Este material foi adaptado pelo
laboratório de acessibilidade da universidade federal do rio grande do norte,
em conformidade com a lei 9.610 de 19/02/1998, capítulo IV, artigo 46.
Permitindo o uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficiência
visual. Não podendo ser reproduzido, modificado e utilizado com fins
comerciais.
Revisado por: Mariana Julia do
Nascimento Pereira.
Natal, agosto de 2018.
COELHO, Fábio Ulhoa. Teoria geral do direito cambiário. In:_____. Novo manual de direito comercial: direito de empresa.
29. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. cap. 16, p. 235-242.
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TERCEIRA
PARTE – Direito Cambiário
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Capítulo
16
Teoria
Geral do Direito Cambiário
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■ 1. CONCEITO DE
TÍTULO DE CRÉDITO
Os títulos de crédito são
documentos representativos de obrigações pecuniárias. Não se confundem com a
própria obrigação, porque a representam.
Uma determinada obrigação pode
ser representada por diferentes instrumentos jurídicos. Se uma pessoa, agindo
com culpa, provoca danos em bens de propriedade alheia com o seu automóvel,
deste ato ilícito surgirá a obrigação de indenizar os prejuízos causados. Se
devedor e credor estiverem de acordo quanto à existência da obrigação e também
quanto à sua extensão (o valor da indenização
devida), esta pode ser representada por um título
de crédito - cheque, nota promissória ou letra de câmbio, no caso. Se as partes
concordam quanto à existência da obrigação, mas não têm condições de mensurar
sua extensão, ou chegar a um acordo sobre esta, a mesma obrigação de indenizar
os danos provenientes do acidente poderia ser representada por um
“reconhecimento de culpa”. Se, porém, não concordam sequer com a existência da
obrigação (o motorista do veículo entende não ter agido com culpa, por
exemplo), a obrigação de indenizar somente poderá ser documentada por outro
título jurídico - uma decisão judicial que julgue procedente a ação de
ressarcimento promovida pelo prejudicado.
Nestes exemplos, uma mesma e
única obrigação, a de indenizar os danos decorrentes do ilícito, foi
representada por três documentos jurídicos distintos: título de crédito,
reconhecimento de culpa e sentença judicial. Outros poderiam ser lembrados. O
que interessa acentuar, de início, é esta natureza do título de crédito, esta
sua es- sencialidade de instrumento representativo de obrigação.
As obrigações representadas em um
título de crédito ou têm origem extracambial (como no exemplo acima ou no caso
de um contrato de compra e venda, mútuo etc.) ou têm origem exclusivamente
cambial (como na obrigação do avalista).
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Da
circunstância de ser representada determinada obrigação por um 01 outro
instrumento decorrem consequências jurídicas bem distintas. O credor de
obrigação representada por um título de crédito tem direitos, de conteúdo
operacional, diversos do que teria se a mesma obrigação não se encontra
representada por um título de crédito. Basicamente, há duas especificidades que
beneficiam o credor por um título de crédito: ele possibilita uma negociação
mais fácil do crédito representado e a cobrança judicial deste é mais eficiente
célere. A estas circunstâncias especiais costuma a doutrina se referir como
atributos dos títulos de crédito chamados respectivamente de negociabilidade
(facilidade de circulação do crédito) e executividade (maior eficiência
cobrança).
Voltando
ainda ao mesmo exemplo, o credor da indenização, se a tive representada num
título de crédito, poderá utilizar o crédito em seu giro econômico com mais
facilidade - poderá, por exemplo, oferecê-lo como garantia em empréstimo
bancário ou pagar seus próprios credores com o título, endossando-o. A mesma
facilidade não existirá se o crédito estiver representado por sentença
judicial ou por documento de reconhecimento de culpa, em caso de inadimplemento
do devedor, o credor de um título de crédito não precisa promover a prévia ação
de conhecimento, para somente depois poder executar o seu crédito. Os títulos
de crédito são definidos em lei como título executivos extrajudiciais (CPC,
art. 784,1), e, assim, possibilitam a execução imediata do valor devido. Este
mesmo direito, de conteúdo operacional teria o credor cujo crédito estivesse
representado pelo documento de reconhecimento de culpa.
O
conceito de título de crédito mais corrente, elaborado pelo jurista italiano
Vivante, é o seguinte: “Documento necessário para o exercício do direito
literal e autônomo, nele mencionado”. Deste conceito é possível extraírem-se os
princípios gerais do regime jurídico-cambial, do direito cambiário.
2. PRINCÍPIOS DO DIREITO CAMBIÁRIO
Três
são os princípios que informam o regime jurídico-cambial:
cartularidade,
literalidade e autonomia.
Cartularidade. Para que o credor de um título de
crédito exerça os direitos por ele representados é indispensável que se encontre
na posse do documento (também conhecido por “cártula”). Sem o preenchimento
dessa condição, mesmo que a pessoa seja efetivamente a credora, não poderá
exercer seus direitos. Por isso é que se diz, no conceito de título de crédito,
que ele é um documento necessário para o exercício do
direito nele mencionado.
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Em virtude desse princípio, não
é possível promover a execução judicial do crédito representado instruindo-se a
petição inicial com cópia xerográfica do título de crédito. A execução (assim
também o pedido de falência baseado na impontualidade do devedor) somente
poderá ser ajuizada acompanhada do original do título de crédito, da própria
cártula, como garantia de que o exequente é o credor, de que ele não negociou o
seu crédito. Este é o princípio da cartularidade.
Ultimamente,
o direito tem criado algumas exceções ao princípio
da cartularidade, em vista da informalidade que caracteriza os negócios comerciais. Assim, a
Lei das Duplicatas admite a execução judicial de crédito representado por este
tipo de título sem a sua apresentação pelo credor (LD, art. 15, § 2.°) (Cap.
22, item 4). Outro importante fato que tem interferido com a atualidade desse
princípio é o desenvolvimento da informática no campo da documentação de
obrigações comerciais, com a criação de títulos de crédito eletrônicos, que não são cartulares.
Literalidade. Segundo o princípio da literalídade, não terão eficácia para as relações
jurídico-cambiais os atos jurídicos não instrumentalizados pela própria cártula
a que se referem. O que não se encontra expressamente consignado no ter do
título de crédito não produz efeitos nas relações jurídico-cambiais. Um aval
concedido em instrumento apartado da nota promissória, por exemplo, não
produzirá os efeitos de aval, podendo, no máximo, gerar efeitos na órbita do
direito civil, como fiança. A quitação pelo pagamento de obrigação representada
por título de crédito deve constar do próprio título, sob pena de não liberar o
devedor da obrigação.
Autonomia. Pelo
princípio da autonomia, entende-se
que as obrigações representadas por um mesmo título
de crédito são independentes entre si. Se uma dessas obrigações for nula ou
anulável, eivada de vício jurídico, tal fato não comprometerá a validade e
eficácia das demais obrigações constantes do mesmo título de crédito. Se o
comprador de um bem a prazo emite nota promissória em favor do vendedor e este
paga uma dívida dele, perante terceiro, transferindo-lhe o crédito representado
pela nota promissória, caso o bem vendido venha a ser restituído ao vendedor em
razão de vício redibitório, o comprador não se libera da obrigação de pagar o
título junto ao terceiro. Deverá, ao contrário, pagá-lo e, em seguida, demandar
ressarcimento perante o vendedor da compra e venda frustrada.
O princípio da autonomia se
desdobra em dois subprincípios: abstração e inoponibilidade das exceções
pessoais aos terceiros de boa-fé. São subprincípios porque, embora formulados
diferentemente, nada acrescentam à disciplina decorrente do princípio da
autonomia.
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O subprincípio da abstração é uma
formulação derivada do princípio da autonomia que dá relevância à ligação entre
o título de crédito e a relação, ato ou fato jurídicos que deram origem à
obrigação por ele representada; o sul princípio da inoponibilidade das exceções
pessoais aos terceiros de boa-fé, por sua vez, é, apenas, o aspecto processual
do princípio da autonomia, ao circunscrever as matérias que poderão ser arguidas como
defesa pelo devedor de um título de crédito executado.
Os
três princípios do direito cambiário não são produtos do engenho do legislador
e dos juristas, apenas. Ao contrário, decorrem de um longo processo histórico,
em que os comerciantes vêm desenvolvendo e aprimorando os mecanismos de tutela
do crédito comercial. Neste sentido, entende-se como um determinado empresário
credor pode receber, com segurança, em pagamento por parte de seu devedor, um
título de crédito de que este seja o titular, de responsabilidade de um
desconhecido. Com efeito, há um complexo aparato jurídico estruturado (o regime
jurídico-cambial) que garante ao empresário credor: a) aquela pessoa que lhe transfere o título (o seu devedor) não
poderá cobrá-lo mais (princípio da cartularidade); b) todas as relações jurídicas que poderão interferir com o crédito
adquirido são apenas aquelas que cortam, expressamente, do título e nenhuma
outra (princípio da literalidade); e c)
nenhuma exceção pertinente à relação da qual ele não tenha participado terá
eficácia jurídica quando da cobrança do título (princípio da autonomia.
Tendo,
então, estas garantias, o empresário se sentirá seguro em receber em pagamento
de seu crédito um título devido por alguém que desconhece. Desta forma, o
direito protege o próprio crédito comercial e possibilita a sua circulação com
mais facilidade e segurança, contribuindo para o desenvolvei mento da atividade
comercial.
3. CLASSIFICAÇÃO DOS
TÍTULOS DE CRÉDITO
A
classificação dos títulos de crédito se faz por quatro principais critérios,! a
saber: a) quanto ao modelo; b) quanto à estrutura; c) quanto às hipóteses dei
emissão; d) quanto à circulação.
O
primeiro desses critérios distingue os títulos de crédito entre aqueles de modelo
livre e os de modelo vinculado. No primeiro grupo, de que são exemplos a letra
de câmbio e a nota promissória, estão os títulos de crédito cuja forma não precisa
observar um padrão normativamente estabelecido. Os seus requisitos devem ser cumpridos para que se constituam títulos de
crédito, mas a lei não determina um modelo formal específico para eles.
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Já o grupo dos títulos de modelo
vinculado, em que se encontram o cheque e a duplicata mercantil, reúne aqueles
em relação aos quais o direito definiu um padrão para o preenchimento dos
requisitos específicos. Um cheque somente será um cheque se lançado no
formulário próprio fornecido pelo próprio banco sacado. Mesmo que se lancem em
um instrumento diverso todos os requisitos que a lei estabelece para o cheque,
este documento não será título de crédito, não produzirá os efeitos jurídicos
do cheque.
No tocante ao critério pertinente
à estrutura, os títulos de crédito serão ordem de pagamento ou promessa de
pagamento. N o primeiro caso, o saque cambial dá nascimento a três situações
jurídicas distintas: a de quem dá a ordem, a do destinatário da ordem e a do
beneficiário da ordem de pagamento. No caso da promessa, apenas duas situações
jurídicas distintas emergem do saque cambial: a de quem promete pagar e a do
beneficiário da promessa. A letra de câmbio, o cheque e a duplicata mercantil
são ordens de pagamento, ao passo que a nota promissória é uma promessa de
pagamento.
Quanto às hipóteses de emissão, os títulos de crédito ou são causais ou não causais
(também chamados de abstratos), segundo a lei circunscreva, ou não, as causas
que autorizam a sua criação. Um título causal somente pode ser emitido se
ocorrer o fato que a lei elegeu como causa admissível para sua emissão, ao
passo que um título não causal pode ser criado por qualquer causa, para
representar obrigação de qualquer natureza. A duplicata mercantil é título
causal, porque somente pode ser criada para representar obrigação decorrente de
compra e venda mercantil. Já o cheque e a nota promissória podem ser emitidos
para representar obrigações das mais
diversas naturezas.
Finalmente, em relação ao negócio
jurídico que opera a transferência da titularidade
do crédito representado pela cártula, ou seja,
quanto à circulação, os títulos de crédito podem ser ao portador ou
nominativos. Os títulos ao portador não identificam o credor e são, por isso,
transmissíveis por mera tradição (nome técnico para a entrega de bem móvel);
enquanto os títulos nominativos identificam o credor e, portanto, sua
transferência pressupõe, além da tradição, a prática de um negócio jurídico-cambial.
Os títulos de crédito nominativos
ou são à ordem ou não à ordem. Os nominativos com a cláusula “à ordem” circulam
mediante tradição acompanhada de endosso, e os com a cláusula “não à ordem”
circulam com a tradição acompanhada de cessão civil de crédito. Endosso e
cessão civil são atos jurídicos de transferência
da titularidade de crédito, que se diferenciam quanto aos efeitos (Cap. 18,
item 3).
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No
Código Civil, o conceito de títulos nominativos é diverso. Seriam desta
categoria os títulos em que o nome do favorecido consta de registros do
emitente (art. 921) e cuja circulação depende de alterações neste registro. Não
há, no direito brasileiro, nenhum título de crédito que atenda a essa condição.
4. TÍTULOS DE CRÉDITO NO
CÓDIGO CIVIL
O
Código Civil contém normas sobre títulos de crédito (arts. 887 a 926) que se
aplicam na hipótese de lacuna na lei específica (art. 903). Portanto, não têm
aplicação as disposições do Código Civil quando o título de crédito está
disciplinado exaustivamente por lei própria. A letra de câmbio e a nota
promissória não se submetem a essas disposições porque a Lei Uniforme de
Genebra (LU) as disciplina por completo. Assim também o cheque, disciplinado
inteiramente pela lei respectiva (LC). A duplicata igualmente não se submete às
prescrições do Código Civil porque a lei correspondente a submete ao regime
legal aplicável à Letra de Câmbio, que, como visto, é exaustivo (LD, art. 25).
É
importante ressaltar essa distinção porque o Código Civil contempla disposições
diversas das que tradicionalmente se encontra no direito cambiário,
principalmente em relação à circulação. O endosso, por exemplo, quando
aplicável o Código Civil, não importa, em princípio, responsabilidade do endossante (art.
914). A regra contida na lei aplicável à letra de câmbio e demais títulos acima
referidos, no entanto, é exatamente a oposta, que vincula, em regra, o endossante ao
pagamento do título (LU, art. 15; LC, art. 21).
Por
enquanto, o Código Civil tem aplicação apenas a três títulos de crédito
típicos, que não foram disciplinados completamente pelas respectivas leis de
regência: o Warrant Agropecuário, o Conhecimento de Depósito Agropecuário (Lei
11.076/04) e a Letra de Arrendamento Mercantil (Lei 11.882/08).
Alguns
autores consideram o Código Civil aplicável também em mais uma hipótese, a dos
títulos criados pelos próprios interessados, independentemente de previsão
legal (atípicos ou inominados). Citam como exemplo o Fica (ou
vaca-pape 1), que tem sido utilizado para documentar a obrigação de entrega de
cabeças de gado no Centro-Oeste. Os títulos criados pelos próprios
interessados não são inválidos como documentos representativos de obrigação,
mas é questionável sua regência pelo direito cambiário.