem ser: Esperança, Futuro, Meu lugar no mundo, Crise financeira
de 2008 em diante, Violência nas comunidades pobres, Deu no jornal de ontem...
Outros
participantes escrevem poemas ou narrativas sobre as esculturas assim
produzidas, outros procuram descobrir seus ritmos, outros, sua música e suas
danças... A sinestesia faz ver e ouvir o que passaria desapercebido sem esse
cruzamento de artes.
Ao escolherem
objetos existentes para inventar uma imagem, os participantes são estimulados a
ver o que olham, e não apenas sobrevoar realidades sem senti‑las. Quando
escolhem lembranças de coisas ou fatos, selecionam o que lhes é essencial e
desprezam o acessório - vivenciam o que viveram.
Quando conhecemos
uma cidade nova, as imagens e sons que nela se produzem causam surpresas;
depois, tudo se torna tão familiar que apenas olhamos imagens sem vê-las,
ouvimos sons sem escutá-los - temos pressa.
Segundo alguns
neurologistas, até na conversação diária, apenas metade das palavras que
pronunciamos é conscientemente percebida pelo nosso interlocutor. As outras são
supostas.
RE-FORMANDO A FORMA (AS BANDEIRAS) — Participantes pintam duas vezes o mesmo modelo: na primeira vez,
reproduzindo com exatidão uma imagem conhecida.
Pode ser a bandeira nacional, por seu caráter emotivo e simbólico,
o Pão de Açúcar ou Corcovado, a silhueta de uma garrafa de refrigerante nociva
à saúde, marca de fast-food que provoca doenças graves como a obesidade, ou
item publicitário que associa um corpo de mulher a uma bebida alcoólica.
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Pode ser o Parthenon na Acrópole ateniense,
a Torre Eiffel, de Pisa ou as destruídas Gêmeas de Nova York, os massacres em
Ruanda, Congo e Sierra Leona,
a Catedral de Brasília, o Taj Mahal ou favelas em palafita. Algo familiar sobre
o que se tenha uma opinião emotiva, intensa.
O participante vê
o que olha, reproduz seu modelo com o máximo de semelhança - a obrigação de
similitude será a mola retesada que aprisionará sua criatividade, forçando a
perfeição mimética. Na segunda vez, o participante deverá libertar a imaginação
pintando o que quiser, de maneira a dar uma opinião emotiva e ideológica sobre
o modelo.
OURO NATIVO NA GANGA IMPURA (Olavo Bilac) — Cada participante desenha algo bem conhecido.
Depois, acrescenta traços e cores de tal maneira a camuflar o desenho original,
mas sem modificá-lo. Pede- se aos outros participantes para reconhecerem o
desenho original. Isto é: garimpar o desenho original. Olavo Bilac, poetando
sobre a língua portuguesa, escreveu: “Ouro nativo que na ganga impura, a bruta
mina entre os cascalhos vela”. Comparam-se os desenhos.
Estes exercícios
são propostos como exercícios. Sua finalidade não é necessariamente incluí-los
em nenhum espetáculo.
Quando se trabalha
na preparação de um Modelo de Teatro-Fórum, o mesmo processo pode ser usado,
escolhendo-se, porém, o tema da peça em vez dos exemplos citados e
fabricando-se cada Objeto Quente segundo a visão do grupo.
Todo objeto que
entra em cena deve ser portador de um sentimento e de uma opinião. Também assim
toda palavra e todo som. Repito: arte não é reprodução do real, mas sim a sua
representação. Esta é ideológica, consciente ou não.
Artes visuais
eletrônicas
Fotografia, cinema
e computador
As mãos, depois do
cérebro, são o que de mais humano existe em cada um de nós. Cada participante
deverá fazer ou pedir que façam três fotos das suas mãos ou das mãos de pessoas
que trabalham na sua profissão ou vivem na mesma comunidade.
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Que fazem as mãos?
Trabalham com enxada, volante, foice ou vassoura? Teclado de computador ou
teclas de piano? Acariciam um rosto, um copo, um corpo? Lavam pratos, agridem,
gesticulam ou jogam cartas?
O fotógrafo deve
fazer o que o fotografado pede e não o que ele próprio gostaria de fazer.
Outros temas
possíveis são os pés calçados ou descalços, a casa onde moro, minha família, meu
mundo, meu trabalho, meu lazer, e até temas abstratos como liberdade, medo,
imperialismo, futuro... Lembro o menino peruano que, quando o tema era
opressão, fotografou um prego na parede que ele alugava ao dono de um bar para
ali pendurar seus instrumentos de trabalho: era engraxate e não podia voltar de
ônibus para casa com tamanho trambolho. Outro menino fotografou o nariz de uma
criança mordida pelos ratos - vivia em uma miserável cabana ao lado do rio e do
lixo...
Som e dança
A música é a forma
pela qual o ser humano organiza sua relação sonora com o lugar em que vive e
com o Universo, seus ritmos, melodias e sons harmônicos, ruídos, rumores,
estrépitos, alaridos e barulhos; é como se relaciona consigo mesmo, com seus
ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (o sono e a fome, p.ex.) e a
melodia do sangue nas veias.
Por essa razão
bastante, o poder econômico encarcera a música em festivais, empresas
fonográficas, impondo ritmos padronizados que possam dominar. O que deveria
ser harmonia entre o humano, a sociedade e o mundo, torna-se arma de sujeição.
A Estética do
Oprimido busca redescobrir os ritmos internos de cada um, ritmos da natureza,
do trabalho, da vida social. Não da hit-parade. A partir dos jogos A imagem da hora, Jogo das
profissões, Máscaras e Rituais,[nota 6] podemos escolher qualquer
atividade mecanizada das nossas vidas profissionais ou cotidianas e
transformá-la em dança. Ver o que fazemos sendo dançado, além de ser um prazer,
revela nossas mecanizações - algumas necessárias, outras absurdas.
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Podemos usar
instrumentos conhecidos, mas também inventá-los a partir de objetos ao nosso
redor. No começo da transformação de um objeto qualquer em instrumento musical,
é natural que o som ainda não se distinga do ruído, ou venha com ele misturado:
necessário é purificá-lo até a sua limpidez possível.
Tudo que existe
esconde ou pode produzir um ritmo: é necessário descobri-lo e desenvolvê-lo até
construir um novo instrumento. No norte da Argentina, usei um cavaquinho feito
com carapaça de tatu, o charango - é lindo e soa
belo. Já vi orquestras de percussão em copos de vidro cheios de água em níveis
diferentes, soando notas musicais; folhas de flandres, zinco, bambus, barris,
vassouras, latas, pratos, panelas, papéis, chicotes, cadeiras, canos de
plástico, folhas de zinco, caixas de fósforos... mil objetos que escondiam seu
som, que lá estavam. Na Internet, vi um músico asiático tocando flauta de
brócolis... O som não se comparava ao de um violino Stradivarius,
concordo, mas não deixava de ser bonito...[nota 7]
Tudo tem som, e
todo som pode se transformar em música.
A dança é o
casamento feliz entre a música e o corpo. Os movimentos da vida cotidiana são
prenúncio de dança ou nela se podem transformar.
1 — Bailarinos
mostram em câmara lenta e gestos mudos repetidos os movimentos do corpo no seu
trabalho profissional ou em qualquer atividade mecanizada: primeiro só os
braços, depois, quadris, pernas, pés e cabeça; depois, movimentando o corpo
inteiro e ocupando o espaço cênico.
2 — Escolhem
gestos essenciais e ampliam esses gestos, eliminando o que não é significativo
e variando o andamento do ritmo desses movimentos.
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Não se deve buscar a cópia do gesto
realista, mas permitir que os gestos essenciais se assenhorem de todo o corpo
do bailarino, expulsando o residual, mas mantendo a lembrança dos gestos
originais.
Cada um deve
mostrar como cada movimento atua sobre o seu corpo, estimula ou faz sofrer, e
não apenas reproduzir o óbvio. Esses movimentos sequenciais serão a espinha
dorsal da dança.
3 — Introduzem som
e ritmos - sons que brotem do corpo como água da fonte, sem preconceitos.
Os músicos devem
produzir música em harmonia com essa dança e sons, usando instrumentos criados
com objetos em uso nos locais de trabalho ou na comunidade do grupo.
4 — Tendo já a
sequência de gestos rítmicos, improvisa-se uma cena da vida desses personagens:
encontro amoroso, aumento de salário, casamento, greve na fábrica, reunião
familiar, jogo de futebol...
VARIANTE (na criação da
dança): outros participantes podem ser convidados a entrar em cena e mostrar
com seus corpos o que mais chamou sua atenção, dançar a dança que sentem
existir nos movimentos que viram. Quando o grupo original retomar sua dança,
aceitando essas sugestões ou não, terá visto alternativas.
5 — O grupo faz
movimentos em câmara lenta, depois acelera. Quando existir som, que seja o mais
baixo possível, apenas audível; depois, o mais alto que se possa alcançar. A
passagem de um extremo a outro deve ser lenta, não aos solavancos. Aquele ou
aquela que conduz o processo, como diretor, deve marcar uma coreografia sem
alterar o já construído.
6 — Durante a
improvisação, os bailarinos podem pronunciar uma só palavra, que seja a
essência do que sentem; depois, frase inteira; depois, diálogo entre eles.
7 — Sinestesia: os
poetas escrevem poemas usando as palavras que ouvem. Os pintores pintam imagens
que veem ou imaginam.
8 — Os pintores
colocam no chão seus quadros, o grupo troca ideias. Os poetas escolhem o quadro
que mais parece combinar com seus poemas.
9 — Diante de
todos, o poeta lê seu poema e o pintor segura seu quadro. Comentários.
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Sinestesia
Como já vimos,
sinestesia é a percepção simultânea de sensações diferentes ou a tradução de
uma sensação em outra. Ao ver um quadro ou foto, escrevemos um poema ou texto
inspirado nessa foto ou quadro. Ao ler um poema, inventamos música. Ouvindo
música, pintamos sons. Toda atividade sinestésica estimula a totalidade da
atividade psíquica.
Exemplo:
escolhe-se uma palavra que nos provoque uma certa emoção. Distribuem-se as
palavras e cada participante deve escolher um outro meio para representá-las:
um som musical, dança, quadro ou uma pequena escultura.
Fóruns urgentes em comunidades
No trabalho
prático com comunidades, quando fazemos exercícios da Estética, que
desbloqueiam e estimulam a criatividade, falta tempo para preparar o Modelo de
Fórum.
Na construção da
Imagem da Cena que prepara o espetáculo, os participantes sentem-se intimidados
e inseguros, porque quando se pede que façam a Bandeira ou o Ser humano no lixo
têm um modelo diante de si. Na preparação da Imagem da Cena (coisas, roupas
etc.), não têm nenhum modelo visível; apesar de terem ideias e sentimentos,
defrontam-se com o vazio físico.
Não existe técnica
capaz de resolver este problema. Vale explicar a importância social e política
do evento, superior e excludente de uma valoração individual de cada um. Se os
atores forem convencidos desta verdade, o problema se abranda.
Uma confusão
intimidatória se faz também com o uso de palavras como estética e estilo. O
corpo de um ator entrando em cena transmite informações sensoriais: já é a
Estética. Duas cadeiras e uma mesa no meio da cena já promovem comunicações
sensoriais, portanto Estética. Estética pobre, mas Estética. Uma toalha branca
em um chão preto pode ser tudo o que necessitamos para a nossa cena, que será
esteticamente mais rica do que a cena cheia de caixas e caixotes, trapos e
objetos sem significados.
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Repito: todo
objeto que aparece em cena só deve estar aí se for necessário. Deve conter, na
sua forma — cor, traço, volume, posição no espaço — um significado pertinente
ao tema.
Por essa razão
estética, devemos construir a cena a começar pelo Objeto Quente principal,
temático; depois o segundo, o terceiro e todos os demais, mas só os que forem
absolutamente necessários.
Nenhum objeto deve
ser rotulado ou explicado aos espectadores: seria o fim da comunicação estética
em benefício da palavra simbólica. Palavras escritas em cena, a menos que a
sua forma tenha valor estético e não sejam mera informação, obnubilam a
percepção da Imagem. Legendas penduradas no pescoço dos personagens - patrão,
policial, operário, chinês etc. - ao invés de enriquecerem, empobrecem a
comunicação. Figuras chavões como o tristemente célebre Tio Sam (I Need You!) são clichês que devem
ser evitados como nocivos à Estética.
Por outro lado,
estilos são coerências formais particulares.
No que concerne à
Imagem, nossa Estética possui dois estilos fundamentais e, entre eles, o
arco-íris de todas as combinações possíveis, desde que coerentes: estilo não
pode ser prisão.
1 — Realidade, não
realismo — Uma obra de arte não é a reprodução da realidade objetiva - é a sua
representação. Isto significa que a apresentação das coisas (objetividade)
deve ser feita de forma a revelar também a subjetividade da percepção que tem o
grupo da situação dramática apresentada: mostrar a coisa e uma opinião emotiva
sobre essa coisa. Na interpretação dos atores, deve revelar a ideologia dos
personagens e uma opinião emotiva sobre cada um. Não exageros, muito menos
caricaturas, mas sim magnificar os elementos ideológicos essenciais - nas
coisas e nos comportamentos dos personagens.
2 — Realismo
seletivo — Usam-se objetos como eles se encontram da realidade. Os atores
interpretam da forma mais próxima à do comportamento cotidiano. Este estilo
deve ser usado quando o grupo sente que é necessária uma visão exata do
comportamento dos personagens e de todas as coisas existentes onde se passa a
ação.
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Em resumo: nossa
Estética comporta pelo menos dois estilos principais. Para realizá-los
materialmente podemos usar três possibilidades:
1 — Objeto
encontrado: fazemos uso de objetos encontrados nas comunidades ou locais de
trabalho, guardando as propriedades naturais desses objetos ou dando-lhes
significados diferentes: uma garrafa pet pode ser um revólver, guarda-chuva,
pão francês etc. Esta é a forma menos rica em possibilidades porque os objetos
assim usados dificilmente farão esquecer sua origem e suas qualidades de
origem: a garrafa pet será sempre garrafa pet.
2 — Objeto
transformado: transforma-se e deforma-se fisicamente o objeto encontrado de
maneira que ele assuma a forma daquele que se quer
mostrar e usar - elimina-se a função de origem dos objetos. Usa- se cor, que
pode unificar todos os objetos em cena, mesmo quando de cores diferentes.
3 — Objeto criado:
a partir da matéria-prima - papel, madeira, massa etc. -, o grupo cria o objeto
que deseja dando-lhe a forma que revele sua importância ideológica e emotiva.
Los Teatreros Ambulantes de Puerto Rico, de Rosa
Luísa Marquez e Antonio Martorell, criaram um espetáculo em que todos os
personagens se vestiam com papel branco de bobinas de jornais: bispos,
generais, noivos etc. - tudo em papel, que era destruído a cada espetáculo e
recriado no espetáculo seguinte.
É importante só
colocar em cena objetos, inclusive roupas, que sejam imprescindíveis para que
cada coisa adquira sua importância, significado e esplendor. Certos grupos
sofrem a tentação de acumular um pouco de tudo, poluindo e tornando confusa a
Imagem, que deve ser econômica, seletiva e não pletórica.
O certo e o errado: nas salas egípcias do
Museu do Louvre, em Paris, cada múmia de reis e rainhas é apresentada
solitária, com iluminação própria, que ressalta todos os detalhes do seu corpo
e suas vestes - podemos ver e fruir cada centímetro quadrado daquela
preciosidade histórica. Já no Museu Nacional do Cairo existem mais múmias do
que as do Louvre, talvez até mais importantes historicamente, mas estão
empilhadas de tal maneira que nos dão a impressão de uma sala do Instituto
Médico Legal depois de brutal chacina, ruas salpicadas de cadáveres. Só falta o
cheiro do formol!
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A maneira de
apresentar uma obra de arte e valorizá-la pode ser tão importante quanto a obra
em si. Até mais: já vi uma lata de lixo caseiro ser apresentada em museu como
arte, design! Não deixa de ser...
Também a distância
é necessária para a completa apreciação estética: a imensa estátua dourada do
grande Buda deitado que jaz no templo de Wat Fhra Jerupon, em Bancoc, capital da Tailândia, talhada em ouro e
ornada de madrepérola, mal pode ser admirada porque por suas dimensões -
quarenta e cinco metros de comprimento e quinze de altura - ocupa quase todo o
volume do galpão onde está aprisionada; religiosos e apreciadores da arte mal
podem caminhar sem se esfregarem uns nos outros, provocando constrangimentos...
Quando lá estive, consegui ver pedaço por pedaço, mas não logrei ver o todo.
Na construção dos
personagens, devemos ser sintéticos, sem minúcias desnecessárias. Teatro é arte
de concentração.
Na criação dos
personagens Opressores, surge a dicotomia caráter versus função. Para que
cumpra seus objetivos sociais, é importante enfatizar a função social opressora
e não detalhes psicológicos. Ao fazê-lo, não devemos criar personagens
caricaturais, nocivas, porque nos fazem acreditar que os opressores sejam
apenas ridículos. Durante a Guerra Fria, quando se dizia que o imperialismo era
um tigre de papel, alguém respondia: “Sim, mas tem os dentes atômicos...” Por
essa simples razão, não se deve construir personagens de uma só dimensão, mas,
ao mesmo tempo, temos que ter cuidado para não absolvê-los tentando “humaniza‑los”.
Os ditadores mais
cruéis são, em geral, excelentes avôs... para seus próprios netos. Esse carinho
que demonstram pelos seus não pode se sobrepor às atrocidades que cometem
contra seus adversários.
Outra dúvida comum
surge quando se deve trabalhar algum tipo de conflito não-antagônico: pais e
filhos, casais, professores e alunos etc. Nestes casos, conciliação ou
reconciliação são possíveis, diferentemente dos conflitos antagônicos, em que
se torna necessário fazer desaparecer ou enfraquecer o poder econômico, social
ou político do Opressor: torturador, racista, sexista, grileiro de terras etc.
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Para superar o
problema da exiguidade do tempo de preparação do Modelo, podemos experimentar
uma sequência mais rápida e menos intimidante:
1 — Alongamento e alguns exercícios do Arsenal do
to.
2 — Discussão e
escolha do tema sobre o qual será o Modelo para o Fórum.
3 — Cada
participante faz sua Imagem do Tema. Esta etapa já é Estética: através da
Imagem, o participante mostra sua relação ideológica e emocional com o tema,
que, ao ser enunciado, é apenas abstração: palavras.
Em seguida, para
pluralizar a Imagem - Ação: cada ator deve fazer, em câmara lenta, os
movimentos adequados ao seu personagem na Imagem, tentando se libertar, uns, e
outros aumentando a opressão. Ou ainda fugindo, mostrando indiferença, seja o
que sinceramente for.
4 — Depois que
todos tenham mostrado suas imagens dinamizadas e sem comentários verbais, cada
um deve usar a Palavra, escrevendo: a) O que mais me impressionou naquilo que
eu vi; b) um poema sobre o que viu ou uma Declaração de Identidade na qual se
dirige a um dos personagens da Imagem, ou a alguém fora dela que tenha relação
intensa com o que foi mostrado.
5 — Comentários
gerais do grupo.
6 — O grupo
escolhe uma história e desenvolve uma sequência de ações dentro da estrutura de
dramaturgia usual, dando atenção clara a cada um dos seus elementos:
protagonista revoltado, consciente; contrapre- paração; crise: desenlace.
7 — Primeira
improvisação livre. Livre mesmo, mas tendo-se em mente que todo personagem é
verbo e não adjetivo, e que a teatralidade vem da ação, do confronto de
vontades, e não está contida neste ou naquele personagem isolado, tal como o
raio é a eletricidade que salta entre o polo positivo e o negativo e não
repousa adormecida em nenhum dos dois.
Nossos parceiros,
geralmente, estão influenciados pela interpretação televisiva, onde os atores
se comportam de forma plastificada, cada um prestando atenção à câmera e não ao
interlocutor, enquanto a inter-relação é a essência da teatralidade, a única
que pode revelar todas as dimensões de um conflito entre os personagens. E
preciso insistir na inter-relação: aí está o teatro!
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8 — Imagem das
coisas: a partir da primeira improvisação livre, o elenco decide qual o Objeto
Quente prioritário e quais os Objetos Quentes essenciais. Sempre pensando na
economia de meios e contra a poluição. Objeto Quente é aquele que revela
ideologias.
9 — Instalação do
Espaço Cênico neutro, que limite a fluidez do Espaço Estético. Nele serão
colocados os Objetos Quentes observando-se as distâncias que também são
significantes e têm significados.
10 — Improvisação
total com todos os elementos teatrais: personagens, objetos, espaços etc.
11 — Técnicas de
ensaio, começando pela Imagem das Coisas, Imagem Cinética, Ensaio Para Surdos.
Tudo isto é Estética. Quanto a desenvolver a Palavra, Pára
e Pensa! e Fala Mais! são as melhores técnicas de ensaio.
12 — Som, com a
utilização prioritária de instrumentos fabricados por nós mesmos e inspirados
na cena e nos personagens.
13 — Fórum.
Usei, neste texto,
várias vezes a palavra ideologia, sempre no seu sentido original (Desmond de
Tracy): ideias recebidas sensorialmente pelos cidadãos, que sequer passam pelas
suas consciências, mas determinam comportamentos: maneiras de falar, de agir,
de pensar.
Nosso objetivo
estético é mostrar essas ideologias camufladas de opiniões e revelá-las para
que possam ser destruídas, quando for o caso.
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Conjunturas,
estruturas e vida real
Em
uma sessão de Teatro-Fórum, a lucidez do Curinga deve ajudar a plateia, através
de perguntas (maiêutica), a passar de uma compreensão conjuntural do problema a
uma visão estrutural, tentando soluções mais abrangentes. Do que acontece uma
vez ao que acontece sempre.
Em
uma cena de Teatro-Fórum em uma escola na qual alguns alunos não apresentavam a
mesma facilidade para aprender como os demais, aventou-se a hipótese solidária
de que os mais adiantados deveriam ajudá-los depois das aulas. Bela
alternativa, porém conjuntural. Em uma cena em que um recém-desempregado não
sabia o que fazer da vida, sugeriu-se que os que mantinham seus salários
pudessem lhe dar uma ajuda financeira. Era uma alternativa humanitária
louvável, mas... conjuntural.
Esses
exemplos de solidariedade são maravilhosos, mas quando um problema só encontra
soluções conjunturais sendo de natureza estrutural, é provável que não seja
resolvido nunca e que a origem do mal permaneça intacta. Cabe ao Curinga
observar a natureza dessas intervenções e tentar estimular a ascese em direção
ao segundo nível do Teatro-Fórum: alternativas de caráter estrutural.
Nos
casos citados, é a escola que deve ser obrigada a contratar professores que
auxiliem os menos capazes e é nessa direção que se devem realizar ações sociais
concretas e continuadas. No segundo caso, é a empresa que deve ser pressionada
para que não ponha seus funcionários na rua a fim de obter maiores lucros para
seus acionistas! As ações concretas devem pressionar a empresa a manter seus
funcionários, pois os seus lucros causarão miséria às famílias operárias.
Soluções conjunturais, também bem-vindas, resolvem o problema no instante
apenas, como a esmola a um mendigo na porta da igreja, mas a longo prazo vão
permanecer disfarçando os problemas financeiros dos oprimidos.
Página
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Uma
vez encontradas alternativas de ação, conjunturais e estruturais, este é o
primeiro passo. O segundo é a extrapolação: vamos à prática! O Curinga deve
ajudar os participantes a prepararem a extrapolação na vida real, pois este é o
destino do Teatro do Oprimido!
Multiplicação: um
grão de areia é um grão. Milhões, são a praia
Cada
grupo de to deve colaborar em
alguma ação coletiva da comunidade onde se apresenta. Após um evento artístico,
não devemos abandonar o local como uma companhia itinerante que deixa saudades,
em trânsito para outra cidade: temos que manter contato, formando redes de
apoio. Não devemos nem podemos tomar o lugar dos oprimidos; ajudá-los, sim,
sempre.
Grupos
que praticam to na índia,
organizados pelo Jana Sanskriti, depois de cada
espetáculo perguntam em que podem ajudar e ajudam: faz parte do seu fazer
teatral. Pode ser uma ação contra o alcoolismo, denunciando a existência de
alambiques clandestinos na região - Jana já ajudou a fechar alguns! - ou uma
intervenção dialogal com maridos violentos, mostrando a irracionalidade de sua
prepotência. Seja qual for a opressão, colaboram para eliminá-la ou diminuí-la.
Grupos
de to, especialmente na
Europa, apresentam espetáculos em escolas e partem no fim do espetáculo. Vale a
pena aquele instante! Melhor, no entanto, será que esses grupos organizem
outros grupos, aos quais possam transmitir o aprendido, buscando o efeito
multiplicador, criando redes.
Grande
opressão é a solidão. Temos que ensinar o que aprendemos, por solidariedade e
até em proveito próprio: ensinar expande e fixa o conhecimento, reavaliando o
aprendido ao explicá-lo. Aprende-se ensinando. Este é o círculo virtuoso: Só
aprende quem ensina, só ensina quem aprende!
A
Solidariedade é a pedra de toque do Teatro e da Estética do Oprimido por
motivos filosóficos, políticos e pedagógicos! Devemos promover palestras,
testemunhos, teses, diálogos etc., não na forma curricular das escolas, mas
dentro das condições reais em que, e com quem, trabalhamos.
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Temas importantes como a época dos
filósofos pré-socráticos, que revelavam a inquietude dos seres humanos em
relação ao sentido da vida, aos valores morais, às relações humanas e à
substância do Universo; as invasões ibéricas no século XVI nas Américas, que resultaram no genocídio
de várias civilizações ameríndias; o acordo de Bretton Woods, que instituiu o
dólar como moeda universal, mas que só os Estados Unidos podem fabricar; a
guerra do Iraque e a do Vietnã; as reais causas da crise econômica mundial.
Todos estes temas são essenciais para que possamos entender as engrenagens do
mundo em que vivemos.
Quando se pensa em Solidariedade, é
impossível não pensar em Che Guevara e Albert Schweitzer como símbolos dessa
Solidariedade Sublime. Exemplos tão maiúsculos podem nos assustar.
Che era médico, de família de classe
média alta na Argentina, abandonou sua cômoda vida para se internar nas
montanhas de Sierra Maestra lutando contra a ditadura
de Batista. Presidente do Banco Nacional de Cuba, abandonou sua poltrona
ministerial para a romântica tentativa de libertar a Bolívia de uma
interminável série de ditadores castrenses. Deu sua vida.
Schweitzer, médico alsaciano, filósofo
e grande intérprete de Bach, na segunda década do século passado abandonou seus
clientes franco-alemães para se internar na pequena aldeia de Lambaréné, no Gabão africano, instalou seu consultório onde
antes havia sido um galinheiro e, durante décadas, cuidou de crianças e adultos
infectados pelas doenças da pobreza extrema. Morreu ao lado dos seus doentes,
em 1965, dois anos antes de Guevara.
A maioria de nós não é capaz de dar
nossas vidas em tais sublimes gestos de solidariedade. Nada impede que cada um
faça sua parte possível. Se não podemos dar tudo que temos, podemos dar o que
podemos dar, colaborar da forma que pudermos colaborar - é o caminho. A correção da caminhada é mais importante do que o
tamanho do passo!
Che Guevara dizia que ser solidário é
correr o mesmo risco. Eu penso que existem graus na solidariedade possível e
nem todos atingem o grau sublime a que ele chegou. Nem por isso devemos nos
abster: já que não podemos tudo, não façamos nada... Não! Ser solidário é fazer
tudo, integralmente, tudo que cada um pode fazer. E não deixar de fazer!
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Madre Teresa de Calcutá dizia que “O
que fazemos é apenas uma gota d’água no oceano, mas, se não o fizéssemos,
ficaria faltando, no oceano, a nossa gota d’água”.
Não sei se é poético ou melodramático,
de bom ou de mau gosto, mas sei que é verdade - a necessária verdade!
Joguemos nossos baldes d’água no
oceano!
Ações sociais concretas e continuadas
A meta principal do to é,
através dos meios estéticos, descobrir e conhecer a sociedade em que vivemos e,
sobretudo, transformá-la. Sempre. Em todas as intervenções que fazemos, esse é
o nosso desejo. Por essa razão, dizemos que um espetáculo ou evento do to
não termina quando acaba: sempre procura deixar raízes.
Sobre o trabalho que fazemos em
prisões, Bárbara Santos, coordenadora do cto-Rio,
escreveu:
[Início de citação]
Certa vez, num presídio em Presidente Prudente, São Paulo, quando nos preparavamos para uma apresentação em praça pública, um
preso me perguntou: “Você garante nossa integridade?” Ao que respondi: ‘Não,
não tenho esse poder’. E ele continuou me questionando: ‘Então, o que você pode
garantir?’ E eu disse: ‘Garanto que o espetáculo está bem montado, que a
pergunta é clara, que causará impacto, que chamará a atenção da sociedade, que
o diálogo com os espectadores será produtivo, que eu estarei lá com vocês do
começo ao fim. E que, depois, caso haja algum problema, farei tudo que estiver
ao meu alcance, que não é grande e que é de fora para dentro, para ajudar.
[Final de citação]
Bárbara se referia a um espetáculo que
teve aspectos exemplares: os presos, livres no palco; os livres, presos na
plateia (temporariamente). Até então aquela cadeia era considerada temida como
se fosse leprosário, vergonha da cidade. Veio o Fórum e os presos convidaram os
livres para se libertarem no palco, atuando suas opiniões: o que poderia ser
feito na situação que era mostrada no palco e que terminava em derrota. Um a
um, os espectadores subiram ao palco e improvisaram soluções, eles e os presos.
Diálogo entre a liberdade aprisionada e a prisão, naquele momento, liberta.
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Esse encontro amigável, pensado, ajudou
os habitantes da cidade, através do teatro e do diálogo, a não temerem os
apenados, que algum crime, certamente, havia cometido, mas que não eram casos
perdidos para a sociedade: estavam pagando suas penas e dali sairiam para ser
outra vez cidadãos. Esta foi uma ação social concreta que teve continuidade.
Em outra prisão, um indivíduo,
encarcerado desde mais de um ano, encenou sua vida inocente: havia sido preso
por engano. Por coincidência, na plateia estava uma juíza, que mandou
libertá-lo, e o rapaz saiu do palco para sua casa sem sequer passar pela cela
para buscar sua escova de dentes.
Conta Helen Sarapeck,
bióloga, atriz e coordenadora do Projeto TO na Educação:
[Início de citação] -
Eu tenho uma ideia! Posso entrar em cena? - perguntou um menino de oito anos.
- Não temos oficina
para crianças.
Negamos por muitos
anos o Teatro do Oprimido como método eficaz para crianças. Na verdade,
faltava-nos experiência e coragem para arriscar.
O primeiro contato
que tive com elas foi quando Boal era vereador na cidade do Rio de Janeiro. Foi
no Chapéu Mangueira. Experimentava jogos e exercícios, desenhos e pinturas, uma
forma de distrair as crianças e me iludir que fazia TO. Um tiroteio entre a
polícia e os traficantes paralisou o encontro e aumentou a distância entre as
crianças e o to.
Hoje, em todos os
estados nos quais trabalhamos, existem crianças fazendo to, cada vez
em maior número, querendo gritar seus desejos.
Não tomaram o espaço
de ninguém: conquistaram o delas.
Crianças preocupadas
com a Estética, com o preconceito, com a injustiça na sociedade e nas relações
familiares. Descobrimos o mundo do ponto de vista delas: humilhações, prisões,
espancamentos, estupros. Um mundo em nada parecido com o dos parques de
diversões, pirulitos, bolas e bonecas. [Final de citação]
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A entrada das crianças em cena em
igualdade de condições com os adultos é uma ação
social concreta e continuada: é preciso que os adultos escutem suas
vozes. Este é um dos diálogos que
estamos praticando.
Às vezes, é difícil encontrar os meios
para ajudar nossos parceiros com uma ação concreta. Além das conversas em
seminários, usamos também os diálogos pela Internet.
Um dia, um menino de menos de dez anos
contou que, quase todos os dias, um policial o cercava perto da escola e batia
nele, porque seu primo traficante havia sido assassinado.
[Início de citação]
Tem dia que ele chega a me tirar da escola e me leva pra um campinho que tem
aqui perto, me bate e faz um monte de coisas comigo. [Final de citação]
Improvisaram a cena. Mais tarde,
conversamos, entre Curingas, pela Internet.
Boal — Não podemos correr, nem fazer
com que nossos parceiros corram riscos evitáveis. Não devemos incitar nossos
parceiros a que sejam heróis de causas perdidas, nem abandonar uma causa quando
os crimes que chegamos a conhecer têm caráter tão sórdido e tão continuado.
Temos sempre que perguntar aos nossos parceiros quais as soluções que acham
viáveis, quais desejariam tentar com possibilidades de êxito - não devemos
nunca dar soluções que podem ser boas para nós, mas não para eles. Neste caso,
temos que buscar soluções também fora do teatro!
— Temos que estudar e construir o mapa
da situação, que inclui o Secretário de Educação e também o da Segurança, a
família do menino e de outros meninos, Juizado de Menores e deputados estaduais,
o governo estadual e membros de associações de direitos humanos. Conversar com
a diretora, professoras, colegas, vizinhos, sem abrir o assunto em seus
detalhes e dimensões, com nomes etc. Temos que ter consciência de que isto não
pode continuar e é nossa obrigação ética intervir.
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Bárbara — Acho imprescindível nossa
ação concreta. Nesse caso específico, somos parceiros da Secretaria de
Segurança do Estado. Eu, Helen e a coordenadora local do projeto estivemos
reunidas pessoalmente com o subsecretário de segurança em carne e osso. Esse
menino conseguiu um espaço de confiança para gritar por socorro! E nós temos
todas as condições de escutar esse grito. Podemos ser o amplificador do som da
voz dele, que deve ecoar no escritório do subsecretário, responsável pessoal
pelo desenvolvimento deste projeto. Acho que o Teatro foi fundamental abrindo o
espaço de expressão. Agora temos que ir além, tomar as primeiras providências
junto à Secretaria de Segurança, à qual temos acesso direto. Depois, temos que
montar essa cena, da maneira que acharmos mais adequada, para mostrar que a
violência está sendo alimentada por todos os atores sociais, inclusive por
aqueles que deveriam combatê-la.
Claudia — Podemos pedir ajuda a um
conselheiro tutelar da região. que pode nos orientar legalmente.
Helen — Estou muito chocada com o que
leio, mas quando estivemos nessa escola e vimos os policiais, deu pra imaginar
o clima de tensão que aqueles jovens vivem. Concordo, apoio e assumo que temos
de fazer uma ação concreta! Impossível calar diante disso! Lembro do rosto do
menino... meu Deus! Vamos ter calma. O desespero não ajuda. Vejo duas coisas a
serem feitas com urgência: apoiar os Multiplicadores e falar com o Secretário.
Quero fazer isso pessoalmente. Com calma e reflexão vamos encontrar a melhor
forma de ajudá-lo. e vamos ajudá-lo. Parada eu não fico!
Bárbara — Teatro-Fórum, em situações
como esta, é um desafio porque a representação da realidade precisará se
distanciar do realismo. Ao mesmo tempo em que temos que enfrentar essa
tristeza, podemos desfrutar da alegria de termos a chance de contribuir na
busca de alternativas de transformação que podem ser paradigmáticas para
muitos outros casos.
Helen — Fiz contato com várias
instituições de defesa dos direitos da criança que me informaram que só podem
fazer algo se receberem uma denúncia formal. Me indicaram o Conselho Tutelar.
Todos com os quais fiz contato insistiram sobre a necessidade de conversar com
o menino e receber uma denúncia. Então liguei para o Multiplicador e pedi que
falasse com o menino.
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Multiplicador — Oi Helen, conversei com o menino ontem. Expliquei que havíamos levado
o assunto até vocês e que tinha aparecido essa oportunidade de fazer alguma
coisa em relação ao que aconteceu com ele, que me informou que o policial foi
transferido. Falei também sobre o Conselho Tutelar.
Boal — Eu não penso que serão as crianças que realizarão Ações Concretas
eficazes por conta própria - já o teriam feito! —, embora delas participem
necessariamente. Mas acredito que possam dar ideias, principalmente quando
interpretadas no que dizem e fazem. Penso que, quando tratamos com parceiros
como elas, nossa obrigação é bem maior: somos nós mesmos que devemos buscar
soluções. Este problema é agora um central no to e no cto, pois não basta
conhecer a realidade, é preciso transformá-la! Brevemente vou fazer perguntas,
primeiro aos nossos próprios Curingas, depois aos que aqui vieram no último
seminário, e a outros, na tentativa de estabelecermos um quadro de aplicação geral
que possa ter um caráter orientador nessa pesquisa, nesse processo
investigativo.
Bárbara — Em relação às cenas de violência doméstica, sugiro a troca de
comunidades. Grupos de uma comunidade apresentam nas outras e os das outras
apresentam naquela. Como várias das peças são sobre violência doméstica, os
temas serão abordados, e os pais e as mães violentas terão oportunidade de se
ver em cena sem que a raiva dos próprios filhos possa ofuscar o conteúdo.
Creio que os jovens se sentiriam mais seguros e satisfeitos por saberem que
poderão ajudar outros jovens e serão ajudados por eles. Nossa cultura histórica
do ESQUECIMENTO não
nos deixa enfrentar a discussão da mentalidade escravocrata que permeia nossa
sociedade e do autoritarismo herdado do regime militar. Fazendo Teatro do
Oprimido tiramos o véu histórico.
Boal — Acho a ideia ótima e totalmente compatível com a função dos Diálogos.
Eu me lembro de uma vez, quando o nosso grupo de estudantes negros, cenun, foi até o Morro
do Chapéu Mangueira para dialogar com um grupo de TO local que tinha um problema sério com
seu posto de saúde - repassagem de verbas etc. Pois foi um dos estudantes
negros que, ao entrar em cena, sugeriu que, ao invés de depender de uma outra ong que
obstaculizava o repasse e aumentava ainda mais a burocracia,
sugeriu que os próprios habitantes criassem sua própria ong com essa finalidade. A Distância
Estética permitiu que aquele estudante pudesse ver soluções com maior clareza
do que aqueles que estavam intimamente ligados ao problema, com o nariz colado
à realidade: eis o poder do Teatro e Metáfora.
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Esses diálogos nos trouxeram pistas de
como proceder para estimular o trabalho local sem expor ninguém ao risco.
Estabelecer parcerias com o movimento social para criar rede de proteção e ação
compartilhada, promover diálogos entre grupos para que um se apresente na
comunidade do outro e realizar sessões de Teatro Legislativo são algumas das
ações concretizadas.
Flávio Sanctum, Curinga do CTO trabalhando nas
prisões, escreveu: “Em uma apresentação no presídio feminino, a cena falava de
uma presa deficiente física que não podia se locomover nem nos momentos de banho
de sol, pois não havia acesso a cadeiras de rodas. Nos momentos de higiene
pessoal ela precisava se arrastar pelo chão para chegar à privada, pois nada
era adaptado para deficientes.
Estavam assistindo, convidados da
sociedade civil, advogados e o diretor da unidade. No Fórum, ele entrou em cena
e se comprometeu a fazer rampas em todo o presídio. Na próxima visita que
fizemos, o presídio já estava todo adaptado para deficientes”.
O apoio que de forma contínua temos
dado ao MST (Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em diferentes manifestações são claras
formas de ações sociais concretas. O MST usa o Teatro-Fórum não só para preparar
atividades importantes, como a ocupação pacífica de terras improdutivas, como
para analisar seus próprios problemas internos, referentes, por exemplo, à
educação e à cultura, e às relações de gêneros: usa o Teatro Invisível quando,
em centros comerciais superlotados de fregueses, desdiaboliza
a imagem que a mídia procura colar às suas ações pacíficas; o Teatro-Procissão,
quando marcha sobre Brasília reclamando seus direitos à posse de terras
inúteis.
O CTO mereceu, em janeiro de 2009, receber o Prêmio
Luta Pela Terra, oferecido pelo MST em reconhecimento a essa estreita colaboração.
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O Teatro
Legislativo é já uma ação social concreta
que tem efeitos continuados. Após uma sessão de
Teatro-Fórum, arma-se uma Assembleia Legislativa com todos os seus elementos:
mesa, tribuna, debates contraditórios, encaminhamentos. Não basta exercer os
rituais: necessário é contatar legisladores para que façam aprovar, no
verdadeiro plenário, as ideias surgidas na ficção teatral.
Além das treze leis que conseguimos
promulgar durante o nosso mandato de quatro anos na Câmara dos Vereadores -
entre elas, a mais importante, a primeira lei brasileira de proteção às
testemunhas de crimes, a lei que obriga todos os hospitais municipais a terem
um certo número de leitos reservados à Terceira Idade, a lei que obriga escolas
a manterem creches etc. -, já conseguimos, através de legisladores de
diferentes partidos em ação, promulgar mais cinco leis de porte municipal.
E pouco, mas são leis. Ao nosso lado e
não contra nós.
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Experiências iniciais no campo da saúde mental
Delírio,
alucinação, ritmo, e as formas delirantes da arte
Nosso campo de ação é limitado. Queremos
estimular a saúde mental que ainda exista em cada usuário. Não tratamos a doença:
estimulamos a saúde. Aquilo que o usuário pode fazer, queremos estimulá-lo a
mais poder. Não somos especialistas em problemas mentais ou neurológicos, e não
queremos trabalhar longe do olhar científico daqueles que se dedicam às artes
da medicina. Somos artistas - apenas isso... e tudo isso.
Com os usuários, trabalhamos
arte, música, pintura e sobretudo arte teatral, que estrutura imagens da
sociedade. Importante é estruturar e a essas estruturas dar significados.
Não sabemos o que é a doença
nem o que é a saúde em cada um. Suspeitamos que a saúde é a capacidade que tem
cada um de nós de transformar em ato - ato-alisar - as potencialidades do seu
corpo e sua mente. Ser capaz de levar a limites máximos as atividades corporais
e psíquicas. Essa é a saúde máxima - a doença máxima é a morte!
Com nossos parceiros, ditos
“normais”, não queremos atravessar limites. Com os usuários temos maior
cuidado: mais lentamente, testamos onde estão os limites confiáveis, seguros.
A realidade dita objetiva é
inacessível porque nós a percebemos através dos sentidos físicos, imperfeitos,
que são os primeiros organizadores da nossa subjetividade, que é
instável.
Podemos, porém, falar em
objetividade porque as pequenas diferenças perceptivas verificáveis por
diferentes observadores permitem supor a existência de uma grande semelhança
entre as nossas percepções e as alheias.
Ao não termos acesso às
realidades concretas, flutuamos sobre o real, flutuação aceitável que permite o
diálogo e a compreensão mútua, mas assume, na arte ou no delírio, a feição de
voos siderais.
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Quando um poeta, imerso em
imaginações, escreve seu poema; quando um pintor, alheio ao mundo, pinta seu
quadro; quando um compositor escuta sons que transcreve em partituras sem que
ninguém os ouça; quando o ator sobe ao palco e finge ser quem sabe que não é, e
os espectadores fingem acreditar e acreditam — estas são formas delirantes da percepção
estética. Delírio organizado.
Aceitamos como sendo
verdadeiras as realidades fingidas, sabendo- as tais:
[Início de citação] O poeta
é um fingidor;
finge tão
completamente,
que chega a fingir que
é dor
a dor que deveras sente
[Final de citação]
— Fernando Pessoa.
Finge sentir o que de fato sente: distância
entre vivenciar e viver. [nota 8] Metaxis (Methexis): a imagem do real é real enquanto imagem. Pertencimento a dois
mundos simultaneamente: o ator é o cidadão e, ao mesmo tempo, é o personagem.
A existência de estilos nas
artes de cada época e de cada artista mostra que os artistas, mesmo no auge da
sua subjetividade, obedecem a regras que os prendem à realidade da qual fogem.
Disciplina no desvario.
Só para citar estilos
fundamentais, temos uma progressão impressionante de contínuos afastamentos da
realidade dita objetiva à qual, no entanto, continuam ligados:
Naturalismo — o artista busca a maior
aproximação possível com a percepção coletiva e se anonimiza,
isto é, procura não revelar suas ideias e sentimentos como se fosse dos
personagens - sua meta é a total verossimilhança com a realidade. Essa desejada
identidade, o artista jamais poderá alcançar porque a obra de arte tem limites
físicos e dela nos distancia - embora real em si mesma, a obra é metáfora do
real-modelo, não é o modelo;
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Realismo — despreza o
fortuito, é seletivo; torna denso o sentido e a forma da obra, para magnificar
sua percepção e induzir os observadores a que vejam exatamente o que viu o
artista;
Expressionismo — revela a
particular visão deformada que tem o artista, ou seus personagens, das
realidades que mostram ou vivem - mantém-se, na obra de arte, uma estrutura
lógica, certa coerência;
Surrealismos — quebram-se as
usuais relações estruturais e orgânicas da realidade, mas perdura a
consistência das emoções, mesmo que vagos elos racionais estruturantes ainda
existam ou possam ser supostos.
Quando dirigi Nada a Calingasta, de Júlio Cortázar, no Schauspielhaus
de Graz, Áustria, no início dos anos oitenta, como diretor fui o mais stanislavskiano possível, buscando a lógica-ilógica que
existia no absurdo da trama... e que foi encontrada. Em outras palavras, o
espetáculo foi montado realisticamente dentro de um enredo onírico.
O surrealismo guarda tênue
coerência formal - e, no caso do teatro e do cinema, coerência também dos
personagens, mesmo incoerentes -, por mais subterrânea que seja essa coerência.
A improvável história da peça e a realidade vivida estão afastadas, mas podem
interagir - ambas existem. Alguns atores austríacos, espantados, me
perguntavam: “Esta cena, você quer que eu a interprete assim ou assim?” - e eu
respondia: “Quero isto... e aquilo!” Causava espanto, mas o elenco acabou se
acostumando comigo e com Cortázar...
Bem diferente foi quando,
pouco depois, dirigi a primeira versão completa[nota 9] de El Público, de
Garcia Lorca, no Schauspielhaus de Wuppertal,
Alemanha: constatei que não se tratava de surrealismo, mas de nonsense. Lorca era amigo de famosos surrealistas, como o
cineasta Luís Bunuel, e queria fazer uma experiência
nesse estilo, que admirava nos outros, mas para o qual estava totalmente
desqualificado: seu grande talento eram peças sanguíneas, como Bodas de
Sangue...
Dadaísmo — puro nonsense. Sabemos que toda arte é produzida pelo cérebro humano.
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Ainda que o dadaísmo proclame a destruição da
razão e exalte o aleatório, o acidente, o ocasional, alguma razão existe no
artista e em sua obra para que pense assim, e essa razão que propõe a desrazão é estruturada em uma linguagem racional. O
dadaísmo se explica e, ao se explicar, nega sua essência.
Todas estas formas delirantes
diferem dos delírios porque são socialmente aceitas como arte - são Arte - e
são bem estruturadas: têm lugar, modo e hora. São disciplinadas e estruturantes
também para seus espectadores, nunca postos em perigo; por maior que seja a
selvageria em cena de certos espetáculos improvisados, no final do espetáculo
baixa o pano (quando existe), sob aplausos, sorrisos e abraços.
No delírio patológico, ao
contrário, o sujeito não é capaz ou é pouco capaz de controlar seu delírio;
incapaz de compreendê-lo e compreender-se.
Entre os delírios patológicos
quero incluir o racismo, sexismo e todas formas de
extremismo religioso, fanatismo esportivo e sectarismo político - todos estes
são blindagens psicológicas que expulsam a inteligência e a sensibilidade.
Xenófobos que incendeiam moradias
de estrangeiros, profanam cemitérios e destroem sepulturas de mortos de outras
culturas; uxoricidas que assassinam parceiras; religiões e seitas que praticam
o genocídio de outras seitas e religiões porque adoram outros deuses, ou os
mesmos deuses de formas diferentes; torcidas organizadas que usam armas de fogo
e matam; hordas de massas fanatizadas incapazes de pensar de forma abrangente e
que nada veem nem ouvem além da voz do seu caudilho, a letra da sua cartilha...
- todas estas são patologias sociais, doenças graves que devem ser tratadas
como tal.
Torturadores são doentes
mentais graves. O torturador é, antes de tudo, um covarde: jamais tortura
sozinho, sempre acompanhado de seus iguais. Não tortura um combatente em luta
franca: tortura prisioneiros desarmados, solitários. Mesmo sendo doenças, não
merecem perdão: são doenças culposas e dolosas que não inocentam criminosos!
Os cleptomaníacos que invadem
os três poderes da República são doentes, certo, mas não merecem compaixão,
merecem cadeia!
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O louco Nero, que incendiou Roma, houvera
merecido um tratamento psiquiátrico intensivo antes do incêndio; praticado o
crime, só um bom remédio existiria na panóplia médica: grades bem grossas!
Devemos ter compaixão com os
que sofrem, não com os que, conscientemente e em proveito próprio, fazem
sofrer.
As formas delirantes da arte
são diferentes porque os delírios são repetitivos, limitados a poucas
interpretações do real, empobrecedores, enquanto as formas delirantes são
criativas, imaginosas, rompem limites. Limites que devem ser estruturados e,
nos ensaios, repetidos para serem mais bem compreendidos e dominados pelo
usuário.
Por essa virtude de romper
limites, as formas delirantes da arte correm o risco de se transformarem em
alucinações[nota 10] que nos fazem ver o que não existe, perseguindo o voo
livre da imaginação. Isto acontece nos transes de certas religiões animistas,
tanto quanto no animismo de certas religiões, e nos transes estéticos de certos
artistas no momento da criação.
Formas delirantes da arte e
alucinações patológicas são maneiras especiais com as quais o sujeito organiza
e expressa sua percepção do mundo - nisso se assemelham. São diferentes porque,
na alucinação patológica, o sujeito torna-se vítima do descontrole perceptivo
e, nas formas delirantes, o sujeito se permite atingir os limites desse
descontrole sem ultrapassá-lo. Assemelham-se ainda porque são aventuras
investigatórias da mente.
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Quando as formas delirantes da
arte se transformam em alucinações estéticas, o artista sente ou simula
sensações ativando os clarões neuronais da memória viva ou submersa e os
clarões expansivos da imaginação, amalgamando o real e o onírico.
A alucinação estética,
semelhante ao estado hipnagógico, [nota 11] é
controlável pelo artista, ao contrário da alucinação patológica, senhora do
paciente.
Que elos poderão ser criados
entre a alucinação estética, controlada, e a alucinação patológica que talvez
seja, em alguns casos, controlável? Se ambas são estruturas perceptivas que se
afastam do consensual, como será possível amalgamá-las e construir, na
enfermidade que a desorganiza - mas não destrói - uma percepção convivial do
mundo?
Quando usamos palavras como
doentes, usuários e pacientes, ou, depreciativamente, loucos e malucos, estamos
compactando, em palavras simples, realidades complexas. Algumas dessas pessoas
sofrem problemas neurológicos congênitos; outras, transtornos psicológicos
suaves. Não podemos confundir autistas, melancólicos, psicóticos, neuróticos e
esquizofrênicos, pois cada indivíduo é uma vida, e só aquela.
Com que usuários podemos
trabalhar? Só a nossa sensibilidade poderá responder... com a aquiescência
médica.
Devemos entender que os
distúrbios psicológicos podem ter origem psicológica, social ou neurológica -
não podemos atuar, com culposa inocência, como se ignorássemos individualidades
e especificidades. Só podemos trabalhar com aqueles que ainda podem, conosco,
dialogar: ouvir. Ouvi-los com respeito é essencial ao nosso trabalho, mas precisamos
ser ouvidos!
Penso que a arte teatral pode
ajudar no tratamento mental se o diretor (Curinga) compreender que o usuário
não é um rascunho de ser humano que precisa ser corrigido pelo professor, mas
alguém com suas idiossincrasias específicas, que o tornam inadaptado e infeliz
no seu meio social.
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O Curinga deve ser capaz de
estimular o paciente a encenar seu delírio ou alucinação na condição de sujeito
e não objeto do processo teatral, organizando imagens da cena, dando indicações
aos personagens - inclusive ao seu, papel protagônico
- e assumindo as funções de verdadeiro diretor. Mostrando, com ele próprio
entrando em cena, atuando, como devem interpretar os personagens da sua peça
delirante, inclusive o seu próprio papel. Ao fazê-lo, supõe-se que se deve
instalar a dicotomia pessoa-personalidade, objeto-sujeito, dentro do mesmo
indivíduo: o usuário, tornado comandante de si mesmo.
O Curinga deve saber funcionar como apoio indutor, sempre
fazendo perguntas, levantando dúvidas onde houver certezas - se houver -,
oferecendo certezas onde houver dúvidas - que sempre existem. Deve ter o
especial cuidado de evitar que, ao ser encenado na ficção teatral, o delírio se
instaure na realidade.
Ao suspeitar que isso possa
acontecer, deve ele próprio oferecer alternativas de comportamento aos
personagens, sempre perguntando ao usuário: “Eu tive uma ideia; você quer isto
ou aquilo? Assim ou assim?” Necessita ter sensibilidade e inteligência para
fortalecer os vínculos do usuário com o real. Ao perguntar - e se o contato
(Contrato) se mantém ou cria - ele, Curinga, é o vínculo com o real.
O usuário, mostrando aos
atores da sua peça como devem interpretar seus personagens, cria a distância
necessária à compreensão do seu drama real.
Esta distância estética se obtém
com o uso de duas técnicas principais:
1 —
Câmara lenta: o paciente mostra fisicamente tudo que deseja que o ator faça no
seu lugar, porém muito lentamente, observando ele mesmo cada momento dos seus
movimentos;
2 —
Repetição: o diretor pede que o paciente repita fragmentos de cada cena, sem
permitir que a emoção decole e voe. Fragmentado e lentamente, cada momento
importante da encenação do delírio torna-se observável pelo paciente, pelo
Curinga e pelos médicos.
O diretor deve ter presente
que todas as formas e técnicas do Teatro do Oprimido têm, como objetivo último
fundamental, a transformação do real social, com a eliminação de todos os
tipos de opressão.
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Se queremos que sofram menos, é para que
possam, mais e melhor, agir nesse processo liberatório.
Na Arvore do TO, todas as suas
frondes levam à copa soberana, que são as Ações Sociais Concretas e
Continuadas.
Ao encenar o seu próprio
delírio (ou alucinação), o sujeito estará criando uma metáfora dessa alucinação
ou delírio. Podemos supor que o delírio estético estetizará também o delírio
patológico; podemos ainda supor que abrirá novas alternativas de comportamento
e de enredo para a história vivida e contada.
Este é um campo de uma
investigação que vai em meio.
Alucinação patológica, alucinação
estética e formas delirantes da arte... do sonho ao despertar... é um projeto!
Se pudermos amarrar o sonho patológico a uma realidade objetiva reconhecível
pelo paciente, será esse despertar possível?
Tão mais possível será se,
pela constante prática artística, estimularmos o Pensamento Sensível a
estruturar-se a si mesmo e ao Pensamento Simbólico, traduzindo palavras em sons
e imagens harmônicos, imagens e sons em palavras.
O artista, criando sua obra,
assemelha-se e se diferencia do paciente delirante. O artista é senhor de sua
obra e seus caminhos; o paciente, escravo do seu delírio. Se o enfermo
conseguir criar como artista, transformando seu delírio em produto visível,
audível e palpável—pintura, dança, escultura, música, poesia, cinema ou cena
teatral -, poderá ver-se a si mesmo, pois que se verá refletido em sua arte.
Sujeito da sua criação, recriando-se a si mesmo ao criar sua obra.
Se o artista pode ficar
doente, o doente pode tornar-se artista!
E uma hipótese!
Estamos entrando em terreno
delicado, campo minado. Quando trabalhamos com grupos de pessoas ditas normais
- operários ou camponeses, estudantes ou professores, empregadas domésticas ou
classe média... -, sabemos que nesses grupos existem graus de normalidade,
personalidade e caráter. Nenhum participante é igual a outro. Ninguém é igual
a ninguém, cada qual tem suas expectativas e necessidades. Pacientes dos caps não são apenas usuários: são gente.
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Cuidado e delicadeza são
necessários. Nosso Método Teatral, por mais estimulante e benfazejo que seja,
não é panaceia universal. Podemos trabalhar com usuários em certas faixas de
disfunções, mas não em todas. Não substituímos terapeutas, apenas trazemos uma
metodologia auxiliar que tem se mostrado útil.
[Início de citação] Jamais
tomaremos o lugar dos médicos: não temos o seu saber, nem a sua experiência.
Não trabalhamos com a doença, mas com o que ainda exista de saúde em cada
indivíduo, por mais afetado que tenha sido, e procuramos fortalecer essa parte
saudável, por menor que seja, para que ocupe um espaço maior na vida desse
cidadão ou cidadã. [Final de citação]
Dentro destes limites, as
possibilidades do TO são ótimas.
A Obra de arte é uma forma
coerente de organização do nosso mundo incoerente.
Mesmo no surrealismo, os
rituais da arte impõem seu tempo, lugar e substância. Pintando, não jogamos um
aleatório balde de tinta na tela: escolhemos cor e forma - mesmo os artistas
que fazem assim, escolhem a tela e a cor da tinta. Poetando, não baralhamos
palavras como bolas de sorteio: escolhemos a palavra justa, respeitamos a
personalidade de cada palavra, que é, de todas outras, diferente. Interpretando
um personagem de teatro, em cena ou da vida diária, não vagamos a esmo pelo
espaço: aceitamos os limites do palco, o momento de falar ou calar, frases a
dizer, ações a realizar...
“Na sua loucura existe
Método”, dizia Polonius referindo-se a Hamlet. Existe
razão na desrazão, coerência na incoerência! Até
certo ponto, em certos casos, de certa forma... Mas existe. O fantasma de Hamlet
era o seu próprio inconsciente, condenado a “vagar de noite... epurgar os crimes que cometi em vida...” - disse o
Fantasma. Hamlet sentia angústia em sonhos noturnos, quando despertavam suas
culpas, e acordava em manhã melancólica enquanto dormiam culpas.
A Arte existe como objeto
criado em lugar determinado, com peso e forma na pintura e na escultura; no
tempo, fluido instante, na música; em tempo e lugar, em todas as formas
teatrais, inclusive ópera e dança. Devemos ajudar os usuários a buscar os elos
existentes - ou criá-los - entre alucinação e arte: ambas são, essencialmente,
visões estéticas.
Da mesma forma como Einstein
recorria ao violino para organizar reflexões matemáticas, pacientes de um
Centro de Ajuda Psicossocial podem recorrer a outras artes para tentar fazer
dialogar seus delírios com as estruturas lógicas e sólidas das formas delirantes da arte.
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“Não existe certeza de cura,
mas existe tratamento, com certeza” - dizia Hélio Peregrino.
Tratamentos tradicionais, ou
caídos em semidesuso, como o eletrochoque, procuravam
sacudir as redes neuronais do usuário, desorganizá-las, para que se
reestruturassem por si mesmas. Nenhuma destas duas formas de tratamento
apresenta, no entanto, o mesmo que na Arte sobeja: estrutura temporal e espacial.
Arte é uma forma de
Conhecimento.
A experiência rítmica
O ritmo que mais nos interessa é, em primeiro
lugar, o próprio ritmo individual de cada um, que deve transformar sons em
ritmos, ritmos simples em música. Não tentamos repetir ritmos conhecidos,
tocados pelas rádios, mas, indo fundo em si mesmas, nós ajudamos as pessoas a
tentar descobrir os ritmos que delas brotam com maior simplicidade. Tentamos
ajudar na busca, ou na invenção, desse ritmo íntimo, sabendo que cada um de nós
está impregnado de ritmos culturais impostos.
A solidão é alucinógena. Nos
exercícios e jogos rítmicos, com a participação de mais de uma pessoa, cria-se
uma estrutura social, sedimenta-se o grupo. Para poder jogar este jogo é
necessário o diálogo, é preciso olhar no rosto uns dos outros, solidariedade,
conivência.
Do ritmo passamos à imagem, e
nosso arsenal tem vários exemplos de jogos de imagens. Tentamos ajudar os
usuários a transformar tudo em imagem. Se um usuário ouve um cão ladrar todas
as vezes que tira os sapatos e por isso não quer
tirá-los nunca, devemos pedir que desenhe ou pinte o animal, que faça o som de
ladrar e tente variantes. Neste proceder, ele estará dominando sua alucinação
(ou delírio) e não sendo por ela dominado.
Som, ritmo e artes plásticas
(desenho, pintura, escultura, modelagem) expandem a percepção do sujeito.
Todo o nosso trabalho consiste
em ajudar para que o usuário se transforme em sujeito ativo e criador, e não
em objeto, e mais: em sujeito social.
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Mais uma vez, a subjuntiva Maiêutica,
a arte de perguntar, a arte do Se, a arte de oferecer alternativas, mostra-se
essencial e insubstituível.
Dos ritmos e das imagens,
idealmente, passamos às palavras, pois é pelas palavras, dado o seu alto grau
de abstração e polivalência, que os usuários se perdem, se assustam e se tornam
solitários na sua doença.
O usuário Hamilton recorre ao
seu violão para controlar crises nervosas; compõe canções que transformam seus
transtornos psicológicos em bem organizados sons e palavras. Faz música até com
o texto de bulas de remédios.
Algo tem a ver com
Aristóteles, que pela primeira vez usou a palavra catarse para designar o
esvaziamento dos transtornos rítmicos expurgados do paciente quando estimulado
a dançar até a exaustão o seu próprio ritmo interno desorganizado - esta
desorganização rítmica seria a origem da doença! Esse intenso ritmo era tocado
em robustos instrumentos por músicos-terapeutas, andamentos cada vez mais
velozes, devolvendo o indivíduo a uma temporária sanidade.
Ritmo é a organização do som
no tempo. E organização.
Estes são os caminhos da
experimentação que estamos fazendo:
1. —
Jogos e exercícios: praticando jogos, os participantes exercitam sua liberdade
criadora dentro dos limites sociais consensuais - ensaio para a vida social. Pedimos
aos usuários que se lembrem de um dos jogos ou exercícios que já praticaram em
nossas oficinas e que dirijam o grupo, eles mesmos, um de cada vez.
2. —
Ritmo e melodia: será verdadeira a hipótese de que o ritmo e a melodia, como
acreditava Aristóteles e acredita Hamilton, são capazes de estruturar o ritmo
que acompanha o delírio ou a alucinação e lhes dão suporte? Testamos alguns
exercícios e jogos do to:
i. — Círculo de ritmo: cinco ou sete pessoas (não mais) em
círculo; a primeira inicia um movimento simples, que deve ser repetido por
todos; a segunda pessoa acrescenta outro movimento, que se soma ao primeiro, e
todos repetem os dois movimentos várias vezes, e assim por diante até que o
círculo inclua ritmos resultantes da colaboração de todos;
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ii. —
Máquina de ritmo: um a um, entram em cena todos os participantes, formando uma
máquina de ritmos corporais e sonoros; pode ter um tema: trabalho, caps, transporte etc.;
iii. —
Diálogo de ritmo: face a face, duas filas: um participante pensa uma frase e a
traduz em ritmo, que os da mesma fila imitam duas ou três vezes; a pessoa em
frente responde e os seus imitam, até a última pessoa, que responde à primeira
- depois os membros de uma fila dizem o que pensaram entender do parceiro em
frente e, para terminar, cada participante diz a frase que realmente pensou;
iv. —
Ritmo da hora (variante da imagem da hora): o Curinga diz momentos do dia e os
participantes fazem o ritmo daquele momento: acordar, café da manhã, o
trabalho, almoço, chegada ao caps, ir para a oficina
de teatro, conversa com alguém de que gosta, que não gosta, crise, consulta
médica, medicação, dormir;
v. —
Ritmo de cada um: cada participante repete os movimentos rítmicos que realizou
no exercício anterior; os demais tentam descobrir qual é o ritmo essencial e
mostram esse ritmo com o seu corpo em movimento normal e em câmara lenta.
Alguns dos jogos desta série
podem ser feitos com os atores emitindo um som mais melódico e longo, não
necessariamente rítmico, que traduza o pensamento, a frase que está pensando.
A experiência literária
3 — A poesia da crise: será
possível ao usuário dominar sua crise e transformá-la em palavras? Que tipo de
ajuda necessita para escrever seu poema ou narrativa? Ou: “O que mais me
impressionou nos últimos anos ?
Em alguns casos de
analfabetismo ou de outras incapacidades, pode ser necessário gravar
eletronicamente as palavras do usuário para depois transcrevê-las em papel para
sua leitura e para receber suas impressões.
Página 234
A experiência teatral
4 — Normalmente,
metaforizamos a realidade de um grupo na peça que serve de Modelo ao Fórum.
Como será o processo de tentar uma outra forma de metaforizar, tentando
enquadrar os enredos do delírio (ou alucinação) nas estruturas de um
espetáculo teatral? Como escolher o estilo mais adequado? Será o naturalismo
minucioso, baseado naquilo que o usuário “quer contar”, ou a construção de uma
fábula? Uma história de ninar, canção infantil, lenda ou mito, ou reportagem de
jornal?
5 — Na Casa das
Palmeiras, anos a fio, desde quando a doutora Nise da Silveira introduziu em
seu trabalho médico a arte como terapia e até hoje, os usuários pintam para
criar elos com sua nebulosa percepção da realidade. As artes plásticas, neste
campo de pesquisa, têm vantagem sobre a linguagem escrita e falada: esta deve
ser aprendida, enquanto a organização sequencial do vocabulário das cores,
traços e volumes fica a cargo da criatividade do próprio usuário, que deve
inventar seu léxico e sua sintaxe.
6 — Geo
Britto, coordenador dos nossos programas nos caps,
conta que, em 1997, uma senhora que havia sido interna de um Hospital
Psiquiátrico durante mais de 25 anos falava com voz quase inaudível, pescoço
dobrado, olhando o chão. Um dia, ela começou a participar de um elenco de
teatro formado por outros pacientes em um centro hospitalar. Aquela senhora se
propôs a representar uma personagem inspirada em sua própria irmã, com a qual
se dava de mal a pior. Improvisando cenas para a criação da peça, a velha
senhora revelava uma força insuspeitada, levantando a voz e o rosto, gritando
furiosa, denunciando, teatralmente, o caráter agressivo da personagem-irmã. Ao
terminar seus enérgicos extravasamentos, retornando aos costumeiros olhos
baixos e voz meiga, de volta ao seu natural, perguntava: “Eu estive bem?”
Ela utilizava o mesmo processo
de todo ator stanislavskiano, que usa a memória
emotiva para encontrar a forma dos seus personagens - voz, expressões e
movimento; ideia, emoção e forma.
Somos tridimensionais: temos
uma personalidade que é uma severa redução da nossa pessoa - esta é um
caldeirão onde fervem todos os desejos humanos, bons e maus, qualidades e
potencialidades.
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É nessa caldeira borbulhante que vamos buscar
nossos personagens, que, dentro de nós, estão domesticados ou revoltados.
Aquela senhora tinha, na sua
pessoa, um personagem valente e corajoso: era necessário desenvolvê-lo e
acrescentar boa parte desse potencial à sua personalidade tímida e retraída,
pela repetição e pelo ensaio teatral frequente - espécie de ginástica
emocional e psíquica -, para tentar, se não a cura dos seus males, menos dor.
A frase “Sou capaz de fazer
isto... no teatro!” contém uma importante revelação: “Sou capaz de fazer isto!”
Se no teatro faço, fiz. Falta fazê-lo na vida real, o que só se consegue pela
repetição constante, ensaios e análise - o Pensamento Simbólico traduzindo o
Sensível.
Em outro registro, Julián
Boal, em Salford, Inglaterra, trabalhando com jovens
menores de vinte anos, alunos de uma escola para portadores de problemas
psicológicos e/ou físicos, propunha os jogos mais difíceis do repertório do TO
e não os mais fáceis. Por exemplo: os alunos, divididos em duas equipes, eram
convidados a representar uma história fantástica, escrita em um papel por seus
companheiros da outra equipe; sem falar, usando apenas o corpo e objetos
disponíveis, deviam transformar a narrativa em enredo visual.
Disso os alunos gostavam,
fascinados em ler palavras nos papéis e traduzi‑las em imagens na cena.
Quando algum jogo mais fácil era proposto, diminuía o interesse do grupo. Os
jovens usuários sentiam mais facilidade e prazer em falar a linguagem visual
que eles próprios podiam criar, e não as línguas cujas palavras nem sempre
tinham o mesmo valor para todos.
Outras experiências estéticas
Arte, mesmo a mais cândida, mesmo um só passo
de dança, se for com constância praticada, pode ser a ponte a ser construída
entre o delírio de um indivíduo e a mais genérica percepção do mundo que temos
nós, os normais.
Todos os exercícios e jogos,
todas as técnicas que são usadas normalmente com os normais, devem ser
experimentados com os usuários, judiciosamente.
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Não vamos jamais pedir que façam alguma coisa
que obviamente não podem fazer, mas não vamos, por outro lado, pressupor que
são incapazes sem antes termos experimentado.
Já trabalhei com cegos que,
mesmo sem ver, eram perfeitamente capazes de realizar a Máquina de Ritmos,
baseados apenas nos sons que ouviam vindo de algum lugar: não podiam ver, mas,
sim, sentir. Já trabalhei com surdos-mudos com os quais me comunicava com
gestos e expressões faciais - não falo línguas de surdos-mudos. Já propus a
cadeirantes fazerem exercícios como o “Empurrar um ao outro”, que normalmente
são feitos com as mãos, costas e quadris: eles o adaptaram e fizeram com suas
cadeiras.
Os jogos, exercícios e
técnicas, normalmente, se adaptam.
Somos chamados de normais
porque estamos de acordo com um certo conceito de normalidade que justifica
guerras, etnocídios, lucros exorbitantes e fome...
Não devemos esquecer que vivemos em sociedades comandadas pelo poder do mais
forte.
A anormalidade é perfeitamente
normal se considerarmos que muitos indivíduos não se adaptam à normalidade
ficcional que nós, normais, aceitamos, às vezes com sofrimento. Por isso...
... Arte é o caminho!
Da teoria à prática teatral
Entre as variadas formas de opressão, [nota 12]
uma das mais cruéis é a exclusão social que atinge pobres e miseráveis,
estrangeiros e não-conformes, mulheres e crianças. O Teatro do Oprimido não
pode se limitar à luta de operários e camponeses, não podemos selecionar
parceiros e excluir os oprimidos mais difíceis.
Entre os excluídos, vítimas
até mesmo de outros excluídos, estão os portadores de dificuldades mentais.
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Neste campo, nossa Ética nos leva a ajudá-los a
transformar suas realidades opressivas, reais ou imaginárias.
Esta é uma atitude política
consciente - não temos o direito de, entre os excluídos, excluir. Tampouco
temos o direito de imaginar que o nosso Método seja uma panaceia universal: temos
que saber quais os limites entre os distúrbios passíveis de serem trabalhados
com arte e teatro e aqueles em que o deterioro psicológico ou neurológico já
está de tal forma avançado que escapa à nossa possível ajuda.
Não podemos esquecer que nosso
trabalho é artístico e que, para que seja feito sem perigos ou danos,
necessitamos do apoio de médicos, enfermeiros, que não podem estar ausentes da
nossa atividade teatral, já que não podemos assumir responsabilidades
terapêuticas. Necessitamos também da participação das famílias porque cada
membro da família faz parte da vida física e psíquica do usuário.
No entanto, tratar a saúde
mental como tema puramente médico e não político seria miopia, como se
tratássemos o sistema prisional como caso de polícia sem causas sociais, ou
problemas educacionais como restritos aos domínios da Educação, o latifúndio
como coisa que resolvam lá entre eles, e os operários que se entendam com seus
patrões porque nós não temos nada com isso. Seria um grave erro político.
Nisto este trabalho não
diferencia qualquer outra categoria de oprimidos, já que a todos respeitamos
como pessoas e como artistas. A escolha de jogos e técnicas será feita a partir
das necessidades ditadas pela prática e não por colarmos na testa de cada um a palavra
“usuário”.
Ao iniciarmos nosso trabalho
com qualquer grupo social, temos que nos identificar e pedir que se
identifiquem. Não podemos ignorar quem são nossos parceiros, até mesmo para a
escolha dos jogos e técnicas que devemos usar. Mas não podemos rotulá-los -
este é operário, aquele, classe média; este é professor, aquele, um usuário.
Esse proceder criaria limitações na nossa própria capacidade de compreendê-los.
Saber quem são nossos
parceiros é necessário, até mesmo pelos cuidados que devemos tomar e pelas
propostas que devemos fazer; mas colar legendas em suas testas é erro grave.
Temos igualmente que ter o
cuidado de não reproduzir na estrutura dos nossos elencos a mesma hierarquia
existente na realidade do tratamento, onde cada um tem função definida: médico,
enfermeiro, funcionário, familiar ou usuário.
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No nosso trabalho, as funções sociais devem ser
as da peça criada pelos usuários, não as da vida cotidiana - esta, é certo,
também deve ser respeitada.
Não devemos limitar a escolha
dos temas àqueles relacionados à saúde mental - tratar os usuários de usuários
já é, de certa forma, uma opressão. Usuário, doente, paciente, enfermos,
portadores de deficiências etc. são Cidadãos com os mesmos direitos básicos de
qualquer Cidadão, e alguns específicos da sua condição.
Os usuários têm problemas de
transporte, alimentação, desemprego, racismo, sexismo,
corrupção etc. Sem ignorar a doença, na qual temos que pensar com atenção e
criatividade, e ter muito cuidado, devemos estimular temas que se refiram à
vida social. Demasiada ênfase na doença pode impregná-la como legenda na testa
do usuário.
Quando um grupo teatral de caps escolheu para o seu espetáculo o tema do Maculelê, os usuários compreendiam em imagens a relação
entre o preconceito racial e a geração de conflitos psicológicos que poderiam
ter, como defesa, o delírio. Uma sociedade racista delirante causava respostas
delirantes, não normais. O racismo, esse, era considerado normal... Temos que
pensar na patologia do racismo, do fascismo, da Bolsa de Valores, da opressão
econômica, da ganância... São enfermidades graves!
Se os delírios reduzem a
possível percepção do real, falar e criar arte sobre a nossa História e sobre
preconceitos do dia-a-dia ajuda a expandir o entendimento do mundo que têm os
usuários. Se os delírios se afastam do real, falar da realidade, ainda que
fantasiada, pode tender a trazê-los de volta. Não podemos cair no simplismo
causa-efeito, mas não podemos deixar de ressaltar conexões que existem entre
delírios sociais e individuais.
Outro grupo capsiano tratou do preconceito dentro do preconceito,
narrando em Teatro-Fórum o preconceito que existe entre os próprios usuários,
que discriminavam outro usuário por sua orientação sexual. A ascese aqui também
é terapêutica: temos ou não, todos nós, o direito de decidir nossa própria
sexualidade? Discutíamos a democracia e não apenas um caso ou tema isolados.
Falar sobre problemas
políticos expande o mundo psíquico e social dos participantes, não limitando
sua atenção ao seu próprio sofrimento.
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Normalmente não surgem problemas neste campo
porque o caráter lúdico do teatro permite a convivialidade.
As dificuldades que os
usuários sentem em criar personagens, improvisar falas e movimentos, não são
diferentes, embora maiores, do que as de qualquer outra comunidade, mesmo as de
atores profissionais. E o fato de serem capazes de criar
personagens-em-situação já produz benéficos efeitos, pois os usuários percebem
que, se são capazes de representar um papel, em tese serão também capazes de
adotar esse papel, quando ensaiados.
Este é o processo que devemos
e temos usado: metaforizar em forma teatral a visão que o oprimido tem do
mundo, fazê-lo vivenciar seu personagem e descobrir variantes para o seu
comportamento, no Fórum. Devemos ajudar o usuário a descobrir, teatralmente,
que algumas de suas opressões não são produtos de alienação, mas existem na
realidade da família, do trabalho e da sociedade.
Temos que submeter as
histórias contadas a um processo investigativo antes de aceitá-las tal como são
contadas, usando Técnicas de Teatro Imagem e Técnicas de Ensaio.[nota 13]
Mesmo em situações delicadas,
procuramos experimentar procedimentos estéticos que nos permitam integrar
delírios ou alucinações dentro de formas delirantes da arte; estas, tendo
regras precisas, são continentes, suportes.
Uma experiência muito
interessante foi feita por um grupo de teatro do Hospital Pinel, no Rio de
Janeiro, que criou um Bloco Sujo no Carnaval de 2007. Foliões fantasiados
entraram no Bloco do Pinel e era impossível distinguir quem era usuário, quem
não.
As pessoas normais dançavam
como autênticos integrantes do Bloco. Para tristeza geral, essa assimilação
durou o tempo do desfile: depois, os normais não queriam mais ser confundidos,
pois eram gente séria e tinham um nome a zelar... Podiam mostrar que eram
loucos, mas só quatro dias por ano.
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Quando os delírios sociais se confundem com os
patológicos, ou os delírios patológicos se dissimulam nos sociais - como
naquele Carnaval! -, já não podemos nomear, mesmo sabendo que são diferentes, o
que é loucura ou sanidade: os sãos de espírito exercitam sua loucura, e os
loucos exercitam sua sanidade. Esse encontro e essa troca são saudáveis para
todos.
No meu livro Arco-íris do
desejo, narro uma cena de Teatro-Invisível que fiz em Lille, na França, quando
um enfermeiro assumiu o papel de usuário e este, o daquele, e foram os dois
fazer compras em um centro comercial. Os funcionários do centro chegavam a ter
conversas explicativas com o usuário no papel de enfermeiro sobre a necessidade
de afastar daquele centro comercial o enfermeiro no papel de usuário porque
assustava os fregueses...
Quando as verdadeiras
identidades foram reveladas, ninguém mais acreditou nem na ficção nem da
realidade.
Arte é forma delirante de
percepção do mundo, regulamentada porque é reconhecida como ficção; permitida
como exercício da imaginação. Delírio e alucinação fogem dos regulamentos. [nota
14]
O artista vivencia sua
imaginação protegido por claras regras, que são respeitadas; o usuário vive seu
delírio de fluidos limites. O usuário- artista, entre os dois, transita!
Não seria a saúde mental
igualmente contagiosa? Gente normal não contagia sua normalidade?
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Sabemos, desde já, que a
linguagem estética, para que seja útil, não pode ser episódica - não basta
fazer teatro de vez em quando -, é preciso constância. O Teatro do Oprimido é
linguagem para ser usada sempre, não evento excepcional: é linguagem. Se
falamos português com tanta frequência, por que não falarmos teatro mais
amiúde? Como nunca paramos de falar e ouvir, não devemos, nunca, parar de
fazer teatro e ver.
Teatralizar problemas
individuais, por si só, já traz benefícios e saudáveis alegrias aos
usuários-atores e suas famílias - disso temos exemplos.
A alegria do oprimido, quando
consciente, é terapêutica porque é expansiva; a tristeza é retraída. A alegria
questiona valores tidos como absolutos pela tristeza, que eterniza situações
que a alegria torna transitórias. A alegria é dinâmica e veloz, social e
crítica; a tristeza tende a ser imobilista e solitária e fatalista. O que não
impede que a tristeza possa produzir magníficas obras de arte, como tem feito.
Arte é metáfora do real, não é
o real: transubstanciação. Uma bela negra pintada por Di Cavalcanti representa
uma mulher atraente e sensual, mas não é a modelo. A moça, em carne e osso, foi
transubstanciada em cores e traços. Entre o real e a sua representação
pictórica, metafórica, subsiste certa identidade. Mas não se conhece nenhum
espectador que tenha tentado namorar um dos quadros de Di Cavalcanti esperando
reciprocidade em seus afetos, embora se saiba que Miguelangelo,
ao terminar a estátua de David, atirando-lhe no joelho o cinzel, teria gritado
“Parla!” diante de tamanha perfeição.
Uma cena da vida real
trasladada para o teatro permanece reconhecível em sua essência na forma
teatral que a metaforiza. Essa dicotomia é arte. Fazer teatro significa ver-se
em cena estando-se na plateia: ver-se vendo e agindo. Ver-se vivendo. Quando
descobrimos onde estamos, podemos imaginar para onde ir. O fatalismo do beco
sem saída, que tantas vezes se instaura em nossas vidas, é substituído pela
paleta das opções imaginadas. Podemos ensaiá-las, segui-las
O Teatro do Oprimido é o
contrário do fatalismo, do conformismo e da resignação.
Neste processo, que tem
objetivos estéticos e ensaia propósitos terapêuticos, o teatro é essencial não
porque seja melhor que outras artes, mas porque é a soma de todas!
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Todas as artes fazem parte do
teatro. Pintura e escultura estão presentes na imagem da cena; a dança, no
movimento dos atores; a música, no ritmo e melodia das vozes e instrumentos; a
poesia, nos diálogos.
O Teatro não reproduz -
representa a realidade. Não realidade estática, como a fotografia, a escultura
e a pintura, mas em movimento, como o cinema; não como o cinema, registro
eletrônico de uma representação viva, mas viva, como a dança; não muda, como a
dança, mas com o sustento da palavra, como a poesia; não com a ambiguidade
interpretativa que a poesia permite, mas com a precisão que lhe confere a
multiplicidade dos meios que emprega.
Por todas essas razões... Arte
é o caminho.
Dois exemplos que se contradizem
Nenhuma hipótese deve se basear em dois ou três
casos isolados: cada novo evento é uma experiência nova que deve ser tratada
com os cuidados que dispensamos ao imprevisível. Quero contar dois casos
relacionados a este tema. O primeiro aconteceu em Niterói, no Hospital
psiquiátrico de Jurujuba.
Cláudia Simone, Curinga do CTO-Rio,
[nota 15] dirigia um espetáculo com usuários daquele hospital. Um deles, José,
tinha frequentes delírios. Andando de ônibus, conversava com o seu Anjo da
Guarda, com o qual mantinha amistosas relações. Como a conversa era suave, os
passageiros achavam graça e nada temiam.
Um dia, José e seu Anjo
brigaram feio e, a partir dessa briga, os passageiros se assustavam com a
violência das suas altercações. Chamavam a polícia, que conduzia José à
delegacia, onde ele passava a noite em companhia do Anjo ou era mandado de volta
ao hospital.
Cláudia teve uma ideia:
convenceu José a não mais brigar aos gritos com o seu Anjo da Guarda e, quando
na iminência de nova briga, convencê-lo a ir para o teatro onde ensaiavam.
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No palco, José era o diretor e o Anjo, seu ator
principal. Obedecendo às regras convencionais dos ensaios, o Anjo seria
obrigado a fazer o que lhe pedia (ou mandava!) seu autoritário diretor, José.
E assim foi: a partir dessa
data, mal começava uma briga pública, José persuadia o Anjo a ir para o teatro,
e a briga acabava em frutuosa conversa, transformada em tema da peça que
estavam ensaiando, ele e o Anjo. Ensaio é troca de ideias, percepções e
opiniões. A cada crise, novo ensaio. Não se curou ninguém, mas paliou-se o mal.
Nem sempre, porém, o encontro
do delírio com as formas delirantes é tão fluido. Em Nova Viçosa, Bahia, um
povoado ao lado do mar, na década dos sessenta, havia um rapaz conhecido como
Zé do Rádio porque andava pelas ruas com um fictício rádio pendurado na orelha,
conversando com seus cantores preferidos.
“Louco manso” - diziam. Quando
lhe perguntavam quem eram os artistas, Zé respondia com sons incompreensíveis e
guardava o segredo - seriam artistas importantes.
A população gostava dele,
dava-lhe comida, roupas usadas e rotas, enfim, fazia caridade: afinal, é bom
ter um louco na família ou na cidade porque nos faz sentir que somos sãos de
espírito. Louco é fundamental para o bom equilíbrio social e para as definições
de sanidade...
Um dia, um político local comprou
o primeiro aparelho de TV de Nova Viçosa, coisa que jamais se havia visto
naquelas bandas, e colocou o aparelho no meio da praça para que a população
pudesse conhecer a novidade.
Zé do Rádio veio ver. Espanto:
seu segredo havia sido revelado, e também sua mentira. Os artistas do vídeo não
combinavam em nada com os que Zé tinha na sua imaginação delirante. Para ele,
suas personagens eram verdadeiras, e a TV mentia com imagens falsas. Seu
coerente mundo radiofônico foi destruído pela invasão televisiva.
Revelado o segredo, Zé perdeu
a audiência e a identidade: todos agora podiam ver a cara dos artistas, ouvir
suas vozes. Zé não servia para mais nada. Desesperado, Zé do Rádio, jogando-lhe
pedras, tentou quebrar o mentiroso aparelho de TV e teve que ser confinado
várias vezes durante os programas dominicais. Zé gritava contra a televisão,
dizia os piores palavrões, tornou-se agressivo e desagradável.
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Abandonado pela população que, em lugar de
risos afetuosos, mostrava-lhe caras carrancudas, Zé passou a andar sujo e maltrapilho,
até faminto. Zé do Rádio não conseguia se transformar em Zé da Televisão...
Um dia foi encontrado morto,
atropelado na estrada. Nunca se soube se foi acidente ou castigo: loucos são
bons em certa medida, quando representam diversão, e não perigo.
Zé do Rádio morreu
irreconciliável com o tv, amando a verdade das suas
visões radiofônicas e odiando as mentiras da tv. Em parte, tinha razão...
Imagino que, se ao Zé do Rádio fosse dada a oportunidade de encenar seu
desvario e colocá-lo em palco iluminado, a extravagante cena do seu delírio
radiofônico, transformada em teatro, talvez mostrasse o delírio de tais
programas e a realidade do seu delírio.
Em parte... talvez eu tenha
razão. Mas certamente tenho razão ao dizer que...
... Arte é o caminho!
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Observações complementares
Educação, pedagogia e cultura
O Teatro e a
Estética do Oprimido são de natureza educativa e pedagógica — duas palavras
que se completam, mas não são sinônimos.
Educar vem do latim educare, que significa conduzir.
Educar significa a transmissão de conhecimentos inquestionáveis ou
inquestionados. Significa ensinar o que existe e é dado como certo e
necessário. Pedagogia vem do grego paidagógós, que
era o indivíduo, geralmente escravo, que caminhava com o aluno e o ajudava a
encontrar a escola e o saber.
O
educador-pedagógico deve ter a sensibilidade de notar que nenhum conhecimento
inquestionado é, na verdade, inquestionável. Cada nova descoberta da História
ou invenção da Ciência recoloca a dúvida sobre todos os saberes.
Educação significa
a transmissão do saber existente. Pedagogia, a busca de novos saberes.[nota 16]
Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um
saber paralítico, não-investigativo, nem descobriremos jamais novos saberes sem
conhecer os antigos.
A educação pode
ser pedagógica ou, ao contrário, como nas ditaduras cívico‑militares,
autoritária. Em muitas escolas de antigamente - e de hoje, em certos países -,
castigos físicos são utilizados para inculcar conhecimentos julgados necessários
na memória dos alunos, mesmo que estes nada compreendam do que lhes é ensinado:
para este tipo de educação mesquinha, o importante é lembrar, não é entender.
Educação pelo medo: robotização!
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A verdadeira e
prazerosa educação, porém, é pedagógica: estímulo ao aprendizado, às alegrias
das descobertas.
Educação e
pedagogia são duas irmãs que, ao mesmo tempo, são mães e filhas da cultura.
Filhas, porque a cultura existe em cada sociedade em que vivemos e se manifesta
através do saber que ensina e do saber que busca. Mães, porque através delas
nasce uma nova cultura, sempre em trânsito.
Trânsito para que
futuro? Surgem os conceitos de Ética e Moral. Esta vem do latim mores, que significa costumes. Quaisquer costumes, mesmo os mais
bárbaros e odiosos, podem fazer parte da moral de um lugar e de uma época. A
escravidão já foi moral no Brasil, e os escravos que lutavam por sua liberdade
eram chamados de fujões e rebeldes - hoje, sabemos que foram heróis e eram
sábios.
Nenhuma moral
social deve ser aceita só porque faz parte dos costumes e da cultura de um
infeliz momento. Não podemos aceitar o latifúndio e a corrupção, nem a fartura
vizinha da fome - males da pátria contra os quais temos que lutar.
Não podemos
aceitar certos direitos adquiridos, como
aqueles alegados pelos escravocratas, que, ao pagar o preço ajustado nos
mercados de escravos, adquiriam o direito à posse de seres humanos. Direitos
adquiridos contrários a uma ética de solidário humanismo não são direitos:
máculas!
Moral refere-se ao passado que sobrevive no
presente; ethos, ao presente que se projeta no futuro.
Moral, do latim mores, costumes.
Ética, do grego ethos, tendência de perfeição. Aristóteles, em
sua Poética, contrariava Platão, para
quem existiam dois mundos sem diálogo entre si,[nota 17] um lá outro cá. Ethos: desejo ou tendência de evolução que
existe em cada ser, em cada coisa. Esta é uma interpretação válida que se
baseia nos textos desses filósofos, e não na voz corrente.
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Não queremos o
Brasil como foi nem como é, mas como queremos que seja? Queremos um Brasil em
que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e não se pode ser pleno sem os
fundamentos da Educação, sem as audácias criativas da Pedagogia, sem uma
cultura plural que tenha a cara do nosso país mestiço[nota 18] e cafuzo,[nota
19] mameluco,[nota 20] zambo[nota 21] e cariboca.[nota 22] Sem uma
ética de combate a todas as formas de opressão, por mais enraizadas que estejam
na moral vigente.
Não somos imorais
nem amorais, somos antimorais naquilo que a moral do dia impede o florescer de
uma Ética da Solidariedade.
A Terceira Guerra
Mundial já começou e já estamos perdendo essa guerra subliminal que não se
manifesta apenas em suas formas espetaculares e teatrais, com invasões e
genocídios aos quais estamos assistindo pela tv
e pelos jornais, mas, precisamente, através desses mesmos meios de comunicação,
autoritários e imperativos.
Autoritários na
sua intransitividade; imperativos quando nos obrigam a acreditar na mentira. Só
poderemos nos defender dessa Invasão dos Cérebros usando armas de igual poder,
com sinal trocado. Temos que criar condições materiais para que a população
possa desenvolver a sua própria criatividade e deixar de ser vítima passiva da
comunicação, assumindo-se como seu agente ativo e transformador. Isto desde a
escola.
Segundo a Teoria
dos Neurônios Estéticos, quando um ser humano é bombardeado diariamente com as
mesmas informações dogmáticas repetitivas — sejam elas de cunho religioso,
político ou esportivo; belicista, sexista, racista ou de qualquer outra ordem
-, essas informações, por absurdas que sejam, cravam-se em nossos cérebros e
formam impenetráveis e agressivas coroas de
neurônios fundamentalistas, que rejeitam qualquer pensamento
contraditório e transformam suas vítimas em seres sectários da religião, do
esporte, da arte e da política. Transformam seres humanos em estações
repetidoras de conceitos que não entendem e de valores vazios.
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A Cultura, a
Educação e a Pedagogia, através do diálogo e do escambo, ativam nossos neurônios estéticos - aqueles que são
capazes de processar ideias abstratas e emoções concretas, como faz a Arte - e
promovem a mais ampla percepção do mundo e a abertura de veredas e caminhos,
pois, como disse o poeta espanhol Antonio Machado, o
caminho não existe, o caminho quem o faz é o caminhante ao caminhar.
Uma verdadeira
educação pedagógica, que contribua para a criação de uma autêntica cultura
popular brasileira, deve, necessariamente, incluir todas as formas estéticas
de percepção da realidade e de invenção - Arte - como parte da luta contra a
Invasão dos Cérebros que há tantas décadas estamos sofrendo. Temos que combater
aliens e
alienígenas em todas as frentes: na escola, no campo e na cidade, no trabalho e
no lazer; no cinema, no teatro, na rádio e na tv, nos cds e dvds. Sobretudo, já nas
escolas.
Temos que criar
defesas contra a escravidão estética que há tantas décadas nos estão impondo -
a Estética poder ser perigosa! Temos que descobrir o nosso rosto, escrever a
nossa palavra e ouvir a nossa voz - a Estética pode ser libertadora!
Arte é o caminho!
Linguagens informativas e linguagens cognitivas
Linguagens são
criadas para permitir a comunicação. Se um dos interlocutores não conhece os
significados atribuídos a cada elemento de uma linguagem, esta deixará de ser
linguagem e se tornará apenas um conjunto vazio de gestos, sons, sinais, traços
e cores: significantes sem significados.
Toda linguagem
tem, como função primeira, transportar informações. Toda linguagem é informativa, inclusive as cognitivas. Informativas são simbólicas; Cognitivas, sinaléticas[nota 23] - estas
são o domínio da Arte.
Informações são percebidas pelos sentidos. Conhecimento é um processo psíquico que
relaciona as informações recebidas com outras já existentes, o que lhes dá
sentido específico para cada indivíduo, a cada momento.
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Nas linguagens
cognitivas, o conhecimento é a própria linguagem. Música, fotografia, dança,
escultura, pintura e outras artes são conhecimento que, como Pensamento
Sensível, não necessita ser verbalizado. Como linguagem, tem que ser
articulado: é razão expressa por meios não-verbais.
A palavra pronunciada é informativa pelo
significado que transporta; e cognitiva pela voz que a pronuncia.
Uma foto que
mostre a imagem das ondas do mar
revolto não necessita de explicações verbais para que se compreenda esse
prenúncio de tempestade. Cada observador, porém, terá sua percepção particular
do mar caso seja pescador, dono da peixaria, cozinheiro, fabricante de barcos
ou simples passante. “Vai chover!” é informação pouco importante para quem está
aconchegado em sua cama; é assustadora em alto-mar.
A linguagem
informativa pode ser traduzida em cognitiva. O Código Morse e uma partitura
musical são linguagens que informam: o código, pontos e traços; a partitura,
sons, ritmos, claves. Um poema, porém, enviado em Morse, torna-se linguagem
cognitiva quando traduzido em palavras que transportam
conhecimentos e são conhecimento. O
pianista que executa ao piano uma canção tirada de uma partitura silenciosa
cria música - linguagem cognitiva.
O quadro de um
pintor é conhecimento, ainda que nada se explique a seu respeito. O
conhecimento histórico do quadro, das circunstâncias em que foi pintado etc.
pode nos trazer conhecimentos adicionais, fazer ver o mesmo quadro em outra
dimensão; o quadro, no entanto, já era conhecimento.
Se nos disserem os
nomes de cada uma das pessoas que serviram de modelos às figuras humanas da Descida da Cruz de Rubens, pintada em 1612
- todas bem conhecidas em sua época e lugar -, esse saber histórico pode nos
oferecer novos ângulos de observação dessa obra, provocando novas reações e
sentimentos. A bela pintura, porém, já nos havia proporcionado conhecimento,
isto é, sua integração dentro do quadro mais amplo de valores que já possuíamos
anteriormente.
E certo que
informação e conhecimento não são categorias puras: toda informação contém
conhecimentos, e todo conhecimento é feito de informações orquestradas.
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Arte é um conjunto
de linguagens informativas e cognitivas. Por essa razão, indispensável em todas
as atividades humanas! A arte deve ser totalmente integrada em toda a nossa
vida social.
Arte é o caminho!
Os três espaços
teatrais
Em sala onde se
vai realizar uma sessão de teatro, ou na rua, existem três espaços teatrais
superpostos: físico, estético e cênico.
E importante ter consciência desses três espaços porque eles estão sempre
ativos, independentes da nossa vontade.
ESPAÇO FÍSICO - Comprimento,
largura e altura. Em espaços abertos, esta última dimensão é infinita, podendo
ser limitada pela iluminação.
ESPAÇO ESTÉTICO - Imaterial, não
tem existência concreta: pura concentração da energia observadora dos espectatores em um ponto ou área determinada, para onde se
dirige a atenção dos espectadores, que suspendem sua necessidade de agir
transferindo sua energia para essa área.
Como essa atenção
é vadia, fluidos são os limites desse espaço. Para intensificá-lo, temos que
escolher sua localização. Exemplo: em um espaço físico quadrangular, devemos
colocar a cena em uma das paredes laterais maiores e não no fundo da sala,
reduzindo a distância espectadores-atores. A plateia deve ser colocada em
ferradura, à volta do palco ou arena.
O palco italiano, que simula um quadro na
parede, com personagens em movimento, distantes, é invenção da burguesia
renascentista, que privilegiava os indivíduos possuidores da virtú maquiaveliana, aqueles que tentavam tomar o poder da
nobreza, mas sem se solidarizar com o povo, ao qual, economicamente, estavam
fadados a explorar também. Privilegiava o indivíduo excepcional, capaz de tudo,
o virtú-oso, e não todos os indivíduos.
O lugar onde se
faz a representação teatral é ideológico: é conteúdo, não simples forma. Nossos
espetáculos, sem abolir a força do palco, devem democratizá-lo, estimulando o
trânsito palco-plateia!
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ESPAÇO CÊNICO [nota
24] - O cenário traça limites visíveis
para conter e vestir o espaço estético. Ao construí-lo, devemos pensar em traço
e cor.
Exemplo: os locais
onde habitam nossos parceiros são, quase sempre, cinzas, escuros, como cor;
poluídos, como traço. Para que o espaço cênico adquira vida vibrante, é bom
simplificar o traço em contraste com o meio confuso; usar cores vivas em
contraste com as cores sombrias dos espaços físicos onde atuamos.
Se, o espaço
cênico não se destacar do espaço físico pelo traço e pela cor, o espaço
estético continuará vagueante. A construção da imagem da cena - também chamada cenário, figurinos, adereços etc.,
denominações que recuso em virtude de sua origem em um certo tipo de teatro que
prefiro recusar - deve começar com o espaço vazio, totalmente vazio e neutro, e
deve ser construída a partir de objetos quentes, um a um: objetos a serem
manuseados, a servirem como móveis, portas, paredes etc. Tudo que entrar nesse
espaço deve ser trabalhado pelo grupo de oprimidos, que deve também escrever e
musicar a peça. Sempre com a ajuda dos seus Curingas: cada coisa deve conter
também uma opinião emocional e ideológica sobre essa coisa.
Normalmente, peço
aos meus alunos ou espectadores para que se aproximem de mim quando falo: quero
que o espaço estético no meu entorno seja limitado por um espaço cênico
concentrado. Quero um palco - embora invisível, denso. Não por narcisismo, mas
para que minhas palavras sejam mais bem compreendidas, e não dissolvidas e
rarefeitas.
O anfiteatro grego
era mais convivial, aberto em três direções, com uma parede ao fundo - mesmo
assim, excludente. O palco italiano, inventado pelo cenógrafo italiano Serlius por volta de 1600, é mais excludente ainda. Aos
protagonistas da cena, donos do poder, ele ilumina, e a nós, mergulha nas
trevas da plateia.
Arquiteturas
teatrais fixas são autoritárias - por isso é necessário derrubar o muro que
separa espectadores de atores, democratizar esse poderoso espaço estético. Não
queremos destruir a separação palco-plateia, apenas democratizá-la.
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Quando nosso olhar
vagueia ao léu, podemos escolher o que queremos ver. Assistindo a um
espetáculo que se desloca pelas ruas e pelos campos, como a Vida de Cristo na cidade de Nova Jerusalém,
os Cantos ditirâmbicos na Grécia do
século vi ac, o
bloco de Carnaval de rua no Brasil de ontem e hoje, estruturados no espaço e no
tempo, ainda assim podemos segui-los e escolher o ângulo pelo qual queremos
vê-los.
Quando somos imobilizados
nas arquibancadas de um teatro, estádio ou sambódromo, já não podemos escolher
nossos ângulos de visão: temos que ver aquelas imagens que nos são impostas
pela iluminação e pela coreografia.
No cinema, que vai
além, vemos imagens das imagens que o
diretor quer que vejamos e da maneira que ele assim deseja: não há a mínima
escolha do mínimo detalhe.
No Teatro do
Oprimido, ao contrário, temos que promover todas as formas de trânsito,
interatividade, conversa, diálogo, dialética, debate, reviramento, reviravolta,
resmuda, escambo, troca, feira de opiniões...
Arte é o caminho!
A busca de parceiros
Um Centro ou Grupo
de Teatro do Oprimido não é partido político, não obedece a programas impostos;
não é igreja ou seita, não obedece a dogmas; não é táxi-teatro, não vai onde
manda o patrocinador - tem seus caminhos. Nenhum patrocínio justifica que se
levem mensagens do patrocinador.
Ao praticarmos to, temos que excluir
qualquer aliança com opressores antagônicos em conflitos irreconciliáveis -
esta não é lei divina, é bom senso humano.
Se trabalhamos com
um governo cuja política, no fundamental, apoiamos, juntam-se forças. O cto-Río tem trabalhado com
ministérios do atual governo brasileiro (2003-2010) sem sofrer qualquer
coerção; sem nenhum problema, salvo a espantosa burocracia herdada da ditadura.
Jamais trabalharíamos com a ditadura que enxovalhou nosso país por mais de 20
anos...
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O CTO trabalha com camponeses, jamais para
latifundiários. Com operários, jamais para seus patrões. Com oprimidos, jamais
para opressores.
Nos conflitos não
antagônicos em que o diálogo é possível, podemos trabalhar com adversários que
buscam o encontro. Pais e filhos, professores e alunos, casais, quando assim o
queiram, certos confrontos étnicos em estágios reversíveis, e alguns mais. O to não joga gasolina
em todas as fogueiras, mas também não é bombeiro, nem anestesista.
Alguns grupos
desonestos usam pedaços amputados ao Método para, obedientes, ajudar
opressores: é traição.
Alguns grupos de
atores profissionais apresentam espetáculos de Teatro Fórum nas escolas: não é
mal, é bom, muito bom, mas pouco: a ambição do TO é tornar-se linguagem a ser usada pelos
oprimidos conscientes; trabalhamos para multiplicadores,
não para consumidores. Somos inspirados pelo provérbio chinês: damos a vara e ensinamos a pescar, mas não damos o
peixe pronto para ser servido.
O TO, na sua forma
soberana, é o teatro dos
Oprimidos, para
os Oprimidos e sobre os Oprimidos. Suas técnicas não podem ser desvinculadas da
sua filosofia, da sua árvore.
Cabeça nas alturas, pés no chão e mãos à obra
Quando escrevo que
a palavra é um meio de transporte; que, ao nomearmos a coisa, essa coisa já é
outra coisa, e nunca mais será a mesma; que eu sou eu, mas a cada instante sou
diferente e igual; que flutuamos sobre o real sem a ele termos acesso - isso
não nos impede de conhecer e enfrentar, não a verdade absoluta, mas as verdades
terrenas. Não a misteriosa Grande Verdade Eterna, mas a eternidade de cada
instante fugaz de nossas vidas,[nota
25] trânsito do parto à sepultura.
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Quando os
cientistas afirmam que o corpo humano é constituído por setenta por cento de
água, isso não significa que vamos verter nossa cabeça, tronco e membros em
copos e jarras. Quando a Física Quântica jura que a matéria não existe e o
espaço é vazio - matéria feita de átomos não sólidos; átomos feitos de núcleos,
prótons e elétrons que não são sólidos, quarks
são feixes de energia não sólida, nada é sólido... - isso pode ser verdade, mas
mesmo que sejamos apenas um espaço vazio no grande vazio do Espaço, apesar de
tudo, abramos a porta antes de entrar: convém não bater com a cabeça na porta
fechada.
Tudo é trânsito,
mas nossa própria transitoriedade eterniza cada um dos nossos instantes: nossa
vida é eterna naquele segundo que nos foge.
Vivemos com os pés
na realidade concreta, não na estratosférica verdade. A especulação metafísica
amplia a nossa capacidade de pensar, estimula a sensibilidade além dos limites
do sensível, mas não devemos permitir que substitua a ação no mundo social e
político pela especulação abstrata.
Nossa cabeça pode
estar nas alturas, mas com os pés no chão e... mãos à obra.
O fascismo, o
imperialismo e o colonialismo, a exploração de classes, a humilhação das castas
e a escravidão aberta ou disfarçada, o racismo e a xenofobia, a tirania sexual,
a histórica e universal subjugação da mulher e a devastação do meio ambiente,
todas essas epidemias políticas e sociais não são a Verdade Eterna - são
verdades temporais que devem ser combatidas sem respiro.
O ser humano é
binário: predatório e solidário. Temos que libertar o ser humano do seu
instinto predatório, remanescente animal.
Arte é o caminho!
E preciso reconquistá-la para o fortalecimento da cidadania!
ícaro tinha a cabeça nas alturas, o
camponês tinha os pés na terra firme... Ele também sonhava, mas com os pés no
chão e as mãos no arado!
Página 255
Em branco.
Página 256
Livro composto em
Adobe Garamond Pro 12/15 pt
em papel off-set
90 g/m2, impresso pela Vozes no inverno de
2009.
Início das notas de rodapé:
Nota 1, Página 16: Para que se
compreenda com clareza que existem tantas estéticas quantos grupos sociais
organizados, comparem estas duas imagens: Jesus, com seus apóstolos vestidos
com andrajos e com a alegria passional daqueles que sentem que dizem verdades;
do outro lado, o Papa, envolto em ouro e ouropéis, no seu papamóvel blindado,
cercado de guardas suíços, vestidos pela griffe Michelangelo,
cercado pelos seus príncipes,
ornados como ele.
Jesus e o atual cristianismo têm
pouca coisa em comum... Ou vocês acham que esses dois grupos estariam usando a
mesma e única estética universal? Ou seriam seus caminhos tão exclusivos dos
interesses e propósitos de cada grupo? Para que eu possa começar a acreditar em
alguma coisa que ele diga, quero ver o papa quase nu, despojado de artifícios,
pregando nas ruas e nos campos. Isso, sua estética não permite; a minha, exige!
Nota 2, Página 21: Pequena cidade suíça onde se reúnem os homens
mais ricos do planeta, na mesma época em que, no Brasil e em outros países, se
reúne o Fórum Social Mundial, de ideias completamente opostas.
Nota 3, Página 21: A República, Platão, Livro 7. Sei que estou fazendo uma
comparação de ponta cabeça do pensamento de Platão. E consciente. Para ele, o
mundo concreto do qual eu falo, e que temos que descobrir e conhecer, era
apenas sombras de uma realidade que pertenceria ao platônico mundo das ideias
perfeitas. Hoje, as sombras que vemos e nos escondem as verdades são as das
TVs, rádios, jornais, e todas as formas de convencimento de massas usadas pelos
opressores.
Nota 4, Página 25:
Essa palavra já existia na Grécia, como nota Houaiss: “Do grego aisthétós,ê,ón – ‘perceptível pelos sentidos, sensível’ –,
por oposição a noétós,ê,ón – ‘percebido pela
inteligência’”. Eu afirmo que Estética e Noética
sempre estiveram unidas, e ambas são inteligentes; siamesas, uma não existe sem
a outra. Afirmo que a Estética também é inteligente, e a Noética,
sensível.
Nota 5, Página
25:Dizia minha mãe que todo sapo ama sua jia, que salta desajeitada, e despreza
a elegante flaminga, de pernas longas que ondulam,
flutuam.
Nota 6, Página
27:Ideologia, para ele, significava o conjunto de ideias recebidas pelas
sensações, de forma consciente ou não. Essa, como todas palavras, na batalha
semântica, ganhou outros significados, laudatórios ou pejorativos.
Nota 7, Página
30:As discussões entre Freud e Jung sobre se as crianças são perversas
polimorfas ou não, se o seu corpo é orientado sexualmente desde o ato de mamar
no seio materno, parecem-me, hoje, infantis. A criança não tem moral, portanto
nenhum adjetivo moralizante pode ser atribuído ao seu comportamento, muito
menos uma intenção ética. A criança apenas sente e deseja. Com o tempo, aprende
tudo aquilo que a sua cultura lhe ensinar, permitir ou obrigar – ou se torna
marginal.
Nota 8, Página 31:
Disse um filósofo que somos porcos-espinhos gregários: necessitamos ficar
juntos, aconchegados, mas, ao fazê-lo, nós nos espetamos. Como disse Píndaro,
poeta grego de antanho, o ser humano é uma sombra que sonha.
Com que sonha a
sombra? Talvez com quem a projeta; talvez com levantar-se e andar por conta própria.
Talvez sonhe com a precariedade da sua e da nossa existência. Talvez sonhe, um
dia, ter sua própria sombra, ser alguém.
Nota 9, Página 33:
O monoteísmo tem a mesma finalidade principal da globalização: a centralização
do poder. As várias religiões politeístas são mais democráticas: permitem que
nos aliemos a alguns deuses para nos defendermos da ira de outros deuses.
Quando, porém, existe apenas um solitário e todo-poderoso Deus... que deus nos
acuda, estamos sós e indefesos!
Nota 10, Página
35: Desregulamentação significa
eliminar as leis que deveriam reger os mercados: passa a valer tudo.
Exemplificando: é como se, em uma luta de boxe desregulamentada, um dos
lutadores tivesse o direito de descarregar rajadas de metralhadoras no
adversário e em mais de três ou quatro milhões de trabalhadores que perderam
seus empregos graças ao neoliberalismo, isso só no segundo semestre de 2008.
Nota 11, Página
35: Quimera, na mitologia
grega, monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão. A esfinge
egípcia, com a cabeça humana e corpo de leão, e o Minotauro, também grego, com
corpo de homem e cabeça de touro, são exemplos clássicos de quimeras.
Nota 12, Página
36: Para sermos exatos, deveríamos chamar a esse fenômeno cultural de culturofagia, pois não se come o homem e sim sua obra.
Escolheu-se, por metonímia, a palavra mais bonita – assim seja, também está
certo.
Nota 13, Página
39:Este conceito de ética, diferente da moral, baseia-se na interpretação que
dela dá Aristóteles em sua Poética. Mais adiante o leitor encontrará este
parágrafo, que convém ler agora: “Contrariando Platão, Aristóteles dizia que o
sonho de perfeição residia no coração do mundo imperfeito, era o motor do seu
movimento para a Perfeição. Nesse sentido, a moral é a imperfeição daquilo que
é como é – mores: costumes. No seio da moral, nasce a ética, aquilo que deve
ser: a busca, o sonho de perfeição”. Hoje, uma sociedade sem opressão, repressão
e depressão.
Nota 14, Página 39:Desde o Código de Hamurabi (cerca 1750 AC) até
a Declaração do Direitos Humanos da ONU (1948), alguns países, nações e clãs
têm buscado definir normas de comportamento para toda a humanidade. Viveríamos
em um mundo feliz... se os governos respeitassem a Carta de 48.
Nota 15, página 46: Existem também as
Auras Prosaicas, temporais, como aquela que envolve o sapato atirado contra
Bush no Iraque, no último mês do seu lamentável mandato. Dizem que aquele par
de sapatos atingiu um valor tão alto nos leilões, que a empresa produtora
daquela marca passou a vender cem vezes mais; na caixa, referências foram
escritas relativas àquele episódio jornalístico - todos os pares de sapatos,
saídos do mesmo forno, conservavam algum resíduo aurífero. O feito heroico, por
ter sido praticado por um homem valente, indefeso mas indignado, suplantou o
célebre sapato com o qual Kruchev, o líder soviético,
espantou seus pares, batendo repetidamente na mesa durante um discurso
adversário em plena sede das Nações Unidas.
Existe também a Aura Fetiche, como a
bola do milésimo gol de Pelé, as meias pretas de Marilyn Monroe e as calcinhas
de Mae West.
Nota 16, página
50: Conhecimento que não depende e é anterior à experiência prática, como o
tempo e o espaço. Isso, na opinião do filósofo alemão Kant (1724-1804), não na
minha: tempo e espaço também, aos poucos, se aprendem, claro que sim.
Nota 17, página
50: Metade dos que foram produzidos desde o nascimento; os da outra metade, não
tendo sido capazes de se integrar em redes neuronais, perderam-se pelo caminho
e morreram - destino dos eremitas.
Nota 18, página
51: Até certo ponto e com muitas exceções e maiores complexidades, as
diferentes funções da linguagem estão localizadas em diferentes partes do cérebro.
Assim, a área de Broca (região frontal esquerda do cérebro, ao lado do córtex
motor, que coordena os movimentos da fala — lábios, língua e cordas vocais —,
assim chamada em homenagem a Paul Broca, cientista francês, 1824‑1880, um
dos pesquisadores da doença chamada afasia) — concentraria a produção das
palavras. A dificuldade de falar, ou a fala fragmentada ou incompleta que
torna impossível o entendimento, é chamada de afasia de Broca. A área de Wernicke, no lobo temporal ao lado do ouvido, córtex auditivo,
(Carl Wernick, 1848‑1905), parece ser a área de
compreensão dessas palavras. A afasia de Wernick se
refere àquelas pessoas que conseguem articular perfeitamente bem as palavras e
as frases, sem, no entanto, entender o que estão dizendo... E doença mais comum
do que parece ser nos dias de hoje... pode até passar desapercebida... Na TV,
principalmente, e nos discursos políticos, é o que mais se vê: mesmo os doentes
graves da afasia de Wernicke passam desapercebidos.
Um feixe de
circuitos neuronais faria a ligação entre essas duas áreas. Essa teoria não
deve ser tomada ao pé da letra, pois a produção e a compreensão da linguagem
verbal não se devem a sistemas totalmente independentes. Entre essas duas
áreas, os mesmos neurônios são usados para produzir e para compreender a mesma
palavra: são os neurônios-espelhos — experiências de laboratório mostram que
esses neurônios são estimulados tanto quando se pronunciam como quando se ouvem
palavras.
E preciso ter em
mente que Stanislawski baseou o seu Sistema de
Interpretação do Ator na memória afetiva, compreendendo que o significado de
uma palavra não está apenas no seu enunciado no dicionário, mas vem sempre
acompanhado de memórias sensoriais, emocionais e intelectuais: uma palavra que
se pronuncie, ou um evento importante que se evoque, acendem redes de clarões
espalhados por todo o cérebro e não se encerram em compartimentos isolados,
celas de segurança máxima.
Nota 19, página
54: Diz a sabedoria popular que a vida é uma doença transmissível sexualmente,
com taxa de mortalidade de cem por cento... Não é otimista, mas é verdadeira.
Nota 20, página
57: Literalmente, “engana-olho” - geralmente uma pintura em paredes ou no chão
que nos faz ver o que não existe, como escadas e portas, enganando a nossa
percepção visual.
Nota 21, página
58: A primeira que se fixará para sempre na última camada bem escondida do seu
inconsciente é a da mãe, o que explica o fascínio do sorriso da Mona Lisa.
Este é o meu sentimento, mas sei que, no mundo em que vivemos, esta idílica imagem
materna não é frequente Já ouvimos falar até de mães que jogaram seus bebês no
lixo (rj, sp, mg), ou que os
assaram em micro-ondas (usa, 07/07).
Nota 22, página
60: Ouvindo Bach, por exemplo, o bebê se inicia na arquitetura harmônica dos
sons; ouvindo Dolores Duran, ele sente a suave “alegria de um barco voltando”.
Com Pixinguinha, aprende a ser carinhoso. Tudo isto dentro do mundo cultural em
que vive a criança — nada é automático. Ouvindo música, o bebê tem todo o
direito de ter seus próprios gostos e até discordar de mim, pode gostar de
barulhos estranhos... esse é um problema dele, depois não se queixe.
Ouvindo techno, essa contrafação da música, inicia-se na
brutalidade das máquinas de quebrar pedra, que reduzem a compreensão do mundo à
violência física e necrosam os canais da percepção. Sei que há controvérsias,
mas digo o que penso.
Nota 23, página
62: Moro em um terceiro andar. Vou à janela e olho o calçadão lá embaixo: vejo
o meu amigo Vicente, que tem apenas um ano de idade e poucos meses. Quando me
vê, puxa a mão de sua mãe, que empurra o carrinho e, com o dedo indicador da
mão direita, aponta para mim na janela. Quer me ver - é o que o seu rosto
mostra. Vicente está pensando, está falando, comunicando seus pensamentos,
desejos. Ainda não conhece as palavras, que logo virão. Enquanto não as sabe
usar, usa o Pensamento Sensível e alguns símbolos manuais que já domina com
perfeição.
Nota 24, Página
70: Outros animais, como pássaros, sapos e até certos peixes, emitem sons que
também são significantes com significados, sons diversos mas que não são
moduláveis ou fracionados ao bel-prazer; são como o grito de quem martela o
dedo - ninguém fraciona esse grito.
Nota 25, Página
71: Escreveu o grande filósofo das Leis que estas são “les
rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses”
(O espírito das leis).
Nota 26, Página
73: Na obra-prima de Michael Moore, Sicko-SOS Saúde,
bombeiros voluntários que sacrificaram suas vidas para salvar vidas alheias na
tragédia das torres gêmeas, justamente por serem voluntários, não estavam na
folha de pagamento do governo - por isso, embora tenham contraído graves
doenças provocadas pelo fogo e pela fumaça, foram deixados sem socorro pela
Saúde Pública. Foram heróis - o governo não nega -, mas não estavam na folha...
Essa burocracia odiosa não levou em conta o bem maior, que é a vida e a
solidariedade. Michael Moore levou esses bombeiros estadunidenses para serem
bem tratados... em Cuba.
Em outro dos seus
filmes, Moore mostra um soldado morto em serviço no Iraque no dia 25 do mês:
sua família recebeu o cheque do seu salário daquele mesmo mês descontado de
cinco dias: o soldado não havia conseguido trabalhar nesses dias... Estava
morto.
Nota 27, página
78: E pela posse do dinheiro como símbolo e senhor de todos os territórios onde
pelejamos nossas vidas.
Nota 28, página
80: “Volver a ser de repente /tan frágil como un segundo/volver
a sentir profundo / como un nino frente a Dios” (“Tornar a ser de repente / tão
frágil como um segundo / tornar a sentir profundo / como menino diante de
Deus”).
Nota 29, página
80: Cultural Constraints on Grammar and Cognition in Pirahã — Another Look at the Design Features of Human Language, by Daniel L. Everett.
Nota 30, página
84: Lenni Riefenstahl foi estigmatizada por causa da
sua explícita adesão ao nazismo. Diretores mais clássicos, em formas igualmente
belas, também transmitiam ideias de perpetuação das injustiças sociais, como
Fritz Lang, com a sua celebrada Metropolis. Este
filme promove, ingenuamente, o casamento do Trabalho (um operário) com o
Capital (o patrão) através da filha deste (o coração). Como se fosse possível:
os operários daquela fábrica eram mais de mil, e a filha do patrão, uma só...
Lang, no entanto,
foi procurado por Goebbels a mando do próprio Hitler, em uma sexta- feira à
tarde, para lhe oferecer o posto de cineasta oficial do regime. Lang não
hesitou em arrumar as malas no fim de semana e se exilar bem longe da Alemanha,
antes da segunda-feira... (Entrevista a Sérgio Augusto em 100 Anos de Cinema, livro organizado por
Amir Labaki — Rio de Janeiro: Imago, 1995).
Nota 31, página
90: Para reconquistar o artista que somos, temos que sentir tudo que toca o
nosso corpo e sentir o corpo; escutar os sons que ouvimos, sons da memória e da
imaginação. Temos que redescobrir o corpo: temos um corpo. Temos que reaprender
a ver a coisa no espaço, o espaço da coisa e
o espaço do espaço feito coisa — temos que ver o espaço vazio, cheio de
si mesmo.
Nota
1, página 98: O poeta português Fernando
Pessoa escreveu:
“Entrevi,
como uma estrada por entre árvores, / E que talvez seja o Grande Segredo, /
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam. / Vi que não há Natureza
/ Que Natureza não existe / Que há montes, vales, planícies, / Que há árvores,
flores, ervas, / Que há rios e pedras, / Que não há um todo a que isso pertença
/ Que um conjunto real e verdadeiro / É uma doença das nossas ideias. // A
Natureza é partes sem um todo. / Isto é talvez o tal mistério que falam. / Foi
isto o que sem pensar nem parar / Acertei que devia ser a verdade / Que todos
andam a achar e que não acham / E que só eu, porque a não fui achar, achei.”
Nota
2, página 98: Unicidade é o conjunto das
qualidades de uma unidade.
Nota
3, página 99: El arroyo de la
sierra me complace más que el mar (O riacho da serra me agrada mais que o mar) —
versos de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e
revolucionário cubano, herói da guerra de libertação nacional contra os
espanhóis
Nota
4, página 99: Os conjuntos organizam-se
inicialmente pelos próprios sentidos. Mais tarde, através da palavra e dos
símbolos, formam estruturas sociais ficcionais, imaginárias: conjuntos de
conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: estrutura
moral, política, social, familiar, ritual, comportamental etc. As estruturas
sociais se sustentam pelas relações de poder em suas variadas formas —
políticas, sociais, psicológicas, culturais, carismáticas, sexuais etc. —, que
determinam valores que, embora sejam abstrações, determinam comportamentos
concretos. As relações sociais de poder representam, no campo humano, o mesmo
papel das forças do universo (gravitacional, eletromagnética, e as chamadas
interações forte e fraca) que ocorrem nos núcleos atômicos.
Nota
5, página 100: Crátilo:
discípulo de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, século v-vi ac, dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio duas
vezes: na segunda, já serão outras águas que por ele estarão rolando, já não
será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito,
dizendo que ninguém pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que
as águas estarão sempre em movimento: em que água estará entrando?
Eu
extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa o
rio?
Isto
que digo vai frontalmente contra o pensamento eleático
de Parmênides, que afirmava a unicidade do Ser. Falo de um Ser fragmentado ao
infinito, onde o Não-Ser também É. Matéria é energia, energia é granulada,
grânulos são matéria, que é energia, que são grânulos... Se falamos de
Infinito, vamos levá-lo a sério!
Nota
6, página 107: “Navegar é preciso, viver
não é preciso” — frase pronunciada pelo general romano Pompeu, que viveu no
primeiro século antes de Cristo — “Navigare necesse; vivere non est necesse” —, estimulando os marinheiros medrosos de
enfrentar o mar e a tempestade, levando trigo aos romanos famintos (Plutarco,
Vida de Pompeu). Dizem que o general deu o bom exemplo e foi o primeiro a
embarcar: os tempos mudaram... ai que saudade!
Nota
7, página 101: Substantivos nomeiam o
caminhante; adjetivos e advérbios são opiniões, fluidas como quem opina;
verbos, imprecisas impressões genéricas que englobam múltiplas formas de ser,
acontecer, fazer; artigos, interjeições, e o que mais se queira, são partículas
ao vento.
Nota
8, página 102: “ We few, we happy few,
we a band of brothers; /
For he to-day that sheds his
blood with me / Shall be my
brother; be he ne’er so vile,
/ This day shall gentle his
condition: / And gentlemen
in England now a-bed / Shall think
themselves accursed they were not
here.” Tradução mais ou menos livre: “Nós, poucos que
somos, somos irmãos, porque aquele que derramar seu sangue junto ao meu, o dia
de hoje lhe dará esta condição: será meu irmão, por mais vilão que tenha sido.
E os senhores da Inglaterra que estão agora dormindo em suas camas pensarão que
são amaldiçoados por não estarem agora aqui, lutando ao nosso lado”
Nota
9, página 104: Os índios guarani-kaiowas são homens de palavra. A invasão dos brancos
latifundiários que, com violência, ocupam suas terras, faz com que sintam que
não podem mais dizer sua palavra, afirmar o que sentem, proibidos de expressar
seu pensamento. Muitos, como forma simbólica de revolta, entregam-se ao Jejuvy
— uma forma de suicídio ritual, por enforcamento ou veneno, com testemunhas,
mas sem derramamento de sangue, para que as palavras não se esvaiam —,
destinado a aprisionar a palavra dentro do seu corpo para que um dia, talvez,
se expanda e se afirme. A palavra Jejuvy significa
aperto na garganta, voz aniquilada, palavra sufocada, alma presa. Suicídio à
espera de um possível renascimento da sua fala (cf.
http://www.diplo.uol.com.br/2008-02,a2I68).
Nota
10, página 106: Cotovia em campo de trigo.
Nota
11, página 106: Monet pintou vários quadros da mesma Catedral de Rouen em
diferentes horas do dia e estações do ano. Ao olhá-las lado a lado, vemos o
Tempo.
Nota
12, página 106: “As ideias dominantes em cada sociedade são as ideias da classe
dominante” - disse, em alemão, Marx. Bem pensado! Se fosse ao contrário, o
mundo virava de ponta cabeça!
Nota
13, página 108: Algumas estruturas psicológicas, genericamente chamadas
loucura, fazem parecido: penetram conjuntos, mas se perdem na percepção de cada
um dos seus elementos, sem formar novos conjuntos, que seriam as obras de arte.
Doentes há que veem nossos poros como peneiras, incapazes de ver a pele que
protege o corpo.
O
amante busca o uno, mesmo Don Juan, que não ama ninguém: ama o amor, ama amar.
Narciso, outro caso clínico sério, ama a si mesmo, onde se busca e não está. Na
morte, encontra-se consigo.
Nota
14, página 111: A árvore não deve esconder a floresta, como disse um poeta, mas
a floresta também não tem o direito de esconder cada árvore que nela se perde;
nem cada arbusto, cada ramo de flores, nem cada pétala de cada flor.
Nota
15, página 112: Seria tolo imaginar um infinito apenas para fora e para
longe... Se é verdade que o infinito existe, não é mero conceito, não pode ter
limites para dentro; não pode ser infinito para além das estrelas e limitado em
cada átomo do nosso corpo. O átomo, apesar do seu nome — a-tomo,
indivisível —, é um universo de quarks; estes, universos de feixes de energia
granulada; cada grânulo é um novo universo. O infinitamente grande é igual ao
infinitamente pequeno. O infinito destrói conceitos de grande e pequeno, longe
e perto. Tudo está perto porque é longe, tão pequeno sendo tão grande.
Em
cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas, objetos siderais
atraídos por vorazes buracos negros. Não podemos cair no erro de Parmênides
(515 A.C. — ?), filósofo grego que afirmava que o Universo era infinito em todas
as direções, teria um ponto de partida e... seria esférico. Ora, se tinha
começo e forma precisa, seria finito, pois a forma é o limite do ser com o
não-ser e, como sabemos e Parmênides se esqueceu por uns instantes o que ele
mesmo disse, o não-ser não é...
Pisando
o chão, pisamos terra, respiramos ar e, mais alto, vem o vazio. Mais alto
ainda, o próprio vazio se ausenta... O infinito é a vertigem do pensamento!
Nota 16, página
114: Ver A User 's Guide to the Brain,
de John J. Ratey.
Nota 17, página 115:
Cada neurito tem um só axônio, mas pode ter até dez
mil dentritos, o que fez um cientista calcular que
existem mais possibilidades de formação de redes neuronais no cérebro de um só
indivíduo do que existem átomos em todo o Universo conhecido - só não explicou
como se contam os átomos universais.
Nota 18, página
116: A extrema delicadeza e a complexidade das células chamadas neurônios
obrigaram a natureza a fazer uma exceção curiosa: todos os demais ossos do
nosso corpo estão dentro do próprio corpo e lhe dão sustento; na cabeça, porém,
a ossatura envolve o cérebro e lhe dá proteção. Alguma coisa importante deve
haver lá dentro.
Nota 19, página
118: Os neurônios motores que nos permitem mover o dedão do pé são bem mais
simples. Lula perdeu o dedo mindinho da mão esquerda, foi eleito Presidente da
República, e passa bem; Roosevelt perdeu a capacidade motora de suas pernas e
continuou dirigindo o país; o cientista Stephen Hawking, imobilizado em uma
cadeira de rodas, continua escrevendo livros, mesmo tendo afetada uma boa parte
do seu cérebro. Mas, se algum deles tivesse perdido o cérebro inteiro, o mundo
estaria à beira de uma catástrofe... como de fato está.
Nota 20, página
120: Ver Feeling and Form,
1953.
Nota 21, página
121: Cf. Nature, setembro 2004.
Nota 22, página
127: From Thales to Plato. Chicago: Phoenix Book, The University of Chicago
Press, 1934, 1956, p. 61.
Nota 23, página
129: Os gregos, naquele tempo, não falavam de suas emoções e sentimentos — às
vezes nem mesmo de suas opiniões — como se fossem seus, como se fizessem parte
deles: era sempre uma paixão autônoma, desejos que vinham de fora (um deus ou
deusa) ou de suas entranhas (coração, fígado etc.) que ordenavam ações.
Nota 24, página 129: Inclusive
usando uma linguagem chã que eu tenho certeza que não era a do verdadeiro
Sócrates, como, por exemplo, comparando os trovões celestes aos peidos
terrenos, preocupações bem distantes do filósofo.
Nota 25, página
131: Havia, sim, esboços de democracia na Grécia, que era uma democracia
seletiva, exclusiva dos homens livres — não das mulheres, dos escravos, meteques, estrangeiros, crianças e velhos... Se se pode
chamar a isso democracia, então, seja.
Nota 26, página
133: Arnold Hauser, Social History of Art.
Nota 27, página
134: Um belo exemplo das diferenças entre metáfora e realidade é uma pintura de
Magritte, La condition humaine, pintada em 1933, cujo tema é uma paisagem bucólica
vista pela janela de uma sala. A pintura mostra um quadro colocado exatamente
no vão dessa janela, impedindo a vista da realidade verdadeira, que o quadro
reproduz transubstanciada em óleo.
Outro exemplo são
quadros que Van Gogh pintou em Arles, no sul da França, mostrando os jardins do
hospício onde esteve internado e a fachada do bar que frequentava. Nestes
casos, porém, podemos ver, lado a lado, telas, jardim e a fachada do bar.
Quando as cores do bar fenecem, pintores refazem-nas imitando as cores do
quadro, que imitavam as cores originais — eis a diferença entre arte e
artesanato, ambas majestosas criações humanas, mas diferentes. Quando, porém,
fenecem cores e flores do jardim... jardineiros arrancam flores e cores.
Nota 28, página
136: Encycloptzdla Universalis.
Nota 29, página
142: Uma quermesse na igreja, por exemplo, estimula, além da visão, a audição
(música ambiental), o paladar e o nariz, com suas guloseimas, o tato, com suas
danças.
Nota 30, página
143: Sinal é um estímulo sensorial (som, imagem etc.) convencionado entre
pessoas ou de ilação automática, que carrega um significado preciso, limitado:
isto quer dizer aquilo! E uma advertência. Já o símbolo, também convencionado,
não tem limites. O verde no trânsito é sinal que permite a passagem, enquanto a
cor verde é um símbolo de esperança. Pode-se dizer que uma árvore caída da
estrada é sinal de que ventou forte, enquanto a mesma árvore caída, pintada em
uma tabuleta na beira da estrada, é símbolo de perigo, embora seja sinal de
trânsito. O sinal pode também ter adquirido seu significado pela memória: uma
nuvem negra é sinal de chuva. Ao signo, atribuem- se poderes mágicos, como aos
do horóscopo, ou mnemônicos, como aos heráldicos. Uma insígnia, reveladora de
status e de condição social, pode ser fabricada com sinais, símbolos e signos.
Nota 31, página
152:(Famoso massacre em uma escola dos Estados Unidos, onde um estudante, menor
de idade, matou dezenas de colegas e professores. Em Virginia Tech (2007) foram
mortos)
Nota 32, página
152:(estudantes e professores
por um estudante favorável à venda livre das armas de fogo. Depois deste, é
triste lembrar, outros assassinatos em massa foram cometidos, sem motivo
aparente. Em novembro 2004, noticiou-se que nos Estados Unidos havia sido
lançado um novo videogame no qual o usuário se coloca na posição onde estaria
Lee Oswald, suposto assassino do presidente, e atira no carro em movimento de
John Kennedy: quando acerta o alvo, o sangue se esparrama pelo asfalto
virtual...)
Nota 33, página 161: Claro que a maioria dos seres humanos não é,
sempre, predatória; a civilização, ainda que de forma desigual em cada país e
continente, avançou, está se humanizando - temos que reconhecer avanços. Nem
todos, mesmo com os genocídios e hecatombes que temos visto, conservam essa
herança malsã dos animais predadores: existem bons governantes, bons maridos,
pais e professores, bons juízes e advogados... Nem todos são opressores. Mas
temos que evitar a regressão que nos ameaça e avançar com esperanças de maior
humanização. Temos que entender que, desde os princípios da História, o mundo
foi para a frente ou para trás levado pelas forças sociais em conflito. Nada é
estável neste mundo.
Nota 34, página 168: Técnicas latino-americanas de teatro popular. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 1973.
Nota 35, página 169: Quando o CTO começou suas atividades no Brasil em
1986, em comunidades pobres, eram poucos os que se dedicavam a tarefas
similares: hoje, dezenas de ONGs se dedicam a programas artísticos semelhantes
aos que já existem para a classe média, revelando jovens talentos que vão fazer
carreira em telenovelas, bailarinos que vão continuar seus estudos até no
Bolshoi de Moscou. Isso é ótimo que aconteça, mas não faz parte dos nossos
objetivos.
A aplicação, em comunidades pobres, dos
mesmos métodos utilizados pela classe média e alta, traz no seu bojo a mesma
ideologia competitiva e o elogio ao mais capaz: o campeão. Queremos, ao
contrário, preparar Multiplicadores de Arte, segundo a nossa máxima de que “Só
aprende quem ensina”! Nosso objetivo é atingir todo o tecido social, não
revelar talentos excepcionais. Mesmo que os revele.
Nota 36, página 170: Definição do Dicionário Aurélio.
Nota 37, página 170: Julián Boal, em seu ensaio A dança do trabalho, cita pesquisadores
que mostram que os movimentos realizados pelos trabalhadores durante o trabalho
foram, em muitos casos, a origem de danças bem conhecidas, como a claquete, que
vem do som dos passos dos escravos norte-americanos quando pisavam no chão de
madeira das casas dos seus senhores, calçando sapatos com ruidosas
ferradurinhas, e com o som que produziam conversavam entre si em uma espécie de
Código Morse; ou os graciosos movimentos helicoidais das mãos das bailarinas
andaluzas dançando flamenco, originados nos movimentos de colher frutos das
árvores. O malambo, dança argentina, conserva até
mesmo as boleadoras, cordas com bolas nas
extremidades que os dançarinos usam dançando, como as usadas durante a lida com
os cavalos. A capoeira reproduz alguns movimentos dos camponeses cortando cana.
O mundo está cheio desses criativos exemplos.
Nota 1, página
184: Existia também o Ethos negativo, como a soberba de Édipo, que desafiava
Zeus, criando um conflito ético.
Nota 2, página
185: Como o Cajueiro de Natal, que se estende por uma superfície maior que o
estádio Maracanã no Rio de Janeiro, mais de oito mil metros quadrados de
superfície, crescido durante 125 anos de paciência. Este fenômeno se explica
porque muitos galhos penetram na terra e dela surgem como troncos poderosos,
alguns atingindo o lençol freático, hidratando todo o conjunto, mesmo sem
chuva. Obra dos multiplicadores criativos!
Nota 3, página 188:
Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: Hucitec,
1975.
Nota 4, página
189: Ascèse, askesis,
palavra de origem grega que significa treino, exercício mental, com o objetivo
de se atingir a compreensão mais ampla dos fenômenos, subir ao mais geral, para
melhor se compreender cada caso particular. Não confundir com asceta e
ascetismo, que têm a mesma origem grega e são repletas de vestígios e
tonalidades religiosas.
Nota 5, página
197: Prometeu: homenagem a um dos Titãs — mais que homens, menos que deuses que
ensinou os humanos a fazer o Fogo, que ele havia roubado aos deuses do Olimpo,
que o queriam só para si. Foi castigado por Zeus, o supremo ditador celeste, a
ser acorrentado em um penhasco onde todos os dias os abutres vinham comer seu fígado,
que todas as noites se refazia para tornar o tormento infindável. Prometeu é
símbolo daqueles que lutam pela democratização do saber.
Nota 6, página
203: Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999.
Nota 7, página 204:
No dia 16 de maio de 2006, um Stradivarius conhecido
pelo nome de The Hammer, fabricado em Cremona, Itália, em 1707, pelo famoso
luthier Antonio Stradivarius,
foi vendido pela firma Christie's, em Nova York, pela soma de três milhões e
meio de dólares, fora do alcance dos nossos grupos populares... Um bom brócolis
de feira livre, tamanho médio, sai muito mais barato, embora não tenha a mesma
sonoridade...
Nota 8, página 223: Quando
assiste a um evento e dele participa, a pessoa vive esse evento; quando conta
aos outros o que viveu, vivencia. Como a testemunha diante do juiz.
Nota 9, página 224: Três cenas
importantes haviam-se perdido e foram achadas - assim, essa foi a primeira.
Nota 10, página 226: O delírio interpreta erroneamente a
realidade que existe — coisas e sons, por exemplo atribuindo-lhe valores e
funções que reconhecidamente não são verdadeiros ou não se coadunam com a usual
interpretação da percepção coletiva. Em geral, são persecutórios e atribuem a
alguém intenções malévolas inexistentes. A alucinação, mais livre, cria uma realidade fictícia — imagens e
sons que inexistem e, portanto, não são registrados pelos sentidos, mas estavam
bem guardados na memória. Visões de óvnis são delírios, pois algum objeto iluminado apareceu no céu, mesmo que
apenas refletido. Santos e demônios, ou a visão de mortos queridos ou temidos,
são alucinações.
Delírio e alucinação fazem
parte do mesmo processo desvinculante da realidade
tal como ela é coletivamente aceita. O delírio pode ser uma forma de
racionalizar — dar razão — à alucinação, que pode ter sido o seu estágio
anterior, mas pode, igualmente, provocá-la: alucinógeno produto da alucinação.
As formas delirantes afastam-se da realidade objetiva, cuja
interpretação é por todos compartida, e instalam-se em uma realidade imaginada,
para a qual a todos convida (como no teatro, em um concerto musical ou
espetáculo de dança) ou das quais a todos exclui, como no momento criativo
solitário do pintor e do compositor.
Nota 11, página 227: Quando o
sujeito ainda não está adormecido mas já não se encontra em vigília. Ao
acordar, fenômeno semelhante chama-se hipnopômpico.
Nota 12, página 236: Todas as
opressões que se exercem na realidade social refletem-se na subjetividade do
sujeito, são internalizadas e passam a fazer parte dela. Podemos carregar em
nós nossos próprios opressores, coisa que fazemos com perfeição.
As técnicas do arco-íris do desejo devem fazer parte do estudo de
opressões claramente sociais e políticas. Do mais íntimo de cada um de nós,
devemos chegar às ações concretas.
Nota 13, página 239: Ver Jogos para atores e não-atores. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
Nota 14, página 240: Certos
delírios coletivos e históricos, quando socialmente aceitos, podem adquirir
feições de verdades dogmáticas. As mitologias religiosas são o melhor exemplo,
desde as mais antigas, em que cada fenômeno natural, sentimento ou paixão, cada
desejo e cada medo, era representado por um deus ou deusa que personificava
essas paixões, desejos etc., até as mais sofisticadas mitologias religiosas
modernas, baseadas em impossibilidades científicas, como a geração imaculada de
um filho de Deus; o parto pelas axilas de outro deus feito homem; as aparições
e revelações secretas de um deus a certos profetas escolhidos, sempre em
lugares ermos, inacessíveis, e sem testemunhas que pudessem confirmar esses
misteriosos encontros... Curioso é que, aqueles que adotam uma destas crenças
recusam todas as outras que têm semelhantes fundamentos mitológicos.
Essas mitologias podem ser
entendidas como delírios coletivos estruturados em formas delirantes míticas
que, apesar e contra a razão, são socialmente encorajadas, pois, além de darem
uma explicação final e imperativa do mundo em que vivemos — a um só tempo,
lógica e fantasista —, ajudam a estruturar politicamente a sociedade pelo seu
poder anestésico e intimidatório — perpetuando a
opressão.
Nota 15, página 242: O Centro
do Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro desenvolve atualmente um Programa de
Teatro do Oprimido na Saúde Mental. CTO‑Rio, Av. Mem de Sá, 31, Lapa, Centro, Rio (021) 2232 5826
(Endereço eletrônico: ctorio@ctorio.org.br).
Nota 16, página
245: Por isso, pode-se educar alguém, mas não se pode pedagogizar
ninguém. Pode-se, pedagogicamente, ajudar.
Nota 17, página
246: De certa forma, dois mundos existem, sim: este livro pertence ao mundo das
ideias, inspiradas no mundo concreto das sociedades em que trabalho. Os dois
mundos são metaxiais — dialogam. Em nós, humanos, um
não existe sem o outro.
Nota 18, página
247: Pessoa que provém do cruzamento de pais de raças diferentes.
Nota 19, página
247: Negro e índia, ou vice-versa.
Nota 20, página
247: Branco com índia, ou vice-versa.
Nota 21, página
247: índio com negra, ou vice-versa.
Nota 22, página
247: índio com branca, ou vice-versa.
Nota 23, página
248: Nestas, significantes e significados são indissociáveis — o significado é
o próprio significante! Em uma fisionomia de prazer ou dor, o significado não
passa pelo simbólico da palavra.
Nota 24, página
251: Temos que distinguir também o espaço dramático, fechado em si mesmo, do espaço para o drama, que exige complemento. O primeiro pode
ser exemplificado por uma exposição de estátuas em um museu: estátuas e espaço
se completam, nada falta. Já o espaço para o
drama é aquele em que falta a entrada em cena da figura humana que virá
completá-lo.
Nota 25, página
253: Breughel, o Velho (1528-1569), pintou um quadro
que muito tem a ver com o que aqui estou dizendo: A queda de Ícaro. Nele,
vê-se um camponês arando a terra fértil, enquanto, de ícaro,
a única parte que se vê é uma das pernas do seu corpo que se afoga.
Final das notas de rodapé.