Título: Combate ao
racismo
Autor: Conselho
Federal de Serviço Social
Este material foi
adaptado pelo Laboratório de Acessibilidade da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, em conformidade com a Lei 9.610 de 19/02/1998, não podendo ser
reproduzido, modificado e utilizado com fins comerciais.
Adaptado por:
David Santos
Adaptado em: março
de 2025.
Padrão vigente a
partir de março de 2022.
Referência: CONSELHO
FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Combate ao racismo e o exercício profissional de
assistentes sociais no Brasil. In: CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Assistentes sociais no combate ao racismo.
Brasília: CFESS, 2022. p. 69-86.
P. 69
Por que falar de racismo para assistentes
sociais?
A campanha de gestão do conjunto CFESS-CRESS,
Assistentes Sociais no Combate ao Racismo, teve, nos últimos três anos, papel
central na difusão desta temática para o Serviço Social brasileiro. Já contando
com inúmeros/as intelectuais e militantes da luta antirracista na categoria, as
peças da campanha de gestão provocaram uma verdadeira ebulição na profissão,
ampliando o número de debates sobre o tema, de iniciativas para tratá-lo no
âmbito da formação profissional, de pesquisas e, especialmente, fortalecendo
projetos e ações de combate ao racismo por meio do exercício profissional.
P. 70
Um dos resultados importantes desse
processo foi reafirmar que o combate ao racismo é parte da nossa identidade
com a classe trabalhadora. Não dá para desconsiderar o fato de que a classe
trabalhadora brasileira é preta e que, portanto, os direitos sociais atingidos
pelos cortes orçamentários e pelas contrarreformas no Brasil não são apenas os
direitos “dos/as usuários/as”. São os nossos direitos também, já que somos
muitas mulheres e homens negros/as nesta categoria. Sendo assim, o combate ao
racismo é parte inerente das lutas que temos travado por melhores condições de
vida e trabalho para assistentes sociais.
De um modo geral, o racismo é
considerado uma ideologia que justifica a existência de supremacia de uma raça
sob a/s outra/s e privilégios dela decorrentes. Essa ideologia, que se forjou
com base em formulações pseudocientíficas do século XVIII, tem antepassados
mais longínquos - por ocasião dos séculos XV e XVI e das chamadas “grandes
navegações” - quando os europeus se deparam com povos de aspecto físico
distinto do seu biotipo. No contexto do capitalismo
mercantil e da necessidade de exploração das riquezas naturais encontradas, foi
útil aos europeus brancos classificar aqueles povos (indígenas, asiáticos,
africanos) como “primitivos”, portanto, menos “evoluídos”, e justificar sua
dominação como uma “bondade”, afinal, tratava-se de “civilizá-los”. Em nome
disso se praticaram genocídios e uma série de violências físicas e culturais
contra esses povos, que atravessaram séculos de colonização europeia[Nota4].
Esse princípio histórico ganha força
e nova “roupagem” no século XVIII após a teoria darwinista sobre a “evolução
das espécies” - diga-se de passagem,
P. 71
formulada para explicar a natureza orgânica - sendo trasladada para explicar a
sociedade e justificar a hierarquização das raças. Sofreu ainda outra reatualização, por ocasião da ascensão do nazismo, que, em
nome da “supremacia da raça ariana”, como sabemos, cometeu o maior genocídio
documentado da história da humanidade contra judeus. Pouco depois de finalizada
a segunda guerra, a UNESCO emite (em 1950) um documento chamado “Declaração das
raças” que propõe a superação da ideia de “raça”, considerada como nociva para
a humanidade, exatamente por ter produzido, em diferentes episódios
históricos, genocídios e inúmeras violações de direitos humanos dos grupos
considerados “inferiores”.
A inexistência de raças é considerada
atualmente uma verdade científica já comprovada. Porém o uso desse termo tem
sido útil, em se tratando de combater a ideia de que a miscigenação brasileira
tenha eliminado o racismo. Ou seja, o fato de biologicamente a ideia de raça
não ter fundamento, não quer dizer que ela tenha desaparecido da vida social.
Isso, porque, sendo de natureza cultural, foi introjetada
e continuou reproduzindo racismo, como forma de preconceito e manutenção de
privilégios e, no caso do Brasil, simultaneamente, convivendo com a falácia do
“mito” da democracia racial[Nota5].
Nesse sentido, não somos nós, negros
e negras, que iremos reproduzir o discurso do “desparecimento” da raça negra e
pasteurizarmo-nos pelo
P. 72
“morenismo” brasileiro. Não! Reivindicar-se da raça
negra tem uma potência, no sentido de explicitar o preconceito e de sinalizar
privilégios fundamentados na associação entre raça e classe.
Mas o que isso tem a ver com o
exercício profissional de assistentes sociais? Essa prática social
discriminatória encontra-se amplamente difundida nos nossos ambientes de
trabalho, já que no Brasil pode-se dizer que o racismo é uma política de
Estado. Muitas são as evidências de que a estrutura das instituições públicas
reproduz preconceitos raciais e isso tem se agravado na conjuntura atual.
Temos, de um lado, o contexto mundial
de barbarização da vida social sob o capitalismo, em
que a desigualdade parece não ter mais limites para crescer e se reproduzir. Um
contexto que tem sido “fermento vivo” para revigorar o conservadorismo em seus
diferentes matizes e fazer ressurgir desvalores que
julgávamos superados por lamentáveis experiências históricas recentes, como o
nazi-fascismo.
Em diferentes países, o racismo,
associado à xenofobia, “sai do esgoto” e ganha eleições. O crescimento do
desemprego estrutural tem sido utilizado como “justificativa” para o
fechamento de fronteiras e a prática do extermínio de milhares de imigrantes,
especialmente de africanos/as. Para o capital, é como se a população sobrante
para as suas necessidades de exploração já tivesse ultrapassado as dimensões
úteis e fosse necessário exterminar boa parte dela. O racismo fornece uma
espécie de “critério” para fazer isso, alimentando velhos mitos de
inferioridade racial. Marinucci (2018, p. 8) indica
que o contexto de agravamento da crise tem produzido novas formas de racismo,
traduzidas especialmente na difusão de
[...]
políticas migratórias restritivas e “malthusianas”, que legitimam e são
legitimadas pela nova onda do delírio racista, principalmente na versão da
xenofobia. Essas políticas encarnam as duas formas tradicionais de racismo, que
Taguieff (1999) de-
P. 73
nomina de “racismo de aniquilamento” e “racismo de
exploração”: a primeira visa à eliminação física de um determinado grupo
social, enquanto a segunda sua exploração. As políticas imigratórias
restritivas e securitárias, por um lado, provocam - de forma ativa ou omissiva
- a morte de milhares de migrantes e solicitantes de refúgio, reduzindo - malthusianamente - o número de ingressos; por outro,
alimentam dinâmicas de ilegalização e deportabilidade (De Genova, 2002) que possibilitam a
inclusão subordinada e a consequente exploração dos recém-chegados. Em outros
termos, são políticas que visam à criação de um limiar - físico e simbólico -
além do qual a vida humana se torna menos humana (MARINUCCI, 2018, p.8)
Esse fenômeno, embora não esteja
presente com a mesma intensidade em todas as cidades brasileiras, se reproduz
entre nós também, especialmente o que o autor chamou de “racismo de
exploração”. É crescente o número de solicitações de refúgios no Brasil, de
acordo com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare),
do Ministério da Justiça. A solicitação de refúgio, no entanto, não significa
um reconhecimento automático dessas pessoas como refugiadas, que passa por um
período de processamento antes de ser deferido, e nem sempre o é. O drama mais
recente no Brasil, por exemplo, é o de venezuelanos/as, que foram responsáveis
por cerca de 65% de todos os pedidos de refúgio realizados no país em 2019.
Enquanto isso, esses/as e outros/as imigrantes, de nacionalidade diversa, mas,
em sua maioria, negros/as, permanecem no país de forma ilegal, se sujeitando a
todo tipo de ocupação e aos mais absurdos graus de exploração de sua força de
trabalho.
As expressões do racismo que atingem
negros/as no Brasil (imigrantes ou nativos/as) não são apenas violenta e
incontestavelmente visíveis. São também difusas e naturalizadas no campo da
cultura e da formação de valores, de modo que não é tarefa fácil
caracterizá-las, ao contrário do que ocorreu em alguns outros países, como EUA
e África do Sul, onde houve uma legislação explicitamente segregacionista.
P. 74
A essa “naturalização”, se soma a
impunidade brasileira relacionada ao descumprimento da legislação em geral, mas
especialmente da legislação sobre crimes raciais[Nota6]. Nesse aspecto, é preciso considerar a
transversalidade do racismo institucional em diversos meios - principalmente na
polícia, que é um dos agentes que mais explicitamente pratica esse tipo de
crime no Brasil, contribuindo para essa dissimulação do racismo em nosso país.
Por isso, é tão necessário falar de racismo institucional e da sua presença nos
locais de trabalho de assistentes sociais.
O racismo institucional e sua
presença nos locais de trabalho de assistentes sociais
Para chegar no combate ao racismo
pelas/os assistentes sociais, além de nos entendermos minimamente sobre o que
estamos chamando de racismo e suas causalidades, é preciso tratar outra
mediação que se relaciona com o ambiente em que exercemos nossa profissão: o
ambiente institucional. Por essa razão, é preciso conceituar o que seja o
chamado “racismo institucional” ou sistêmico.
Esse fenômeno “[...] foi definido
pelos ativistas integrantes do grupo Panteras Negras Stokely
Carmichael e Charles Hamilton em 1967, como
P. 75
capaz de produzir a falha coletiva de uma organização em prover um
serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou
origem étnica” (GELEDES, 2013, p. 17). Trata-se de um condicionamento
reproduzido nas distintas ramificações institucionais do Estado (e também de
organizações privadas) que dificulta, por inúmeros mecanismos, o acesso a
direitos, bens e serviços ou lhes oferece um acesso qualitativamente inferior,
com base na hierarquização racial. Isso pode ser traduzido em
[...] mecanismos
seletivos de privilegiamento e barreiras - por
exemplo: linguagens, procedimentos, documentos necessários, distâncias, custos,
etiquetas, atitudes etc. - [...] interpostos sem qualquer controle ou
constrangimento, dificultando ou impedindo a plena realização do direito e o
atendimento às necessidades expressas. Assim, instaura-se em cada um destes
momentos e em todo o percurso lógicas, processos, procedimentos, condutas, que
vão impregnar a cultura institucional - o que se não os torna invisíveis, os
faz parte da ordem “natural” das coisas - capazes de dificultar ou impedir o
alcance pleno das possibilidades e resultados das ações, programas e políticas
institucionais (GELEDÉS, s/d, p. 19).
Na descrição acima, a ênfase recai
sobre a “lógica” institucional, explicitando como ela traz uma vivência
perversa para todos/as aqueles/as que não a compreendem e, além disso, não
encontram, nos/as agentes institucionais, apoio para decifrar esse emaranhado
de informações. Nesse caso, alguém poderá questionar que esse fenômeno atinge
não só negros/as. Trata-se de algo observável para
distintos segmentos populacionais, em especial aqueles com baixo acesso à
escolarização. Esse argumento é verdadeiro, mas é preciso lembrar que, segundo
dados de 2017, o analfabetismo entre pretos/as e pardos/as é de 9,3%, sendo
esse índice correspondente a 4% entre os/as autodeclarados/ as
brancos/as (IBGE, 2018). Poderia citar outros percentuais da mesma
P. 76
pesquisa, mostrando que as desigualdades no acesso à educação têm cor em todos
os níveis: embora atinja também a população branca e pobre, indiscutivelmente
esse universo é majoritariamente composto de negros/as, por todas as razões de
estratificação social e racial que já conhecemos.
Outra expressão do racismo
institucional, o preconceito racial no mercado de trabalho é, em boa medida,
decorrência da política de branqueamento da população brasileira pelo estimulo
à imigração europeia após a abolição da escravatura. Análise interessante do
Ministério Público do Estado de Pernambuco (MPPE, 2013) indica que, em função
desse fato, ocorrido no final do século XIX, o Estado incidiu fortemente de
modo a privilegiar os/as brancos/as na configuração do mercado de trabalho e
isso deve ser considerado como determinante ainda atual das dificuldades de
contratação de negros/as.
Conectado a isso, e para não deixar
de citar um tema extremamente atual, no acesso à previdência social no Brasil,
também se trata de uma obviedade que, devido à sua participação
majoritariamente precária no mundo do trabalho, é reduzida a participação de
negros - e, especialmente de negras - no universo de contribuintes da previdência
pública.
No caso do direito à saúde, os exemplos
de racismo institucional são inúmeros. Um dos mais recorrentes é o descaso de
profissionais da área no preenchimento do quesito raça/cor, por meio dos
Sistemas de Informação de Natalidade, de Mortalidade e de Agravos de
Notificação-Adoecimento. Esses dados são centralizados pelas Secretarias
Estaduais de Saúde e repassados ao Ministério da Saúde desde 1996. O não preenchimento
adequado - ou simplesmente o não preenchimento desse dado - dificulta a
qualidade da informação sobre raça/cor presente nas estatísticas da área de
saúde e a identificação de fenômenos/ocorrên-
P. 77
cias em que a cor/raça poderiam ter um peso significativo. É o caso da
anemia falciforme[Nota7] e dos óbitos por violência, por exemplo.
Penso ser fundamental detalhar um
pouco mais algumas expressões de racismo institucional na saúde, que afetam as
mulheres negras. Somos nós que compomos a maioria estatística no perfil de
mortalidade materna no Brasil. A publicação do MPPE (2013) cita dados de
algumas pesquisas que podem explicar as razões disso, sinalizando a presença do
racismo institucional em diferentes níveis do atendimento à
mulheres negras da política de saúde:
Ø
dificuldades para encontrar atendimento (“peregrinação”, na linguagem oficial da
pesquisa citada) são citadas por 31,8% das pretas, 28,8% das pardas e 18,5% das
brancas;
P. 78
mulheres negras apresentaram menores chances de passar por consultas
ginecológicas completas e por consultas de pré-natal em período igual ou
inferior ao 4° mês de gravidez - além da peregrinação, contribui para a falta
de qualidade no serviço o fato de que os/as médicos/as (em geral brancos/as)
tocam menos as mulheres negras;
Ø
mulheres negras recebem menos informações sobre os sinais do parto, alimentação
saudável durante a gravidez e sobre a importância do aleitamento materno nos
primeiros seis meses de vida do/a bebê;
Ø
o parto vaginal para pretas e pardas é mais dolorido considerando- se a
não aplicação da anestesia em 21,8% delas contra 16,4% desse tipo de ocorrência
entre brancas;
Ø
é constante entre profissionais de saúde a associação entre a mulher
negra pobre e a promiscuidade, que se observa “em piadas e na qualidade do
atendimento, também nas intervenções e tratamentos dispensados a estas mulheres”
(MPPE, 2013, p. 93);
Na educação, são vários também os
exemplos de práticas racistas entre os/as educandos/as (hoje disfarçadas sob a genericidade do “bullying”), mas
também entre professores/as[nota8].
P. 79
No levantamento que realizei, não
encontrei nada substantivo que abordasse expressões do racismo institucional na
política de assistência social. Penso que isso ocorre não pela inexistência de
racismo institucional nessa política pública, mas porque talvez ainda careça
de pesquisas a respeito. Certamente em face de suas diretrizes institucionais
voltadas para atendimento à família, especialmente no nível básico, com a grande
presença das mulheres negras nesses serviços, o racismo institucional deve se
reproduzir. Não poderei, entretanto, tratar as demais instituições de política
pública no espaço dessa fala, por razões de espaço. Assim, avançarei para
abordar algumas das dificuldades mais recorrentes para lidar com o racismo
institucional.
É praticamente unânime que se
mencione, em primeiro lugar, a dificuldade existente para diagnosticar esse
fenômeno como uma prática institucional. Essa dificuldade é espelho da que se
encontra presente e difusa na sociedade brasileira de um modo geral. Resultados
de uma pesquisa do Datafolha sobre discriminação racial no Brasil, realizada em
1995, apontam que 89% dos/as brasileiros/as reconhecem o preconceito contra
os/as brasileiros/as negros/as, mas somente 10% o admitem como seu (apud
FERREIRA, 2002). Ou seja, o racismo parece ser, segundo esses dados, um
fenômeno de sujeito indeterminado!
E se lidar com a necessidade de rever
valores e costumes individuais e sociais para o combate ao racismo é muito
difícil, devem-se multiplicar algumas vezes mais as dificuldades de lidar com o
racismo institucional.
P. 80
Isso porque ele tem ainda, a seu
favor, a “impessoalidade” da lógica institucional, sua “burocracia”, como algo
que naturaliza e padroniza comportamentos profissionais em seu interior, como
se não fosse possível lidar com as rotinas institucionais de outro modo. Esse
discurso é bastante útil para camuflar, nesse lugar, as práticas racistas.
Outras duas dificuldades podem ainda
ser sinalizadas, segundo MPPE, 2013:
Ø
o desconhecimento, dentro das instituições, dos mecanismos legais
antirracismo que, em boa parte, pode também refletir a desimportância
conferida à necessidade de punir essas condutas, colocando esse racismo
inconscientemente na “conta” da impunidade geral do país;
Ø
“fazer com
que os profissionais, especialmente os da saúde, compreendam ou percebam o
racismo como um grave fator de desigualdade no acesso ao atendimento o que,
por sua vez, repercute na baixa representatividade desses profissionais
(principalmente do médico) nas discussões, seminários, capacitações, sobre o
tema” (idem, p. 105).
Essas dificuldades nos fazem
reconhecer, portanto, que o “[...] racismo se estabelece e desenvolve acima e
além das instituições. Desse modo, podemos compreender os limites colocados aos
indicadores e à capacidade das instituições per se, de produzirem
transformações mais profundas nas relações sociais” (GELEDÉS, 2013, p. 39).
Porém, não podemos deixar de considerar que essa seja uma “trincheira” de luta
importante, no interior da qual assistentes sociais têm um papel ético-político
fundamental, conforme veremos a seguir.
Nossas tarefas como assistentes
sociais no combate cotidiano ao racismo
Na parte final desse texto, farei
algumas indicações de como podemos nos envolver profissionalmente no combate ao
racismo. Esse é o principal
P. 81
objetivo da campanha de gestão do Conjunto CFESS-CRESS nesse triênio. A campanha
também possui outros objetivos: de amplificar a presença de nossas entidades
na organização política existente para o combate ao racismo no Brasil e dar
visibilidade aos nossos posicionamentos sobre o tema, interferindo socialmente
nesse debate tão importante e necessário na sociedade atual, conforme já
destaquei anteriormente.
Gostaria, nessas últimas páginas, de
chegar ao desenvolvimento de nossas atividades e dialogar sobre possibilidades
de combate ao racismo que estão ao nosso alcance. Trata-se de um compromisso
ético-político profissional com o repúdio veemente a todo autoritarismo,
violação de direitos humanos e reprodução de preconceitos, opressões e explorações.
Nesse sentido, preciso abrir aqui um parêntese.
Entendo que a tarefa cabe a todas/os
nós, sejamos assistentes sociais negras/os ou “não negras/os”. A luta
antirracista, para acontecer com a intensidade necessária, precisa envolver “o
outro polo”, seja confrontando os/as autodeclarados/as brancos/as, seja
acolhendo-os/as ao nosso lado na trincheira. Obviamente não estou defendendo
que “o lugar de fala” desses/as assistentes sociais e o meu seja o mesmo. No
caso das/os não negras/os, é necessário que cultivem o desenvolvimento de
“[...] uma possível identidade racial branca não-racista que pode ser
alcançada se a pessoa aceitar sua própria branquitude
e as implicações culturais, políticas, socioeconômicas de ser branca, definindo
uma visão do eu como um ser racial” (BENTO, s/d, p. 23). A partir dessa empatia
com a luta antirracista, mas sem deixar de se colocar como também uma pessoa
com o corpo racializado nessa sociedade, podemos
trabalhar juntas/os no combate ao racismo.
Ainda no parêntese e correndo o risco
da polêmica, não posso me furtar de mencionar que esse me parece ser também um
processo necessário para muitas/os de nossas/os colegas assistentes sociais
negras/os. A aquisição de uma “consciência racial” não decorre automaticamente
do
P. 82
fato de sermos negras/os. Em outras palavras, se inexiste equivalência inata
entre ser e consciência, esse processo não pode ser diferente em se tratando da
raça como um conceito cultural e sócio-histórico numa
sociedade classista e alienada.
Mas fechando esse parêntese de “com
quem contamos” para fazer o combate ao racismo como assistentes sociais, quero
falar de atividades possíveis no ambiente institucional, diferenciando-se
somente segundo nossos níveis de inserção (se no âmbito da formulação e gestão
ou se no âmbito da execução direta). Para fazê-lo, busquei inspiração no material
pesquisado sobre racismo institucional da Geledés e
do MPPE, já citados anteriormente, fazendo as devidas adaptações para
considerar nossa particularidade ocupacional.
No nível da gestão, é fundamental não
se deixar levar pela lógica neoliberal que comprime o orçamento das políticas
sociais públicas, reduzindo seu alcance e trabalhando com a focalização como
uma diretriz positiva. Não se trata de uma tarefa fácil, mas é importante
manter-se na disputa pela ampliação de recursos materiais e humanos às
políticas sociais e considerar, em seu interior, a necessidade de contemplar
metas e indicadores voltados à redução das iniquidades raciais, de gênero e de
classe social.
Ainda no nível da gestão, é
importante intensificar as iniciativas de educação permanente, contemplando
abordagens sobre racismo institucional e seu enfrentamento, que possam
reverberar, por exemplo:
Ø
na redefinição de estratégias de acolhimento à população negra, em
especial às mulheres negras;
Ø
no desenvolvimento de ações para a aproximação física e cultural entre
instituições públicas e essa população, atuando na eliminação de entraves que
impedem o/a agente público/a de alcançá-la;
P. 83
Ø na
adequação da infraestrutura de serviços às necessidades da população negra;
Ø na busca de
equiparação do tempo de espera para atendimento segundo raça/cor e
sexo/identidade de gênero;
Ø na difusão
e comunicação institucional do princípio da equidade para gestores/as,
trabalhadores/as e para a população em geral, especialmente as mulheres negras.
Divulgar e, sobretudo, introjetar o princípio da
equidade nas políticas públicas é essencial para ampliar as estratégias de
convívio com a diversidade humana e reconhecer a necessidade de superar as
desigualdades dela derivadas que se apresentem no ambiente institucional.
Do ponto de vista da execução direta, assistentes
sociais podem, no conjunto das equipes de trabalho:
Ø
pautar, na instituição, a necessidade de promover deslocamentos físicos
institucionais em direção a este grupo, cujo acesso aos serviços ofertados
institucionalmente é comprometido ou sub-representado;
Ø
atentar para a necessidade de alterar as formas de abordagem - considerando a
necessidade de deslocamentos aos locais de moradia, onde se realizam abordagem
individuais, alternando-se com atividades coletivas (grupais) que facilitem a
troca de experiências e o agrupamento de questões vividas em comum;
Ø atentar para a necessidade de alterar a
linguagem e se fazer compreender, considerando-se os baixos níveis de
alfabetização/escolaridade;
P. 84
Ø
dialogar com o vocabulário e as
práticas que expressam as diferentes atitudes, crenças (inclusive religiosas)[Nota9] e preferências das/os
usuárias/os, como formas de fortalecer sua autonomia;
Ø
atualizar permanentemente informações sobre características da população segundo
raça/cor e sexo/identidade de gênero - preferencialmente provocando essa
questão como uma ação institucional e/ou da equipe;
Ø
propor atividades conjuntas entre serviços e políticas setoriais do campo da
seguridade social ampliada (como educação, habitação, lazer e emprego), na
perspectiva de ampliar as possibilidades de atendimento;
Ø
provocar a instituição quanto à necessidade de capacitação continuada (educação
permanente) para as equipes, que incluam conteúdos de combate ao racismo
institucional e acolhimento da diversidade. Ademais, é preciso fazer com que
tais iniciativas resultem em metas de cobertura para grupos populacionais
afetados/as pelo racismo, por exemplo;
Ø
estimular a ampliação da representação negra, com equidade de gênero, nos
diferentes mecanismos de participação e controle social nos diferentes setores
das políticas públicas e nas três esferas de gestão;
Ø
conhecer e incorporar, como ferramenta de trabalho, a legislação antirracista
brasileira e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra;
P. 85
Ø colaborar e cobrar que se coletem os dados de cor/raça nos sistemas de
informação do SUS;
Ø consultar esses dados para inclusão da temática da saúde da população negra em
atividades formativas a serem desenvolvidas com usuárias/os e lideranças de
movimentos sociais nos territórios.
Essas são apenas algumas das inúmeras
possibilidades de trabalho de assistentes sociais no combate ao racismo.
Sabemos que essa não é uma tarefa que nos caiba exclusivamente do ponto de
vista profissional. É uma tarefa por demais grandiosa e complexa, que requer
inúmeros/as outros/as aliados/as. Porém, nos últimos 40 anos, nós não fugimos
de tarefas complexas que nos colocam eticamente o horizonte da emancipação
humana. Por que então fugiríamos dessa? Considero que o combate ao racismo
sempre foi parte da luta por uma sociedade verdadeiramente igualitária e não é
de agora que nossas entidades nos convocam para assumi-lo. Façamos então da
trincheira do combate cotidiano ao racismo institucional nosso ponto de partida
e saibamos que cada ação executada na direção de decodificar esse preconceito
em nosso local de trabalho é, em si, uma contribuição essencial para essa
grandiosa tarefa. Racistas não passarão!
Referências
GELEDÉS. Racismo institucional - uma
abordagem conceituai. São Paulo: Geledés Instituto da
Mulher Negra, 2013. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/FINAL-WEB-Racismo
-Institucional-uma-abordagem-conceitual.pdf Acesso em 20/04/2019.
IBGE, Pesquisa Educação 2017.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101576_informativo.pdf
Acesso em 21/04/2019.
P. 86
MARINUCCI, Roberto. Editorial. In:
REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Brasília: CESEM. v. 26,
n. 53, ago. 2018. Disponível em:
http://anpocs.com/index.php/revista-interdisciplinar-de-mobilida-de-humana/user-category/16-remhu/295-vol-26-no-53-brasilia-2018/
6591-revista-interdisciplinar-da-mobilidade-humana Acessoem19/04/2019.
MMPE. No País do Racismo
Institucional - Dez anos de ações do GT Racismo no MPPE. Recife: MMPE, 2013.
Disponível em: https://www.mppe. mp.br/mppe/images/Livro10web.pdf Acesso em 20/04/2019.
UNESCO. Declaração das Raças da
Unesco (18 de julho de 1950). Disponível em:
http://www.achegas.net/numero/nove/decla_racas_09.htm Acesso em 19/04/2019.
Pagina notas de rodapé
Nota 3, página 69: Texto de autoria de Josiane Soares Santos, presidente do
CFESS Gestão 2017-2020 “É de batalhas que se vive a vida” e integrante da
Comissão da Campanha.
Nota 4, página 70: Importante mencionar que ainda existem 61 países colonizados no mundo
contemporâneo: “Dezesseis deles estão sob jurisdição da França, 15 da
Grã-Bretanha, 14 dos Estados Unidos, seis sob jurisdição da Austrália, três da
Nova Zelândia, três da Noruega, dois da Dinamarca e dois da Holanda”. Fonte:
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quantos-paises-ainda-sao-colonias-hoje-em-dia/
Acesso em 20/04/2019.
Nota 5, página 71: Esse “mito”, se autoria de Gibelto
Freyre, é reconhecido por ser uma narrativa que legitima a discriminação racial
e, ao mesmo tempo, forja uma espécie de “identidade nacional” a partir dos anos
1930. “Em sua obra, Freyre postula que a distância social entre dominantes e
dominados é modificada pelo cruzamento inter-racial que apaga as contradições e
harmoniza as diferenças levando a uma diluição de conflitos. Ao postular a
conciliação entre as raças e suavizar o conflito, ele nega o preconceito e a
discriminação, possibilitando a compreensão de que o ‘insucesso dos mestiços e
negros’ deve -se a eles próprios. Desta forma, ele fornece à elite branca os
argumentos para se defender e continuar a usufruir dos seus privilégios
raciais” (BENTO, s/d, p.29).
Pagina notas de rodapé
Nota 6, página 74: Em 1997, a Lei nº 9.459 altera o texto da Lei de Crimes de
Racismo (artigos 1 e 20), que define os crimes resultantes de preconceito de
raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao artigo 140 do Decreto-lei nº 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Assim, no artigo 1, passou a constar
que “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação
ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, enquanto
no artigo 20 afirma-se que é crime “Praticar, induzir ou incitar a
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional”. Desta maneira, passaram a ser considerados conduta criminosa não
apenas os atos relativos ao preconceito ou discriminação por raça ou cor, mas
aqueles que se referem a preconceito ou discriminação por etnia, religião e
origem. [...] A pena é a reclusão de um a três anos e multa. Ao artigo 140 do
Código Penal foi acrescido o parágrafo 3º: “Se a injúria consiste na utilização
de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem: reclusão de um
a três anos e multa” (MPPE, 2013, p.59).
Pagina notas de rodapé
Nota 7, página 77:
“[...] uma doença genética e hereditária que acomete predominantemente negros
(embora, importante dizer, a medicina traga alguns relatos de brancos atingidos
pelo problema) e, infelizmente, é ainda desconhecida pela maioria da população
atingida. Seu nome está relacionado ao fato de os glóbulos vermelhos adquirirem,
com uma alteração provocada pela doença, o aspecto de uma foice, perdendo assim
a forma mais arredondada. Os glóbulos tornam-se endurecidos, perdendo a forma
elástica. Consequentemente, a passagem do sangue por vasos mais finos torna-se
mais difícil, o que leva também a uma precária oxigenação dos tecidos. A falta
de elasticidade provoca ainda a fragilização das membranas dos glóbulos
vermelhos, levando-as a romperem-se mais facilmente, o que causa a anemia. Os
males causados por essa deformidade nos glóbulos são vários: além da perigosa
formação de trombos (bloqueiam o fluxo do sangue), que pode levar à morte, há o
surgimento de feridas nas pernas, tendência a infecções, atraso no crescimento,
dores articulares e dores fortes causadas pela falta de oxigenação, cálculos
biliares, fadiga contínua, problemas neurológicos, cardiovasculares, pulmonares
e renais. No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, a anemia falciforme
atinge cerca de 8% dos negros, e seu surgimento está relacionado à transmissão tanto
pelo pai quanto pela mãe. Só assim o gene alterado é repassado. Quando apenas
um dos pais transmite para o filho, este terá o traço falciforme, mas a doença
não se manifestará (contudo, será transmitida para futuros filhos). Para
detectar a doença, é necessário o exame eletroforese de hemoglobina, assim como
o teste do pezinho, gratuito, onde é possível detectar hemoglobinopatias”.
PE, 2013, p.101).
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Nota 8, página 79: A
naturalização do preconceito na formação da identidade do afrodescendente,
Ricardo Ferreira e Amilton Camargo (2001) nos trazem dois exemplos importantes
para observar o efeito cascata do preconceito racial embutido nas falas e ações
cotidianas. Ambos mostram professoras do ensino fundamental, as duas
acreditando, através de seus discursos, estar atuando pedagogicamente contra o
olhar que vê desprestígio na pele escura. A primeira delas, em entrevista a uma
pesquisadora durante sua pesquisa de mestrado, alega que o preconceito racial
pode ser superado caso os negros utilizem produtos de higiene pessoal que
escondam seu odor. Diz: ‘Uma pessoa que é negra, a pele, a melanina faz com que
o cheiro fique mais
Nota 9, página 84:
“Neste sentido, o Estatuto [da Igualdade Racial] assegura a ‘prática de cultos,
a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e
manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins”, além
da “fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições
beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas’”. (MPPE, 2013, p.
27)