Este material foi adaptado pelo laboratório de acessibilidade da universidade federal do rio grande do norte, em conformidade com a lei 9.610 de 19/02/1998, capítulo IV, artigo 46. Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficiência visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.

 

Revisado por: Andressa Raniely

 

Natal, setembro de 2018.

 

COELHO, Fábio Ulhoa. Recuperação judicial. In:_____. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 29. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. cap. 29, p. 353- 367.

 

Capítulo 29

RECUPERAÇÃO JUDICIAL

 

Página 353

1.    INTRODUÇÃO A RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Em regimes de livre-iniciativa e livre concorrência, estranha a existência de um instituto jurídico destinado a amparar empresário em crise. Afinal, se não foi suficientemente competente para fazer prosperar a atividade empresarial, o empresário deve suportar as consequências de sua inabilidade ou azar. Quando o fundamento da organização econômica é a liberdade de iniciativa e concorrência, a recuperação de empresas deveria, em princípio, decorrer sempre de uma “solução de mercado”. Se tal solução não aparece, por qualquer razão, a empresa em crise deveria simplesmente falir, para que se iniciasse, com a maior brevidade, a realocação, em outra ou outras atividades econômicas estáveis, de seus recursos materiais, tecno­lógicos e humanos.

O surgimento de uma solução de mercado depende de outro em­presário identificar, na aquisição daquela empresa, uma oportunidade atraente de ganhar dinheiro. Imagine que a crise se manifestou por ser preciso modernizar o parque fabril, o que demandaria um grande investimento. Os sócios da sociedade empresária que exploram essa empresa, porém, não estão dispostos a realizar o aporte. Se aparecer algum investidor que, tendo interesse em realizar o investimento, adquira a empresa, surge a solução de mercado que viabiliza a supe­ração da crise.

O que justifica, então, o instituto da recuperação judicial num direito fundado na livre-iniciativa e livre concorrência? Sem a solução de mercado, para a empresa em crise superar suas dificuldades, será necessário impor aos credores um sacrifício (o valor de seus créditos será reduzido ou o vencimento, postergado). Esse “custo” da recu­peração judicial é “social”, porque os credores posteriormente pro­curarão compensar suas perdas aumentando os preços dos produtos e serviços; portanto, o custo da recuperação judicial será suportado por nós, consumidores.

 

Página 354

A justificativa para a existência do instituto da recuperação judicial se encontra no princípio da preservação da empresa (item 1.1), cuja aplicação deve ser extremamente cautelosa, para que os brasileiros não acabem pagando os custos sociais da tentativa de superação de crises em empresas inviáveis. A recuperação judicial só pode beneficiar as empresas com viabilidade econômica (item 1.2).

 

1.1.  Princípio da preservação da empresa

O princípio da preservação da empresa decorre do princípio da função social da empresa. Esse, como visto (Introdução, item 6), reconhece que, em torno da atividade econômica empresarial, gravitam variados interesses, que transcendem os dos investidores, empreendedores e empresários. Aos traba­lhadores em geral interessa o fortalecimento e desenvolvimento das empresas, porque elas geram postos de trabalho. Aos empregados de uma empresa espe­cífica interessa a manutenção de seu emprego. Os consumidores têm interesse em atender às suas necessidades e querências, adquirindo os produtos e servi­ços fornecidos pelas empresas. O fisco se interessa pelos tributos gerados pela atividade econômica, etc.

A crise da empresa tem impacto social (Cap. 24, item 1) exatamente por­que tais interesses, que ultrapassam os dos sócios da sociedade empresária em dificuldade, ficam ameaçados.

A solução de mercado, por outro lado, pode não aparecer por idiossincrasia do controlador da sociedade empresária em dificuldade. Pode ser que outros empresários tenham apresentado propostas para a compra desta, mas por preço recusado pelo controlador. Nesse caso, o que impediu o surgimento da solução de mercado para a superação da crise foi a resistência dele em reconhecer que sua empresa não vale tanto quanto ele gostaria. Pois bem, não é racional, nem justo, que trabalhadores, empregados, consumidores, fisco e demais interessados na preservação da empresa sejam prejudicados pela idiossincrasia do controlador.

Em tal situação, considera-se razoável que os custos sociais da recuperação judicial sejam suportados por toda a coletividade. Claro, não se pode deixar de notar o paradoxo: para contornar os efeitos deletérios da idiossincrasia, a recuperação judicial acaba por criar as condições para que esta prevaleça (des­tinada a contornar a resistência do empresário em ceder à solução de mercado, o instituto possibilita que ele continue à frente da empresa em dificuldade).

O princípio da preservação da empresa classifica-se como específico, legal e expresso (LF, art. 47).

 

Página 355

1.2.  Viabilidade da empresa

Nem toda empresa merece ou deve ser recuperada. A reorganização de atividades econômicas é custosa. Alguém há de pagar pela recuperação, seja na forma de investimentos no negócio em crise, seja na de perdas parciais ou totais de crédito. Em última análise, como os principais agentes econômicos acabam repassando aos seus respectivos preços as taxas de riscos associados à recuperação judicial ou extrajudicial do devedor, o ônus da reorganização das empresas recai na sociedade brasileira como um todo. O crédito bancário e os produtos e serviços oferecidos e consumidos ficam mais caros porque parte dos juros e preços se destina a socializar os efeitos da recuperação das empresas.

Por ser a sociedade brasileira como um todo que arca, em última instân­cia, com os custos da recuperação das empresas, é necessário que o Judiciário seja criterioso ao definir quais merecem ser recuperadas. Não se pode erigir a recuperação das empresas em um valor absoluto. Não é qualquer empresa que deve ser salva a qualquer custo. Na maioria dos casos, se a crise não encontrou uma solução de mercado, o melhor para todos é a falência, com a realocação em outras atividades econômicas produtivas dos recursos materiais e humanos anteriormente empregados na da falida.

Em outros termos, somente as empresas viáveis devem ser objeto de recuperação judicial (ou mesmo a extrajudicial). Para que se justifique o sacrifício da sociedade brasileira presente, em maior ou menor extensão, em qualquer recuperação de empresa não derivada de solução de mercado, o empresário que a postula deve se mostrar digno do benefício. Deve mostrar, em outras palavras, que tem condições de devolver à sociedade brasileira, se e quando recuperado, pelo menos em parte o sacrifício geral feito para salvá-la.

O exame da viabilidade deve ser feito em função de vetores como a importância social, a mão de obra e tecnologia empregadas, o volume do ativo e passivo, o tempo de existência da empresa e seu porte econômico.

 

2.     MEIOS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA

A lei contempla lista exemplificativa dos meios de recuperação da ativi­dade econômica (LF, art. 50). Nela, encontram-se instrumentos financeiros, administrativos e jurídicos que normalmente são empregados na superação de crises em empresas. Os administradores da sociedade empresária interessada em pleitear o benefício em juízo devem analisar, junto com o advogado e demais profissionais que os assessoram no caso, se entre os meios indicados há um ou mais que possam mostrar-se eficazes no reerguimento da atividade econômica.

 

Página 356

Como se trata de lista exemplificativa, outros meios de recuperação da empresa em crise podem ser examinados e considerados no plano de recuperação. Normalmente, aliás, os planos deverão combinar dois ou mais meios, tendo em vista a complexidade que cerca as recuperações empresariais.

A lista legal compreende: a) dilação do prazo ou revisão das condições de pagamentos; b) operação societária, como fusão, incorporação ou cisão; c) alteração do controle societário, com ou sem transferência total do poder a grupos mais capacitados; d) reestruturação da administração, com substituição dos administradores ou redefinição dos órgãos; e) concessão de direitos socie­tários extrapatrimoniais aos credores, como o direito de veto (golden share); f) reestruturação do capital; g) transferência ou arrendamento do estabeleci­mento empresarial; h) renegociação das obrigações ou do passivo trabalhistas; i) dação em pagamento ou novação das principais dívidas do empresário em crise; j) constituição de sociedade de credores, para revitalizar a empresa; k) realização parcial do ativo, visando o levantamento de recursos financeiros para investimento ou quitação de dívidas; í) equalização de encargos financeiros; m) usufruto de empresa; n) administração compartilhada, para arejar a direção da empresa com novas ideias; o) emissão de valores mobiliários, quando houver mercado para operações financeiras como as de securitização; p) adjudicação de bens a credores para diminuir o passivo.

 

3.    ÓRGÃOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial (RJ) é um processo peculiar, em que o objetivo bus­cado - a reorganização da empresa, em benefício do empresário devedor, dos credores e empregados e da economia (local, regional ou nacional) - pressupõe a prática de atos judiciais não somente pelo juiz, Ministério Público e partes, como também de alguns órgãos específicos previstos em lei.

São três os órgãos específicos da recuperação judicial: assembleia geral dos credores, administrador judicial e o comitê.

 

3.1. Assembleia geral

A assembleia dos credores é o órgão colegiado e deliberativo responsável pela manifestação do interesse da vontade predominantes entre os credores sujeitos aos efeitos da RJ. De maneira geral, nenhuma recuperação de empresa se viabiliza sem o sacrifício ou agravamento do risco, pelo menos em parte, dos direitos de credores. Por esse motivo, em atenção aos interesses daqueles sem cuja colaboração a reorganização fatalmente se frustra, a lei reserva à assembleia geral dos credores (AGC) as mais importantes deliberações relacionadas ao reerguimento da atividade econômica em crise.

 

Página 357

A AGC pode ser convocada pelo juiz (nas hipóteses legais ou sempre que considerar conveniente) e pelos credores (desde que a soma de seus créditos represente pelo menos 25% do total do passivo do recuperando). O anúncio da convocação da assembleia deve ser publicado no Diário Oficial e em jornal de grande circulação, com a antecedência mínima de 15 dias da data de sua realização. Para instalarem-se validamente os trabalhos da assembleia, é exi­gida a presença de credores titulares de mais da metade do passivo (em cada classe). Caso não seja alcançado, terá lugar a segunda convocação, observado o intervalo mínimo de 5 dias. Em segunda convocação, os trabalhos se instalam validamente com qualquer número de credores.

Compete à AGC: a) aprovar, rejeitar e revisar o plano de recuperação judi­cial; b) aprovar a instalação do comitê e eleger seus membros; c) manifestar-se sobre o pedido de desistência da recuperação judicial; d) eleger o gestor judicial, quando afastados os diretores da sociedade empresária requerente; e) deliberar sobre qualquer outra matéria de interesse dos credores (LF, art. 35,1, a a/).

Em princípio, todos os credores admitidos na recuperação judicial têm direito a voz e voto na assembleia. São credores admitidos os que se encontram na última lista publicada (relação de credores apresentada pelo devedor com a petição inicial, a organizada pelo administrador judicial ou a consolidação do quadro geral). Está admitida e integra a assembleia dos credores a pessoa natural ou jurídica cujo nome consta do rol - dentre os três que se elaboram ao longo da verificação de créditos - que tiver sido publicado por último. Cada credor presente na assembleia terá o voto proporcional ao valor do seu crédito admitido na RJ. Desconsidera-se, por esta razão, o valor das despesas que in­dividualmente fizeram para tomar parte do processo. Em relação ao valor do crédito prevalece o constante da última relação de credores.

Na AGC, há cinco instâncias de deliberação. De acordo com a matéria em apreciação, varia o conjunto de credores aptos a votar.

A instância de maior abrangência é o plenário. Sempre que a matéria não disser respeito à constituição do comitê ou plano de reorganização, cabe a deliberação ao plenário. Tem essa instância, portanto, competência residual. Se não houver na lei nenhuma previsão específica reservando a apreciação da matéria a outra ou outras instâncias, o plenário deliberará pela maioria de seus membros, computados os votos proporcionalmente aos seus valores, independentemente da natureza do crédito titularizado.

 

Página 358

O pedido de desistência da RJ, por exemplo, será votado na plenária, de acordo com este quorum de deliberação, e não nas classes.

O quorum geral de deliberação no plenário é o de maioria computada com base no valor dos créditos dos credores admitidos presentes à assembleia. Desse modo, se a AGC se realiza em segunda convocação, com a presença de apenas 10 credores, somam-se os créditos deles e calcula-se o peso proporcional do direito de cada um. Devem ser desprezadas as proporções dos créditos. Os percentuais assim encontrados norteiam a quantidade de votos atribuídos a cada credor.

Se um deles titularizar sozinho 51% da soma dos créditos dos presentes, então ele compõe isolado a maioria e faz prevalecer sua vontade e interesse, mesmo contra os dos demais. Assim será, inclusive, mesmo que o seu crédito represente parcela ínfima do passivo, se os credores ausentes titularizavam a parte substancial deste.

As quatro outras instâncias deliberativas da AGC correspondem às classes em que a lei dividiu os credores. Quando a deliberação versa sobre o plano de recuperação ou a composição do comitê de credores, o plenário não tem competência, cabendo às classes a aprovação ou rejeição.

Na votação atinente ao plano de recuperação, a primeira classe compõe-se pelos credores trabalhistas; a segunda, pelos titulares de direitos reais de garantia; a terceira, por titulares de privilégio (geral ou especial), os quirografários e subordinados; e a quarta classe reúne os credores microempresários e empresários de pequeno porte (LF, art. 41).

Na apreciação de matéria atinente à constituição e composição do comitê, as instâncias classistas da assembleia se organizam um pouco diferente: os cre­dores titulares de privilégio especial compõem a mesma classe dos que titulam garantia real (LF, art. 26).

O plano de recuperação deve ser apreciado e votado nas classes da AGC (o plenário não delibera a respeito) e, em cada uma delas, deve receber a aprova­ção de mais da metade dos credores presentes. Neste caso, a votação considera apenas o número de credores, e despreza o valor dos créditos e seus pesos pro­porcionais. Além da aprovação “por cabeça” em cada uma das quatro classes, a aprovação do plano depende também de votação favorável segundo a proporção dos créditos em duas das quatro classes: a dos credores com garantia real (classe II) e a dos titulares de privilégio, quirografdrios e subordinados (classe III).

 

            Página 359

3.2.   Comitê

O comitê é órgão facultativo da recuperação judicial. Sua constituição e operacionalização dependem do tamanho da atividade econômica em crise. Ele deve existir apenas nos processos em que a sociedade empresária devedora explora empresa grande o suficiente para absorver as despesas com o órgão. Quem decide se o órgão deve ou não existir são os credores da sociedade em recuperação judicial, reunidos na AGC.

Qualquer das instâncias classistas da assembleia pode aprovar a instala­ção do comitê. Aprovada a instalação, reúnem-se as classes de credores para cada uma eleger 1 membro titular e 2 suplentes. Na eleição dos membros do comitê, observam-se os mesmos impedimentos para o exercício da função de administrador judicial (item 3.3).

A principal competência do comitê é fiscal. Quer dizer, cabe aos membros desse órgão fiscalizar tanto o administrador judicial como o devedor em RJ, antes e depois de concedida esta. Para tanto, os membros do comitê têm livre acesso às dependências, escrituração e documentos do devedor. Sempre que constatar qualquer fato que considere irregular, o comitê, por voto da maioria dos seus membros, deve encaminhar ao juiz da RJ requerimento fundamentado das providências que entender pertinentes.

Além da competência fiscal, por cujo exercício presta contas mensais, o comitê pode eventualmente exercer também três outras: elaboração de plano de recuperação alternativo ao apresentado pelo devedor; deliberação sobre as alienações de bens do ativo permanente; e autorização de endividamentos necessários à continuação da atividade empresarial, quando tiver sido deter­minado pelo juiz o afastamento dos administradores.

Nas recuperações judiciais em que não houver comitê, por ser injustificá­vel (a dimensão da empresa ou a complexidade do passivo não o recomenda) ou inviável (quando não há credores interessados em exercer a função), as atribuições do órgão são exercidas pelo administrador judicial. Exceto nas matérias em que houver incompatibilidade, como, por exemplo, a fiscalização do próprio administrador judicial. Neste caso, cabe ao juiz exercer a atribuição legal inicialmente reservada ao comitê.

 

3.3.   Administrador judicial

Em toda recuperação judicial, como auxiliar do juiz e sob sua direta super­visão, atua um profissional na função de administrador judicial. Ele é pessoa da confiança do juiz, por ele nomeado no despacho que manda processar o pedido de recuperação judicial.

 

Página 360

O administrador judicial deve ser pessoa idônea, preferencialmente ad­vogado, economista, administrador de empresas, contador ou pessoa jurídica especializada. Estão, porém, impedidos de exercer a função os que anteriormen­te não a desempenharam a contento. Quem, nos 5 anos anteriores, exerceu a função de administrador judicial ou membro de comitê em processos de falência ou recuperação judicial e dela foi destituído, deixou de prestar contas ou teve reprovadas as que prestou, está impedido de ser nomeado para a função. Também há impedimento que veda a nomeação de pessoas com vínculo de parentesco ou afinidade até terceiro grau com qualquer dos representantes legais da sociedade empresária requerente da RJ, amigo, inimigo ou dependente destes.

Na recuperação judicial, as funções do administrador judicial variam de acordo com dois vetores: caso o comitê exista ou não; e caso tenha sido ou não decretado o afastamento dos administradores da empresa em recuperação.

De acordo com o primeiro vetor, uma vez instalado o comitê, ao adminis­trador judicial caberá basicamente proceder à verificação dos créditos, presidir a assembleia dos credores e fiscalizar o recuperando. Não havendo comitê, o administrador assumirá também a competência reservada pela lei a esse órgão colegiado, exceto se houver incompatibilidade.

Pelo segundo vetor, o administrador judicial é investido no poder de administrar e representar a sociedade empresária requerente da RJ quando o juiz determinar o afastamento dos seus diretores, enquanto não for eleito o gestor judicial pela AGC. Somente nesse caso particular tem ele a prerrogativa de se imiscuir por completo na intimidade da empresa e tomar as decisões administrativas atinentes à exploração do negócio. Não tendo o juiz afastado os diretores ou administradores da sociedade empresária requerente da RJ, o administrador judicial será mero fiscal, o responsável pela verificação dos créditos e o presidente da AGC.

 

4.     PROCESSO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

O processo da recuperação judicial divide-se em três fases bem distintas.

Na primeira, que se pode chamar de fase postulatória, o empresário ou a sociedade empresária em crise apresenta seu requerimento de RJ. Ela se inicia com a petição inicial de recuperação judicial e se encerra com o despacho ju­dicial mandando processar o pedido.

 

Página 361

Na segunda fase, a que se pode referir como deliberativa, após a verificação de crédito, discute-se e aprova-se um plano de reorganização. Tem início com o despacho que manda processar a RJ e se conclui com a decisão homologatória do plano aprovado pela AGC.

A derradeira etapa do processo, chamada de fase de execução, compreen­de a fiscalização do cumprimento do plano aprovado. Começa com a decisão concessiva da recuperação judicial e termina com a sentença de encerramento do processo.

 

4.1. Fase postulatória

Para pedir a recuperação judicial, é necessário estar sujeito à falência. Apenas o empresário e a sociedade empresária têm legitimidade para o pedi­do. As sociedades em comum, de economia mista, cooperativa ou simples não podem pleitear a recuperação judicial exatamente porque nunca podem ter a falência decretada.

Atender a esta condição, porém, não basta, porque a lei obsta a determi­nadas categorias de empresário ou sociedade empresária o acesso à RJ. Estão excluídas da recuperação judicial, por razões ligadas à regulação econômica, as instituições financeiras, integrantes do sistema de distribuição de títulos ou valores mobiliários no mercado de capitais, corretoras de câmbio (Lei 6.024/74, art. 53), seguradoras (Decreto-Lei 73/66, art. 26) e as operadoras de planos privados de assistência à saúde (Lei 9.656/98, art. 23) e concessionárias de energia elétrica (Lei 12.767/12).

Por outro lado, a recuperação judicial tem lugar apenas se o titular da empresa em crise quiser. Se credores, trabalhadores, sindicatos ou órgão go­vernamental tiver um plano para a reorganização da atividade econômica em estado pré-falencial, não poderá dar início à RJ contra a vontade do devedor.

Para legitimar-se ao pedido de recuperação judicial, contudo, não basta ser exercente de atividade econômica exposta ao risco de falência e não se encon­trar entre as exceções legais. O devedor precisa atender também a mais quatro requisitos: a) não pode estar falido; b) deve estar regularmente estabelecido há mais de 2 anos; c) não pode ter obtido o mesmo benefício há menos de 5 anos; d) não pode ter havido condenação pela prática de crime falimentar.

Se quem pleiteia a recuperação judicial é empresário individual, cabem ainda mais três observações: a) a lei legitima o devedor pessoa natural que, embora falido, teve suas responsabilidades declaradas extintas por sentença definitiva; b) ele não está legitimado se, nos 5 anos anteriores, requereu RJ, obteve-a e deixou de cumpri-la, tendo a quebra decretada; c) na hipótese de morte do empresário individual, a recuperação judicial pode ser pedida pelo cônjuge sobrevivente, herdeiros ou inventariante.

 

 

Página 362

Exige-se do devedor interessado em obter a RJ o atendimento a diversas condições: algumas formais, outras, materiais. É necessário, por exemplo, que tome acessíveis aos credores certas demonstrações contábeis, para possibili­tar a verificação de sua situação patrimonial. De outro lado, ela deve ter um plano viável de recuperação da atividade em estado crítico. Em consequência, a lei determina que a petição inicial esteja instruída com certos elementos e documentos, sem os quais não se consideram atendidas as condições para a obtenção do benefício.

Compõe obrigatoriamente a instrução da petição inicial de RJ: exposição das causas; demonstrações contábeis e relatório da situação da empresa; rela­ção dos credores; relação dos empregados; atos constitutivos (contrato social, se limitada; estatuto, se anônima) devidamente atualizados; lista dos bens de sócio ou acionista controlador e administradores; extratos bancários e de in­vestimentos; certidões de protesto; relação das ações judiciais em andamento.

Estando em termos a documentação exigida para a instrução da petição inicial, o juiz proferirá o despacho mandando processar a RJ. Note-se que esse despacho não se confunde com a ordem de autuação ou outros despachos de mero expediente. Não se confunde também com a decisão concessiva da recu­peração judicial, que virá após a aprovação do plano pelos credores. O pedido de tramitação é acolhido no despacho de processamento, em vista apenas de dois fatores - a legitimidade ativa da parte requerente e a instrução nos termos da lei. Ainda não está definido, porém, que a empresa em crise é viável e, por­tanto, tem o direito ao benefício. Só a tramitação do processo, ao longo da fase deliberativa, fornecerá os elementos para a concessão da recuperação judicial.

No despacho de processamento da recuperação judicial, o juiz nomeia o administrador judicial, determina a suspensão de todas as ações e execuções contra o devedor (ressalvadas as exceções da lei) e a intimação do Ministério Público e comunicação por carta às Fazendas Públicas Federal e de todos os Estados e Municípios em que a requerente estiver estabelecida. Publica-se o despacho em edital na imprensa oficial, de que deve constar também a data, o local e a hora para os quais foi convocada a assembleia geral dos credores.

Dos efeitos do despacho que manda processar o pedido de recuperação judicial cabe examinar com mais vagar os relacionados à suspensão das ações ou execuções em trâmite contra o requerente. Lembro que os pedidos de falência suspendem-se pela tão só impetração regular da RJ no prazo de contestação (LF, art. 95). Quanto a esses, portanto, o despacho mandando processar o pedido não tem maiores implicações. São as demais ações e execuções que terão sua tramitação suspensa com o processamento da recuperação judicial.

 

Página 363

Mas há exceções na lei. Continuam, assim, a tramitar: (I) ações de qualquer natureza (civil ou trabalhista) que demandam quantias ilíquidas; (II) reclama­ções trabalhistas; (III) execuções fiscais, caso não concedido o parcelamento (CTN.art. 155-A, §§ 3.° e 4.°); (IV) execuções promovidas por credores absolu­tamente não sujeitos à recuperação judicial: bancos titulares de crédito derivado de antecipação aos exportadores (ACC), proprietário fiduciário, arrendador mercantil ou o vendedor ou promitente vendedor de imóvel ou de bem com reserva de domínio.

É temporária a suspensão das ações e execuções em virtude do despacho que manda processar o pedido de recuperação judicial. Cessa esse efeito quando verificado o primeiro dos seguintes fatos: aprovação do plano de recuperação ou decurso do prazo de 180 dias.

 

4.2. Fase de deliberação

A fase de deliberação do processo de recuperação judicial inicia-se com o despacho de processamento. Q principal objetivo dessa fase é a votação do plano de recuperação. Para que essa votação se realize, porém, deve ser processada previamente a verificação dos créditos (ver Cap. 25, item 7).

A mais importante peça do processo de recuperação judicial é o plano de recuperação judicial (ou de “reorganização da empresa”). Depende exclusi­vamente dele a realização ou não dos objetivos associados ao instituto, quais sejam, a preservação da atividade econômica e o cumprimento de sua função social. Se o plano de recuperação é consistente, há chances de a empresa se reestruturar e superar a crise em que mergulhara. Terá, nesse caso, valido a pena o sacrifício imposto diretamente aos credores e, indiretamente, a toda a sociedade brasileira. Mas se o plano for inconsistente, limitado a um papelório destinado a cumprir mera formalidade processual, então o futuro do instituto é a completa desmoralização.

Note-se, um bom plano de recuperação não é, por si só, garantia absoluta de reerguimento da empresa em crise. Fatores macroeconômicos globais ou nacionais, acirramento da concorrência no segmento de mercado em causa ou mesmo imperícia na sua execução podem comprometer a reorganização pretendida. Mas, um plano ruim é garantia absoluta de fracasso da RJ.

 

Página 364

O plano de recuperação deve indicar pormenorizada e fundamentadamente o meio ou meios pelos quais a sociedade empresária devedora deverá superar as dificuldades que enfrenta. No tocante à alteração das obrigações do recuperando, a lei se preocupou em estabelecer quatro balizas: a) os empregados com direitos vencidos na data da apresentação do pedido de recuperação judicial devem ser pagos no prazo máximo de 1 ano, devendo ser quitados os saldos salariais em atraso em 30 dias; b) deve-se buscar o parcelamento do crédito fiscal; c) se o plano prevê a alienação de bens onerados (hipotecados ou empenhados), a supressão ou substituição da garantia real depende da expressa aprovação do credor que a titulariza; d) nos créditos em moeda estrangeira, sua conversão para a moeda nacional depende de expressa concordância do titular do crédito.

Portanto, com a exceção feita aos créditos referidos nas quatro balizas acima, todos os demais sujeitos aos efeitos da RJ podem ser objeto de amplas alterações no valor, na forma de pagamento, nas condições de cumprimento da obrigação etc.

O plano de recuperação judicial deve ser apresentado no prazo de 60 dias, contados da publicação do despacho de deferimento do processamento. Se ne­nhum credor objetar, ele está aprovado. Havendo objeção, convoca-se a AGC.

Cabe à assembleia dos credores, tendo em vista o proposto pela devedora e eventual proposta alternativa que lhe tenha sido submetida, discutir e votar o plano de recuperação. Três podem ser os resultados da votação na AGC: a) aprovação do piano de recuperação, por deliberação nas classes que atendeu ao quorum da lei; b) apoio ao plano de recuperação, por deliberação nas classes que quase atendeu a esse quorum; c) rejeição do plano do devedor e, se apresentado, também do alternativo do comitê.

Em qualquer caso, o resultado será submetido ao juiz, mas variam as decisões judiciais possíveis em cada um deles. No primeiro, o juiz limita-se a homologar a aprovação do plano pelos credores, não podendo deixar de fazê-lo por razões atinentes ao mérito do aprovado pela AGC; no segundo, ele terá a discricionariedade para aprovar ou não o plano que quase alcançou o quorum; no terceiro, deve decretar a falência do requerente da RJ.

 

4.3.   Fase de execução

Concedida a recuperação judicial, encerra-se a fase de deliberação e tem início a de execução.

Durante a derradeira fase do processo de recuperação judicial, dá-se cumprimento ao plano de recuperação aprovado em juízo. Em princípio, é imutável esse plano.

 

Página 365

Se a sociedade beneficiada dele se desviar nos dois anos seguintes à aprovação, deve ter a falência decretada. Tem sido admitido, porém, em ca­sos muito excepcionais a revisão pela AGC do plano de recuperação, quando considerável mudança na economia impede o seu cumprimento, não havendo culpa do devedor.

O devedor em recuperação judicial não tem suprimida sua capacidade ou personalidade jurídica. Continua existindo como sujeito de direito apto a contrair obrigações e titularizar crédito. Sofre uma única restrição: os atos de alienação ou oneração de bens ou direitos do ativo permanente só podem ser praticados se úteis à recuperação judicial. A utilidade do ato é presumida em termos absolutos se previsto no plano de recuperação judicial aprovado em juízo. Nesse caso, o bem pode ser vendido ou onerado, independentemente de qualquer outra formalidade ou anuência. Mas, se a alienação ou oneração não constar do plano de recuperação homologado ou aprovado pelo juiz, a utilidade do ato para a RJ deve ser apreciada pelos órgãos desta. Assim, a alienação ou oneração só poderá ser praticada mediante prévia autorização do juiz, ouvido o comitê.

Durante toda a fase de execução, a sociedade empresária agregará ao seu nome a expressão “em recuperação judicial”, para conhecimento de todos que com ela se relacionam negociai e juridicamente. A omissão dessas expressões implica responsabilidade civil direta e pessoal do administrador que tiver re­presentado a sociedade em recuperação no ato em que ela se verificou. Será, outrossim, levado à inscrição najunta Comercial o deferimento do benefício.

Se os administradores da sociedade em RJ eleitos pelos sócios ou acio­nista controlador estão se comportando lícita e utilmente, não há razões para removê-los da administração. Caso contrário, o juiz determinará seu afasta­mento. Determinando a destituição da administração da sociedade empresária requerente do benefício, o juiz deve convocar a AGC para a eleição do gestor judicial, a quem será atribuída a administração da empresa em recuperação.

De duas formas diferentes se encerra a fase de execução do processo de recuperação judicial: cumprimento do plano de recuperação no prazo de até 2 anos ou pedido de desistência do devedor, que poderá ser apresentado a qualquer tempo e está sempre sujeita à aprovação pela assembleia geral dos credores.

 

5.    MICROEMPRESA E EMPRESA DE PEQUENO PORTE

Quando a crise alcança microempresa ou empresa de pequeno porte, a RJ pode seguir algumas regras específicas. O devedor, desde logo, deve optar entre submeter-se às regras estabelecidas para a generalidade dos empresários ou pela apresentação de um Plano Especial (esta última alternativa tem sido a mais comum).

 

Página 366

Optando pela apresentação de Plano Especial de recuperação, o devedor terá direito ao parcelamento das dívidas existentes na data da distribuição do pedido.

As obrigações sujeitas ao Plano Especial poderão ser pagas em até 36 parcelas mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 180 dias da data da distribuição do pedido de recuperação judicial. O número exato de parcelas será definido na proposta que o microempresário ou empresário de pequeno porte apresenta com o pedido de recuperação judicial.

Caso o devedor opte por apresentar o Plano Especial, o procedimento da RJ será bastante simplificado. A assembleia geral dos credores, por exemplo, não será convocada para deliberar sobre o Plano Especial, cabendo sua apro­vação ou rejeição exclusivamente ao juiz. Se mais da metade de cada classe de credores manifestar objeção ao plano, o juiz deve decretar a falência do devedor.

Inicia-se o processo com a petição do devedor expondo as razões da crise e apresentando proposta de renegociação do passivo, dentro das bali­zas legais indicadas. Normalmente, a proposta é apresentada pela hipótese mais favorável ao devedor proponente, quer dizer, contemplando a divisão do passivo em 36 parcelas. Apresentado e recebido o pedido de recuperação judicial, o juiz já decide de pronto, homologando a proposta apresentada ou decretando sua falência. Há, também, a alternativa de determinar a reti­ficação do Plano Especial, quando desconforme com os parâmetros da lei, hipótese em que a decretação da falência caberá se e quando desobedecida a determinação judicial.

Cabe aos credores eventualmente interessados a iniciativa de suscitar em juízo suas objeções, cujo conteúdo só pode versar sobre a adequação da proposta à lei. Se suscitada, o juiz determinará ao requerente que se manifeste, oportunidade em que poderá ser superado o desentendimento, mediante revisão da proposta por acordo entre as partes. Se, porém, for questionada a objeção, o juiz decidirá o conflito, homologando a RJ ou decretando falência.

Com a sentença de homologação da proposta de parcelamento, operam-se os efeitos do benefício, como a suspensão das ações e execuções e a novação das obrigações compreendidas no Plano Especial.

 

Página 367

6. CONVOLAÇÃO EM FALÊNCIA

Dá-se a convolação da recuperação judicial em falência em quatro hipóte­ses: d) deliberação dos credores reunidos em assembleia, pelo voto da maioria simples do plenário, quando a situação de crise econômica, financeira ou pa­trimonial da sociedade devedora é de suma gravidade e que não há sentido em qualquer esforço de reorganização; b) não apresentação do plano pelo devedor no prazo, que não pode ser prorrogado; c) rejeição do plano pela assembleia dos credores; d) descumprimento do plano de recuperação.

Convolada a recuperação judicial em falência, por qualquer razão, os cre­dores quirografários posteriores à distribuição do pedido serão reclassificados como credores extraconcursais (LF, art. 67, caput). Já os quirografários ante­riores à recuperação judicial serão reclassificados como privilegiados, desde que tenham continuado a conceder crédito à empresa em dificuldade (LF, art. 67, parágrafo único). O objetivo dessas reclassificações é estimular os agentes econômicos (principalmente os fornecedores de insumo e crédito) a continuar atendendo à demanda por crédito proveniente da empresa em recuperação judicial, apesar do agravamento do risco.